Mas
a Quarta, com toda certeza, será com paus e pedras.
––... Albert
Einstein em 1945.
A questão da arte moderna na
Ucrânia é uma questão política – assim como é política
qualquer questão sobre arte em qualquer circunstância. Na
Ucrânia, a evolução da arte foi especialmente marcante na década de
1920, época da entrada do país na União Soviética, com artistas que influenciaram de maneira definitiva a arte moderna no
Ocidente, em várias frentes, mas assim como toda a população ucraniana, muitas obras estão ameaçadas de destruição com a guerra iniciada em fevereiro de 2022 – um
conflito de grandes proporções que já matou milhares de civis e militares e já é considerado como o maior
confronto militar ocorrido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Como
estratégia emergencial, uma seleção dos acervos da arte moderna da
Ucrânia foi reunida, com apoio de museus e de colecionadores, e
transportada até o Museu Thyssen-Bornemisza, da Espanha, para a
exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia,
1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia). Outras
ações de resgate e preservação de obras de arte em áreas de
bombardeios foram organizadas por historiadores e técnicos de museus
da Ucrânia e de outros países em um fórum on-line coordenado pelo historiador Kilian Heck, da Universidade de
Greifswald, da Alemanha, com apoio da Aliança Internacional
para Proteção de Patrimônio em Áreas de Conflito (Aliph), sediada
em Genebra, Suíça. Uma
das ações resgatou 16 peças de arte sacra
bizantina, com cerca de 1.500 anos, que estavam no
Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram levadas para o Museu do Louvre, em Paris.
A
guerra, que oficialmente teve início com a invasão da Ucrânia pelas tropas militares da Rússia, no final de fevereiro de 2022, na
verdade começou bem antes, com a ascensão ao poder político de
grupos de orientação fascista e armamentista na Ucrânia a partir do período entre 2013 e
2014, com a escalada de grandes e violentos protestos urbanos que na época foram chamados de Euromaidan ou Primavera Ucraniana. Segundo maior país da Europa em área territorial (atrás apenas da Rússia, seu país vizinho, com o qual compartilha extensas fronteiras ao leste e ao nordeste), a Ucrânia em 2016 completou 25 anos de independência em relação à União
Soviética, mas seu destaque entre as maiores economias
do planeta vem se degradando de forma acelerada desde a separação.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, Carrossel, pintura em óleo sobre tela de 1921, obra do artista Davyd Burliuk. Acima, trabalhadores e equipe técnica do Museu Nacional de Arte da Ucrânia preparam obras do acervo para serem transportadas para a Espanha. Abaixo, um retrato pintado no final da década de 1920 por Kostiantyn Yeleva; e Uma camponesa, pintura de 1910 de Volodymyr Burliuk. Todas as obras reproduzidas abaixo fazem parte do acervo reunido na exposição do Museu Nacional Thyssen-Bornemysza, da Espanha, nomeada como En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930
De
11ª economia do mundo, no final do século 20, a Ucrânia começou a
decair em potencial no novo século, assistindo a sucessivas pioras
de seu parque industrial, que era complexo e desenvolvido quando o país fazia parte da União Soviética. Desde a separação, aconteceram perdas radicais
em sua pauta de exportação, baseada em máquinas e produção de
bens de alto valor agregado, além da grande produção agrícola, e houve uma progressiva
ampliação da dependência de importações. Também em 2016, o PIB
(Produto Interno Bruto) da Ucrânia já estava muito abaixo do nível
que tinha antes do país separar-se da União Soviética, de acordo
com Moniz Bandeira (no livro “A desordem mundial”, editora Civilização
Brasileira), e a concentração de riqueza em setores restritos da
elite ucraniana atingia níveis impressionantes.
