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30 de novembro de 2023

Aquarela do Ary


 




Brasil, meu Brasil brasileiro,
meu mulato inzoneiro,
vou cantar-te nos meus versos.

– Ary Barroso, "Aquarela do Brasil" (1939). 






Um lançamento de peso: uma caixa de CDs com a obra completa do compositor Ary Barroso (1903-1964) surge como um sério indicador do fim da época das chamadas mídias físicas no Brasil, incluindo CDs, DVDs e álbuns de música em vinil. O indicador do fim pode ser confirmado não só no decréscimo dos lançamentos, cada vez mais raros e esparsos, mas também na retração acelerada do mercado da oferta e da procura, porque mesmo nas capitais e nas maiores cidades são raríssimas as lojas que vendem discos em vinil e CDs – e as poucas opções que restam estão nas grandes lojas de departamentos, com espaço cada vez mais restrito ou inexistente para discos, CDs e DVDs. As plataformas on-line de comércio são as últimas opções, mas também nelas a presença de vinis, CDs e DVDs parece estar mesmo em fase de extinção.

A caixa de CDs em questão é “Brasil Brasileiro”, com uma primorosa seleção de gravações de grandes intérpretes para todas as canções de Ary Barroso, um dos mais célebres compositores brasileiros. A caixa traz 20 CDs com 316 canções reunidas em ordem cronológica, em gravações originais da Casa Edison, Odeon, RCA Victor, Copacabana e outras gravadoras, na interpretação do próprio compositor e nas vozes de maiorais da Velha Guarda, entre eles Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Orlando Silva, Mário Reis, Sílvio Caldas, Jorge Veiga, Jamelão, Marlene, Ângela Maria e Elizeth Cardoso. As composições de Ary Barroso tornaram-se clássicos, mas não ficaram esquecidas no passado: ainda hoje estão no repertório do cancioneiro popular e também são destaque entre as canções brasileiras mais conhecidas e mais gravadas no exterior – incluindo “Aquarela do Brasil”, “Na Baixa do Sapateiro”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Os Quindins de Yayá”, “Risque”, "Camisa Amarela", “No Rancho Fundo”, “Na Batucada da Vida” e “Pra Machucar Meu Coração”.





         




Aquarela do Ary: no alto da página e acima,
Ary Barroso ao microfone na Rádio Cruzeiro do Sul
do Rio de Janeiro, prefixo PRD-2, em 1932.

Também acima, a caixa de CDs "Brasil Brasileiro",
que reúne todas as composições de Ary nas
gravações originais. Abaixo, Ary conduzindo
jornalistas e fãs que acompanham o cantor
das multidões, Orlando Silva; e Ary
ao piano, em apresentação em 1957
na boite Fred's, no Rio de Janeiro












Garimpo em arquivos


O grande desafio, contudo, é encontrar uma loja ou um site em que a caixa de CDs esteja à venda. Não está disponível nem mesmo no site da famigerada Amazon. A produção dos 20 CDs com a obra completa de Ary Barroso foi o resultado de duas décadas de trabalho do pesquisador Omar Jubran, que também fez todo o processo de remasterizações. A caixa foi lançada pela gravadora NovoDisc, criada e gerenciada pela jornalista e musicóloga Maria Luiza Kfouri, em parceria com o Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo. O MIS distribuiu uma parte da tiragem das caixas de CDs para bibliotecas e instituições parceiras da Secretaria de Estado da Cultura, mas para pesquisadores e fãs de Ary Barroso o processo para conseguir uma das caixas pode ser um autêntico garimpo. Quem tiver a sorte de encontrar a caixa também terá como encarte um livreto que traz todas as letras, a identificação dos intérpretes e as fichas técnicas relacionadas a cada composição.

De todas as composições de Ary Barroso, apenas cinco ficaram fora da caixa, porque os fonogramas não foram localizados por Omar Jubran. No encarte, ele esclarece que as cinco canções aparecem nomeadas nos arquivos das gravadoras, mas não há registro sobre as gravações. “Uma explicação razoável para tal, é que pode ter existido a gravação da matriz sem que houvesse a prensagem do disco”, relata o pesquisador. Ele também justifica a existência de alguns ruídos e chiados discretos em algumas das gravações: “Em nome da preservação do som original e das características técnicas de gravação dos anos 1930 e 1940, alguns fonogramas ainda apresentam uma pitada de ruído, o que lhes atribuiu um charme especial”.






