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1 de novembro de 2011

O primeiro Drummond




O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
..............................

–– Fernando Pessoa, Autopsicografia”. 




Logo após completar 28 anos, em 31 de outubro de 1930, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) criou coragem para publicar, pela Imprensa Oficial, em Belo Horizonte, seu primeiro livro, "Alguma Poesia". Naquele mesmo ano, aconteceria a primeira honraria para o poeta, que nasceu em Itabira e viveu longos períodos em Belo Horizonte e Nova Friburgo antes da mudança em definitivo para o Rio de Janeiro, onde passou a maior parte de sua vida: "Sentimental", um dos poemas do seu primeiro livro, é declamado pelo professor Manoel de Souza Pinto na conferência "Poesia Moderníssima do Brasil", feita no curso de férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal.

Drummond e sua poesia se tornariam, tempos depois dessa primeira honraria, presenças capitais na literatura e na cultura do Brasil. Porém, nem tudo foi celebração e homenagem desde o começo. Desde o primeiro livro, o poeta, que durante a maior parte da vida foi funcionário público, seguiu à risca a libertação proposta por Mário e Oswald de Andrade, com o verso livre e abolição das amarras tanto das rimas quanto da métrica da poesia tradicional. Contudo, a partir das primeiras semanas, logo que começou a circular, seu primeiro livro também seria objeto de polêmicas e críticas terríveis. Entre outros, um artigo zombeteiro sobre “Alguma Poesia”, assinado por um tal Medeiros e Albuquerque anunciava na imprensa: "O título diz alguma poesia; mas é inteiramente inexato: não há no volume nenhuma poesia. Se ele dissesse 'alguma tipografia', seria exato, porque se trata de um volume bonito, bem impresso. Mas oco. Não tem nada dentro".







Álbum de Família: no alto, Drummond
aos 80, em 1982, fotografado por
Rogério Reis. Acima, o pequeno
Drummond aos dois anos de idade,
em 1904, retratado por Brás Martins
da Costa, pioneiro da fotografia em
Minas Gerais. Abaixo, um mosaico com
várias faces de Drummond; e o poeta,
com sua filha Maria Julieta, em um
passeio pela avenida Afonso Pena,
em Belo Horizonte, 1933













Ironias do destino: as críticas ferinas de Medeiros passariam às areias do esquecimento, enquanto os versos de Drummond passariam à condição de clássicos instantâneos, fazendo dele presença marcante da literatura nacional, aclamado nas décadas seguintes como o mais importante poeta brasileiro do século 20. O livro de estreia de Drummond, há muito tempo item de colecionadores, retornou agora às livrarias em edição comemorativa do Instituto Moreira Salles: "Alguma Poesia - O Livro em seu Tempo".

Organizado por Eucanaã Ferraz, o primeiro livro de poeta traz um fac-símile do volume que pertenceu ao próprio Drummond, com anotações manuscritas de mudanças que o poeta iria incorporar nas edições seguintes. A nova edição – concluída com a colaboração dos netos de Drummond, Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, e da Fundação Casa de Rui Barbosa, especificamente do seu Arquivo Museu de Literatura Brasileira, onde estão depositados os recortes, fotos e cartas que ilustram o livro – também traz cartas de amigos e críticos, bem como uma amostra de resenhas e artigos publicados por jornais e revistas em 1930, data da primeira publicação.







No texto de apresentação, Eucanaã Ferraz traça o percurso de Drummond de 1924 até maio de 1930, data da publicação original, e destaca a importância da correspondência que o poeta trocou com o paulista Mário de Andrade (1893-1945) – a quem o livro é dedicado e cujas observações foram decisivas para a publicação – mostrando que "Alguma Poesia" fez o ano de 1930 entrar para a história da literatura brasileira.



Edições Pindorama



Drummond, que somava 28 anos na época do primeiro livro, enfrentou as dificuldades habituais de um iniciante: sob o selo imaginário Edições Pindorama, criado por Eduardo Frieiro, romancista, tipógrafo e seu amigo pessoal, foram impressos 500 exemplares, pagos do seu próprio bolso sob a chancela da Imprensa Oficial (em que trabalhava como redator), mediante descontos em sua folha de vencimentos.







O primeiro Drummond: acima, em
fotografia d1942, ano de publicação
do livro Joséao lado de uma réplica
de um dos profetas esculpidos em
pedra-sabão por Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinhona sede do
Ministério da Educação, no
Rio de Janeiro, onde atuou durante
décadas como funcionário público.

