![]() |
Com
suas provocações e sua mistura eclética de referências
ideológicas e estilísticas, desde as origens, na década de 1970, o
movimento punk teve uma influência explosiva no mundo da moda.
Parece até um jogo de contrários: por ironia do destino (e do
mercado), tanto a Alta Costura, com seus modelos exclusivos e sob
medida para uma clientela de alto poder de consumo, quanto as linhas
industriais das grifes e lojas do Prêt-à-porter,
aderiram e incorporaram rapidamente aquele grito de protesto político
representado nas atitudes e no visual de anarquia e rebeldia.
Para
a engrenagem industrial, foi como descobrir o mapa da mina: em pouco
tempo, muito da força espontânea das atitudes de protesto, da contracultura e da
fúria anti-establishment seria incorporado, descontextualizado e
transformado de novo em apelos de consumo – apesar do incômodo
inconformista representado nos rasgos aleatórios, nas barras mal
costuradas, nas tinturas de improviso, nas tachas, pregos, zíperes,
alfinetes, argolas, lâminas, piercings, tatuagens, nos jeans e camisetas
surrados, nos cortes e recortes de couro preto, nos cabelos raspados, espetados, pintados, descoloridos ou agressivos e
em outras práticas “alternativas” de
bricolagem e da descoberta do “faça você mesmo” pregadas pelos
primeiros punks.
A influência hostil e ameaçadora, transformada em
forte tendência de estilo e consumo que se espalhou e vem até nossos dias, é o
tema de "Punk: Chaos to Couture" (Punk: Caos para a
Alta-Costura), uma exposição surpreendente que reúne raridades originais de vestuário, objetos, fotografias e filmes, organizada por um dos mais prestigiados templos da moda com sede em Nova
York, o Costume Institute do Metropolitan Museum of Art (veja links
para visita on-line ao Metropolitan e para o catálogo da
exposição no final deste artigo).
![]() |
![]() |
![]() |
Vintage
Punk: no alto e acima,
Versace da década de 1990, destaque |
Destacada
pela imprensa internacional como uma das mais importantes mostras já realizadas sobre a história da moda, "Punk: Chaos to Couture" apresenta, além da proposta
inédita e do tema algo inusitado, uma série de inovações técnicas
no conceito de curadoria em artes plásticas. Inspirada na tecnologia de shows e
performances do rock e da cultura pop, a mostra propõe uma
experiência multisensorial em multimídia, com instalações em seis
galerias do Metropolitan Museum que incluem 100 peças originais de estilistas e grifes do primeiro escalão.
Banheiro do CBGB
É
um acervo que impressiona e que nunca havia sido reunido sequer em
catálogos de história da moda, com criações que revolucionaram
conceitos assinadas por nomes como Vivienne Westwood, Malcolm
McLaren, Alexander McQueen, Maison Chanel, Viktor & Rolf, Gianni
Versace, Riccardo Tisci,
Helmut Lang, Lagerfeld,
Miuccia Prada, John Galliano, Martin Margiela, Yohji Yamamoto e Comme
des Garçons, além de fotos raras e telões com exibição
permanente de performances e desfiles ao som de Blondie, Ramones, Sex
Pistols, The Clash.
![]() |
![]() |
O que não falta, na mostra, são surpresas e
irreverências, pontuando certos momentos históricos para destacar a
atitude simbólica e a linguagem visual do movimento punk, incluindo até
mesmo a recriação fiel, nos mínimos detalhes, feita a partir de
fotografias de 1975, do banheiro rústico e unissex coberto de
pichações no lendário e pioneiro clube punk CBGB, em Nova York,
demolido em 2006 – palco de estreia e consagração de uma extensa
galeria de artistas e grupos lendários do rock e do pop.
Segundo Andrew Bolton, curador da exposição no
Metropolitan, o objetivo do projeto, desde o início, foi analisar e
destacar, tanto para o público em geral como para os especialistas
que conhecem a história da moda, a forma como os designers têm
olhado para as provocações e os protestos das tribos urbanas mais
radicais, se apropriando desta estética anti-establishment para
criar novos ideais de beleza e elegância.
![]() |
“Hoje
se fala do movimento punk como se ele fosse um fenômeno estético e
musical definido e demarcado, mas isso nunca foi verdade. Desde seu
surgimento, na geração que viveu a década de 1970, nunca houve
coesão ou princípios ideológicos. O contexto da sua origem foi
saturado com clichês e convenções estereotipadas, mas o punk ainda
sobrevive como intervenção estética transgressora”, defende
Bolton na apresentação ao catálogo da mostra. "Punk é e
sempre foi a comemoração do indivíduo, a celebração da
criatividade e da coragem de ser diferente. Punk é desafiar o status
quo", completa.
