 |
Que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho. –– Clarice Lispector....
|
Idolatrada
como mística por uma legião de leitores, Clarice
Lispector e sua densa personalidade rivalizam com Machado de Assis na
classificação entre os autores brasileiros mais lidos no exterior – mas nos
últimos tempos ela conquistou mais uma vantagem, com novas edições, seguidas de muitas resenhas e
críticas, pontuadas de altos elogios, na imprensa internacional, para a publicação de seus livros em inglês pela
Penguin Classics e pela editora New Directions, incluindo a biografia
escrita por Benjamin Moser, “Why This World – A Biography of
Clarice Lispector”, publicada no Brasil pela Cosac Naify, com o título “Clarice,” (lê-se “Clarice vírgula”) e
tradução de José Geraldo Couto.
Considerada
uma das maiores escritoras brasileiras do século 20 – para muitos,
a principal – Clarice nasceu no exterior, na cidade de Tchetchelnik,
Ucrânia, no dia 10 de dezembro, e foi registrada como Chaya Pinkhasovna
Lispector. O nome Clarice foi adotado em 1922, quando a família de
imigrantes chegou ao Brasil e foi morar no
Recife, capital de Pernambuco. Contudo, como ela mesmo sempre fez
questão de declarar em entrevistas, a Ucrânia foi uma terra em que
nunca pisou, pois chegou ao Brasil quando tinha um ano e dois meses
de idade. Nascida enquanto seus pais percorriam várias aldeias, para
fugir da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de
1918-1920, ela foi a terceira filha do comerciante judeu Pinkouss Lispector e de Mania
Krimgold Lispector.
Antes do livro de Benjamin Moser, Clarice teve outras biografias escritas por pesquisadoras de sua obra. A primeira, "Clarice – Uma vida que se conta", de Nádia Battella Gotlib, foi publicada em 1995 (Editora Ática) e equaciona vida e obra da biografada. A segunda, "Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector", de Teresa Montero, foi publicada em 1999 (Editora Rocco) e reúne 88 depoimentos. Nádia Gotlib também publicou pela Editora da Universidade de São Paulo, em 2009, "Clarice – Fotobiografia", que registra a partir de uma seleção de imagens os momentos mais marcantes da vida e obra da escritora.
Entre os estudos biográficos, houve também, em 2012, a publicação de "Retratos antigos", de Elisa Lispector (organizado por Nádia Gotlib), pela Editora UFMG. Benjamin Moser retoma informações das biografias anteriormente publicadas e descreve a trajetória das muitas viagens de Clarice: da Ucrânia para Maceió e Recife, no
Nordeste do Brasil; dali para o Rio de Janeiro, quando completou 15
anos; nas viagens a trabalho, como jornalista; para o exterior, acompanhando o marido no serviço diplomático; e depois o fim do casamento e a volta ao Rio de Janeiro.
Em 1939, Clarice começou a estudar na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro). Seu primeiro conto conhecido, "Triunfo", foi publicado na revista "Pan" em 1940. "Perto do Coração Selvagem", seu romance de estreia, foi publicado em 1943 – mesmo
ano de sua formatura e de seu casamento com o colega de turma Maury
Gurgel Valente, futuro pai de seus dois filhos, Pedro e Paulo. Do Rio
de Janeiro partiu para viver em Belém, no Pará, e mais 15 anos no exterior com o marido, aprovado em concurso
do Ministério das Relações Exteriores e transferido para a Itália,
depois Inglaterra, Estados Unidos, Suíça e outros países. De volta ao Brasil, em 1959, Clarice fixou residência em um apartamento no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte em 1977.
 |

|
 |
Mistérios
de Clarice: no alto, a escritora em seu apartamento no Leme, no Rio de Janeiro, em 1969. Acima, Clarice no grafite de Bete Nobrega instalado em frente ao prédio da Pinacoteca de São Paulo em 2006; e na
infância,
quando morava com a família no Recife. Também acima, duas fotografias do álbum de família: na primeira, do passaporte familiar expedido pelo Consulado da Rússia em Bucareste (Romênia), em janeiro de 1922, estão o casal Pinkas e Márian com as três filhas: Leia (Elisa), Tania e Haia (Clarice); na segunda, da esquerda para a direita, no sentido anti-horário, a mãe; Clarice; o
pai; e, de pé, suas irmãs Tania e
Elisa.
Abaixo, Clarice
em desenhos, retratada por Dimitri
Ismailovitch em 1974; por Ribeiro
Couto, durante sua temporada em Lisboa,
em 1944; por Alfredo Ceschiatti, durante
a temporada em Paris, em 1947; e
Clarice
Lispector e o marido, o diplomata
Maury Gurgel Valente, em 1948, na Suíça.