O
caos na Ucrânia tem acontecimentos que antecedem em alguns
anos a guerra iniciada em fevereiro de 2022. A partir de 2013, o governo decidiu suspender um acordo com a União Europeia e retomar sua aproximação com a Rússia. Desde então, grupos
fascistas identificados com a sigla Pravy Sector conseguiram
incendiar o país com grandes protestos urbanos que levaram à
deposição do governo, dando início a um estado de
terror. A calamidade gerou conflitos de guerra civil em várias
regiões do país, com políticos fascistas tomando o poder e com a
liberação sem restrições para o comércio de armas de fogo. A
crise teria um novo capítulo em 2019, com a surpreendente eleição de um comediante, Volodymyr
Zelensky, para presidente do país.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, Adão e Eva, pintura em óleo sobre tela de 1912, obra do artista Wladimir Baranoff-Rossiné. Acima, um esboço em aquarela sobre papel para um movimento coreográfico de Masks, da Escola de Dança Bronislava Nijinska, de Kiev, obra de 1919 de Vadym Meller; e desenhos de 1922 de Anatol Petrytskyi para o balé Danças Excêntricas, espetáculo apresentado pelo Ballet de Câmara de Moscou. Abaixo, 1º de maio, pintura em óleo sobre tela de 1929 de Viktor Palmov; e Composição, pintura de 1919 de El Lissitzky
A
guerra premeditada
Muito
popular na Ucrânia por sua carreira de ator e comediante antes de entrar na política para concorrer ao cargo de presidente, Zelensky teve
uma trajetória com atuações em várias frentes, incluindo
espetáculos cômicos em teatro em que simulava tocar piano com o pênis, e
também programas de TV, em especial a série “Servo do povo”,
exibida em rede nacional de 2015 a 2018 como campeã de audiência. Na série de
ficção, Zelensky fazia o papel principal de presidente da
Ucrânia. Com o sucesso na TV, o grupo de Zelensky registrou um
partido político com o mesmo nome da série. Nas eleições
seguintes, em 2019, Zelensky despontou nas pesquisas como favorito e foi eleito presidente.
O
capítulo de Zelensky na Presidência da República da Ucrânia não foi tão imprevisível
como pode parecer. Com interesses muito próximos a
autoridades do Ocidente e a grandes conglomerados multinacionais, o novo presidente e seu partido Servo do Povo deram início a mudanças na legislação e aceleraram um completo rompimento com o governo russo, ao mesmo tempo que buscaram maior aproximação do país com a União Europeia e com a OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte), promovendo exercícios militares conjuntos com os norte-americanos no Mar Negro e nas fronteiras com a Rússia, o que na
prática sinalizava uma declaração de guerra.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, duas pinturas em têmpera sobre telado artista Mykhailo Boichuk, A leiteira, de 1922, e Mulheres sob a árvore de maçãs, de 1920. Boichuk liderou um grupo de artistas nacionalistas que promoveu um resgate das tradições folclóricas ucranianas, mas após a consolidação de Josef Stalin no poder na década de 1930, na União Soviética, a maior parte dos murais e pinturas de Boichuk e dos "boichukistas" foi destruída.
Acima, Os inválidos, pintura em óleo sobre tela de 1924 de Anatol Petrytskyi. Abaixo, duas pinturas de Oleksandr Bohomazov: Afiando as serras, de 1927, e Paisagem do Cáucaso, de 1915. Também abaixo, o cineasta e teórico do cinema Dziga Vertov em ação, nas filmagens de O homem com a câmera, de 1929, com imagens captadas nas cidades ucranianas de Kiev, Odessa e Kharkiv. Também abaixo, um trailer do filme em cópia restaurada de 2014
O
passo seguinte de Zelensky no poder foi dar início à guerra
premeditada: como resposta aos sucessivos exercícios militares
conjuntos de Ucrânia e norte-americanos nas fronteiras, e diante da deliberação
de Zelensky para que o país passasse a ser um território da
OTAN, as tropas russas começaram a ocupação da Ucrânia. A ocupação dava continuidade a um processo que teve início em 2014, quando os russos ocuparam a Crimeia, logo após o golpe que levou à deposição do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que tinha posição favorável à Rússia. A Crimeia havia sido anexada à Ucrânia em 1952. Quatro décadas depois, em 1991, quando a Ucrânia se separou da União Soviética, a Crimeia conquistou a posição de República Autônoma. Desde
o final de fevereiro de 2022 a guerra na Ucrânia veio se agravando e gerou uma
enorme onda migratória de ucranianos para a Rússia, enquanto Estados
Unidos e OTAN seguem fornecendo um grande arsenal de armamentos pesados para
que tropas da Ucrânia, sob o comando do inexperiente Zelensky, elevado ao posto de comandante, enfrentem as tropas russas.
Segundo
analistas internacionais, o conflito armado está longe de um
desfecho (enquanto escrevo a versão final deste artigo, a revista Time destaca que o presidente Lula, do Brasil, surge como um
mediador para o fim da guerra na Ucrânia. A reportagem da Time
relata que tanto o presidente Zelensky da Ucrânia, como o presidente
Vladimir Putin, da Rússia, já estariam avaliando a proposta de Lula
para encerrar a guerra, mas nenhuma ação indica uma vontade política para estabelecer a paz. Além da Time, analistas de outros importantes veículos da imprensa
internacional também informam que a proposta de Lula pode criar
caminhos para a paz na Ucrânia).
