Mostrando postagens com marcador walter benjamin. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador walter benjamin. Mostrar todas as postagens

2 de dezembro de 2025

Surrealismo na fotografia

 





Todos agem “como se fossem anjos”, todos possuem

tanto “como se fossem ricos” e todos vivem “como se

fossem livres”. Não há nenhum vestígio real, contudo,

de anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens.

                                                             –– Walter Benjamin, “O Surrealismo” (1929).  




Movimento estético e artístico que provocou impacto na busca pela liberação das expressões do inconsciente, dos sonhos, da irracionalidade e das distorções da realidade, o Surrealismo também teve importância como ação política e ideológica antiautoritária e antifascista, além de representar uma linha de força fundamental nos grupos de vanguarda da Arte Moderna. Com seu centro irradiador situado inicialmente na França, especialmente em Paris, o movimento rapidamente se espalhou pelo mundo em suas mais diversas formas de expressão, levando os domínios da arte, da literatura e do cinema “até os limites extremos do possível” – como aponta o alemão Walter Benjamin no ensaio “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”.

Na língua francesa, o prefixo “sur” sempre existiu com acepções em “acima”, “sobre” ou “além”, mas o termo “sur-realismo” só foi publicado pela primeira vez em 1917 pelo escritor e crítico de arte Guillaume Apollinaire. Em um artigo, e em sua peça teatral “As tetas de Tirésias”, considerada uma obra precursora do surrealismo, Apollinaire escreveu: “Quando o homem quis imitar o caminhar, criou a roda, que não se assemelha a uma perna. Assim, criou o surrealismo sem se dar conta”. Em outubro de 1924, sete anos depois do primeiro registro na referência pioneira de Apollinaire, o escritor e poeta André Breton publicou o “Manifesto Surrealista”, marco fundador do movimento – e definiu o Surrealismo como "automatismo psíquico puro pelo qual se destina a expressar o verdadeiro funcionamento do pensamento e dos sonhos, livre de qualquer controle ou preocupação com a razão ou a moral".










Surrealismo na fotografia: no alto da página,
Uns sobem e outros descem (Unos suben y outros
bajan, 1940), fotografia de Lola Álvarez Bravo.
Acima, mais duas fotos de Lola Álvarez Bravo,
Homem-rã (Hombre rana, 1949) e Olho (Ojo, 1950).

Abaixo, Jean Cocteau em fotografia de Julien Clergue
durante as filmagens de O testamento de Orfeu
(Le testament d’Orphee), filme de 1959 com direção,
roteiro e atuação de Cocteau no papel central.
Todas as imagens fazem parte do catálogo da
exposição “Surrealism” na Throckmorton Fine Art,
exceto quando indicado nas legendas








Um século depois do marco inaugural do manifesto de André Breton, um olhar em retrospectiva consegue estabelecer as características difusas e marcantes desta visão artística que explora as dimensões mais eletrizantes da imaginação humana. Nas celebrações do centenário e da herança do movimento, um dos destaques vem da Throckmorton Fine Art, de Nova York, com uma exposição sobre o impacto do movimento na fotografia, reunindo fotógrafos que atuaram na Europa, nos EUA e no México nos anos 1920 e nas décadas seguintes. No acervo selecionado estão obras que moldaram as formas e a estética do Surrealismo na fotografia e que levantam questões sobre a natureza da realidade e da identidade individual de cada fotógrafo selecionado – retomando abordagens sobre o estilo e as características do movimento surrealista que provocam polêmica desde a época em que a fotografia como técnica e como meio de expressão era questionada em seu estatuto de arte e muitas vezes considerada uma arte menor.


Imagens de sonho


O uso de técnicas como o automatismo psíquico, as associações livres e a colagem para explorar o mundos dos sonhos e dos desejos surgiram como estratégias centrais no primeiro manifesto de André Breton. Anos depois, viriam outros manifestos também escritos por Breton, “Surrealismo e Pintura”, de 1928, e “Segundo Manifesto do Surrealismo”, de 1930. Um terceiro documento, “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”, foi co-escrito por Breton, Diego Rivera e Leon Trotsky no México, em 1938, e publicado na revista Partisan Review. Desde então, o movimento se espalhou pelo mundo como tendência e influência para artistas das áreas mais variadas – incluindo o Brasil, onde o Surrealismo prosperou na primeira geração dos modernistas da Semana de 1922, com destaque na literatura de Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Limaou na arte de Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Flávio de Carvalho e Cícero Dias, além da presença incontornável de Maria Martins, parceira de Marcel Duchamp e primeira mulher a despontar como expoente nos círculos surrealistas de Paris.






Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Ruínas com forma masculina
(Ruins and Male Form,
década de 1920), fotografia
s e colagem de Lionel Wendt.

Abaixo,
Torre do Rockfeller Center nº 14
(Rockefeller Center Tower nº 14), fotografia
de 1932 de
Rosa Covarrubias. Também abaixo,
Cartografia interior nº 23 e nº 21, fotografias com
intervenções e colagens de 1995 e 1996, no estilo
surrealista, por Tatiana Parcero







Nomeada como “Surrealismo: Mais de um século unindo os reinos dos sonhos e da realidade” (Surrealism: Over a Century Merging the Realms of Dreams and Reality), a mostra na galeria Throckmorton Fine Art, com curadoria da historiadora María Míllan, reúne 50 fotografias ampliadas, a maioria delas em preto e branco, de 25 artistas que abraçaram os ideais surrealistas para produzir imagens que expressam elementos do acaso e um forte simbolismo na composição. Em comum a todos eles, um método de trabalho para criar representações inesperadas por meio da fotografia. É um acervo valioso, mas trata-se tão somente de uma amostragem: quem tem algum repertório sobre o movimento irá perceber, pela lista de fotografias selecionadas, que nem todos os nomes do primeiro time do Surrealismo na fotografia estão representados na mostra.

Entre os nomes de destaque histórico do movimento que atuaram na fotografia, Man Ray (1890-1976), Claude Cahun (1894-1954) e Hans Bellmer (1902-1975) talvez sejam as ausências mais marcantes da mostra, ainda que isso não diminua seu alcance e sua importância como retrospectiva, porque a curadoria consegue contemplar um conjunto coerente de obras e
autores. Como o Surrealismo sempre foi inerentemente político, desde seus primórdios como movimento de protesto e de combate ao fascismo, ao autoritarismo e ao conservadorismo, o acervo selecionado não exclui o potencial da estética surrealista como arma política para romper barreiras – entre temáticas, entre gêneros e entre linguagens. É o que a fotografia surrealista representa: ao contrário da atuação centrada exclusivamente na produção fotográfica, o que fotógrafos com ideais surrealistas estabelecem são possibilidades criativas de intercâmbio da fotografia com formas de expressão das artes plásticas, das artes cênicas, da literatura, do cinema – aproximando flagrantes do real, por meio do aparato fotográfico, ao inesperado, ao impossível e às formas do inconsciente.









Limites extremos


Pelas fotografias selecionadas, é possível perceber que a linguagem e o espírito do movimento surrealista se estendem para muito além dos nomes que os manuais de história da arte enumera como artistas canônicos, alcançando também fotógrafos que adotaram abordagens lúdicas e experimentais inspiradas nos ideais estéticos do Surrealismo. Na fotografia, tais ideais formam um arsenal que funciona como ferramentas de composição, potencializado com base no próprio aparato dos equipamentos, que a linguagem fotográfica nas primeira décadas do século 20 ainda navegava na transição entre as possibilidades do meio como documentação e como autoexpressão. Na aproximação com o Surrealismo, novas possibilidades surgiam na busca pelos limites extremos da técnica em variações de dupla exposição, negativos sobrepostos, fotomontagens, solarização e polarização, uso de lentes especiais, de iluminação incomum, de perspectivas distorcidas em enquadramentos surpreendentes ou até mesmo recorrendo a adereços absurdos com o objetivo de proporcionar resultados de efeitos dramáticos.

