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17 de dezembro de 2011

Diva descalça




Superado o estranhamento inicial, o que sobressai 
e permanece é a voz amorosa de Cesária Évora, sua 
tessitura única, quente como um pôr-do-sol tropical. 

–– Tad Hendrickson.   


O que impressiona, no primeiro momento, é a cadência rítmica mais lenta, as texturas sonoras estranhas, os arranjos de instrumentos que lembram o fado português, mas também lembram os clássicos do jazz da Louisiana, a música tradicional do Caribe e da velha guarda do samba do Brasil, o batuque dos rituais de dança e de celebração das tribos da África. Para o público brasileiro, a cena e a música podem parecer ainda mais estranhamente familiares: um grupo afinado e sorridente de músicos, todos negros, uma percussão suave, exótica, dançante e irresistível. Depois dos breves acordes iniciais, a velha senhora entra em cena e caminha, hesitante, descalça, para o centro do palco. A plateia do teatro aplaude com euforia.

A velha senhora também é negra, baixa estatura, mais gordinha, ou talvez "nutridinha", como ela entoa em um verso das canções que virão a seguir. Está vestida em tons escuros, de certa simplicidade, mas com indiscutível elegância e dignidade. Olhar humilde, alguma timidez, mas quando começa a cantar a voz encanta e evoca uma aura de respeito e sofisticação. Canta em português, com um sotaque de nuances indescritíveis, que misturam em sua voz personalíssima e triste, aqui e ali, uma ou outra palavra em francês, uma ou outra expressão que talvez venha dos dialetos africanos.

É Cesária Évora, rainha da morna, embaixadora da música de Cabo Verde, o pequeno arquipélago do Atlântico, na costa africana, que entoa dramática seus grandes sucessos – um repertório que além de mornas também reúne coladeiras, batuques e funanás, melodias e ritmos típicos de seu país, ao mesmo tempo próximos e distantes da música brasileira, da música de Portugal e de outros povos falantes da língua portuguesa, em seu parentesco que mistura alegria e melancolia com nostalgia e com sonoridades de outros lugares, outros continentes, outras tradições culturais.



















Aos 70 anos, a diva dos pés descalços, como foi batizada pela imprensa da França, na década de 1980, morreu hoje em sua terra natal, três meses depois de seus músicos terem anunciado o fim de uma carreira de mais de 50 anos, por conta do estado de saúde que atingiu uma situação muito delicada. Em sua trajetória de mais de cinco décadas dedicadas à música e aos palcos de sua terra natal e de outros países, Cesária lançou 25 discos, entre originais, coletâneas, remixes celebrados pelos principais DJs em atividade e parcerias com outros artistas – entre eles Caetano Veloso e Marisa Monte. “Sôdade”, lançada na década de 1980, foi o maior de seus grandes sucessos e com o passar dos anos permanece como a música mais conhecida da cantora e compositora de Cabo Verde.



Performance parisiense



Além dos discos gravados em formatos de LPs e CDs, ela lançou dois belos DVDs: “Cesária Évora Live D'Amor” e “Live in Paris”. O primeiro, gravado em abril de 2004 no Le Grand Rex, um dos principais teatros de Paris, traz um registro à perfeição que, além da íntegra das 20 canções do repertório do show, inclui três bônus de primeira: um documentário com os bastidores da performance parisiense (que a acompanha do desembarque no aeroporto da capital da França à entrada em cena no teatro), outro com entrevistas e cenas das turnês pelos Estados Unidos, Japão e capitais da Europa, e “Mar del Canal”, um comovente videoclipe com ela e sua banda, produzido para o World Food Programme, fundo humanitário da ONU que atende crianças carentes e refugiados de guerra em 70 países.















O segundo, “Live in Paris”, de 2002, é mais modesto, com o registro do show em som direto. Foi gravado ao vivo no Zenith parisiense e inclui como bônus duas breves sequências: cenas da apresentação de Cize (como era chamada carinhosamente pelos amigos e pelos músicos que a acompanhavam desde os anos 1980) em Havana, Cuba, com participação especial dos remanescentes do Buena Vista Social Club, e da apresentação no mesmo ano no Brasil, onde a rainha da morna dividiu a cena com Marisa Monte.