Arte moderna na Ucrânia: no alto, O fotógrafo, pintura em têmpera sobre papel de 1927, obra de Ivan Padalka; acima, Gopak (dança ucraniana), pintura de 1926-30 de Ilya Repin. Abaixo, uma pintura em óleo sobre tela de Sonia Delaunay de 1925, Vestidos simultâneos (três mulheres, formas, cores); e duas obras de Aleksandra Ekster: uma colagem em técnica mista com pintura em óleo sobre tela, Natureza morta, de 1926, e Composição (Gênova), pintura em óleo sobre tela de 1912
Genocídio
e independência
O
percurso histórico da Ucrânia não foi menos violento no decorrer
do último século. Além das batalhas no território ucraniano
durante a Primeira Guerra Mundial, no período de 1914-1917, e na época
da Revolução Russa de 1917, houve diversos conflitos armados pela
independência do país no período de 1917 a 1921, até a
entrada definitiva da Ucrânia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em
1922. Com os expurgos de Josef Stalin na União Soviética, na década de 1930, muitos líderes ucranianos foram presos ou mortos, o que gerou nova onda de protestos violentos. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o país teve posições
contraditórias, com seus movimentos nacionalistas lutando simultaneamente contra os nazistas e contra os soviéticos.
Como saldo, os conflitos em decorrência da Segunda Guerra levaram à morte de cinco a oito milhões de ucranianos, na maior
parte civis. Nas décadas seguintes não houve paz: as fronteiras da Ucrânia foram
diversas vezes alteradas, quase sempre deflagrando mais violência e
novos conflitos armados, até o fim da União Soviética, em 1991,
com um referendo popular para a população ucraniana que aprovou a independência do país. No
último século, a Ucrânia ainda foi palco do acidente na usina nuclear de
Chernobil, em abril de 1986, que deixou milhares de mortos
e consequências permanentes de contaminação e envenenamento.
Arte moderna na Ucrânia: acima, Funeral, pintura em óleo sobre papel de 1920, obra de Oleksandr Bohomazov; e um autorretrato em pintura sobre madeira de 1922 de Vasyl Yermilov.
Abaixo, Retrato de Mykhailo Semenko, técnica mista em aquarela, grafite e nanquim sobre papel, obra de 1929 de Anatol Petrytskyi; e Nova arte, desenho em técnica sobre papel, obra em 1927 de Vasyl Yermilov para a capa da edição nº 23 da revista Nove Mystetstvo (Nova Arte), identificada como um marco inicial do movimento construtivista
Um raro período de paz e prosperidade aconteceu na década de 1920, com a entrada da Ucrânia na União Soviética. Na cultura, a
literatura, as artes plásticas, o teatro e o cinema prosperavam de forma surpreendente.
Sobre a literatura, o Brasil tem um vínculo importante com a
Ucrânia: Clarice Lispector, uma das grandes referências da
literatura brasileira, nasceu na cidade ucraniana de Tchetchelnik,
enquanto seus pais percorriam as aldeias para fugir da
perseguição aos judeus, durante a guerra civil na Rússia de
1920-1922. Contudo, como a própria Clarice declarou, a Ucrânia foi
uma terra em que nunca pisou, pois veio para o Brasil com um
ano e dois meses de idade, quando sua família de imigrantes chegou
ao Recife, capital de Pernambuco. Clarice não é a única referência da Ucrânia na cultura brasileira. Outro nome importante é Gregori Warchavchik, arquiteto e artista plástico que nasceu na cidade ucraniana de Odessa e chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista, tornando-se um dos destaques da arquitetura moderna brasileira.
Depois
de muitas idas e vindas, muitas perseguições e destruições,
vários expoentes da arte moderna da Ucrânia permanecem na posição
privilegiada de cânones da arte mundial, pelo que representaram de
inovação e ruptura em seu tempo e pela influência que exercem até
a atualidade como mestres do cubismo, do suprematismo, do futurismo, do expressionismo e da arte abstrata. Um grupo destes mestres tem em comum uma trajetória de formação acadêmica no início do século 20, na Ucrânia, e posterior destaque entre os modernos para além das fronteiras do país, especialmente em Moscou, na União Soviética, e em Paris, na França, onde vários deles viveram na célebre colônia de arte La Ruche (A Colmeia): neste
grupo estão, entre outros, Sonia
Delaunay, Olexandr Archipenko, Olexandr Bohomazov, Nathan Alman e
Wladimir Baranoff-Rossiné.