Aquarela do Ary: acima, o compositor
e seu piano, em foto de 1953. Abaixo,
o primeiro piano de Ary, conservado
na cidade mineira de Ubá pela família
do compositor e chamado pelos herdeiros
de "o piano da tia Ritinha", porque pertenceu
a uma tia de Ary que era professora de piano










Calouros do Ary


Nascido há 120 anos, completados em 7 de novembro, na cidade mineira de Ubá, Ary Barroso morreu no Rio de Janeiro, em um sábado de Carnaval, em 9 de fevereiro de 1964, aos 60 anos, em decorrência de cirrose hepática, resultado de anos de alcoolismo. O Rio foi a cidade em que passou a maior parte da vida e também o cenário da maioria de suas canções, com a curiosidade de que em algumas, das mais conhecidas, a Bahia e as baianas é que são o tema central. Além de compositor e cantor, Ary também foi muito popular em sua época como apresentador de programas de rádio e comentarista esportivo, sem nunca esconder sua condição apaixonada de torcedor do futebol do Flamengo. Seu primeiro programa de rádio foi “Calouros em Desfile”, que teve sucesso desde a estreia com nomes desconhecidos que passaram depois à condição de astros e estrelas de primeira grandeza da música brasileira.

O programa “Calouros em Desfile”, que estreou em 1932, na Rádio Philips, também trouxe a fama de ranzinza para Ary Barroso, o que pode ser confirmado ao se ler a lista dos nomes que ele reprovou e que depois seriam consagrados como medalhões entre os grandes intérpretes da música brasileira, incluindo aqueles que gravaram versões de sucesso para as composições dele próprio. Nas décadas seguintes, o apresentador e o programa “Calouros em Desfile” seguiriam para outras estações – em 1934, para a Rádio Mayrink Veiga; no ano seguinte, para a Rádio Cosmos, em São Paulo. Na Rádio Cruzeiro do Sul, a partir de 1943, ele apresentou “A hora do calouro”; na Radio Nacional, a partir dos anos 1950, o mesmo programa foi renomeado para “Calouros do Ary”. Ele também criou uma tirada de humor que foi sua marca registrada: o gongo, que soava quando o calouro era eliminado.




 
    





Aquarela do Ary: no alto, o compositor com
os amigos Carmen Miranda e Sílvio Caldas,
em reportagem da "Revista do Rádio" em 1955.
Carmen foi a recordista em gravações das canções
de Ary, com mais de 30 grandes sucessos.

Acima, Ary com o célebre gongo que o
acompanhava em todos os programas de
calouros que apresentou em várias estações
de rádio. O homem do gongo era o comediante
Tião Macalé. Abaixo, Ary com Walt Disney
no Hotel Copacabana Palace, em 1942, na época
em que Disney produziu o filme "Olá, Amigos",
que apresentou o personagem Zé Carioca
e trazia canções de Ary na trilha sonora;
e um encontro de bambas: Linda Baptista,
Grande Otelo, Herivelto Martins e
Ary Barroso
ao piano, no Cassino da Urca,
em 1940, fotografados por Carlos Moskovics










 

A lista dos nomes de calouros premiados que despontaram para a fama nos programas de rádio sob o comando de Ary Barroso é imensa – mas na lista dos que foram reprovados há, também, nomes notáveis, entre eles nomes que depois deram a volta por cima e conquistaram a consagração no primeiro time da música brasileiras, caso de Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Vinicius de Moraes e também Elza Soares, que protagonizou um acontecimento marcante por vários motivos. Com Elza Soares aconteceu aquele diálogo que a cantora repetiu depois, muitas vezes, ao lembrar que foi humilhada na estreia porque era negra e tinha aparência de pobre. Ao microfone, com sua conhecida ironia, Ary perguntou: “De que planeta você vem, minha filha?”. Elza respondeu: “Eu vim do planeta fome”.








Aquarela do Ary: no alto, o compositor no começo
da carreira, em 1936, com a estrela Carmen Miranda
e o amigo e parceiro de composições Luiz Barbosa.