Outra característica marcante no acervo selecionado pela Throckmorton Fine Art está no número expressivo de mulheres no espectro da fotografia surrealista. Dos 25 artistas presentes na exposição, mais da metade são mulheres, com destaque para Dora Maar, Kati Horna, Stella Snead, Tina Modotti, Berenice Abbott, Germaine Krull, Lola Álvarez Bravo, Mariana Yampolsky, Imogen Cunningham, Graciela Iturbide, María García e Francesca Woodman. Também marcam presença na exposição composições inesperadas na forma e no enquadramento de objetos inanimados por Edward Weston; nas distorções do corpo por André Kertész; nos flagrantes irônicos de Henri Cartier-Bresson; e nas encenações mirabolantes de Philippe Halsman.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
fotografia de Berenice Abbott da década de 1920,
As mãos de Jean Cocteau, da série Rostos de 1920
(
Jean Cocteau's Handsfrom, Faces of the 20's Portfolio).

Abaixo, fotografia sem título de 1962 de Kati Horna,
da série Oda a la necrofilia, Cuidad de México.

Também abaixo, duas fotografias de Henri Cartier-Bresson:
um retrato de 1930 
do escritor André Peyre próximo a um
cartaz publicitário; e um flagrante em fotografia de
1933 em uma rua de Valência, Espanha













Poder da imaginação


Para o senso comum, que faz com frequência uma associação direta do Surrealismo com as provocações de mestres como Salvador Dalí e René Magritte nas artes plásticas, Luis Buñuel no cinema ou Antonin Artaud no teatro, talvez possam parecer pouco expressivas as pequenas variações sobre imagens cotidianas em algumas fotografias selecionadas. Tais variações, no entanto, não podem ser separadas da estética surrealista se questionam a ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho, ou se fazem um elogio subversivo ao poder da imaginação – porque, no primeiro manifesto, Breton declarava sua crença na possibilidade de reduzir dois estados tão contraditórios, sonho e realidade, a uma espécie de síntese de uma realidade absoluta, uma sobre-realidade (ou surrealidade).














Uma importante alteração no Surrealismo surge no final da década de 1930, com a Segunda Guerra Mundial explodindo em países da Europa. Neste cenário, os Estados Unidos e outros países do continente americano atraem uma onda de artistas e intelectuais europeus que fugiam das zonas de guerra. Há, também, um evento catalisador realizado na Cidade do México em 1940: a Exposição Internacional do Surrealismo, organizada por André Breton, que marca um momento crucial para o envolvimento e a contribuição da América Latina para o estilo e para os ideais surrealistas. Embora o movimento surrealista seja amplamente considerado europeu, obras de artistas e fotógrafos do México e de outros países latino-americanos também passam a destacar a relação do Surrealismo com a produção cultural dos povos do continente que abrigou, desde sempre, tanto tradições como imaginação criativa inclinadas para o maravilhoso e o fantástico – como confirma a ascensão do realismo mágico na literatura e nas artes plásticas.


Fronteiras da realidade


As imagens violentas e chocantes dos campos de batalha na Segunda Guerra podem receber a nomeação de surrealistas, pelo impacto que provocaram, já que o termo passou a ser incorporado como adjetivo na linguagem cotidiana para se referir ao que é estranho ou surpreendente, fora do comum, mas o movimento de forma geral teve o seu desfecho no pós-guerra. O fim do surrealismo como uma força vital está ligado a uma exposição, “Le Surrealisme en 1947”, concebida e realizada por André Breton e Marcel Duchamp com o objetivo anunciado de marcar o retorno do movimento surrealista a Paris após a guerra. O objetivo, no entanto, não se concretizou. A exposição, na verdade, demonstrou que a geração mais jovem, incluindo artistas como Francis Bacon, Alan Davie, Eduardo Paolozzi e Richard Hamilton, estava se movendo em direções diferentes com outros ideais.







Surrealismo na fotografia: na imagem acima,
Adelaido, El Conquistador
, fotografia de 1951
de
Héctor García. Abaixo, Dançarina satírica
(Satiric Dancer), uma fotografia de 1926
de
André Kertész.

No final da página, o encontro lendário de
Leon Trotsky, Diego Rivera e André Breton
no México, 
fotografado por Fritz Bach em junho
de 1938, na época em que os três escreveram, em
parceria, o Manifesto por uma Arte Revolucionária
Independente
, publicado pela revista Partisan Review.

