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As guerras não machucam ninguém além das pessoas que morrem. –– Salvador Dalí em depoimento a Alain Bosquet em 1969. ...... |
Sobre nosso olhar diante das guerras e das imagens de guerra, nosso silêncio, nossa indiferença ou nosso protesto, Susan Sontag disse quase tudo em “Diante da dor dos outros”, ensaio comovente, de fôlego e de impacto, publicado em 2003 – último livro que ela publicou, menos de um ano antes de sua morte aos 71, em 2004. Retorno ao ensaio de Sontag sobre as imagens da dor e da guerra reproduzidas diariamente por todas as mídias porque recebi, por e-mail, o belo programa da Bienal Internacional de Arte de Pontevedra, que está de volta 15 anos depois de sua última edição na província de Galiza, na Espanha, com o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de los demás”.
A
programação é extensa e tenta abraçar os mais diversos caminhos
da arte contemporânea nos suportes tradicionais e formatos
multimídia, presenciais e on-line. O tema da bienal tem sua
inevitável inspiração no ativismo antiguerra de Susan Sontag –
em sua opção por uma arte que fosse abertamente comprometida com uma real intervenção diante das guerras e da violência do presente. Pelo
que se anuncia, é a temática da guerra que conduz a curadoria, com
imagens de confrontos armados e massacres ganhando destaque na condição de obra de arte, incluindo retrospectivas históricas e experiências
inéditas e imprevisíveis da arte viva contemporânea, como as
instalações de Zehra Dogän, artista e jornalista curda nascida na
Turquia, que lançam o visitante em barricadas e simulações de
confrontos diante de tanques e tropas invasoras.
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Bienal das imagens de guerra: no alto e acima,
“Etelastik”,
instalação multimídia de Zehra Dogän Também acima, os curadores da Bienal de Pontevedra na cerimônia de abertura da edição 2025 do evento.
Abaixo, "Resiliência", escultura da artista do parte do catálogo on-line da Bienal de Pontevedra, exceto
quando
indicado
nas
respectivas legendas ![]() ![]() |
O imprevisível presencial
Entre as diversas instalações com suportes audiovisuais e multimídia, o imprevisível também é marcante nas obras de Rosalind Nashashibi, artista da diáspora da Palestina, que resgata cenas da Faixa de Gaza que desapareceram com o massacre genocida praticado diariamente pelas forças invasoras e terroristas de Israel contra tudo e contra todos: crianças que brincam, pessoas e cavalos que se banham nas águas do mar, jardins e bosques de oliveiras que o bombardeio incessante dos iraelenses transformam em ruínas e corpos destroçados. São imagens que gritam, em sua aparente simplicidade e sua beleza tão vulnerável. Visitantes também têm a experiência presencial de olhar as fotografias que Robert Capa registrou na Guerra Civil da Espanha – e por coincidência algumas das ampliações estão realmente próximas dos pontos geográficos em que foram fotografadas pelo mais célebre dos fotógrafos de guerras e por outros fotojornalistas que fizeram história.
Ainda
que entre as obras e artistas da bienal esteja indicado um
consenso inequívoco sobre o genocídio praticado por Israel contra o
povo palestino, o tema “Volver a ser humanos – Ante el dolor de
los demás” também cria um paradoxo com uma emblemática
citação do alemão Theodor Adorno, que sempre retorna quando o
debate aborda a guerra em interface com a arte e a literatura. Adorno argumentou, em 1949, que “escrever um poema depois de Auschwitz é um
ato bárbaro” – no ensaio “Crítica da Cultura e
Sociedade” (publicado no Brasil em 2002 no livro “Indústria
cultural e sociedade”, pela editora Paz e Terra). A afirmação
retornaria em outros textos em que o filósofo contextualiza sua
máxima com a advertência de que ele não pretendia que se deixasse
de escrever poesia, mas sim que a arte após o Holocausto não podia
mais ser ingênua ou indiferente à barbárie ocorrida, sendo
necessário que a própria arte refletisse sobre a catástrofe. A ironia do destino é que agora, décadas depois do Holocausto, são os judeus no comando do Estado de Israel que usam do imenso poderio militar para cometer o horror dos massacres e do genocídio contra os palestinos, um povo que não tem exércitos.
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Bienal
das imagens de guerra: acima,
Abaixo,
extratos de “Gaza Elétrica”,
fotografias |
História de transformações
A Bienal de Pontevedra tem uma história de transformações. No início, desde sua criação em 1969, foi uma exposição competitiva destinada essencialmente à promoção de artistas locais, como se pode ler na retrospectiva do site oficial (veja o link no final desta página). A partir de 1974, a bienal ganhou abertura para artistas internacionais e, em 1982, abandonou o seu caráter competitivo. Por questões internas de gestão e dificuldades financeiras, o evento foi interrompido em 2010, retornando agora com a força inquestionável que a extensa programação vem demonstrar. Sob a curadoria de Antón Castro, historiador da arte e professor da Universidade de Vigo, com a curadoria adjunta de Agar Ledo e Iñaki Martínez Antelo, a bienal abriu formalmente no final de junho e se estenderá até 30 de setembro, ocupando diversos espaços da Galiza, com algumas exposições e instalações seguindo depois para outros espaços da Espanha e outros países da Europa.
Na apresentação da bienal, os curadores ressaltam que as duas guerras mundiais, em sua época, não foram temas marcantes das artes tradicionais da pintura e da escultura, mesmo tendo influenciado radicalmente os movimentos de vanguarda e os rumos da Arte Moderna. As experiências de representar a morte e a violência provocadas pelas máquinas de guerra tiveram mais força na fotografia e no cinema, aparecendo implícitas, ou quase não ditas, de forma metafórica ou alegórica, na literatura e nas formas da arte em geral. Houve, contudo, uma forte alteração de perspectiva, porque a guerra não mais aparecia de forma gloriosa e heroica, como tinha sido representada por muitos artistas nos séculos anteriores.
