10 de janeiro de 2025

Fotografia em paraísos tropicais





Uma fotografia é um segredo de um segredo.

Quanto mais ela te fala, menos você sabe.

–– Diane Arbus.   
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As fronteiras instáveis e fluidas entre alta cultura e cultura popular – ou entre a arte erudita e o kitsch, o brega, o cafona, no sentido de separar o que seja de bom gosto do que seja considerado vulgar, duvidoso, sem refinamento, de mau gosto ou de qualidade inferior – surgem diluídas e misturadas em uma mostra que, pela primeira vez, reuniu um acervo de 200 obras de 83 artistas latino-americanos de destaque nascidos no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, México, Peru e Venezuela. Todas as obras têm em comum o suporte fotográfico com alguma forma de intervenção de pós-produção ou de colagem e abrangem um período histórico de um século, da primeira década do século 20 às duas primeiras décadas do século 21.

IntituladosLes paradis latins: étoiles sud-américaines" (Os paraísos latinos: estrelas sul-americanas), a exposição e o fotolivro que registra o acervo foram organizados pela Fundação Bemberg de Toulouse, França, tendo como referência a valiosa coleção de raridades garimpadas desde a década de 1960 pelo casal de colecionadores Leticia e Stanislas Poniatowiski  ela nascida na Argentina e ele descendente de uma família da nobreza da Polônia que migrou para o México no começo do século 20. A coleção reúne, na maioria de suas peças, retratos de pessoas anônimas e também de celebridades, de artistas ou de figuras de importância histórica. Anunciada como “celebração de um século de fotografia latino-americana”, a exposição também poderia ser definida como inventário de um século de imagens de resistência à violência e ao preconceito, pois reúne obras de diferentes períodos e lugares que enfrentaram a censura e o silenciamento provocados por imposição de falsos paladinos da moral e dos “bons costumes” ou de governos autoritários.











Fotografia em paraísos tropicais: no alto, 22h35,
da série fotográfica
Das 22h às 23h, México, 1985,
intervenção sobre fotografia e fotocópia
de
Agustín Martinez Castro.

Acima,
As mãos de Pita Amor (México, 1950),
pintura sobre fotografia de
Simón Flechine;
Buenos Aires Tango Clube, Santiago do Chile,
intervenção de 2012 com tinta e lápis de cor sobre
fotografia de 1982 de
Leonora Vicuña;
e Tango (De a dos), fotografia em gelatina
de prata em preto e branco da série
Tango (Chile, 1988), de
Paz Errázuriz.

Também abaixo,
Entre os olhos, o deserto,
intervenção multimídia de 2001 do brasileiro
Miguel Rio Branco sobre fotografias de 1997;
e
Afife Baloyan, Tijuana, México, 1973, fotografia
e intervenção de contraste de
José Luis Venegas.
As imagens reproduzidas nesta postagem fazem
parte do catálogo da exposição















O caráter subversivo


A figura feminina é uma presença marcante em todas as imagens fotográficas reunidas pela curadoria, sem nenhuma exceção. Ou talvez a feminilidade, mais até do que a figura feminina, principalmente a feminilidade em seu caráter mais subversivo e provocativo diante da norma dominante e da censura que por tanto tempo tentou silenciar ou esconder na penumbra
as dançarinas de tango, de samba, de salsa e de bolero, vedetes e coristas de cabarés ou de teatros, incluindo a importância incontornável de travestis e transgêneros, artistas marginais e ativistas da ação política na vida cotidiana que movimentou e movimenta a revolução social, a identidade cultural e a diversidade sexual no intervalo de décadas.

A apresentação das imagens, em sua maioria com predomínio de cores
fortes e contrastantes
em destaque, com videntes intenções de apelo melodramático e toques de exagero ou de ingenuidade, também são traços comuns entre as obras selecionadas. Em muitos casos, as cores foram acrescentadas com pincel e tinta ou canetas e lápis coloridos sobre as estampas impressas em preto e branco, uma estratégia recorrente que desde os primórdios da fotografia levou muitos artistas a pintarem ou retocaram a mão os retratos registrados pelas câmeras.









Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
imagem sem título
, fotografia realçada com
tinta, obra de
Gerardo Bastón (México,1990).

Abaixo,
Nahui Olin (México, 1921), fotografia
impressa em gravura de
Gustavo F. Silva com
pintura em técnica mista de
Nahui Olin
(pseudônimo de Carmen Mondragón).

