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8 de novembro de 2025

O fotolivro de Victor Hugo

 



Desde sua invenção, a fotografia patrocinou a expansão dos

limites do visível sobre o invisível, do revelado sobre o oculto.

–– Mauricio Lissovsky em “A máquina de esperar” (2009).   




Autor de grandes clássicos da literatura universal como “Os Miseráveis” e “O Corcunda de Notre-Dame”, romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, ativista pelos direitos humanos e senador de importante atuação na França, Victor Hugo (1802-1885) poderia também ter sido o primeiro autor de um fotolivro. Contudo, o seu projeto para “As Contemplações”, reunindo uma fotografia para cada poema, terminou rejeitado pela casa editorial Hetzel. Depois de anos de adiamentos, “As Contemplações” seria finalmente publicado em 1856, com 92 poemas que fizeram história, mas sem as fotografias selecionadas pelo autor. Sem a publicação do projeto original de Victor Hugo, as honrarias pelo primeiro livro com fotografias ficaram com o escritor e cientista inglês Henry Fox Talbot.

Também creditado como um dos inventores da fotografia, Talbot passou à condição de pioneiro como autor de “The Pensil of Nature”, editado em seis volumes, entre 1844 e 1846, pela casa editorial Longman, Brown, Green & Longmans de Londres, e celebrado por ser o primeiro livro a incluir reproduções fotográficas coladas em suas páginas. Na mesma época da publicação do livro de Talbot, uma fotógrafa, Anna Atkins, também em Londres, conseguiu realizar um trabalho editorial que é uma proeza na pesquisa científica, nas artes gráficas e na história da fotografia. Com espécimes que ela mesma coletou ou recebeu de outros pesquisadores, Atkins fez placas de gravuras colocando algas úmidas sobre papel fotossensibilizado, no processo conhecido como cianótipo, que havia sido inventado em 1842 por John Herschel. O livro de Atkins, “Photographs of British Algae” (Fotografias de Algas Britânicas), teve edição artesanal em composições de manuscritos sobre os cianótipos.










O fotolivro de Victor Hugo: no alto e acima,
retrato do escritor feito em 1853 por seu filho,
Charles Hugo; e a nova edição de “Les Contemplations”,
agora ilustrada, com os poemas acompanhados de um
álbum de fotografias, conforme o projeto original que
não foi concretizado na primeira edição, em 1856.

Abaixo, as capas de “The Photobook: A History”,
publicados por Gerry Badger e Martin Parr em
três volumes, que fizeram uma retrospectiva
histórica e firmaram o conceito de “fotolivro”









Os livros com fotografias tiveram uma extensa trajetória de evolução técnica e aperfeiçoamentos desde os experimentos iniciais de Fox Talbot e Anna Atkins. Em 2005, tal trajetória, que remonta aos primórdios da fotografia, teve uma importante retrospectiva apresentada pelo trabalho de uma dupla de fotógrafos e pesquisadores, Gerry Badger e Martin Parr, autores de “The Photobook: A History” (Phaidon Press), em três volumes ilustrados, lançados respectivamente em 2005, 2006 e 2014. Além de popularizar o termo fotolivro (photobook), para o que antes era chamado de “livro de fotografia”, “livro de fotógrafo” ou “livro de artista”, o inventário de Badger e Parr define o conceito como “um tipo específico de livro de fotografia, no qual imagens prevalecem sobre o texto, e o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico ajudam a construir uma narrativa visual”.


Origens do fotolivro



Gerry Badger e Martin Parr
não citam o projeto original de Victor Hugo que não se concretizou, mas destacam o papel pioneiro de Anna Atkins e William Fox Talbot, enumerando e descrevendo a trajetória de centenas de fotolivros que marcaram época e tiveram importância central desde o surgimento dos processos fotográficos, nas primeiras décadas do século 19. Do inventário de Badger e Parr constam obras marcantes da história da fotografia e das artes gráficas, seja com fotografias coladas nas páginas e encadernadas como livro, seja com fotografias incorporadas ao processo de impressão do livro. Nos três volumes amplamente ilustrados de “The Photobook: A History” estão listadas, descritas e contextualizadas centenas de obras, tanto aquelas que alcançaram notoriedade como as que somente são conhecidas por especialistas.