Também no final da página, mais duas fotografias do
catálogo da exposição
na Throckmorton Fine Art:
Três marionetes em um cenário de navio
(Three Puppets in a Ship Setting), fotografia
de 1929 de
Tina Modotti; e Nu em abstração
(Nude Abstraction), fotografia de 1953 de
Weegee









Um século após seu surgimento, o Surrealismo continua a existir, como estilo e como referência, não somente na fotografia, mas em todos os domínios da criação artística, no mundo inteiro, em grande parte como citação às obras dos pioneiros do movimento nas décadas de 1920 e 1930. Seu legado e influência se mantêm inegáveis sempre que estão em cena imagens com sugestões oníricas e inesperadas, fantásticas, bizarras ou grotescas, que nos levam a reavaliar nosso olhar sobre a realidade e a vida cotidiana. O acervo selecionado na exposição atual, com uma gama significativa de imagens de fotógrafos pioneiros, tem grande valor como retrospectiva não só porque promove uma revisão das conquistas do Surrealismo na fotografia, mas porque reafirma a importância, urgente e contínua, de examinarmos as fronteiras entre a realidade e as representações da realidade.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Surrealismo na fotografia. In: Blog Semióticas, 2 de dezembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/12/surrealismo-na-fotografia.html (acesso em .../.../…).



Para visitar a exposição na  Throckmorton Fine Art,  clique aqui.













29 de julho de 2022

Retratos de August Sander






Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente 

em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, 

de nossos parentes próximos, de nossos seres amados.

–– Alfred Lichtwark (1852-1914).   


A arte do retrato fotográfico, que teve início em meados do século 19, ganhou um capítulo especial no século 20 com as fotografias do alemão August Sander (1876-1964). Considerados um caso exemplar de fotografia documental, os retratos feitos por Sander são abordados como referência importante em alguns dos principais estudos já realizados sobre fotografia: ele é citado como “corpus extraordinário” por Walter Benjamin em “Pequena história da fotografia” (1931) e é um dos fotógrafos selecionados para as análises que Roland Barthes apresenta em “A câmara clara” (1980), assim como está destacado por suas “imagens de arquétipo” no estudo não menos célebre de Susan Sontag (em “Sobre a fotografia”, de 1973) e também surge como parâmetro e analogia para uma “idealização do poder” na leitura de John Berger (em “Para entender uma fotografia”, de 2013).

Um “revival” em homenagem à arte de August Sander aconteceu recentemente com uma exposição itinerante aberta no Museu de Arte Contemporânea da cidade de Siegen, na Alemanha. Depois de Siegen, a exposição seguirá uma extensa agenda em outros importantes museus da Europa e de outros continentes. Trata-se da primeira grande exposição sobre o acervo de Sander desde a década de 1960, quando depois de sua morte foram realizadas retrospectivas de seus retratos nos museus de Siegen (1964), de Herdorf (1965), terra natal do fotógrafo, e no MoMA de Nova York (1969). Nos anos seguintes, houve apenas pequenas amostragens da obra de Sander em exposições nos museus da Alemanha e de outros países.









Retratos de August Sander: no alto da página,
"Agricultores, 1914", uma das fotografias
destacadas por John Berger. Acima, "Notário",
o trabalhador do cartório na fotografia analisada
por Roland Barthes em A câmara clara;
e August Sander em autorretrato
da década de 1950.

Abaixo, "Desempregado, 1928";
e um quadro com as 70 fotografias do arquivo
de August Sander selecionadas pelo próprio
fotógrafo e apresentadas na exposição do
Museu de Arte Contemporânea
da cidade de Siegen, Alemanha
 










A nova exposição em Siegen traz uma seleção de 70 ampliações dos retratos de August Sander – seleção que havia sido feita pelo próprio fotógrafo no início da década de 1960. Com o título de “70 Porträts aus, Menschen des 20. Jahrhunderts” (70 retratos de pessoas do século 20), a exposição já é considerada a mais importante e mais abrangente já realizada com o trabalho de August Sander. A homenagem à arte do retrato segundo Sander ainda traz como atração adicional um evento paralelo incomum: a exposição acontece simultaneamente a uma outra mostra, apresentada no mesmo museu, chamada de “Nach August Sander, Menschen des 21. Jahrhunderts” (Depois de August Sander, pessoas do século 21), que reúne retratos feitos por 13 fotógrafos contemporâneos e que tem a proposta de estabelecer um diálogo conceitual com o acervo de Sander, com curadoria de Thomas Thiel.