Os
artistas que deixaram a Ucrânia desde o começo do século
20, e que por longos períodos viveram ou em Moscou, ou na Alemanha, ou na colônia parisiense La Ruche,
são conhecidos na história da arte como expoentes do Renascimento
Ucraniano – entre eles nomes como Arkhip
Kuindzhi, mestre da cor e dos efeitos
de luz na pintura, que exerceu forte influência em
seus contemporâneos e no surgimento da Arte Moderna, apontado como referência por nomes do primeiro time das vanguardas como Wassily Kandinsky e Marc Chagall, e também Dziga Vertov, de importância fundamental na história
do cinema. Vertov, na verdade, nasceu na Polônia, mas teve sua formação
acadêmica e técnica na Ucrânia, país onde realizou seus filmes
mais importantes, mesmo depois de fixar residência em Moscou.
Nascido Denis Arkadievitch Kaufman, ele mudou seu nome para Dziga
Vertov – a palavra “dziga” em ucraniano significa moto-contínuo
ou máquina de movimento perpétuo, e “vertov”, em russo
(“vertet”), significa mover, rodar, girar.
Arte moderna na Ucrânia: no alto, Depois da Chuva, pintura de 1881 de Arkhip Kuindzhi, nascido em Mariupol, Ucrânia, na época uma província do Império da Rússia.
Acima, a capa do catálogo da exposição realizada no museu da Espanha. Abaixo, Composição, pintura em óleo sobre tela de 1920 de Vadym Meller; e Composição em suprematismo, colagem em técnica mista sobre cartão, obra de 1921 de Boris Kosarev
Vanguarda na Ucrânia
Outro
expoente do Renascimento Ucraniano é Kazimir Malevich, nascido em
Kiev, mentor do movimento pioneiro da arte abstrata conhecido como
suprematismo, e muitas vezes identificado erroneamente como russo,
talvez por seu papel como artista central das vanguardas na União Soviética. Há outras situações semelhantes de erro de atribuição de nacionalidade de artistas ucranianos: uma delas é a trajetória de Aleksandra Ekster, uma das mulheres mais influentes das vanguardas
da Europa e muitas vezes identificada
como artista da Rússia, apesar de ter nascido na Polônia, ter vivido e
trabalhado a vida toda na Ucrânia e ter residido apenas quatro anos em
Moscou, antes de passar um longo período de exílio em Paris.
Há,
também, casos de grandes artistas da Ucrânia que vêm
de antes da arte moderna e que são erroneamente identificados
como russos: um deles é Ilya Repin, nascido na província ucraniana
de Chuguev e um dos nomes mais celebrados na Rússia na segunda
metade do século 19. Depois de décadas atuando como professor na Academia Russa de Artes em São Petesburgo, Repin deixou o cargo em 1905 e foi
morar na Finlândia. Quando a Finlândia se separou da
Rússia, em 1917, Repin se tornaria um dos entusiastas da revolução, mas
nunca mais foi autorizado a retornar a São Petesburgo ou a Moscou, nem
quando houve exposições com retrospectivas de suas obras.
Arte moderna na Ucrânia: acima, Três figuras de mulheres, pintura em óleo sobre tela de 1909 de Oleksandra Ekster. Abaixo, Anunciação, pintura em óleo sobre tela de 1908 de Oleksandr Murashko. No final da página, Cidade, pintura de 1917 de Issakhar Ber Ryback; e uma das curadoras da mostra, a ucraniana Katia Denysova, durante uma entrevista coletiva na abertura da exposição em Madri
Um
século depois de seu surgimento, uma amostragem realmente importante
do Renascimento Ucraniano e dos artistas de vanguarda da Ucrânia foi
finalmente reunida – contraditoriamente como consequência da guerra. Tudo começou com uma viagem que parece
enredo de um filme de ficção: quando teve início o bombardeamento em Kiev, em 2022, obras de arte muito valiosas que estavam no Museu Nacional da Ucrânia e em outros acervos e coleções particulares foram transportadas,
secretamente, em dois caminhões que partiram da Ucrânia em direção
à Espanha, para a exposição “En el ojo del huracán: vanguardia en Ucrânia, 1900-1930” (O olho do furacão: vanguarda na Ucrânia), aberta ao
público no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza.
Depois
da viagem arriscada de mais de 3 mil quilômetros atravessando a Europa, de Kiev a Madri, passando pela Polônia, as obras-primas da arte moderna da Ucrânia, talvez o patrimônio
cultural móvel mais valioso do país, estarão em exposição de gala
na Espanha até o final de abril. Depois da temporada na Espanha, o acervo segue para mostras em
outros grandes museus, em itinerário que começa no Museum Ludwig, na Alemanha. As 70 obras reunidas para a exposição destacam, em primeiro lugar, o absurdo da guerra, de todas as guerras, mas também traduzem a
importância de artistas célebres que nasceram ou trabalharam
durante muitos anos na Ucrânia. São obras e artistas que deixaram marcas definitivas tanto na cultura ucraniana como no estabelecimento das
revoluções radicais de sentido, de forma e de conteúdo, que convencionamos
nomear no mundo inteiro como Arte Moderna.
