Mostrando postagens com marcador rio de janeiro. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador rio de janeiro. Mostrar todas as postagens

7 de dezembro de 2024

Augusto Malta em fotomontagens


 




As fotografias conseguem enganar o tempo: 

elas o congelam onde a alma está em silêncio. 


–– Isabel Allende em “Amor e Sombras”.

   


A fotografia incide sobre o tempo, como dizia Roland Barthes. Uma demonstração sobre tal incidência surge no intervalo de 100 anos que separam e reúnem as fotografias do Rio de Janeiro Antigo, registradas por Augusto Malta, e cenas da atualidade nas fotomontagens feitas por Marcello Cavalcanti para o fotolivro “Augusto Malta Revival”, lançado pela Gávea Imagens. Nascido em Mata Grande, Alagoas, Augusto Malta (1864-1957) foi um dos mais destacados fotógrafos a atuar no Rio de Janeiro no período de 1900 a 1930, contratado desde 1903 pelo prefeito Francisco Pereira Passos para registrar, em fotografias, a transformação urbana radical que aconteceria na cidade nas primeiras décadas do século 20, mais conhecida como campanha do “Bota Abaixo”.

A ideia de trabalhar com fotomontagens surgiu em 2008, quando Marcello Cavalcanti passava uma temporada em Barcelona, Espanha, uma cidade que reúne a tradição de construções milenares e uma arquitetura moderna. Formado em Design Gráfico, fotógrafo profissional e professor, Marcello nasceu no Rio de Janeiro, em 1980, e se autodefine como um colecionador visual. Na temporada em Barcelona, ele fotografou para sua coleção centenas de portas, janelas, paredes, grafites, becos, vielas, praças e pessoas na cidade da Catalunha, e desde aquela época começou a investir em colagens fotográficas. Anos depois, de volta ao Brasil, ele mergulhou no projeto que reúne na mesma imagem suas fotos autorais de cenários do Rio de Janeiro mescladas às imagens em preto e branco feitas no começo do século 20 pelas câmeras de Augusto Malta.


Cenários do Rio Antigo


A primeira etapa do projeto de Marcello Cavalcanti teve início em 2012, quando ele fez a experiência de sobrepor duas fotografias feitas do alto do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro: uma feita por ele e outra feita por Augusto Malta em 1910. Ele continuou aperfeiçoando a experiência e três anos depois apresentou um projeto que foi selecionado para uma carta de apoio da Prefeitura do Rio, na época das comemorações dos 450 anos da cidade, seguida de uma exposição patrocinada pela companhia de eletricidade Light (que contratou os serviços de Augusto Malta a partir de 1905) e pela Secretaria de Estado da Cultura. A exposição foi apresentada em outubro de 2015 no Centro Cultural Light. O acervo de fotomontagens, realizadas a partir de uma seleção de 60 fotografias de Augusto Malta, posteriormente foi publicado no fotolivro “Augusto Malta Revival”, esgotado após o lançamento em 2023 e que terá em breve sua primeira reedição.







Augusto Malta em fotomontagens
: no alto e abaixo,
as fotomontagens de Marcello Cavalcanti feitas a partir das
fotografias originais de Augusto Malta, publicadas no fotolivro
“Augusto Malta Revival”. Acima, os autorretratos dos dois
fotógrafos, projetados na cerimônia de lançamento do
fotolivro e Marcello Cavalcanti na abertura
da exposição, no Rio de Janeiro.

Abaixo, uma seleção das fotomontagens:
os Arcos da Lapa, na fusão de imagens com
intervalo de um século; e a transformação da
Enseada de Botafogo do passado (esquerda)
à atualidade (direita). As imagens publicadas
nesta página fazem parte do fotolivro,
exceto quando indicado











A produção do acervo de imagens que resultou no livro é o resultado de muitas experiências em 10 anos de trabalho. Marcello fez a sobreposição minuciosa de cada detalhe das antigas imagens de Augusto Malta, com novas fotografias feitas nos mesmos cenários e mesmos ângulos de enquadramento. Neste período, ele também criou um canal no YouTube (“Por trás da foto”), lançou três e-books sobre fotografia (“30 Dicas para o fotógrafo de paisagem”, “Golden Hour – A ciência por trás da melhor luz para fotografar paisagem” e “Lua – Como fotografar”), criou cursos on-line sobre fotografia, fotografou em várias regiões do Brasil e em outros países (Estados Unidos, Canadá, França, Espanha, Noruega, Itália, Tanzânia, África do Sul, Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia, Guatemala, México), recebeu prêmios e criou a editora Gávea Imagens, empresa que gerencia seu trabalho no mercado internacional pelo Fineart e também no Brasil.