No Brasil, ainda nos anos 1980, Caetano Veloso foi o primeiro a elogiar as mornas e coladeiras de Cesária Évora. Nos shows do final da década de 1980 e começo dos anos 1990, Caetano incluía “Sôdade”, “Angola” e “Petit Pays”, imitando o sotaque de Cize, quase incompreensível aos ouvidos brasileiros. Eu mesmo, assim como muitos dos fãs da cantora que conheço, temos que confessar que foi através de Caetano que chegamos à arte de Cesária Évora.







Caetano alardeava em entrevistas sua admiração por Cize, a diva que saiu da simplicidade do pequeno país no litoral africano para ganhar o mundo, apresentando-se sempre com os pés descalços em solidariedade às mulheres e crianças miseráveis de seu país. Os elogios de Caetano por certo contribuíram para que os discos de Cesária fossem lançados por aqui, com boas críticas e surpreendente sucesso de vendas.


Mornas, blues, boleros e MPB



Em cenas dos documentários incluídos como bônus em “Live D'Amor”, Cesária Évora fala com carinho do seu público – especialmente dos fãs apaixonados que conheceu no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos e na França. Diz que canta porque não saberia fazer outra coisa na vida. Modéstia de uma artista genial, que comprova na performance gravada com a plateia do Le Grand Rex porque era considerada uma das presenças mais marcantes e poderosas da música contemporânea.

Sua arte cresceu em popularidade internacional especialmente a partir de 2004, quando bateu estrelas de primeira grandeza na mídia e conquistou o Grammy para melhor disco de “world music”. Sempre acompanhada pelos músicos de Cabo Verde, com quem trabalhava desde a gravação do primeiro disco na França, em 1988 (“La Diva aux Pieds Nus”), Cize mistura um aparente descompasso do fraseado com elaboradas harmonias acústicas de violões, cavaquinho, violino, acordeão, percussão e clarineta. 






 
Os ritmos são uma diversidade. As canções do repertório vão desde a morna tradicional de Cabo Verde até o bolero, passando pelo blues norte-americano, com um toque de música do Caribe, alguma coisa do fado português e muito do samba-canção da velha guarda da melhor música popular brasileira. Sim: a música brasileira é o que Cesária Évora destaca como sua maior referência.

Quando no documentário de “Live D'Amor” um jornalista pergunta sobre Billie Holiday e outras possíveis influências do jazz, Cesária sorri, baixa os olhos, faz silêncio, tira uma longa baforada do cigarro, recusa e diz que não concorda com a comparação. Fala com carinho da música dos Estados Unidos, agradece o carinho do público que cultiva em vários países, mas diz que prefere ser comparada às vozes brasileiras, que desde a infância ouvia no rádio.

Quem conhece seus discos sabe que Cize sempre incluiu aqui e ali algum clássico do samba, caso de “Beijo Roubado”, de Adelino Moreira, sucesso dos anos 1950 na voz de Ângela Maria e destaque no repertório de “Live D'Amor”. “Negue” (“seu amor, seu carinho...”), do mesmo Adelino Moreira, é outra pérola da MPB que sempre esteve presente nos shows de Cesária, além de canções dos baianos Dorival Caymmi e Caetano Veloso.






Amor e liberdade



Impressiona o toque sentimental de profunda devoção, algo entre o transe místico e o cantarolar casual numa mesa de bar, registrada por uma edição sempre discreta nas imagens de “Live D'Amor”. Ao invés do ritmo alucinante de videoclipe de hip-hop, que vem contaminando as gravações ao vivo de qualquer gênero, as imagens do show no Le Grand Rex são contemplativas, quase nunca se afastam da bela performance em closes e um ou outro passeio das câmeras pelo palco, no momento dos poucos e inspirados solos do violinista Julián Corrales Subida ou do pianista Fernando Andrade, responsável há décadas pelos arranjos das canções de Cesária.