O seu
papel como artista, Marina Abramovic acredita, com
uma segurança que pode parecer ingênua e uma humildade
que desarma qualquer impulso para nos irritarmos, é levar o
seu público através de uma passagem ansiosa para um lugar
de libertação do que quer que os estava a limitar. Em todas
as culturas antigas há rituais para mortificar o corpo, como
forma de compreender que a energia da alma é indestrutível.
(Judith
Thurman).
Poucos
artistas contemporâneos levaram a experiência com a arte da performance a extremos
tão aflitivos como Marina Abramovic. Com ela, os trabalhos e apelos
do fazer artístico são sempre imprevistos, intensos, incômodos
–– são questionamentos sempre polêmicos e quase
sempre violentos que exploram a relação entre performer e
público, que expõem os limites do corpo, as
possibilidades da mente, e desafiam o
perigo. Uma retrospectiva do extenso
acervo construído pela artista em cincodécadas de
atuação e de provocação permanente está agora em cartaz em
Florença, na Itália. “Marina Abramovic, The Cleaner”, exposição
aberta ao público no tradicional PalazzoStrozzi
de setembro de 2018 a 20 de janeiro de 2019, que depois seguirá um roteiro itinerante por outros países, apresenta e
reapresenta experiências radicais que
revolucionaram a arte performática, colocando seu corpo à prova, como sujeito e como objeto, para
sondar seus limites
externos e seu potencial de expressão.
Com links para a transmissão on-line de um cronograma bem variado de eventos que inclui visitas monitoradas e mostra de objetos, figurinos, fotografias, filmes, e também conferências, aulas magnas e mini-cursos, e dando continuidade às atividades que o Palazzo Strozzi vem transmitindo via internet (como aconteceu com exposições recentes de nomes também célebres e controversos da arte contemporânea como o chinês Ai WeiWei e o norte-americano Bill Viola, entre outros), a retrospctiva dedicada a Marina Abramovic reúne um calendário de atividades incomuns para um museu de arte. Na agenda também há performances da artista em formato multimídia e re-performances ao vivo, com atores selecionados e treinados pela própria Marina Abramovic para apresentar mais de 100 trabalhos de sua trajetória, oferecendo ao visitante uma visão geral de sua arte instigante desde os anos 1960 até experiências mais recentes.
Nas amplas salas, saguões e jardins do Palazzo Strozzi o visitante pode ter a sorte de encontrar a presença da própria artista, ao vivo, em aparições e performances não identificadas em datas e horários da agenda, talvez como medida de segurança para evitar aglomerações excessivas no espaço. Há também as re-performances com atores em ambientes sedutores que incluem telões para exibição de filmes, vídeos, fotografias,
pinturas, esculturas eobjetos em
diversas instalações que provocam e comovem. Além de atividades dirigidas para
crianças, escolas, famílias, estudantes de arte ou universitários, o calendário anuncia para o anfiteatro principal eventos com a própria Marina Abramovic em
conferências e performances (veja os links para a exposição e
cronogramas do Palazzo Strozzi no final deste artigo).
Performance
com Marina Abramovic: no alto,
Anima Mundi, trabalho da artista em
1983 em
parceria com o performer Frank
Uwe Laysiepen,
mais conhecido como Ulay, na
recriação da cena
bíblica em que Maria recebe nos braços o corpo
de
Cristo após a Crucificação. Acima, a artista em uma
das performances que integram a
série de oficinas
nomeadas como Limpando a casa, de
onde saiu
o nome da exposição realizada em
Florença,
The cleaner (ou
“Il pulitore”, em italiano).