Também abaixo, colagem com costura e
técnica mista sobre fotografias de 2019
de Carla Rippey (México); colagem de 1975
com fotografia e técnica mista do brasileiro
Luiz Alphonsus, intitulada Crepúsculo Tropical;
e
um retrato de Magnólia em Juchitán
(México, 1987) por
Graciela Iturbide




              
     







Na extensa galeria da diversidade, em que algum charme das celebridades e muitas extravagâncias anônimas se misturam, marcadas pelo requinte discreto ou pelo excesso mais provocante, cada uma das amostras dos “paraísos latinos” selecionadas para o acervo também diluem as fronteiras que separam a fotografia das outras artes visuais, em estratégias de aproximação com o desenho e a pintura, com as artes gráficas, as variações da gravura, as fotonovelas, as técnicas dos cartazes e da publicidade, ou as técnicas mistas de colagens, de recortes, de montagens e de sobreposições de imagens. Algumas das obras vão remeter os olhares mais atentos às experiências estéticas mais radicais dos mestres dos movimentos de vanguarda da arte moderna no começo do século 20, ainda que a maioria delas tenha sido produzida a partir da década de 1960, sob forte influência das experiências da Pop Art e da arte contemporânea.





Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
Autorretrato como Rrose Sélavy
(Colômbia, 1980),
de
Álvaro Barríos. Rrose Sélavy era um personagem
fictício, alter-ego do mestre dadaísta
Marcel Duchamp.

Acima, uma corista anônima na Argentina, 1960,
em fotografia de
George Friedman. Abaixo,
Transformista (Peru, 1990), da fotógrafa
Flavia Gandolfo; e dois retratos da vedete
Amapola Devodier (México, 1955), com
intervenções de
Simón Flechine











A intensidade da cor


No ensaio que apresenta a exposição e o fotolivro, o curador e historiador Alexis Fabry (também autor de “Urbes Mutantes 1941-2012”, catálogo sobre a fotografia latino-americana publicado na Espanha em 2013) destaca que na maior parte dos países da América Latina a intensidade da cor e do carnaval são, muitas vezes, inseparáveis da tragédia. “A proximidade entre a festa e o trágico, assim como o atrito e a permeabilidade entre a alta e a baixa cultura, são questões muito características da arte latino-americana”, reconhece.

Outra questão a que o curador faz referência são as limitações provocadas pela carência de recursos financeiros e materiais, uma dificuldade sempre presente para artistas
da América Latina. Tais limitações historicamente levaram e ainda levam muitos artistas à estratégia de recorrerem a suportes alternativos, como o uso de diversos tipos de papel e de fotocópias, que são meios mais baratos e de fácil acesso, que permitiram a produção e a divulgação de diversas obras, algumas delas selecionadas para a exposição e o fotolivro.



















Fotografia em paraísos tropicais: a partir do alto,
três imagens da fotógrafa Grete Stern, nascida na
Alemanha e radicada na Argentina desde 1935:
Autorretrato
(1950), com a fotógrafa refletida
em uma montagem fotográfica sobre o espelho;
“Sueño nº 28: Amor sin ilusión”, obra de 1951;
e um Autorretrato de 1943.

Também acima, La Madre de Dios
(Guatemala, 1974), fotografia e colagem em
técnica mista do brasileiro Ayrton de Magalhães;
e
Serviço de luxo (México, 1987), intervenção
em técnica mista sobre fotografia e fotocópia
de
Felipe Ehrenberg.

Abaixo,
duas obras de 1982 do artista da Argentina
Facundo de Zuviría
Estampas de Buenos Aires
,
autorretrato e colagem
em cartaz com técnica mista;
e
Evita, San Telmo, cartaz e fotografia de rua
em cópia Cibachrome; e dois registros da
exposição na Fundação Bemberg

















Ao justificar os critérios historiográficos e estéticos da curadoria, Alexis Fabry também ressalta que, enquanto nos países da Europa e nos Estados Unidos a Pop Art se concentra em comentários de metalinguagem sobre a sociedade de consumo, na maior parte dos países da América Latina a influência da Pop Art estabelece um diálogo imprevisível com o artesanato e com a arte ingênua das festas populares. Na perspectiva do Brasil, tal diálogo se estabelece principalmente com o que a cultura erudita costuma nomear como vulgar, como brega e como cafona – termos carregados de preconceito desde a origem linguística: “vulgar” é uma definição para o grosseiro e o obsceno porque tem origem popular, acessível a todos, enquanto “brega” seria o gênero do exagero dramático, ingênuo ou mal feito, e “cafona”, equivalente ao italiano “cafone” (camponês, periférico, rude, estúpido), identifica o que as elites descartam e classificam como imitações grosseiras ou fora de moda.