As mornas e os sambas cantados com a voz sentida de Cesária Évora são acompanhados quase sempre em coro pela plateia parisiense, especialmente “Nho Antone Escaderode”, “Nha Cancera ka Tem Medida”, “Angola” e “Sôdade” (“quem mostrava este caminho longe...”). Mesmo as então inéditas “Isolada” e “Velocidade” provocam comoção e passagens espontâneas com palmas ritmadas.

São canções inesquecíveis, depois que se ouve uma delas pela primeira vez, com atenção, com sons de cordas e percussão suave, pautadas com gentileza, talvez por isso distantes dos ritmos brasileiros mais dançantes. Falando de saudade, de amores errados e de sentimentos que mais separam do que unem as pessoas, a música de Cesária Évora, com seu sotaque carregado que constrói enigmas para outros falantes da mesma língua portuguesa, é daqueles casos que encantam.







Cantora de Mindelo



Cesária Joana Évora nasceu em agosto de 1941 em Mindelo, cidade portuária de São Vicente, uma das ilhas mais áridas, escarpadas e pobres do arquipélago de Cabo Verde, país formado por uma dúzia de pequenas ilhas montanhosas e quase sempre desérticas, de formação vulcânica, ao largo do Senegal, na costa da África no Atlântico. Descoberto em 1456, o arquipélago foi uma importante base de expansão marítima e do comércio colonial português, particularmente no tráfico de escravos.

Desde sua independência de Portugal, em 1975, entretanto, Cabo Verde tem enfrentado dificuldades econômicas as mais complicadas, motivo pelo qual se diz que a música de Cesária Évora é o principal produto de exportação daquele país, que sobrevive do cultivo de milho, café e processamento de pescado. As mornas e coladeiras que Cesária canta quase sempre tocam na história amarga e violenta da dominação portuguesa e do isolamento secular de Cabo Verde.













Na entrevista incluída em “Live D'Amor”, Cesária conta que nasceu em uma família de músicos e que canta desde a infância, em festas populares de sua terra-natal e em programas de rádio. Mas sua carreira ficou interrompida entre 1975 e 1985, quando parou de cantar para procurar trabalho em fábricas e no comércio fora de Cabo Verde.

Em 1985, a sorte sorriu para a diva dos pés descalços: a convite do proprietário de um restaurante e de uma discoteca com música ao vivo em Lisboa, ela volta a cantar e grava um disco, “Crioula Sofredora”, que passou despercebido. No ano seguinte, vai para Paris e é "descoberta" pela imprensa cantando em praças e bares. Dali seguiria para os palcos do mundo.












Em 2004, depois de vencer o Grammy, iniciou sua fase de maior popularidade e chegou às pistas de dança e ao circuito das “raves” por conta do lançamento de “Club Sodade”, surpreendente disco em que suas canções mais populares ganharam remixes e versões eletrônicas por alguns dos DJs mais famosos do planeta, como Rork & Demon Ritchie, Uwe Schmidt (Señor Coconut), Kerri Chandler, Carl Craig, Pepe Bradock, Cris Prolific e François K., entre outros.

Um dos parceiros de Cize de longa data, o músico cabo-verdiano Tito Paris foi entrevistado hoje pela agências de notícias France Presse (AFP) e lamentou a perda. "O artista e o poeta praticamente não morrem. Desaparecem mas não morrem e nós vamos ouvir Cesária até ao fim da nossa vida, ela vai existir com as suas mornas e coladeiras até ao último dia das nossas vidas", afirmou Tito. O mundo da música e Cabo Verde a partir de hoje ficaram mais pobres, tal como enriqueceram no dia em que Cesária Évora nasceu.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Diva descalça. In: Blog Semióticas, 17 de dezembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/12/diva-descalca.html (acessado em .../.../…).



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