Abaixo, "Cleaning the Floor" (Limpando o chão),
de 2004, célebre reflexão sobre o feminismo,
com a violência de gênero investigada em
relação ao ambiente doméstico; e o encontro
de Marina e Ulay em duas performances que
marcaram época: o beijo revolucionário
de 19 minutos em Inspirar / Respirar,
realizado em 1977 no Centro de Cultura Estudantil
de Belgrado, na Sérvia; e AAA AAA, apresentada
em 1978, em Amsterdã, agora exibidas em
filmes na exposição do Palazzo Strozzi
Arte
em relação com o corpo
A
artista que
se autodefine como “cidadã do mundo” e como “avó da
arte da performance” nasceu em Belgrado, antiga
Iugoslávia, hoje capital da Sérvia, em 1946, ao
final da Segunda Guerra Mundial. Filha de dirigentes do Partido
Comunista, Marina Abramovic estudou na Academia de
Belas-Artes em Belgrado e em Zagreb, onde se formou em cursos de artes plásticas e artes cênicas. No final dos anos 1960,
ainda morando em seu país de origem, deu início a séries
de performances que provocaram escândalo e chamaram atenção para
seu nome –– entre elas apostas em limites da relação
com o corpo e com o público nomeadas
“Brincadeiras com facas” (Rhythm 10), “Deitar no meio de uma
estrela de fogo” (Rhythm 5), “Ficar sob efeito de drogas
controladas” (Rhythm 2) e “Estar semi-nua à disposição dos
espectadores” (Rhythm 0), esta última retomada em 2010 no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York,
quando ela esteve presente durante os três meses da
exposição: extensas filas se formaram com os interessados em ficar
um minuto em silêncio, sentados, imóveis, diante da artista.
Em
1976, Marina Abramovic mudou-se para Amsterdã, Holanda, onde
encontrou seu parceiro mais constante, o artista alemão Frank Uwe
Laysiepen, mais conhecido como Ulay. O
trabalho dos dois consistiu em testar e provocar os limites
do público em intransigentes façanhas de resistência e loucura, a
que os dois chamaram "trabalhos de relação", e
que algumas vezes terminaram com a intervenção policial depois de
denúncias dos mais conservadores sobre comportamento
obsceno ou ameaças de violência. Uma destas performances,
nomeada “Imponderabilia”, foi apresentada pela primeira vez na
Itália, em Bolonha, 1977, na Galeria Comunale d’Arte Moderna. A
aparente simplicidade da representação contrasta com altos níveis
de complexidade: em um portal de passagem estreita, o casal está
nu, imóvel, um corpo diante do outro, olhando-se
fixamente. Quem quiser chegar do outro lado da sala para
continuar a visita à exposição tem que passar entre os dois e
tem que passar de lado, optando por se virar para um ou para o outro.
Performance com Marina Abramovic: acima,
Imponderabilia (à
esquerda, a re-performance
em
cartaz na exposição do Palazzo Strozzi; à direita,
a performance
original, com Marina e Ulay em 1977,
em
Bolonha, na Itália, que foi interrompida pela
polícia).
Abaixo, uma das salas da exposição atual
com Luminosidade
casa-espírito, apresentada ao vivo,
com atores
(re-performance), na exposição em Florença;
e
a performance original Rhythm 5, realizada em 1974
por
Marina no Student Cultural Center, em Belgrado
O
incômodo
da nudez
A
situação de nudez cria, naturalmente, desconforto, como em todas as performances e trabalhos que Marina Abramovic propõe,
com ou sem Ulay.
Mas a
nudez ou o desconforto não
impedem várias pessoas de avançar, largando bolsasou
casacos, e passarem roçando
nos
dois corpos nus. Geralmente, do outro lado há alguém que
fotografa o momento. A
primeira performance de “Imponderabilia” em
Bolonha foi
interrompida
muito antes das sete horas previstas, pela polícia, chamada para pôr
fim ao “comportamento indecente” dos artistas. A mesma peça
pode agora ser vista no Palazzo Strozzi, em Florença, integrada na
retrospectiva
de
Marina Abramovic, reencenada
por atores nus.
Desde
a abertura da exposição na
Itália, entretanto, não
houve, ainda, nenhumaintervenção
policial e
nem protesto do público tentando impedir ou proibir as performances,
mas as muitas fotos e vídeos feitos pelos muitos visitantes são,
neste tempo de redes sociais, completamente invisíveis no espaço
público. A tentativa de publicar fotografias
da nudez da artista ou dos atores das re-performances em
uma
conta de Facebook, por exemplo, é imediatamente
impedida
por
mensagens
automáticas da
empresa de
Mark Zuckerberg avisando
que a imagem é
proibida por apresentar nus e violar ou não
respeitar
as regras da comunidade. Evoluiu
a tecnologia, mas a arte de Marina Abramovic permaneceplena
de ousadia eum
tanto incômoda.
Etanto
agora,
como antes, continua
a provocar
os instintos mais repressores e a intolerância da censura.