Moda, música, atitude
Além
de Andrew Bolton, três autoridades no assunto assinam os ensaios de
apresentação no catálogo da mostra: o escritor, cantor e
compositor Richard Hell, que foi baixista da banda Television, entre
1973 e 1975; Johnny Rotten, compositor e vocalista de duas bandas
fundamentais, Sex Pistols e PiL, atualmente apresentador de TV na
Inglaterra; e o jornalista Jon Savage, colunista do “The Guardian”
e autor de um livro elogiado sobre o movimento punk, “England's
Dreaming: Sex Pistols, Teenage and Punk Rock”, publicado em 1991
pela Faber And Faber.
![]() |
![]() |
![]() |
Punk
& História: no alto, capa
do livro de Jon Savage, “England's Dreaming: Sex Pistols, Teenage and Punk Rock”, publicado pela Faber And Faber. Acima, em foto de Kate Simon, Richard Hell nos anos 1970, posando com as sobreposições em farrapos, um estilo que duas décadas depois seria apropriado por Hussein Chalayan para as peças de uma coleção da Dazed and Confused em 2003. |
Tanto os
três convidados como Andrew Bolton são unânimes em reconhecer que, além de
fornecer a música como pano de fundo, a revolução provocada pelo
movimento punk na vida das pessoas comuns e no mundo da moda
inaugurou não só o uso de novos adereços de couro e metal: também
lançou a prática da “personalização” e do improviso, diluindo
as fronteiras entre consumo e criação, com novas ideias para o
“garimpo” e a reciclagem de peças que quebraram tabus e levaram
a novas misturas, novas ousadias e desconstruções de estilos.
Bíblias
da moda como “Vogue”, “Vanity Fair”, “Harper's Bazaar” e
jornais como “The New York Times”, “Washington Post” e “The
Guardian” destacam a coragem e a abrangência da exposição, mas
também houve críticas e questionamentos. Uma das mais autênticas
veio de Mick Jones, guitarrista do The Clash, que não só dispensou
convites para a abertura de gala da exposição, com a presença de
estrelas como Debbie Harry e Madonna, mas também ironizou a pompa da
retrospectiva. Segundo Mick Jones, o punk foi um movimento que durou
100 dias sem rumo nem fronteiras e tentar enquadrá-lo em catálogos
e tendências do mercado de consumo é falsidade.
![]() |
![]() |
Mesmo coerente com as propostas originais do punk, Mick
Jones é apenas uma voz dissonante. Para Jon Savage, a retrospectiva no
Metropolitan Museum é da maior importância. No ensaio “Symbols
clashing everywhere: punk fashion 1975–1980”, talvez o melhor dos
quatro ensaios publicados do catálogo da mostra "Punk: Chaos to
Couture", Savage destaca a importância histórica sem precedentes da exposição e avalia que nenhum movimento ou estilo teve
influência mais marcante que o punk no comportamento e no mundo da
moda.
Autêntico nas ruas, falso na vitrine
Savage reúne à sua experiência de testemunha que
presenciou a explosão do movimento, na década de 1970, variáveis
da política, da música e da literatura que contextualizam as
propostas do estilo punk – seja na concepção de uma forma
cultural deliberadamente marginal e alternativa à cultura
tradicional vigente na sociedade, seja como manifestação de
segregação e auto-afirmação por gangues de rua. No ensaio, Savage
destaca e resume toda a trajetória do que seja ou tenha sido “punk”
em apenas duas normas iconoclastas: quebrar as regras e desrespeitar
convenções.
![]() |
Destaque na galeria do Punk de grife: abaixo, Vivienne Westwood com seu marido, co-autor e sócio Malcolm McLaren em 1971; o casal fotografado em 1977; e Vivienne com suas colaboradoras em frente à loja e ateliê em Londres, Let It Rock (depois rebatizada de SEX e, mais tarde, Seditionaries), em fotografias do artista plástico inglês David Parkinson |
![]() |
![]() |
Apesar
do apuro conceitual apresentado, há também – e principalmente –
os negócios antes da arte. A estratégia agressiva de marketing
capitaneada na mídia fez com que a maior parte das peças originais
de vestuário e adereços em exposição voltassem às vitrines das
grandes lojas, movimentando cifras bilionárias para as grifes
envolvidas ou citadas. A mostra, que tem patrocínio do e-commerce
Moda Operandi e da editora Condé Nast, faz questão de demonstrar
sua “intenção comercial” nas galerias temáticas que apresenta,
todas elas com produtos em catálogos e serviços de vendas.