Acima, com a esposa Yvonne e amigos. Abaixo, com
o maestro Heitor Villa-Lobos; com Dolores Duran;
com Elizeth Cardoso; e comemorando a vitória do
Flamengo, seu time do coração, com Ângela Maria














Um brasileiro internacional


Também é inegável que o salto de Ary Barroso para o primeiro time como compositor popular no Brasil tem participação de Carmen Miranda. A estrela mais popular no Brasil desde a década de 1930, no rádio, no teatro de revista e no cinema, foi a recordista em gravações de canções de Ary Barroso, com mais de 30 grandes sucessos, incluindo a mais célebre, “Aquarela do Brasil’, gravada por Francisco Alves em 1939 e três anos depois incluída na trilha sonora de “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos”), o filme de animação que Walt Disney fez no Rio de Janeiro, como encomenda para a Política da Boa Vizinhança lançada pelo governo do norte-americano Franklin Roosevelt, no final da década de 1930, para ganhar a simpatia dos governos e dos povos da América Latina na época da Segunda Guerra Mundial.

O filme “Alô, Amigos”, lançado nos cinema dos Estados Unidos e do Brasil em 1942, marca a estreia das canções de Ary Barroso em uma produção de Hollywood e também foi a estreia do personagem Zé Carioca (veja também Semióticas – Estratégias do Zé Carioca). Na gravação de Carmen Miranda, “Aquarela do Brasil” foi um grande sucesso nas rádios norte-americanas e em outros países, conquistando um lugar no imaginário do público. A canção foi o grande sucesso da carreira de Ary Barroso e teve inúmeras regravações que ganharam o mundo nas vozes de artistas de várias gerações e vários estilos, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, Ray Conniff, Harry Belafonte, Dionne Warwick e até com as bandas Arcade Fire e Beirut, entre muitos outros.














Aquarela do Ary: no alto, o compositor em ação
como narrador e comentarista de futebol. Acima,
em um encontro com os novatos da Bossa Nova,
João Gilberto, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli e
Carlos Lyra
, fotografados por Indalécio Wanderley

Abaixo, Ary com Carmen Miranda em Hollywood,
em 1944, na época em que rejeitou o contrato
de trabalho para ser compositor exclusivo dos
Estúdios Disney e voltou para o Brasil, alegando
que não conseguiria ficar longe dos jogos do
Flamengo; e Ary em 1957, em uma prosa
animada com o presidente da República,
Juscelino Kubitschek.

Também abaixo, Ary diante da multidão
em um show em Buenos Aires, Argentina,
em 1955; Ary com Dorival Caymmi, na foto
para a capa do álbum que gravaram juntos
em 1958; e na última foto, poucos dias antes
de sua morte, em 9 de fevereiro de 1964









A trajetória de Ary Barroso coincide também com momentos marcantes da história do Brasil. Seu primeiro grande sucesso popular acontece em 1930, ano da chegada de Getúlio Vargas ao poder, com a Revolução de 1930, e sua morte antecede em apenas dois meses o golpe de 1964 que instalou a ditadura militar. Naquele ano de 1930, Ary Barroso foi notícia pela primeira vez porque venceu o Grande Concurso da Música Popular, para escolha de canções do Carnaval, promoção da gravadora mais popular da época, a Casa Edison, e do jornal Correio da Manhã, com a marchinha “Dá Nela”. Meses antes, Mário Reis, seu colega na Faculdade Nacional de Direito e já consagrado cantor, havia gravado duas canções de Ary, “Vou a Penha” e “Vamos deixar de intimidade”.

Com isso, a partir de 1930 estrearam as canções de Ary Barroso nas paradas de sucesso e muitas outras viriam, nos anos e nas décadas seguintes. Desde então, muitos conhecem de cor suas canções, que já foram nomeadas como marchinhas e como samba, samba-canção, samba-exaltação, mesmo que não associem seu nome às canções ou não saibam quem é o compositor. Ele é Ary Barroso: criador de algumas das canções brasileiras mais conhecidas no mundo inteiro, cantor, pianista, vereador (o mais votado em 1946 na Guanabara, pela UDN, União Democrática Nacional), radialista, cronista, roteirista de radionovela e do teatro de revista, comentarista de futebol, flamenguista, humorista, figura consagrada no folclore nacional. Seja no Brasil ou mesmo no exterior, ainda hoje é muito difícil separar os acordes de “Aquarela do Brasil” e de tantas canções de Ary Barroso das lembranças e dos sentimentos mais autênticos da nacionalidade brasileira.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Aquarelas do Ary. In: Blog Semióticas, 30 de novembro de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/11/aquarela-do-ary.html (acessado em .../.../…).








   





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