Em 1944, em plena Segunda Guerra
Mundial, o casal embarcou para a Itália, para Maury assumir
seu novo posto no serviço diplomático do Brasil em Nápoles, no
sul da Itália, onde lutavam os pracinhas da Força
Expedicionária Brasileira e os pilotos de caça da Aeronáutica. Também abaixo, e
Clarice em família, com os dois filhos, Pedro e Paulo, e o
marido Maury
|
Literatura
no Leme
Com
o fim do casamento, Clarice retornaria ao Rio de Janeiro em 1959 para
morar com os filhos no bairro do Leme, na zona sul do Rio de Janeiro, onde escreveu seus romances, contos,
crônicas, traduções e textos de literatura infantil. Morreu no dia 9 de
dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário de 57 anos, mas
não pôde ser enterrada no dia seguinte, que seria um “shabat”, dia de descanso semanal no calendário judaico.
O enterro aconteceria em 11 de dezembro, uma segunda-feira, no
Cemitério Israelita do Caju, Rio de Janeiro, com as inscrições em
hebraico: “Chaya bat Pinkhas Chaya filha de Pinkhas” –
referência ao primeiro nome que a família lhe deu: Chaya
Pinkhasovna Lispector.
Ainda
em vida e mais ainda depois da morte, o prestígio e o alcance de sua
literatura entrariam em curva ascendente. Há décadas ela é
traduzida em vários idiomas e apontada em países da Europa como um
dos grandes
nomes da literatura
do século 20, mas nos EUA sua obra permanecia restrita aos círculos
acadêmicos. A
nova investida dos livros de Clarice na América começou com as estratégias de marketing do lançamento da biografia escrita por Moser e com uma nova safra da publicação de seus romances.
 |
|
Sob
coordenação editorial de Benjamin Moser, já foram publicados em inglês “A
Hora da Estrela”, “Perto do Coração Selvagem”, “Água
Viva”, “A Paixão Segundo G. H.” e “Um Sopro de Vida”,
respectivamente com os títulos “The
Hour of the Star” (com tradução do próprio Moser e apresentação
de Colm Tóibín), “Near to the Wild Heart” (tradução de Alison Entrekin), “Água
Viva” (idem, tradução de Stefan Tobler), “The Passion According
to GH” (tradução de Idra Novey) e “A Breath of Life”
(tradução de Johnny Lorenz).
A
Grande Bruxa
Os
lançamentos de Clarice Lispector em inglês repercutiram
na imprensa internacional, com destaque surpreendente nos mais prestigiados jornais e revistas dos EUA e do Reino Unido, “The New
York Times”, “Los
Angeles Times”, “The New Yorker”, “The Guardian”, “The Independent”, “The
Huffington Post” e outros
veículos impressos e on-line, além de matérias de capa e resenhas assinadas por autores em evidência nas principais revistas especializadas em literatura,
incluindo “BookForum” e “Paris Review”.

 |
Clarice,
fotografada por Maureen Bisilliat,
na
capa da edição do mês da BookForum,
e
em matéria de destaque na Paris Review.
No
alto, a jovem Clarice em fotografia do
álbum de família e no retrato formado pelas
capas de quatro
romances editados em inglês.
Abaixo: 1) Clarice em 1953, na época que viveu em Washington D.C., Estados Unidos, com o marido, Mauri Gurgel, funcionário do serviço diplomático; 2) no retrato fotografado em 1969 por Maureen
Bisilliat; 3) Clarice em uma de suas última imagens no ano de sua morte, em 1977; 4) Clarice aos 19 anos, em 1939, quando ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; 5) com Tom Jobim na noite de autógrafos do livro A maçã no escuro, no Rio de Janeiro, em 1961, fotografados para o jornal Correio da Manhã; 6) Clarice e Carolina de Jesus em agosto de 1960, quando Clarice lançava "Laços de Família", após longa temporada no exterior, e Carolina lançava "Quarto de Despejo", diário que escreveu na favela do Canindé, em São Paulo; e 7) Marina Colasanti, na época repórter do Jornal do Brasil, recebe um autógrafo de Clarice no Rio de Janeiro, em 1963.
Também abaixo, Clarice em um retrato pintado em 1972 por seu amigo Carlos
Scliar; em retrato pintado em Roma, em 1945, por Giorgio de Chirico; e em 1965, em foto no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, com a equipe da primeira montagem feita para teatro de seu romance de estreia, Perto do Coração Selvagem, na noite da estreia do espetáculo (na foto, a partir da esquerda, Fauzi Arap, José Wilker, Glauce Rocha, Clarice e Dirce Migliaccio)
|
São
elogios e mais elogios, além de uma sequência de classificações
repetidas que já se tornaram lugar comum nas referências que os
leitores de Clarice conhecem de longa data: “a grande bruxa da
literatura brasileira”, “um Kafka do sexo feminino”, “uma
autora para a mesma estante de Joyce, Borges, Cortázar”, “a
mulher mais importante da literatura em Língua Portuguesa”.
Entre
as resenhas de peso, Nicholas Shakespeare, editor do “The
Telegraph”, cita a frase de um antigo tradutor de Clarice, Gregory
Rabassa, que comparava a autora brasileira a Marlene
Dietrich
(no traço físico) e a Virginia
Woolf
(no traço estilístico). No “The
New York Times”, ela mereceu um caderno especial com
reportagens e ensaios de especialistas – todos destacando qualidades e unânimes em
elogios, definindo Clarice como “a principal escritora
latino-americana de prosa do século 20”.