São seis galerias temáticas. A primeira, “Clothes for
Heroes”, apresenta um panorama da cena musical de Nova York e
Londres em meados da década de 1970, com bandas pioneiras do estilo,
como Sex Pistols, Ramones, The Clash. A segunda galeria, “The
Couturiers Situationists”, é dedicada à interpretação conferida
ao punk por aqueles que são considerados os “inventores” do
visual que a maioria associa ao estilo, Vivienne Westwood e seu então
marido Malcolm Mclaren, através da loja e ateliê Let It Rock
(depois rebatizada como SEX e, mais tarde, Seditionaries). Em uma
frase destacada na galeria, Vivienne Westwood confessa que sua fonte
de inspiração foi a mistura de antigas camisolas de dormir com
peças recortadas de uniformes militares.
![]() |
![]() |
Rock
& Pop & Punk: no alto,
Johnny Lydon fotografado com sua camiseta esburacada em 1976 por Richard Young, imagem de inspiração para Rei Kawakubo |
A
terceira galeria, “Pavilions of Anarchy and Elegance”, coloca
lado a lado peças da Alta Costura e itens originais criados no ápice
do movimento punk, em meados da década de 1970. Mesmo pertencendo a
universos tão distintos, as peças dos estilistas e as “invenções”
dos primeiros punks apresentam semelhanças estéticas que destacam,
principalmente, as técnicas de customização. A quarta galeria do
Metropolitan apresenta “Punk Couture”, com instalações que
exploram o fascínio da moda por fetiches que parecem saídos de
rituais sadomasoquistas, incluindo correntes, cintos, alfinetes,
argolas, zíperes.
Rebeldia como artigo de luxo
A quinta galeria da exposição "Punk:
Chaos to Couture", batizada como “D.I.Y. Style”,
examina a contribuição e o impacto da bricolagem e da customização,
no primeiro momento do que hoje se convencionou chamar de diretrizes
de sustentabilidade: foi a bricolagem e a customização inauguradas
pelos punks que contribuíram para levar materiais rústicos e
reciclados a serem acolhidos pela indústria têxtil. A sexta e
última galeria, “La Mode Destroy”, é dedicada a um mapeamento
visual sobre os tipos que se tornaram dominantes no movimento punk,
incluindo anônimos e famosos como a roqueira Patti Smith, com sua
marca que mistura estilos em roupas desalinhadas, maquiagem borrada,
cabelos desgrenhados.
![]() |
![]() |
![]() |
Clássicos do punk: a partir do
alto, Patti Smith em 1976, em fotografia de Caroline Coon, e a coleção criada por Ann Demeulemeester no ano 2000 em homenagem à roqueira. Acima, Sid Vicious em 1977, em foto de Dennis Morris, e o estilo Sex Pistols recriado por Karl Lagerfeld para a Maison Chanel em 2011; e o visual de Joe Strummer, vocalista do The Clash em 1977, recriado em 2003 por Helmut Lang. Abaixo, uma seleção de peças do estilo punk na Alta Costura dos últimos 30 anos: na primeira foto, panorâmica do saguão de entrada; na segunda, uma amostra do acervo Maison Chanel; na terceira, uma seleção de Viktor & Rolf; na quarta, uma das galerias dedicadas a criações de Gianni Versace |
Enquanto isso, a direção do Metropolitan comemora o
sucesso de público da mostra, recordista na história do museu em número de ingressos
vendidos. Nada mal para a aposta arriscada de inverter os valores e
reabilitar a rebeldia punk como estilo sofisticado de consumo. Ainda
mais que o Metropolitan Museum amargou uma decepção contabilizada
em 2012 – quando a exposição “Impossible Conversations”,
sobre o acervo de dois clássicos do mundo da moda, Schiaparelli e
Prada, teve decepcionantes 340 mil visitantes e não alcançou nem a
metade do público esperado pelos organizadores. Ao apostar todas as
cartas no anti-establishment do movimento punk, o Metropolitan conseguiu bater seu próprio recorde de
visitantes e reuniu o maior acervo já reunido sobre a história do punk, elevando o movimento a estilo estético sofisticado e atravessando as fronteiras do trash ao cult.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Punk de grife. In: Blog
Semióticas, 31 de
julho de 2013. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/07/punk-de-grife.html
(acessado em .../.../…).
Para
uma visita on-line à exposição
do Metropolitan Museum, clique aqui.
Para
comprar o livro "Paradoxo Punk", clique aqui.
Para comprar o livro "Rock And Roll – Uma história social", clique aqui.
![]() |
![]() |