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Vista da Janela em Le Gras” (em francês,
Point de vue du Gras), incluída na nova edição de
Les Contemplations” e considerada a fotografia
permanente mais antiga do mundo,
criada pelo
inventor francês Joseph Nicéphore Niépce, entre
1826 e 1827, no processo que Niépce batizou de
heliografia” e que abriu caminho para o
desenvolvimento da fotografia moderna.

Abaixo, as capas originais de dois fotolivros que
redefiniram o formato e são considerados referências:
American Photographs” (1938), de Walker Evans,
publicado com ensaio escrito por Lincoln Kirsten;
e “The Americans” (1958), de Robert Frank,
publicado com ensaio escrito por Jack Kerouac







Do extenso acervo reunido por Badger e Parr também constam, em destaque, fotolivros que exerceram grande influência na fotografia, na literatura e nas artes em geral. Talvez seja importante esclarecer que a criação do fotolivro é uma arte literária e narrativa que está situada entre o filme e o romance – ressalta Gerry Badger. Alguns dos fotolivros em relevo na lista são Street Life in London” (1878), parceria do jornalista Adolphe Smith com o fotógrafo John Thomson; “Animal Locomotion” (1887), de Eadweard Muybridge; The Royal Mummies” (1912), de Grafton Elliot Smith; “Men at Work” (1932), de Lewis Hine;Paris de Nuit” (1933), com fotografias de Brassaï, pseudônimo de Gyula Halász, e texto de Paul Morand; “Facies Dolorosa” (1934), de Hans Killian; American Photographs” (1938), com fotografias de Walker Evans e ensaio de Lincoln Kirsten, e “Let Us Now Praise Famous Men” (1941), parceria entre Walker Evans e o escritor James Agee.

Também são destacados na lista de Gerry Badger e Martin Parr os fotolivros Soviet Photography” (1939), de Aleksandr Rodchenko e outros fotógrafos e artistas; Caribean Crossroads” (1941), com texto de Lewis Richardson e fotografias de Charles Rotkin; “The Sweet Flypaper of Life” (1955), poemas de Langston Hughes com fotografias de Roy DeCarava; “The Family of Man” (1955), com curadoria de Edward Steichen; “New York” (1956), de William Klein; “Hiroshima” (1958), de Ken Domon; e The Americans” (1958), com fotografias de Robert Frank e texto de apresentação escrito por Jack Kerouac. A partir da década de 1960, avanços das artes gráficas e técnicas de impressão vão popularizar as edições, com Gerry Badger destacando que carreiras importantes foram impulsionadas por fotolivros de sucesso – caso, entre muitos outros, dos norte-americanos Alec Soth e Ryan McGinley, ou da espanhola Cristina de Middel.





O fotolivro de Victor Hugo: poesia em
diálogo com os primeiros fotógrafos. Acima,
Paisagem com nuvens”, fotografia de 1856 de
Roger Fento
n. Abaixo, “A Lavadeira”, fotografia
de 1840 de
Louis Adolphe Humbert de Molard;
e
Tempo dos ventos”, fotografia de
1902 de
Heinrich Kühn













Gerry Badger, na apresentação a “The Photobook: A History”, também inclui diversas referências à América latina. Do Brasil, são citados Mario Cravo Neto, Miguel Rio Branco e Sebastião Salgado, entre outros, com especial atenção a “Amazônia” (1978), de Claudia Andujar e George Love, que ele define como “mescla singular de política e pessoalidade”. Outros destaques são “Paranoia” (1963), com a poesia de Roberto Piva e as paisagens urbanas nas fotografias de Wesley Duke Lee; e “Bares Cariocas” (1980), de Luiz Alphonsus, com registros de um olhar afetuoso sobre os bares de bairros do Rio de Janeiro. Badger elogia a forma pela qual os fotolivros são capazes de transportar pelo olhar para uma viagem. “Nunca estive na Amazônia, nem no Rio nem na Bahia”, confessa. “Mas esses fotógrafos do Brasil me levam até esses locais (…) de um modo particular – complexo, intrigante e criativo”.