“Verdadeiramente
notável”
Os
livros de Clarice Lispector chegaram às livrarias em novas traduções para o inglês com um projeto
gráfico sedutor: juntas, as capas reproduzem uma foto de Clarice
jovem. Nas contracapas, frases marcantes da escritora e elogios de
personalidades da crítica literária reconhecidas como autoridades, tais como Jonathan
Franzen (“uma escritora
verdadeiramente notável”), Orhan
Pamuk
(“uma das mais misteriosas autoras do
século 20”) e Colm
Toíbín (“um dos gênios
ocultos do último século”).
No
Brasil, a editora Rocco, que detém os direitos sobre a obra de
Clarice, também anuncia lançamentos e relançamentos – entre
eles, as primeiras edições em livro de crônicas e textos diversos que a escritora publicou em
jornais e revistas, além de seus livros infanto-juvenis, que há muito tempo estavam fora de catálogo. Desta série de lançamentos, já
chegaram às livrarias "A
Vida Íntima de Laura",
ilustrado por Odilon Moraes, e "A
Mulher Que Matou os Peixes", com ilustrações de Renato Moriconi.
 |

|
 |
Benjamin
Moser, biógrafo de Clarice:
"A proximidade só
a torna mais espetacular".
No alto, Clarice em seu apartamento no
Leme, no Rio de Janeiro, em 1961. Acima, em 1964, em uma célebre entrevista publicada pelo jornal O Globo em que ela declarou: "Toda a minha obra é um grande equívoco".
Abaixo, Clarice no Natal de 1975; e uma de suas pinturas. Sob
a influência do amigo Augusto Rodrigo, criador da Escolinha de Arte do Brasil (EAB), Clarice fez 24 pinturas em óleo, a maioria sobre
madeira, com cores fortes e formas abstratas – entre elas
“Esperança”, pintada em 1975 sobre compensado no formato 30,2cm
por 39,7cm. Também abaixo, dois retratos de Clarice em casa, em 1961, um com sua inseparável máquina de escrever
portátil, fotografada por Claudia Andujar
 |
À
frente da redescoberta de Clarice no exterior, Benjamin Moser atribui
o sucesso a ocorrências do acaso. Nascido em Huston (EUA), em 1976,
ele diz que se apaixonou pela escritora depois de ler “A Hora da
Estrela” durante um curso universitário sobre literatura
brasileira nos Estados Unidos e, quando soube que Clarice seria
homenageada pela Festa
Literária
Internacional de Paraty,
em 2005, veio ao Brasil para
acompanhar o evento. Em seguida, começou o projeto de pesquisa para escrever a
biografia.
Um
amor incondicional
“Eu
nunca tinha ouvido falar de Clarice”, declarou Moser, na entrevista
sobre a edição nacional da biografia. “Quando li
'A hora
da estrela' no curso de literatura
brasileira, fiquei impressionadíssimo. Ainda estou. Logo na primeira
página, pensei: essa é uma grande escritora. Depois viajei pela
América do Sul de ônibus, do Rio de Janeiro a Buenos Aires,
voltando pelo Paraguai. Diante de mim, o tango, Iguaçu, o Pão de
Açúcar e tudo mais, e realmente a única coisa de que me lembro foi
'A
paixão segundo G. H.', que comprei
em Florianópolis. Perto daquele livro, nada mais podia me
impressionar”.
 |
 |
Para Benjamin Moser, Clarice Lispector tornou-se um amor incondicional. Segundo ele, a coisa
mais perigosa em escrever uma biografia é o risco do biógrafo, pelo excesso de pesquisa e informação, passar a detestar o
biografado – mas sua dedicação trilhou outros caminhos. “Depois
de anos de estudos, pesquisas e escrita, a amo e respeito ainda mais.
A proximidade só a torna mais espetacular, sobretudo agora, que
entendo muito melhor os desafios humanos que ela enfrentou para se
tornar uma entre os maiores escritores do século 20, não somente do
Brasil, mas do mundo”.
Além
das novas traduções para o inglês, previstas para os próximos
meses, Clarice também deve chegar ao cinema, com um longa que já
está em fase de pré-produção, baseado na biografia escrita por
Moser. Vale lembrar que, no cinema, a literatura de Clarice gerou
pelo menos uma obra-prima: “A Hora da Estrela”, dirigido por
Suzana Amaral em 1985, com roteiro de Alfredo Oros – filme premiado em
festivais no Brasil e no exterior, incluindo o Festival de Berlim,
com prêmio da crítica para Suzana Amaral, indicação ao Urso de
Ouro e vencedor do Urso de Prata de melhor atriz para Marcélia Cartaxo como
Macabéa, a protagonista.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
Para
acessar a edição da “BookForum” sobre Clarice Lispector, clique aqui.