Resposta original e popular


Vale acrescentar, sobre o acervo reunido com a chancela de “paraísos latinos”, que alguns dos adjetivos pejorativos citados como juízos de valor – vulgar, brega, ridículo ou cafona – são termos que, traduzidos em outras línguas, encontram sinônimos ou correlatos na complexidade de conceitos como o kitsch” ou o “camp”, foram amplamente discutidos e problematizados durante todo o século 20 por teóricos da cultura como o alemão Theodor Adorno ou a norte-americana Susan Sontag. Em outras palavras, são termos que, antes de carregarem definições apressadas, elitistas e muito preconceituosas, como mau gosto, como exagero ou como falso e artificial, deveriam ou poderiam ser caracterizados como uma resposta original e popular à cultura de massa e aos processos de industrialização, seja nos chamados países do Primeiro Mundo ou nos países periféricos do Sul Global. 

Sobre a questão, Susan Sontag escreveu um ensaio tão breve como definitivo, Notes on Camp”, reunindo 58 notas muito esclarecedoras e abrindo a argumentação com uma dedicatória ao escritor inglês Oscar Wilde, que escreveu “deveríamos todos ser uma obra de arte ou vestir uma obra de arte”. O ensaio de Sontag, publicado em dezembro de 1964 na revista de política e cultura “Partisan Review” e posteriormente incluído entre os ensaios que a autora escolheu para publicação no livro de 1966 “Contra a interpretação” (editado no Brasil pela Companhia das Letras), foi responsável por apresentar a autora a um público mais amplo e ela própria o considerava uma espécie de "marco zero" em seu prestígio como intelectual voltada para as questões sociais.

Entre outras, a nota de número 55 nas análises de Sontag é especialmente esclarecedora. Ela traz uma advertência para o leitor: “O gosto Camp é, acima de tudo, uma forma de prazer, de apreciação  não de julgamento. O Camp é generoso. Quer divertir. Só aparentemente é maldoso, cínico. (Ou, se é cínico, não é um cinismo impiedoso, mas doce.) O gosto Camp não propõe que é de mau gosto ser sério; não zomba de quem consegue ser seriamente dramático. Ele descobre o sucesso em certos intensos fracassos”. Seguindo o raciocínio que Sontag apresenta, o “camp” (ou o “kitsch”, ou o “brega”, ou o “cafona”), em suas mais diversas variantes, surge como um produto ou uma obra de uma estética especial que consegue a proeza de imitar para ironizar, e tornar ridículo, tudo o que seja previamente identificado para consumo exclusivo das elites e das classes dominantes. Tal enfrentamento faz dele um estilo para obras e artistas que podem adquirir uma importância fundamental para refletir as causas sociais.


por José Antônio Orlando.

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotografia em paraísos tropicais. In: Blog Semióticas, 10 de janeiro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/01/fotografia-em-paraisos-tropicais.html (acessado em .../.../…).


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Fotógrafos e a
rtistas em Les Paradis Latins”:

 