Traduções de uma época


Durante décadas, August Sander fotografou grupos profissionais e classes sociais com um método muito planejado e com rigor de estudo antropológico. Ele começou a fotografar ainda na adolescência, quando acompanhava o pai, que era trabalhador em uma mina em Herdorf, e aprendeu os primeiros passos no ofício da fotografia ajudando fotógrafos profissionais que trabalhavam para a empresa que explorava as minas. Com apoio de um tio, comprou sua primeira câmera antes de prestar o serviço militar. Mais tarde, no exército, entre 1897 e 1899, atuou como assistente de fotografia e, nos anos seguintes, viajou por cidades da Alemanha trabalhando como fotógrafo e aperfeiçoando seu ofício.







Retratos de August Sander: acima, o casal
em fotografia de 1912 nomeada como
"Criação e Harmonia".

Abaixo, "Faxineira", fotografia de 1928;
"Lavadeira", fotografia de 1930; e
"Garota em uma carroça na feira",
fotografia de 1932















Em 1901, Sander foi contratado por um estúdio fotográfico na cidade de Linz, onde permaneceu durante uma década, primeiro como funcionário e depois como sócio da empresa. Em 1909, abriu seu próprio estúdio na cidade de Colônia, iniciando a série “Retratos do século 20”, seu projeto ambicioso para montar um amplo catálogo fotográfico sobre a sociedade alemã. No projeto, chegou a reunir um grande acervo de centenas de retratos em 45 portfólios temáticos organizados em sete categorias identificadas como “O fazendeiro”, “O artesão”, “A mulher”, “As fazendas” (listando os trabalhadores pelas tarefas que desempenhavam), “Os artistas”, “A grande cidade” (moradores e trabalhadores das cidades) e “À margem”, que talvez represente a parte mais radical e mais polêmica de seu trabalho, com ciganos, imigrantes, andarilhos e pessoas que, por algum motivo, estavam marginalizadas pela sociedade de sua época.

A primeira seleção dos retratos de August Sander foi feita por ele mesmo, em 1929, quando publicou uma seleção de 60 fotografias em “Antlitz der Zeit(Rostos do nosso tempo), um livro que inspirou trabalhos similares de fotógrafos do primeiro time de outros países, entre eles os norte-americanos Walker Evans (1903-1975), Robert Frank (1924-2019) e Diane Arbus (1923-1971) ou o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004). Porém, com a chegada dos nazistas ao poder, na Alemanha, o trabalho de Sander passou a sofrer censura e perseguições. Seu filho Erich, militante de um partido de esquerda, foi preso em 1934 e condenado a 10 anos de prisão. Em 1936, seu livro “Antlitz der Zeit” foi recolhido e proibido, tendo todas as matrizes de impressão destruídas, sob o argumento de que o fotógrafo promovia somente os pobres e as exceções da sociedade, e não os alemães “legítimos”.










Retratos de August Sander
: no alto, "Pugilistas",
fotografia de 1929; acima, "Estudante do ensino médio",
de 1926. Abaixo, "Meninas", fotografia de 1925;
e "Viúvo" (Witwer), fotografia de 1914












Fotografias e máscaras


Quando a Segunda Guerra Mundial começou, August Sander se mudou de Colônia para a área rural e durante anos passou a fotografar apenas a natureza e as paisagens. No pós-guerra, Sander retorna à vida nas cidades e monta um acervo extenso sobre a arquitetura e as ruas dos centros urbanos da Alemanha, mas não retornou ao projeto original de “Retratos do século 20”. Quando morreu, em 1964, deixou um valioso acervo com mais de 40 mil imagens, incluindo negativos e ampliações, que levaram à criação do Arquivo August Sander, com sede na cidade de Colônia. Uma amostragem de 650 fotografias selecionadas do arquivo foi publicada em um catálogo em 1999, com edição da Taschen e curadoria de Susanne Lange-Greve.