Álbum de Contemplações


O projeto de Victor Hugo de reunir no mesmo livro uma seleção de poemas em diálogo com uma coleção de fotografias finalmente está concretizado – por iniciativa de duas pesquisadoras, Florence Naugrette e Hélène Orain Pascali. Em uma nova edição de “As Contemplações”, elas acrescentam 120 imagens fotográficas, todas produzidas nos primórdios da fotografia por contemporâneos do escritor. O ponto de partida foi um exemplar da primeira edição do livro, no arquivo privado que pertenceu ao autor, que mantinha entre suas páginas uma seleção de 34 fotografias, com anotações e correspondências entre poemas e cada uma das imagens, estabelecidas, ao que se sabe, pelo próprio Victor Hugo, talvez como uma lembrança nostálgica sobre o projeto que não pôde ser concretizado na época, mas enriquecendo, na presença das imagens, o espectro das interpretações literárias.





O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Fotografia de imagem da retina de um vaga-lume”
imagem de 1890 de Sigmund Exner. Abaixo,
Genebra, céu nublado acima do lago
e da cidade”
, fotografia de 1890 de
Gabriel Loppé
; e um eclipse solar visto
no dia 10 de janeiro de 1889 no alto do
Monte Santa Lucia, ao norte da Califórnia,
em fotografia de
Carleton Watkins







Dois ensaios das organizadoras contextualizam a nova edição do livro de Victor Hugo. Em “Contemplações”, Hélène Pascali, historiadora da arte, vai pontuar como o nascimento da fotografia provoca o surgimento de um novo olhar sobre o mundo e sobre as imagens do real. Em Como um Álbum”, Florence Naugrette, professora de Literatura na Sourbonne, confirma que o projeto original de Victor Hugo teria um impacto de grandes proporções em sua época porque seria o primeiro álbum de fotografias, uma experiência sem precedentes em uma época em que a fotografia era uma grande novidade. Especialista na literatura de Victor Hugo, ela também revela que sempre considerou os poemas deste livro como imagens estáticas apresentadas e descritas em preto e branco.

No diálogo que se estabelece entre os poemas e as fotografias, as questões de tempo e memória remetem ao trajeto biográfico do autor e também à história social: paisagens, cenas e personagens citados nos versos evocam, de maneira quase inevitável, imagens fotográficas em suas referências a tons da neve, das nuvens, do céu noturno, dos pássaros voando ao longe, do mármore e de detalhes da construção das casas, da areia da praia, das árvores imóveis ou agitadas pelos ventos e dos dias nublados de inverno. A própria estrutura do livro lembra um álbum de fotografias, traçado no itinerário de cada poema, que vêm legendados com data e lugar, como se fossem um diário de viagem. Folheando o álbum, cada poema e cada imagem torna-se um convite para seguir os passos do autor entre caminhadas, pensamentos, sentimentos, lembranças, busca metafísica e alguma esperança – como se lê em um poema sem título de 1855:


Je ne vois que l’abîme, et la mer, et les cieux,
Et les nuages noirs qui vont silencieux;
Mon toit, la nuit, frissonne, et l’ouragan le mêle
Aux souffles effrénés de l’onde et de la grêle.

(“Écrit en 1855”, Jersey, janvier 1855.)

Vejo somente o abismo, e o mar, e os céus,
E nuvens negras que
passam em silêncio;
M
eu telhado, à noite, estremece, e o furacão o mistura
Com os sopros frenéticos das ondas e do granizo.

(“Escrito em 1855”, Jersey, janeiro de 1855).