Abaixo, Drummond em viagem a São Paulo,
em 1955, encontra duas amigas, as escritoras
 Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst; e no
Rio de Janeiroem fotografias
da década de 1980













Entre outros belíssimos destaques, "Alguma Poesia" abre com "Poema de Sete Faces" ("Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ falou: Vai, Carlos! ser gauche na vida) e traz o emblemático "No Meio do Caminho" ("No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra"), que Mario de Andrade considerou formidável, mas fruto de um certo cansaço intelectual. 

Comovente e surpreendente ainda hoje, "Alguma Poesia" traz facetas as mais diversas – de breves poemas-piadas até construções mais elaboradas, de reflexão amarga, sobre o absurdo da existência e o impasse entre o sentimento do artista e a sociedade, que revelam uma das marcas que Drummond aperfeiçoaria até seus últimos escritos, em meados da década de 1980, com seu senso particular de observação minuciosa da vida cotidiana.






No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra. 


Sem nenhuma dúvida, "No meio do caminho" está entre os mais conhecidos e mais polêmicos poemas da literatura brasileira. Com apenas 10 versos, que na realidade se reduzem a três, pois repete muitas vezes umas poucas palavras, o poema foi escrito na década de 1920 e publicado pela primeira vez em julho de 1928, no número 3 da “Revista de Antropofagia”, dirigida por um dos medalhões do modernismo no Brasil, o paulista Oswald de Andrade.






Acima, quatro fotografias de Drummond
em casa, no apartamento em que morou
em Copacabana, no Rio de Janeiro, nas
décadas de 1950 (no alto) e 1960, do
acervo atualmente sob a guarda do
Instituto Moreira Salles. Abaixo,
Drummond com Manuel Bandeira,
em dois momentos: em 1942 e na
década de 1960; e uma sequência
de fotografias do acervo CDA no IMS
que registra o poeta em 1982, na época
da comemoração dos seus 80 anos.

Também abaixo, duas fotos promocionais
para o lançamento do livro infantil
"História de dois amores", de 1985,
com texto de Drummond e ilustrações
de outro mineiro, o cartunista,
escritor e jornalista Ziraldo













Desde sua primeira edição, “No meio do caminho” serve como divisor de águas – e também o grande pomo da discórdia entre os mais conservadores e os defensores da novidade da estética modernista. Em 1967, para marcar os 40 anos de publicação daqueles versos polêmicos, o próprio Carlos Drummond de Andrade trouxe a público "Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema".



Poeminha da pedra



O livro que Drummond apresentava reunia algo inusitado: a fortuna crítica de seu mais célebre poema. A edição apresentava os versos polêmicos traduzido para muitas línguas, discutidos, parodiados, atacados, interpretados, louvados - o poema já estava definitivamente incorporado à cultura nacional pelos intelectuais e também por pessoas simples, que o aplicavam à vida cotidiana.






Agora, mais de 40 anos depois, o livro que faz o inventário do poema também retornou às livrarias em publicação produzida pelo Instituto Moreira Salles. A nova edição, revista e ampliada, também tem organização do consultor de literatura do IMS, Eucanaã Ferraz. Para o organizador, o livro é uma espécie de resposta em alto nível de Drummond às duras críticas recebida pelo "poeminha da pedra".

Na entrevista que fiz com por telefone, Eucanaã Ferraz destaca que, por incrível que pareça, houve um tempo em que um trabalho miúdo e constante de difamação do modernismo tomava como exemplo da pior literatura o poema "No meio do caminho". Ferraz explica que os insultos ao poema transformaram o próprio texto em obstáculo ao escritor, criando um paralelo à situação metafórica da pedra no meio do caminho criada pelos seus versos. 

 







blog Semióticas









Drummond, com uma surpreendente ironia, resolveu então publicar todas as críticas sobre seu poema e devolveu aos seus leitores os documentos produzidos ao longo de 40 anos. É um livro único, sem similar na literatura brasileira, porque é o próprio poeta que resgata a vida intensa que o poema alcançou", explica Ferraz.

O livro traz todo o conteúdo de sua versão original: texto de apresentação de Arnaldo Saraiva e fortuna crítica do poema mais discutido do modernismo brasileiro. A publicação do IMS oferece também duas seções inéditas: "Ainda a pedra", que complementa a seleção feita por Drummond com textos, charges e ilustrações sobre o poema posteriores a 1967; e "Biografia da biografia", que reúne comentários sobre o livro desde seu lançamento. 

 









Eucanaã Ferraz, autor de uma dissertação de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade, confessa que foi extremamente prazeroso organizar a nova edição da "Biografia de um Poema". Segundo ele, a publicação original com o trabalho do poeta já estava completa e quase irretocável. 