Imagens da passagem do tempo


Em entrevista, Marcello Cavalcanti diz que seu interesse sempre foram os padrões gráficos e as repetições comparativas que revelam a passagem do tempo, como demonstrou em suas fotomontagens. Ele também confessa sua fascinação com as coincidências e as diferenças que foi descobrindo nas imagens que registram o intervalo de um século. “No trabalho de junção das fotografias, vou apagando coisas ou preservando. Se tem pessoas na rua: qual pessoa vou deletar, qual vou deixar? Às vezes acontecem coincidências das pessoas se olhando, pessoas que estão separadas por mais de 100 anos. Elas estão se olhando na imagem”, destaca, pontuando detalhes que o impressionaram.








Augusto Malta em fotomontagens: acima,
as praias de Ipanema e Leblon vistas a partir
do alto do Morro Dois Irmãos, no bairro do Vidigal.
Abaixo, a Lagoa Rodrigo de Freitas; a fotografia
original de Augusto Malta da avenida Rio Branco
e a fusão das imagens na atualidade















As fotomontagens de Marcello Cavalcanti sobre as fotografias de Augusto Malta também revelam questões sobre a evolução do urbanismo e da arquitetura do Rio de Janeiro no último século. “É impressionante como o Rio cresceu verticalmente e como a cidade era menos arborizada. A cidade tinha muito casario e poucas árvores nas ruas. Hoje é tudo vertical e temos mais árvores. A passagem do tempo e, como ela influencia, modifica e, ao mesmo tempo, mantém padrões. é o que me fascina no universo imagético em que vivemos”, conclui.


Fotógrafo da evolução urbana


As fotomontagens já existiam na época de Augusto Malta, mas ao que se sabe ele não fez nenhuma experiência de colagens usando a técnica fotográfica. Um caso exemplar de fotomontagem no Brasil veio de um contemporâneo de Malta, Valério Vieira (1862-1941), fotógrafo profissional e músico, que em 1901 apresentou ao público “Os Trinta Valérios”, obra que se tornaria um dos marcos da fotografia brasileira. Apesar de existirem registros de outras manipulações, recortes e colagens de matrizes fotográficas em período anterior, a obra de Valério Vieira rompe com a noção de que a fotografia é um registro realista e inquestionável. Na fotomontagem, Valério Vieira surge em diferentes poses e em várias situações na mesma imagem, em autorretratos reunidos na cena de apresentação de uma orquestra – mas todos em cena são reproduções da figura do próprio fotógrafo, em um arranjo irônico que surpreende pelo inusitado da técnica e que ainda hoje mantém sua aura de bom humor e inventividade.










Augusto Malta em fotomontagens: acima,
a Rua Paissandu, em Laranjeiras, ontem e hoje;
e a praia do Leblon, atualmente e há 100 anos.
Abaixo, uma vista de São Conrado, com as
áreas de floresta cedendo lugar aos prédios;
e duas imagens da praia do Arpoador.