Nos retratos de August Sander, Walter Benjamin percebeu a “grandeza anônima” de um rosto humano, que aparece nas fotografias com uma significação nova e, em suas palavras, “incomensurável”, ressaltada pelo prefácio da primeira edição de “Rostos do nosso tempo”, escrito por Alfred Düblin. Segundo a análise de Benjamin, “August Sander reuniu uma série de rostos que em nada ficam a dever à poderosa galeria fisionômica de um Eisenstein ou de um Pudovkin, e ele realizou este trabalho numa perspectiva científica” (Benjamin, “Pequena história da fotografia”. In: “Obras escolhidas”, vol. 1, editora Brasiliense, p. 102-103). Benjamin também elogia a “atualidade insuspeitada” da obra de Sander reunida no livro, que ele define como “mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos”.














Retratos de August Sander: no alto,
"Três gerações de uma família", fotografia
de 1912; acima, "As irmãs Fuchs", de 1912.

Abaixo, "Trabalhadores na região de Ruhr",
fotografia de 1928; e "Mestre de obras", de 1926 
 







Assim como Benjamin, Roland Barthes também considera o impacto da galeria fisionômica de August Sander, que ele nomeia como “máscaras”, figuras que revelam mitologias antes insuspeitadas. “Os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (a ‘high-class’ nova-iorquina). A máscara é, no entanto, a região difícil da fotografia, porque a Fotografia da Máscara é, de fato, suficientemente crítica para inquietar (em 1934, os nazistas censuraram Sander porque seus ‘rostos da época’ não correspondiam ao arquétipo nazista da raça), mas por outro lado, é muito discreta (ou muito ‘distinta’) para constituir verdadeiramente uma crítica social eficaz, pelo menos segundo as exigências do militantismo: qual ciência engajada reconheceria o interesse da fisiognomonia?” (Barthes, “A câmara clara”, editora Nova Fronteira, p. 58-62). Uma das fotografias que Barthes toma como exemplo e parâmetro de sua abordagem é o retrato do “notário” de Sander, sobre o qual ele questiona e provoca: “A aptidão para perceber o sentido, político ou moral, de um rosto não é, em si mesma, um desvio de classe?”


Mundo em desaparecimento


As “máscaras” que August Sander registrou também estão em destaque na análise de Susan Sontag, para quem os célebres retratos que o fotógrafo fez das pessoas comuns não são apenas imagens documentais e sim, “apesar de seu realismo de classe, uma das obras mais verdadeiramente abstratas da história da fotografia” (Sontag, “Sobre a fotografia”, editora Arbor, p. 59-62). Sontag também ressalta que nas fotografias de Sander os pobres não deixam de ter um ar de dignidade, o que não se deve a qualquer altruísmo ou qualquer intenção de compaixão: eles têm dignidade, segundo Sontag, porque são vistos (e fotografados) do mesmo modo frio que qualquer outra pessoa de classes sociais mais abastadas. Susan Sontag também percebe que o fotógrafo não sabia que estava registrando um mundo em desaparecimento, provocado pelo avanço acelerado do nazismo: o próprio August Sander não pensava que estava revelando a verdade das pessoas, mas sim capturando, de uma forma técnica e isenta de preconceitos, as “máscaras sociais” de sua identidade e sua individualidade.















Retratos de August Sander: no alto,
"Carregador de tijolos", fotografia de 1928;
acima, "Fazendeiro", de 1910.

Abaixo, "Dois jovens boêmios
(Willi Bongard e Gottfried Brockmann)"
,
fotografia de 1925







John Berger foi outro teórico importante que não resistiu à analogia das fotografias com “máscaras”, apresentadas a partir dos retratos de August Sander como reveladoras da classe social, do lugar no mundo, das aspirações existenciais de cada indivíduo anônimo ou bem posicionado na escala da sociedade e da hierarquia de seu tempo. Berger vê o “retrato político” na obra de Sander, mas considerando um amplo alcance para o adjetivo “político”, nunca redutível à sedução das instâncias do poder na época ou à resistência diante do que fosse injusto ou opressivo – ainda que seja impossível não considerar a trajetória do projeto fotográfico de Sander frente ao avanço do nazi-fascismo, à destruição e à violência como programa de governo que teriam a Segunda Guerra como desfecho.