Performance
com Marina Abramovic: acima,
a
artista nos bastidores, durante a montagem da
exposição
em 2010 no MoMA, em Nova York. Abaixo,
registros
de duas das performances do
início de sua
trajetória que
provocaram escândalo e chamaram
atenção
para seu nome: Rhytm
10 (de 1973), em
que
ela
crava uma faca entre os dedos, em ritmo crescente,
ferindo-se
várias vezes durante o processo; e
Relação
no espaço, um dos primeiros trabalhos
da
parceria na vida e na arte com Ulay
Performance
e vida cotidiana
O
encontro da artista em 1975 com Ulay, filho de um soldado nazista,
nascido no mesmo dia que ela, 30 de novembro (Marina nasceu em
1946 e Ulay em 1943), marcou definitivamente sua trajetória e abriu
novas perspectivas para as experiências levadas ao limite.
Depois das obras mais tradicionais em pintura figurativa e
pintura com abstrações em sua juventude, e depois das primeiras
experiências radicais de performances em que o seu próprio corpo era
o suporte, a fase de parceria com Ulay durou exatos 12 anos e
estendeu o trabalho de performance para todos os
momentos da vida cotidiana, registrados em peças que marcaram
época e que sobreviveram em filmes e fotografias.
Entre
os trabalhos mais conhecidos da parceria entre Marina e Ulay
estão “Breathing In / Breathing Out” (em que um respirava
para dentro da boca do outro durante 19 minutos), “Light / Dark”
(em que os dois se esbofeteavam criando um ritmo durante 20 minutos),
“AAA AAA” (em que ambos gritavam desesperadamente, cara a cara,
durante 15 minutos), “Relação no espaço" (os dois
correm de pontos opostos, completamente nus, e passam um pelo outro,
repetindo o movimento durante 58 minutos, até que no último momento
colidem, correndo em alta velocidade) ou “Rest Energy”
(Energia de repouso), de 1980, talvez a cena mais angustiante, entre
tantas outras, na qual Marina segura um arco e Ulay segura uma flecha
apontada para o coração dela, ambos em uma posição de evidente
desequilíbrio, durante quatro minutos e 10 segundos. A tensão
e o perigo iminente provocaram, como sempre, desconforto e
reações extremas do público.
Performance
com Marina Abramovic: acima,
Rest Energy (Energia de repouso), parceria com
Ulay em 1980. Abaixo,
o reencontro de surpresa do
casal em
2010 no MoMA, depois de duas décadas:
Ulay
sentou-se à frente de Marina, os dois
ficaram
emocionados e emocionaram o público
Arte
em novas fronteiras
Durante
o período de 12 anos da parceria, o casal morou em uma van
Citroën de cor preta na maior parte do convívio (a
van também está em exposição, aberta ao público, no
pátio do Palazzo Strozzi) e teve aproximação maior com
questões místicas e espirituais em temporadas e
performances que incluíram viagens pelos cinco continentes ––
com momentos históricos em uma tribo de nativos na Austrália ou em
rituais com monges budistas no Tibete. O final da
relação em 1988 também foi encenado como uma performance,
monumental, nomeada em comum acordo pelos dois como
“The Lovers” (Os amantes), com duração de três
meses registrada por câmeras de fotografia e vídeo: cada um
caminhou de um ponto extremo da Grande Muralha da China até se
encontrarem, no meio do trajeto, para se despedirem um do
outro com um demorado e afetuoso abraço de adeus.
Sem
Ulay, nas últimas décadas, Marina Abramovic seguiu em direção
a novas fronteiras: fez uma parceria com o dramaturgo britânico
Robert Wilson para a montagem de um espetáculo teatral chamado "A
vida e a morte de Marina Abramovic", apresentado com trilha
sonora de Antony Hegarty em 2011 no festival internacional de
Manchester, Inglaterra, e em 2012 no Teatro Basel, na Suíça, com
Marina dividindo a autoria com Robert Wilson e dividindo as cenas no
palco com o ator Willem Dafoe; e passou a investir no treinamento de
atores para novas performances e para retomar antigos trabalhos, no
que ela chama de re-performances ao vivo, como as que
agora ela apresenta em Florença.
Sobre
as críticas proibitivas de um ou outro teórico mais purista, que
insista em defender o caráter da unicidade das performances, tal
como elas surgiram no final da década de 1960, Marina Abramovic
argumenta que a montagem em re-performance ao vivo é exatamente
isto: uma forma de arte cênica e presencial para fazer perdurarem
trabalhos que têm natureza efêmera, ao contrário do que ela mesmo
professava nos anos 1970, quando havia um consenso defendendo que as
performances eram únicas e irrepetíveis, o que as distanciava
radicalmente do espetáculo de teatro. Nas duas últimas décadas,
a artista também retornou à sua terra natal para buscar
inspiração para trabalhos como “Barroco dos Balcãs” (1997),
que traduz de forma simbólica as tragédias da Guerra da
Bósnia. Apresentada na Bienal de Veneza, rendeu a Marina
Abramovic o prêmio máximo do evento, o Leone d’Oro.