Luiz Alphonsus (Brasil), Édgar Álvarez (Colômbia), Yolanda Andrade (México), Constantino Arias (Cuba), Aristides Ariza (Colômbia), Éver Astudillo (Colômbia), Pepe Avilés (Equador), Daniel Barraco (Argentina), Álvaro Barrios (Colômbia), Gerardo Bastón (México), Juan Enrique Bedoya (Peru), Ricardo Bezerra (Chile), Bandi Binder (Argentina), Joaquín Blez (Cuba), Hugo Brehme (México), Jorge Cáceres (Chile), Johanna Calle (Colômbia), Carlos Caputto (Argentina), Anselmo Carrera (Peru), Daniel Chauche (Guatemala), María Eugenia Chellet (México), Gilberto Chen (México), Cif (México), Raúl Corrales (Cuba), Armando Cristeto (México), Ayrton de Magalhães (Brasil), Gertrudis de Moses (Chile), Facundo de Zuviría (Argentina), Hector Delgado (Peru), Hernan Díaz (Colômbia), Wilson Díaz (Colômbia), Felipe Ehrenberg (México), Paz Errázuriz (Chile), Gustavo F. Silva e Nahui Olin (México), Simón Flechine (México), George Friedman (Argentina), Flavia Gandolfo (Peru), Andrés Garay (México), Kattia García Fayat (Cuba), Antonio Garduño (México), Pedro Juan Guttiérrez (Cuba), Maria Eugenia Haya (Cuba), Annemarie Heinrich (Argentina), Armando Herrera (México), Terry Holiday (México), Graciela Iturbide (México), Maripaz Jaramillo (Colômbia), Agustin Jiménez (México), Alejandro Kuropatwa (Argentina), Melitta Lang (Argentina), Fabrizio León Diez (México), Sandra Llano-Mejía (Colômbia), Marcos López (Argentina), Rogelio López Marin (Cuba), Sergio Marras (Chile), Agustin Martínez Castro (México), Daniel Merle ( Argentina), Jorge Maria Múnera (Colômbia), Juan Ocón (México), Martin Ortiz (México), Pablo Ortiz Monasterio (México), Adolfo Patiño (México), Valle Polifoto (Colômbia), Juan Ponce Guadián (México), Santiago Rebolledo (Colômbia), Miguel Rio Branco (Brasil), Carla Rippey (México), Manuel Jesus Serrano (Equador), José Sigala (Venezuela), Francisco Smythe (Chile), Guadalupe Sobarzo (México), Grete Stern (Argentina), Rubén Torres Llorca (Cuba), José Trinidad Romero (México), Sergio Trujillo (Colômbia), Jorge Vall (Venezuela), Manolo Vellojín (Colômbia), José Luis Venegas (México), Leonora Vicuña (Chile) e Rogelio Villarreal (México).





 





Fotografia em paraísos tropicais: no alto,
flagrante da exposição na Fundação Bemberg,
em fotografia de
Frederic Scheiber.

Acima, a partir do alto:
1) Colagens, Caderno 2
(Colômbia, 1980), recortes e arte em técnica
mista, criação de
Éver Astudillo;
2) Cristina Molina 
(México, 1970), colagem
com intervenções a caneta e lápis
de cor por
Juan Ponce Guadián;
e
3) Monumento ao Marques de Sade
(Chile, 1947), colagem e montagem com
fotografias por
Jorge Cáceres



7 comentários:

  1. Fiquei encantada com esta postagem linda e poética e aprendi muito.
    Vou ter que voltar muitas vezes, com muito gosto, a este blog Semióticas. Parabéns porque tudo aqui é excelente, de alto nível.

    Alessandra Raposos

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  2. Anna Lídia Magalhães11 de janeiro de 2025 às 12:20

    Vale por uma aula muito saborosa. Cada visita que faço a este blog Semióticas é uma surpresa, cada uma melhor que a outra. Você está sempre atualizado! Parabéns e muito obrigada por compartilhar beleza e sabedoria.

    Anna Lídia Magalhães

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  3. Tenho 63 anos e posso dizer honestamente que já vi de tudo na internet, de verdades e de mentiras, de conteúdos originais e de plágios desavergonhados. Quando encontrei um link para esta postagem no Facebook, esperava encontrar uma foto e um texto sobre. Engano meu. Esta é a melhor postagem que encontrei nos últimos anos, tudo contextualizado e muito bem escrito, tudo identificado em detalhes. Este blog Semióticas é, para mim, uma descoberta muito surpreendente. Não conheço nenhum outro blog independente que ao menos chegue perto do alto nível de tudo o que encontrei aqui. Incomparável. Parabéns porque tudo aqui é uma beleza.

    Roberto Gama Filho

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  4. Parabéns porque tudo aqui é um espetáculo completo. Amei as fotos e esta aula de alto nível sobre as fronteiras e as aproximações entre alta cultura e cultura popular. Sou fã deste Blog Semióticas desde a primeira visita.

    Cristina Amarante

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  5. Um deleite esse texto!
    Imagens complementado de maneira perfeita, pesquisa incrível e rara nos dias de hoje. Parabéns pelo trabalho!

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  6. Sempre um excelente texto e muito bem acompanhado de lindas imagens! Parabéns!

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  7. Belo espetáculo de fotografias e de texto impecável. Muito obrigada por compartilhar estas postagens tão inspiradoras e tão especiais.

    Cláudia Santos Silva

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