Para Berger, alguns dos retratos, na extensa galeria de tipos dos mais diversos extratos sociais que Sander fotografou, são especialmente evidentes quanto à idealização do “poder puramente sedentário” e podem ser destacados como uma ilustração da hegemonia que antecede a tomada do poder na Alemanha pelo nazismo (Berger, “Para entender uma fotografia”, editora Companhia das Letras, p. 63-66). Um dos exemplos, que Berger considera “cristalino” e “sedutor”, é a fotografia que mostra três camponeses felizes, vestindo terno, a caminho do baile. Trata-se, segundo Berger, de uma lição prática sobre a quantidade de informação que existe ali para ser descoberta e revelada.
















Retratos de August Sander: no alto,
"O artista austríaco Raoul Hausmann e suas
amigas Hedwig Mankiewitz e Vera Broido"
,
fotografia de 1929; acima, "Artista de circo",
de 1932; e "Artistas no Carnaval da cidade de
Colônia"
, de 1931. Abaixo, "Cigano", fotografia
de 1930, e "O confeiteiro", de 1928.

No final da página, três amostras das releituras
contemporâneas dos retratos de Sander, que
fazem parte da exposição 
Depois de August Sander,
pessoas do século 21
, também apresentada
no Museu de Arte Contemporânea de Siegen:
"Camouflage" (2006), de Hans Eijkelboom;
"Golden" (2018), de Tobias Zielony; e
"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr











Diálogo contemporâneo


O plural de leituras que a galeria de retratos de August Sander proporciona foi a referência para a escolha dos 13 fotógrafos contemporâneos, alemães e estrangeiros, que tiveram suas obras selecionadas para a mostra “Depois de August Sander, pessoas do século 21”. Foram convidados pelos curadores: Mohamed Bourouissa, Jos de Gruyter & Harald Thys, Hans Eijkelboom, Omer Fast, Soham Gupta, Sharon Hayes, Bouchra Khalili, Ilya Lipkin, Sandra Schäfer, Collier Schorr, Tobias Zielony Artur Żmijewski. O foco para a escolha dos retratos, feitos por cada um dos fotógrafos, foi a possibilidade de diálogo com as 70 fotografias selecionadas pelo próprio August Sander, no começo da década de 1960, agora apresentadas no Museu de Arte Contemporânea de Siegen.

Enquanto os retratos em preto e branco de August Sander ocupam as galerias principais do museu de Siegen, os convidados têm seus trabalhos, em cores, na grande maioria, apresentados em galerias paralelas. Na comparação entre o preto e branco das fotografias antigas e o colorido intenso dos retratos contemporâneos, o impacto das imagens de Sander permanece inalterado, mas os fotógrafos convidados surpreendem com retratos que atualizam o tema das classes sociais e suas ocupações com originalidade.

O salto no tempo, com um intervalo que tem aproximadamente 100 anos, entre os retratos de August Sander e os retratos contemporâneos selecionados, torna visíveis mudanças de atitude e de comportamento em relação à vida cotidiana e novas questões políticas sobre pessoas comuns. A observação atenta dos retratos de August Sander levou Susan Sontag, em “Sobre a fotografia”, a lembrar aquela máxima do poeta Sthépane Mallarmé de que tudo no mundo existe para terminar num livro. Parodiando Sontag e Mallarmé, podemos chegar à conclusão de que observar estes retratos, com um intervalo de quase um século, revela que todos os rostos do mundo existem para serem fotografados.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos de August Sander. In: Blog Semióticas, 29 de julho de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/07/retratos-de-august-sander.html (acessado em .../.../…).


Para fazer uma visita virtual à exposição no Museu de Siegen,  clique aqui.




Para comprar o catálogo fotográfico de August Sander,  clique aqui.







"Camouflage"
 (2006), de Hans Eijkelboom
     





"Golden" (2018), de Tobias Zielony

  



"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr


Outras páginas de Semióticas