Bienal
das imagens de guerra: arquivo
histórico
de registros da Guerra Civil Espanhola,
a
partir do
alto,
uma
tropa da resistência em
Cerro Muriano, uma vila da Andaluzia,
Espanha,
em 5 de setembro de 1936, em fotografia de
Robert
Capa.
Acima,
um morto é transportado
na frente da resistência em Segóvia,
em
fotografia de junho de 1937 de Gerda
Taro.
Abaixo,
o fotojornalista uruguaio Pau
Lluis Torrents,
com
a câmera apoiada nos joelhos, conversa com
militantes da
resistência na frente de Aragão, em
agosto de 1937, em
fotografia de Agostí
Centelles;
um
grupo de republicanos
de esquerda assassinados
pelos
nacionalistas conservadores, liderados pelo
general Francisco Franco,
em
Carabanchel Bajo (Madri),
em fotografia de dezembro de 1936 de Erich Andres;
e
as covas vazias, à espera dos mortos, no cemitério
de Huesca,
na província de Aragão, em fotografia
de abril de 1938 de
Albert-Louis
Deschamps
Os desastres da guerra
Uma
importante exceção na representação da guerra surge de forma
marcante na obra de Pablo Picasso – em 1937 ele pintou “Guernica”,
sob o impacto de um dos massacres na Guerra Civil, que foi a destruição por bombardeios na pequena cidade de Guernica, criando uma obra monumental que tornou-se uma referência como o manifesto de maior impacto contra a violência do século 20. “Guernica”, a obra original, não foi cedida à Bienal de
Pontevedra. Em 1981, ela foi transferida do Museu de Arte Moderna de
Nova York para Espanha e permanece no Museu Rainha Sofia, em Madri, mas está presente na bienal na forma de homenagem, com uma recriação feita por uma artista do México, Fritzia Irizar, que produziu uma réplica da pintura original, feita em escala 1:1, sobre a qual foi apresentada uma performance de arte viva.
Na abertura da bienal, Fritzia Irizar disparou em direção à réplica de "Guernica" milhares de recortes com retratos das vítimas de massacres recentes em cidades da Palestina, da Síria, da Ucrânia, e os retratos terminaram afixados à tela que havia sido recoberta com cola de secagem rápida, gerando um efeito que oscila entre o festivo e o trágico. A homenagem a "Guernica" destaca a urgência para não esquecermos as lições do passado, provocando reflexões tanto sobre o sofrimento e o desespero de populações inteiras como sobre a banalização cotidiana da violência na cultura visual contemporânea.
Outra exceção
importante na representação dos cenários e das consequências da guerra, mas no século 19, vem de outro artista espanhol,
Francisco de Goya, cujas obras estão presentes na bienal. Entre 1810 e 1815, Goya criou “Los Desastres de la
Guerra”, uma série de 82 desenhos e gravuras que são referenciais pelo que
retratam brutalmente tanto em evidências realistas como em metáforas
e símbolos sobre a violência da guerra, tendo como tema e cenário
a resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A série de Goya,
não por acaso, fornece argumentos para Susan Sontag em “Diante da
dor dos outros” e também surge como um fio condutor dos múltiplos recortes que guiaram a curadoria da bienal na seleção dos 60 artistas e das 400 obras em exposição.
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Bienal
das imagens de guerra: no alto, "Guernica",
Abaixo,
“Naves Espaciais” (Astronauta), pintura |
É quase inevitável associar os cenários violentos da série de Goya ao olhar de fotógrafos presentes na bienal com seus registros de guerras desde o começo do século 20, seja na Segunda República, na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil ou na Ditadura Franquista, na Segunda Guerra ou nos conflitos intermináveis da segunda metade do século 20 até o presente em diversas nacionalidades. Há os nomes célebres em destaque, especialmente na cobertura dos combates da Guerra Civil na Espanha, na década de 1930, com destaque para o húngaro Endre Ernő Friedmann (1913-1954), que se tornou uma figura lendária sob o pseudônimo de Robert Capa; os alemães Erich Andres (1905-1992), Walter Reuter (1906-2005) e Gerda Taro (1910-1937); a húngara Kati Horna (1912-2000); o catalão Agustí Centelles (1909-1985), o francês Albert-Louis Deschamps (1889-1972) e o polonês Emil Vedin (1912-2001), entre outros.
Há
também os fotógrafos nos cenários contemporâneos de
guerras ocasionais ou
permanentes que atravessam o
Leste Europeu, os países da
África, o Oriente Médio, a Ásia ou as
Américas, neste nosso
tempo presente em que os espectadores estão diante da dor dos
outros observando-a como um espetáculo, muitas vezes em tempo real e
simultâneo, acompanhando o horror pela TV ou pelas redes sociais nas telas do
computador ou em celulares – com massacres de populações inteiras,
incluindo muitas crianças, em atrocidades
que dispensam mediação de jornalistas ou historiadores e acontecem
ao vivo, diante dos olhos de milhões de espectadores. Seja
por meio de fotografias, do cinema documental, dos fragmentos de
transmissões on-line, seja em instalações presenciais, em
pinturas, em ilustrações, em esculturas, em performances ou em
técnicas mistas e
imprevisíveis, as imagens de guerra reunidas pela Bienal de Pontevedra
são amostras de registros
incômodos
e extremamente atuais
da arte produzida em
situações extremas – cada trabalho e todos, em conjunto, soando
como alertas inquietantes e
brutais.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Bienal das imagens de guerra. In: Blog Semióticas, 23 de agosto de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/08/bienal-das-imagens-de-guerra.html (acesso em .../.../…).
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