Também abaixo, uma vista do Pão de Açúcar
e das praias da Zona Sul; duas imagens do presente
e do passado da Avenida Vieira Souto, na praia
de Ipanema,
hoje e na década de 1930; e duas
imagens do Theatro Municipal na Cinelândia
















O acervo fotográfico de Augusto Malta, entretanto, ao contrário das experiências de Valério Vieira, está na direção oposta ao ilusionismo: Malta é considerado o principal fotógrafo da evolução urbana do Rio nas primeiras décadas do século 20, um período de acelerada e traumática modernização. Seus belos registros fotográficos formam um material de pesquisa e documentação fundamental para historiadores, urbanistas, arquitetos e pesquisadores das mais diversas áreas. As fotografias de Malta mostram, entre outros momentos históricos, as etapas de demolição da área onde estava do Morro do Castelo – um marco da campanha de reforma urbana anunciada para libertar o Rio da reputação de “cidade insalubre”, com suas metas de higienização, renovação e demolição de antigos edifícios, cortiços, pensões e pousadas, para a abertura das grandes avenidas, repetindo o modelo de urbanização que estava sendo adotado em Paris e outras grandes cidades da Europa.























Fotografia como missão


Augusto Malta deixou sua terra natal na década de 1880 e foi servir como cadete do Exército no Recife, em Pernambuco. Em 1888, chegou para tentar a sorte no Rio de Janeiro, na época Distrito Federal. Em 1900, comercializava tecidos e usava uma bicicleta para fazer entregas, quando uma barganha mudou seu destino: um de seus fregueses propôs a troca de uma câmera fotográfica pela bicicleta. Malta aceitou. E a partir daí iria mergulhar no ofício da fotografia, registrando ruas e cenários do Rio. Suas fotografias chamaram a atenção do prefeito Pereira Passos, que mandou contratá-lo em 1903 como fotógrafo oficial da Diretoria Geral de Obras e Viação da Prefeitura do Distrito Federal, cargo criado especialmente para Augusto Malta, com a missão de registrar imagens das ruas que seriam modificadas pelo gigantesco projeto urbanístico do prefeito.







Augusto Malta em fotomontagens: acima,
a mudança dos veículos do passado na Vista Chinesa.
Abaixo, o Túnel do Leme, por onde passavam
bondes; e a Rua São Clemente, em Botafogo















Pereira Passos encerrou seu mandato em 1906, mas Augusto Malta permaneceu no posto de fotógrafo oficial da prefeitura por mais 30 anos, registrando desde grandes eventos a aspectos da vida cotidiana da cidade. Os registros fotográficos mais importantes sobre a modernização do Rio foram feitos por ele, incluindo marcos históricos como a implantação dos bondes elétricos e da iluminação pública, a abertura e as inaugurações das grandes avenidas, a Exposição Nacional de 1908, a Exposição Internacional para o Centenário da Independência, em 1922, e a inauguração da estátua do Cristo Redentor, em 1931, entre milhares de outros flagrantes de personagens anônimos ou famosos e eventos oficiais.

Uma parte considerável do acervo de Augusto Malta vem dos registros de sua dedicação às alterações na paisagem urbana do Rio, à beleza de suas ruas e edifícios e aos movimentos populares, como o surgimento das primeiras favelas, a Revolta da Vacina, a chegada de Getúlio Vargas com as tropas na Revolução de 1930 e os antigos desfiles de carnaval. Estão preservadas mais de 100 mil fotografias feitas por Augusto Malta, incluindo imagens em papel e negativos em vidro ou filme. Os acervos atualmente estão no Arquivo Geral do Rio de Janeiro, no Museu da Imagem e do Som, no Arquivo da Companhia Light, na Biblioteca Nacional, no Museu Histórico Nacional e no Instituto Moreira Salles.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Augusto Malta em fotomontagens. In: Blog Semióticas, 7 de dezembro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/12/augusto-malta-em-fotomontagens.html  (acessado em .../.../…).




Para comprar o livro Augusto Malta revival,  clique aqui.















Augusto Malta em fotomontagens: acima, a célebre
fotomontagem feita em 1901 por um contemporâneo
de Malta, Valério Vieira, que ficou conhecida como
“Os Trinta Valérios”, com 30 autorretratos do
fotógrafo em justaposição, com técnica e resultados
muito avançados para a época.