Performance
com Marina Abramovic: acima,
Vida
e morte de Marina Abramovic, parceria da
artista
com o dramaturgo britânico Robert Wilson
apresentada
nos palcos do festival internacional de
Manchester
em 2011 e no Teatro Basel, na Suíça, em 2012. Abaixo, Barroco dos
Balcãs, uma
performance
com ossos de animais premiada com o
Leone
d’Oro no Festival de Veneza em 1997
.
O
espaço além
Também
ambientadas
em sua terra natal são “O Herói” (2001), performance dedicada a
seu pai, que lutou na resistência contra nazistas e fascistas,
durante a Segunda Guerra, e “Épico Balkaniano”, instalação
com três telões e imagens individuais de Marina, seu pai, sua mãe
– somente Marina fala, contando histórias macabras sobre sua
infância, na fronteira entre a realidade da memória e a imaginação
fabulosa. Outra referência à sua terra natal e aos cenários de
guerra aparece em destaque em "A casa com vista para o mar"
(2002), apresentada na Galeria Sean Kelly, Nova York: durante 12
dias, de forma ininterrupta, ela ficou em completo silêncio e em
completo jejum, observada pelos visitantes em uma estrutura suspensa
que teve como único acesso escadas feitas com facas afiadas.
A
fase mais recente da trajetória da artista avança pelo misticismo:
em “Contando o arroz”, de 2015, criada como parte de uma série
de oficinas nomeadas como “Limpando a casa” (também apresentadas
em Florença e de onde saiu o nome da exposição atual, “The
cleaner”, ou “Il pulitore”, em italiano), a artista propõe ao
público um isolamento com fones de ouvido à prova de som para cada
um, sentado à mesa, separar o arroz branco misturado a
lentilhas pretas, anotando em uma folha o número de grãos –
um convite à reflexão e à conexão consigo mesmo em busca de calma
e concentração. Em “Objetos transitórios”, também
de 2015, ela apresenta ferramentas incomuns feitas de cristais
de quartzo e outros materiais frágeis para serem manuseadas com
cuidado, provocando viagens interiores de meditação e
transcendência.
Performance
com Marina Abramovic: acima,
The Current (A corrente), performance de 2017
gravada em vídeo em tempo real, sem cortes,
com uma hora e 35 minutos em que a artista
permanece impassível. Também acima,
A
casa com vista para o mar (performance
de 2002), uma alegoria sobre os cenários da
Guerra
dos Balcãs. Abaixo, cenas do
documentário
Espaço
Além – Marina Abramovic e o Brasil
Com
retrospectivas de seu trabalho realizadas nos últimos anos em diversos países,
incluindo uma temporada no Sesc Pompeia em São Paulo, em 2015 (a
primeira exposição retrospectiva da artista apresentada em um país
da América Latina), o capítulo mais recente de sua
trajetória de experimentações também se passa no Brasil: em
parceria com o diretor Marco Del Fiol, Marina Abramovic apresenta em
umdocumentário,
“Espaço Além”, uma viagem esotérica de 87 minutos com uma série de performances e
registros audiovisuais sobrelugares
místicos, sobre preces de invocação e sobre cultos de devoção muito diferentes entre si. O filme estreou nos cinemas brasileiros em 2016 e segue
sua trajetória de exibição em outros países e em festivais pelo
mundo afora.
No
“Espaço Além”, Marina Abramovic é a protagonista e a voz
narrativa que tudo conduz. Com sua equipe de produção, a artista
pesquisou e visitou, a partir de 2012, em diversos períodos, comunidades espirituais que incluem, entre outros
cenários e ambientações, dos diversos rituais que convivem no
Vale do Amanhecer, em Brasília, ao xamanismo na Chapada
Diamantina, e daí a momentos de emoção e reflexão no candomblé da Bahia, nas cerimônias com chás de ayahuasca, nas benzeções tradicionais em Goiás, nas simpatias com sessões em banhos de ervas ou de lama, nas curas operadas por médiuns, por pessoas comuns, por cristais e outras pedras de poder que nomearam há séculos o
território de Minas Gerais. Uma frase de Marina Abramovic, em
algum momento do filme, talvez seja uma tradução fiel sobre sua
trajetória: ela diz que sempre quis, desde o
começo, em seu país de origem, ampliar
a consciência através da arte para que outras pessoas pudessem, através de sua arte, ver
a si mesmas em seupróprio
reflexo. A artista, em sua presença imponente, polêmica
e benevolente, não se esconde.