"Depois de publicar o livro, em 1967, o próprio Drummond continuou, talvez por costume, a arquivar a fortuna crítica relativa a 'No meio do caminho'. Drummond guardou muita coisa que saiu sobre ele ao longo da vida, tudo separado com muito cuidado em fichas e pastas, por assunto ou pelo sobrenome do crítico", destaca o organizador das novas edições de “Alguma Poesia” e "Uma Pedra no Meio do Caminho - Biografia de um Poema".



Drummondiana



O lançamento dos dois livros foi o ponto de partida para o projeto de uma futura "Drummondiana" do IMS, que promoveu no dia 31 de outubro o primeiro “Dia D”, com homenagens ao poeta em várias capitais e cidades de interior do Brasil. A proposta é que, a partir de agora, o “Dia D” se repita todo ano, na data de nascimento do poeta, em uma comemoração semelhante a outras datas relacionadas à literatura celebradas em outros países, entre elas as homenagens que os irlandeses fazem a James Joyce todos os anos em 16 de julho, chamado de Bloomsday.

"O neto de Drummond, Pedro Augusto Graña, com seus dois irmãos, doou todo o acervo de Drummond para o IMS", explica Eucanaã Ferraz. "Estes dois livros são a etapa inicial de um projeto que poderá sim render outras edições no futuro, como fruto do trabalho de pesquisa e de organização do acervo que é muito extenso e abrangente". 










Drummond em Copacabana: acima,
o poeta em casa, em 1982, quando
completava 80 anos; caminhando pelo
calçadão de Copacabana; e observando a
paisagem na Avenida Atlântica, no Posto 6 de
Copacabana, fotografado por Rogério Reis.
A fotografia seria modelo para a estátua
de bronze criada pelo mineiro Leo Santana e
instalada no mesmo local, em outubro de 2002,
em homenagem ao centenário do poeta.

Abaixo, a estátua de Drummond iluminada
pelo nascer do sol, em fotografia do holandês
Maarten Zeehandelaar; uma vista panorâmica
de Itabira, a cidade natal de Drummond, em
fotografia de 1955; e uma imagem assustadora:
a fazenda da família Drummond, onde nasceu
o poeta, em Itabira, convertida em uma barragem
da mineradora Vale, em fotografia de
Alexandre RezendeTambém abaixo, um
detalhe da estátua de Drummond em
Copacabana; uma outra fotografia de
Rogério Reis que registra o poeta na praia,
no mesmo banco do Posto 6; e uma imagem
da estátua em que se lê a inscrição do verso:
No mar estava escrita uma cidade














Uma parte do acervo de Drummond, a mais literária, foi doada em vida pelo poeta para a Fundação Casa de Rui Barbosa. A parte restante, que está agora no IMS, inclui os originais que deram origem aos dois primeiros livros e gerou uma terceira publicação, que acaba de ser lançada. "Trata-se também de uma edição também fac-similar, reunindo dedicatórias que Drummond fez durante a vida", explica Eucanaã Ferraz.

O pesquisador e editor recorda que o poeta tinha o hábito de copiar em um caderno todas as dedicatórias que enviava para os amigos. "O novo livro reúne cerca de 500 dedicatórias, todas inéditas, que são verdadeiros poemas. A edição inclui o título de cada livro, quem recebeu a dedicatória, a data e a transcrição da dedicatória na letra do próprio Drummond", completa.







Eucanaã Ferraz também aponta o lugar de destaque, indiscutível, que Drummond ocupa não somente na literatura brasileira, mas em toda a literatura em língua portuguesa. "Dummond é o maior de todos os poetas da nossa língua. É maior até que Camões, se considerarmos que Drummond, na modernidade, atingiu toda a potencialidade da língua portuguesa. Não houve experiência estética que Drummond não tenha feito. Com sua poesia, a língua foi levada ao ponto máximo", destaca.

E os defensores de outro gigante da poesia em língua portuguesa, Fernando Pessoa? "Pessoa é outro poeta que tocou no ponto máximo da nossa língua, mas Drummond foi mais longe que ele, sem nenhuma dúvida", polemiza Ferraz. "Fernando Pessoa e seus heterônimos fragmentaram o sujeito com radicalidade, tocaram na complexidade filosófica da personalidade, mas Drummond foi muito mais vasto, mais ambicioso", completa.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. O primeiro Drummond. In: Blog Semióticas, 1° de novembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/11/drummond.html (acesso em .../.../…). 




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