Abaixo, uma seleção de fotografias originais
de Augusto Malta: 1) mulheres observando uma
vitrine na Rua do Ouvidor, no Centro do
Rio de Janeiro (cerca de 1906); 2) a Avenida Central,
atual Avenida Rio Branco em 1906, depois da
iluminação por energia elétrica; 3) desfile de Corso
no carnaval de 1919 no Rio de Janeiro, depois da
grande epidemia de gripe espanhola; 4) visita de estudantes
ao recém-inaugurado Cristo Redentor em 1931;
5) o Pão de Açúcar e uma área do bairro de Botafogo
vistos a partir do Mirante Dona Marta em 1910;
e 6) uma vista da Praia de Copacabana em 1910















 
 















7 de junho de 2012

Relíquias de Marc Ferrez







Depois da existência da fotografia e do cinema, 

a reprodução desenhada ou pintada da verdade 

não interessa nem vai interessar a mais ninguém. 

–– Giacomo Balla (1871–1958).    



Boas e más notícias trouxeram de volta à mídia o nome de Marc Ferrez (1843-1923), um dos mais importantes fotógrafos brasileiros de todos os tempos. As boas notícias: uma parte considerável da obra completa de Ferrez foi adquirida pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que lançou no Brasil e na França um catálogo impecável reunindo ensaios escritos por especialistas e uma coleção de 160 imagens primorosas do final do século 19 e do começo do século 20.

Além das fotografias reunidas na edição, há também um acervo de mais de 300 imagens originais de Ferrez, a maioria belas panorâmicas em negativos de grande formato (40cm X 110cm), que permanece em exposição itinerante nas sedes do IMS e em outros espaços no Brasil e no exterior. Parte do acervo também está aberta ao público no site que o IMS mantém na internet. Tanto o catálogo impresso como a mostra itinerante e as imagens disponíveis no site revelam a arte grandiosa de Ferrez, que criou no Brasil, antes de qualquer outro pioneiro da fotografia, uma linguagem que se tornaria universal e quase obrigatória em livros e reportagens de turismo e no formato de cartões postais.

Também há más notícias: o nome de Marc Ferrez frequentou as páginas policiais por conta de um grande roubo no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, registrado em 2005, quando desapareceram cerca de 150 de suas fotografias mais raras e celebradas. Um crime perfeito, que não deixou pistas, aparentemente sob orientação de especialistas: além das séries valiosas de Ferrez, também furtaram fotografias e negativos originais de outros pioneiros da fotografia do século 19, entre eles August Stahl (1828-1877), Guilherme Liebenau (1838-1900) e Benjamin Mulock (1829-1863).











Imagens de Marc Ferrez: o fotógrafo em
autorretrato datado de 1876, aos 33 anos.
No alto, registro da primeira locomotiva
(Trem de Ferro) e o grupo de engenheiros
responsáveis pelas obras da Estrada de
Ferro Rio-Minas, fotografados por Ferrez
no alto da Serra da Mantiqueira, no ano
de 1882. Acima, Ferrez registra a imperatriz
Teresa Cristina e Dom Pedro 2°  com a
princesa Isabel e a família reunida no
Paço Imperial do Rio de Janeiro, em 1887.
Abaixo, entrada da Baía de Guanabara no
Rio de Janeiro, vista de Niterói, em
fotografia de 1890 de Marc Ferrez






.



As boas e as más notícias colocaram em evidência o gênio de Marc Ferrez, nome fundamental da fotografia e do cinema brasileiro que, em seus 80 anos de vida, registrou todo o Brasil em belas panorâmicas e em retratos impressionantes, entre ilustres personalidades e anônimos que encontrou em cada região do país. Filho de um casal de escultores e gravadores franceses que vieram para o Brasil em 1816, com a Missão Artística Francesa, Ferrez foi comparado aos grandes pintores pelos intelectuais do Império e da primeira República, o que era a mais nobre das distinções, numa época em que o trabalho de fotografar estava longe de ser considerado uma arte. 



Arauto da Modernidade



O livro, na verdade um belo catálogo fotográfico intitulado “O Brasil de Marc Ferrez”, traz detalhada biografia, cronologia de seus principais trabalhos e ensaios de Françoise Reynaud, curadora do Museu Carnavalet, em Paris, e dos pesquisadores Maria Inez Turazzi, Pedro Karp Vasquez, Laurent Gervereau, Frank Stephan Kohl, Sérgio Burgi e Antônio Fernando De Franceschi, superintendente do IMS. Com a publicação e a exposição itinerante do acervo, foi a primeira vez que a obra de Marc Ferrez chegou ao público de forma abrangente.
 







Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
visita do imperador Pedro 2°, no ano
de 1882, à inauguração do Túnel da
Mantiqueira, na primeira Estrada de Ferro
que interligava Rio de Janeiro e Minas
Gerais. Acima, a princesa Isabel
Cristina de Bragança em 1887.
Abaixo, vista da construção da
Estrada de Ferro Santos Jundiaí
pela São Paulo Railway em 1880






.





Nas fotografias de Marc Ferrez, o que mais surpreende, junto com sua demonstração de domínio da luz, é sua precisão na escolha do ponto de vista para ressaltar no enquadramento a qualidade estética das cenas registradas. São imagens comoventes, mesmo depois de todos os avanços tecnológicos da maquinaria fotográfica. Como destaca De Fraceschi em um dos ensaios do livro, abordando as singularidades da obra de Ferrez e sua influência sobre pintores célebres que se dedicaram às paisagens do Brasil:

O que interessa, cada vez mais, é compreender as relações passadas e presentes entre a fotografia e a pintura, sobretudo agora, quando as vanguardas contemporâneas parecem ter se desinteressado do mundo objetivo, deixando para a fotografia a inteira responsabilidade de se ocupar do real. Diante da obra monumental de Marc Ferrez, fica mais fácil compreender porque se atribui às suas belas imagens, produzidas na segunda metade do Oitocentos e nas primeiras décadas do século 20, os primeiros registros sobre a entrada do Brasil na Modernidade”.







          



No alto, Igreja de São Francisco de Assis 
em Ouro Preto, Minas Gerais, uma das obras-
primas do Barroco Mineiro e do mestre
Aleijadinho, retratada por Marc Ferrez
em 1880. Acima, Paul Ferrand fotografado
por Marc Ferrez na Serra do Itacolomy,
em Ouro Preto, no ano de 1886. Abaixo,
vista do Porto de Santos em 1880



         



Além do privilégio da nomeação como primeiro (e único) Fotógrafo da Marinha Imperial, Ferrez pôde percorrer o país como um dos principais nomes da Comissão Geológica do Império, a partir de 1875, fotografando atividades econômicas, a construção das principais estradas de ferro, as construções seculares da arquitetura barroca, as minas de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, as belas paisagens e os cenários desconhecidos das cidades, das florestas e das fazendas, seus costumes e personagens dos salões, das ruas, dos grotões.

Funcionário dos mais destacados nos quadros do Segundo Império, primeiro entre seus pares a visitar os confins do território nacional e registrá-los em fotografias e documentos cartoriais, Marc Ferrez também desenvolveu equipamentos próprios e introduziu experiências técnicas como as fotografias coloridas, por ele batizadas de autocromo, em aperfeiçoamento à invenção dos irmãos Lumière. Observar a evolução temporal de sua arte equivale a uma leitura da história do Brasil e da trajetória da fotografia, dos processos químicos mais primitivos aos avanços da tecnologia das câmeras, lentes e processos de revelação e reprodução.










Cartões postais de Marc Ferrez: no alto,
escravos no garimpo de ouro na região de
Diamantina, no interior de Minas Gerais,
em 1888. Acima, paisagem surpreendente
às margens do Rio São Francisco no
Nordeste do Brasil no ano de 1875. Abaixo,
a praia de Ipanema, Rio de Janeiro, 1895









Expedições do Império



Filho mais jovem do francês Zéphyrin Ferrez, contando com mais quatro irmãs e um irmão, ficou órfão de pai e mãe no Rio de Janeiro aos sete anos. Mandado para a França, onde estudou até a adolescência, retornou ao Brasil em 1859 e passou a trabalhar na Casa Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha começado a trabalhar com uma seção dedicada à fotografia. Na Casa Leuzinger, Ferrez aprenderia as técnicas da arte de fotografar com o alemão Franz Keller (1835-1890). Aos 21 anos, em 1865, investiu tudo que tinha para abrir a firma Marc Ferrez & Cia., um estúdio fotográfico que o colocou entre os principais profissionais da corte.