O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Sol e nevoeiro”, fotografia de 1898 de
Léonard Misonne. Abaixo, Roman Campagna”,
um estudo de nuvens na área rural de Roma, Itália,
em fotografia de 1855 de Carlo Baldassarre.

Também abaixo, Victor Hugo em 1853, durante
seu exílio na Ilha de Jersey, contemplando
o oceano, no alto da rocha conhecida como
“Le Rocher des Proscrits” (A Rocha dos Proscritos),
em Jersey, fotografado por seu filho Charles Hugo
e seu amigo Auguste Vacquerie











Evolução da técnica


Victor Hugo foi eleito para a Academia Francesa aos 37 anos, em 1839, ano do anúncio oficial da invenção da fotografia com os equipamentos e técnicas de Louis Daguerre, batizados de Daguerreótipos. O escritor, porém, era entusiasta da fotografia desde que tomou conhecimento das experiências de Nicéphore Niépce, que fez os primeiros registros de imagens a partir de 1826. Victor Hugo também se dedicou ao desenho e à pintura, mas sempre se confessou um apaixonado pela fotografia, que ele chamava de "imagens pintadas pelo sol e pela luz". Mesmo depois da edição incompleta de "Les Meditations", ele continuou acompanhando com muito interesse a evolução da técnica e dos processo fotográficos pelos anos e décadas seguintes.  

Florence Naugrette e Hélène Pascali seguiram as pistas com registros deste interesse especial de Victor Hugo pela fotografia e, nos mais de três anos de pesquisas para a seleção das imagens que agora acompanham os poemas, investigaram as correspondências temáticas no acervo do escritor e em coleções privadas e públicas, em museus da França e de outros países. No dossiê de imprensa distribuído para o lançamento do livro, Florence Naugrette ressalta que a relação de Victor Hugo com a fotografia se dava intensamente na vida cotidiana, tanto que ele sempre esteve muito próximo de fotógrafos em sua época e cultivou uma forte amizade com Nadar, para muitos o maior fotógrafo do século 19.  

“É possível localizar diversas referências ao retrato e à fotografia na obra de Victor Hugo”, ela destaca, “mas na coleção de poemas reunidos nestas ‘Contemplações’ a questão imagética e fotográfica está mais evidente, tanto na busca de palavras e de figuras para redescobrir a experiência como nas confissões sobre a importância de ouvir a natureza, maravilhar-se, buscar o significado, cultivar e traduzir. Palavra e imagem aqui expressam um mesmo sentido. E é também de fundamental importância perceber que todos os poemas, e todo o projeto original para o livro, foram criados à luz da invenção da fotografia e ainda nos primórdios dos processos fotográficos”.






Na versão final deAs Contemplações de Victor Hugo ilustradas pelos primórdios da fotografia” (Les Contemplations de Victor Hugo illustrées par les débuts de la photographie), lançamento da Editions Diane de Selliers, em capa dura e 400 páginas, os 92 poemas são contemplados com 120 fotografias, com datas que vão de 1826 a 1910, selecionadas do acervo de 85 fotógrafos, todos apresentados com perfil biográfico. O resultado é um inventário inédito sobre nomes de importância no início da história da fotografia e uma retrospectiva que alcança das experiências dos pioneiros ao aperfeiçoamento dos equipamentos e ao domínio da técnica, seja na aplicação de princípios estéticos, com evoluções de enquadramento, de foco, de iluminação e de contraste, seja nas intervenções nos processos de impressão, levando a imagem fotográfica a um campo de autonomia e de independência, em relação às outras artes, para o registro instantâneo de fragmentos da realidade.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O fotolivro de Victor Hugo. In: Blog Semióticasde novembro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/11/o-fotolivro-de-victor-hugo.html (acesso em .../.../…).



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O fotolivro de Victor Hugo: acima,
Avenida no inverno”, fotografia de 1893
de
Alfred Stieglitz. Abaixo, “O alto da montanha”,
fotografia de 1860 dos irmãos
Louis-Auguste Bisson
e Auguste-Rosalie Bisson





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