Em 1875, a trajetória de Ferrez mudou radicalmente quando ele recebeu convite para integrar, como fotógrafo, a expedição chefiada pelo geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878) e financiada pela Comissão Geológica do Império. Hartt faria história como autor da primeira obra rigorosamente científica sobre a geografia do Brasil – “Geology and Physical Geography of Brazil” (1870). A Expedição Hartt percorreu várias regiões do país e acendeu em Ferrez o gosto pela aventura de desbravar e registrar os confins de norte a sul do território nacional.













Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
menino índio, fotografia de 1880, e
índia e seu filho fotografados no sul
da Bahia, em 1875, e índios botocudos
no interior de Mato Grosso (1876).
Acima, a primeira fotografia no interior
de uma mina de ouro, em Ouro Preto,
Minas Gerais, no ano de 1888. Abaixo,
fotografia da série de 1876 dedicada
aos índios botocudos; um grupo de
índios Bororo em fotografia de 1880;
e duas fotografias que registram aspectos
da vida indígena feitos na década de 1870
e apresentados no Museu Nacional em 1882
na Exposição Antropológica Brasileira




             



              












Depois da experiência com a Expedição Hartt, Ferrez passa a investir esforços nos estudos sobre geologia e geografia e, no ano de 1880, decide encomendar na Europa a confecção de uma máquina fotográfica por ele idealizada, para a execução de imagens panorâmicas em grandes dimensões. Daí aos cargos oficiais de maior importância no Império de Dom Pedro 2°, também entusiasta da fotografia, foi um passo.

O destaque como funcionário a serviço da nação continuaria nos primeiros tempos da República. Reconhecido no Brasil e no exterior como fotógrafo de paisagens, de obras públicas, de cartões postais e de retratos de políticos e personalidades que se tornariam célebres, entre eles os escritores Machado de Assis e Rui Barbosa, Ferrez realizaria a partir de 1903 uma de suas séries mais reproduzidas até a atualidade: a documentação completa das obras no Rio de Janeiro de instalação da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, dos antigos edifícios às construções que foram erguidas no começo do século 20.





Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
mata de Araucárias, no interior do Paraná,
em fotografia datada de 1884. Abaixo, grupo
de escravos e seus filhos reunidos em uma
fazenda de café na Serra da Mantiqueira,
Sul de Minas Gerais, no ano de 1885;
e escravos na colheita do café em uma
fazendo do Vale do Paraíba,
no Rio de Janeiro, em 1882





Qualidade estética e documento histórico



Marc Ferrez obteve em sua época as mais importantes condecorações pela excelência de seu trabalho fotográfico, tanto no Brasil como em outros países, em diversas instituições internacionais, entre elas os primeiros grandes prêmios em exposições nos EUA (Philadelfia, 1876) e na França (Paris, 1878), além de ter suas fotografias exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Várias de suas séries e álbuns também foram incorporadas desde o final do século 19 aos acervos da Société Géographique, sediada na França.

Como se não bastasse, o nome de Marc Ferrez ainda está ligado ao nascimento do cinema no Brasil: foi ele quem patrocinou a produção dos primeiros filmes nacionais e instalou em 1907, no Rio de Janeiro, o Cine Pathé, primeira sala de exibição permanente de espetáculos cinematográficos. Ainda nesse ano, a Casa Marc Ferrez & Filhos tomaria para si a distribuição da grande maioria dos filmes exibidos nas diversas salas de cinema que surgiram no Rio de Janeiro. 










O Rio Antigo segundo Marc Ferrez:
no alto, panorâmica da Ilha Fiscal na
Baía da Guanabara, em 1885. Acima, a
Avenida Central no Rio de Janeiro de 1910.
Abaixo, a estação da estrada de ferro da
Central do Brasil, Rio de Janeiro, 1899







 
A extraordinária qualidade estética, formal e documental da obra de Marc Ferrez na produção de retratos de personalidades, além das panorâmicas, tanto as urbanas quanto a paisagem natural que emoldura e envolve seus enquadramentos, foi preservada intacta por seus familiares no último século. Depois da morte do fotógrafo patriarca, o guardião de sua obra completa foi Gilberto Ferrez (1908-2000), neto de Marc e um dos mais destacados historiadores da iconografia brasileira e da obra dos viajantes estrangeiros no decorrer da história do Brasil.

Desde a morte de Gilberto, a guarda e a preservação dos arquivos dos Ferrez estão a cargo de sua filha, Helena Ferrez, que mantém há décadas a catalogação dos documentos da família. Os catálogos preservados contam com um extenso patrimônio em suportes variados, no qual estão incluídos desde as relíquias de Zéphyrin, pai de Marc e tataravô de Helena, às clássicas séries de ensaios em panorâmicas registradas em daguerreótipos e fotografias por Marc Ferrez.











Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
amostra da experiência de Marc Ferrez
com o autocromo em cores, realizada em
1915 na Quinta da Boa Vista, no Rio de
Janeiro, seguida de duas imagens do Rio no
ano de 1875: o Pão de Açúcar, visto a partir
do bairro do Flamengo, e uma panorâmica da
entrada da Baía da Guanabara. Abaixo, o Largo
do Paço e a Rua Primeiro de Marco, no 
Rio de Janeiro, em 1890. No final da
página, mais duas imagens de Marc Ferrez em
1875: orla do Rio de Janeiro, com vista para o
Cais Pharoux e adjacências, e panorâmica que
registra os arrecifes e o porto do Recife, feita
por Ferrez no alto do Farol da Barra, tendo
em primeiro plano o Forte do Picão, que foi
construído em 1614 e batizado desde então
pelos holandeses como Castelo do Mar








Aos cuidados de Helena Ferrez também estão os acervos reunidos durante décadas por Gilberto Ferrez e todos os arquivos e filmes em negativo do filho de Marc e pai de Gilberto, Júlio Ferrez (1881-1945) – pioneiro que trouxe os primeiros equipamentos de cinema para o Brasil e realizou as primeiras filmagens em território brasileiro. Os catálogos dos Ferrez contam ainda com séries de correspondências, muitos álbuns da intimidade da família, cadernos de anotações das várias gerações, peças de artes plásticas e impressos em geral.

A maior parte deste imenso acervo, entretanto, não faz parte do material reunido no livro e na mostra “O Brasil de Marc Ferrez”. As imagens que constam do livro e da mostra foram selecionadas da coleção adquirida pelo IMS em 1998 – uma coleção que totaliza cerca de 5.500 fotografias diferentes, produzidas no século 19 e começo do século 20, incluindo mais de 4 mil negativos originais em superfícies de vidro.

Importante como resgate da importância capital do trabalho de Marc Ferrez, o livro, assim como a mostra e a manutenção do acervo pelo IMS, também consolidam e estendem para além do círculo de especialistas um trabalho que é um dos mais importantes legados visuais do Segundo Império e da República Velha. Compreendida no período que vai de 1865 a 1918, a perícia técnica e a grande arte de Marc Ferrez se mantêm, até os dias de hoje, como um dos registros fundamentais da fotografia no Brasil e no mundo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Relíquias de Marc Ferrez. In: Blog Semióticas, 7 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/reliquias-de-marc-ferrez.html (acessado em .../.../...).



 







Outras páginas de Semióticas

  • A guerra de Banksy
    Hoje pela manhã, enquanto os sites de notícia contabilizavam os números de palestinos mortos nos…
  • Silêncio de Hopper
    A necessidade cada vez mais aguda de ruído só se explica pela necessidade de sufocar alguma coisa. ......…
  • Trevisan vence Camões
    Não me acho pessoa difícil, tanto assim que esbarro diariamente comigo em todas as esquinas de…
  • O Brasil de João do Rio
    O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havianinguém mais — a não ser…
  • Ao sol, carta é farol
    Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. –– Mário de Andrade em carta…
  • O trabalho de Lewis Hine
    A fotografia não sabe mentir,mas os mentirosos sabem fotografar. ––  Lewis Wickes Hine…