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20 de janeiro de 2020

Memórias de Fellini







O artista autêntico e verdadeiro é aquele 
que
consegue revelar o grão de verdade 
escondido no fundo de cada mentira. 
–– Italo Calvino (1923-1985).    



Quem ama o cinema sempre confessa amor incondicional por Federico Fellini e seus filmes – por todos ou por alguns, sejam eles “Amarcord” (1973), “La Dolce Vita” (1960), “Noites de Cabiria” (1957), Estrada da Vida” (1954), “Fellini Oito e Meio” (1963) ou qualquer outro das duas dúzias de obras-primas que ele realizou, muitos deles inseparáveis da música de Nino Rota ou das melhores performances de Marcello Mastroianni, de Giulietta Masina, de Anita Ekberg e de outros artistas que se tornariam interfaces do adjetivo “felliniano”. Exatamente hoje, dia 20 de janeiro de 2020, Fellini completa seu centenário de nascimento – ou, dito por palavras, mais fiéis ao espírito de sonhos, poesia, memórias e realismo que pontuaram sua filmografia especialíssima: eu me recordo que em 20 de janeiro de 1920, na pequena cidade italiana de Rimini, situada entre dois rios, às margens do Mar Adriático, nasceu Federico, filho da dona de casa Ida Barbiani e do caixeiro-viajante Urbano Fellini.

Eu não poderia ser diferente do que sou. Se há alguma coisa que sei, é isso”, declara o cineasta na abertura de “Eu, Fellini”, livro da norte-americana Charlotte Chandler que reúne depoimentos do próprio Fellini e de dezenas de amigos, gente de cinema e outros cineastas, da Itália e de outros países. Chandler, também biógrafa de Groucho Marx, Billy Wilder, Alfred Hitchcock, Bette Davis, Marlene Dietrich e Ingrid Bergman, entre outros, começou as entrevistas com Fellini em 1980 e prosseguiu pelos anos seguintes, mas o livro com o relato autobiográfico terminou como publicação póstuma, em 1994, com prefácio de Billy Wilder, lançado no Brasil em 1995 pela Editora Record. Alimentando-se dos frutos das lembranças e da imaginação barroca de sua terra natal, Fellini falou ao mundo com seus filmes e segue influenciando artistas do cinema e de outras áreas. Sua biografia, ou autobiografia, também está descrita em muitas passagens que filmou, nos roteiros que escreveu, nos livros que publicou e nas suas saborosas entrevistas, iguarias do conhecimento de todo cinéfilo.

Federico também cultivou a fama de mentiroso, mas talvez sua verve esteja mais próxima da fantasia do que propriamente da mentira. Cada um vive em seu mundo de fantasias, mas isso não está claro para a maioria dos homens, ele diz, no primeiro depoimento a Charlotte Chandler. Na apresentação ao livro, ela concorda e destaca que a figura mais importante de todos os filmes de Fellini poucas vezes aparecia pessoalmente, mas estava sempre presente  era o próprio Fellini. “Ele foi o verdadeiro protagonista de todos os seus filmes, destaca a biógrafa. Quem assistiu a seus filmes percebe este detalhe, da maior importância, registrado nas passagens sobre as descobertas de infância e adolescência na província, as temporadas no colégio religioso de padres salesianos, os dramas condimentados com o trágico e o cômico da família e dos amigos, o horror pelo avanço sempre ameaçador do fascismo, a aventura de fugir de casa com um circo, a compaixão pelas figuras mais pobres e desamparadas, o talento para desenhar e pintar cenários e caricaturas, a fascinação por mulheres de seios enormes, de quadris enormes, de olhos e bocas enormes – a imagem materna metamorfoseada na figura feminina que também é mãe mártir, mãe Roma, mãe loba, mãe pátria, mãe igreja, mãe que acolhe e seduz.












Memórias de Fellini: no alto da página, caricatura
do cineasta em autorretrato. Acima, o diretor em
ação em ilustração com a dupla de La Dolce Vita,
Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, e sua esposa
da vida inteira, Giulietta Masina, na caracterização
de Gelsomina, personagem de Estrada da Vida;

em outro autorretrato, pintado na década de 1980;
e a capa original do relato autobiográfico Eu, Fellini.

Abaixo, 
Fellini em cena do documentário filmado
em Roma, em 1991 e 1992, pelo canadense
Damian Pettigrew, lançado nos cinemas em 2003
com o título Eu Sou um Grande Mentiroso
(Sono un Gran Bugiardo). Também abaixo,

Fellini com o maestro Nino Rota em 1979,
durante as filmagens de Ensaio de Orquestra;
e a cena do cinema no autobiográfico Amarcord












Forma poética e emotiva



Prosseguindo no roteiro biográfico que ele iria reconstruir de forma poética e emotiva no cinema, Federico, após fugir de casa, aos 19 anos, terminou fazendo uma parada estratégica na cidade de Florença, onde conseguiu emprego como revisor de gráfica e como desenhista. Também trabalhou vendendo bijuterias e ganhou algum dinheiro escrevendo textos de humor para jornais e revistas antes de, finalmente, decidir pela mudança para Roma, em 1939, em plena efervescência da Segunda Guerra Mundial, com a cidade agitada e no auge da violência do fascismo comandado pela ditadura totalitária que teve à frente Benito Mussolini e que, naquele ano, havia firmado com Japão e Alemanha a Aliança Militar do Eixo.

Em Roma, em meio à censura fascista, em meio ao caos e às dificuldades de toda ordem decorrentes da guerra, Federico vai trabalhar no rádio, estreando como redator e roteirista de radionovelas, e também publica seus primeiros artigos em revistas na época muito populares, a Marc'Aurelio”, de humor e sátiras, e a CineMagazzino”, que trazia reportagens e entrevistas sobre filmes e estrelas de cinema. Os artigos e entrevistas o levam a conhecer roteiristas como Cesare Zavattini e artistas como Aldo Fabrizi, que seriam seus contatos profissionais para as primeiras experiências como colaborador nos estúdios de cinema da Cinecittà, a Hollywood da Itália, inaugurada por Mussolini em 1937. Em 1942, há um encontro da maior importância: Federico conhece a candidata a atriz Giulietta Masina, a partir dali sua musa na arte e na vida, sua primeira e única esposa até os últimos dias, em 1993, quando ele morreu de ataque cardíaco, aos 73 anos, um dia após completar 50 anos de casamento. Giulietta sofreu muito com a perda e viveu pouco tempo sem ele. Morreria seis meses depois, em 1994, também aos 73 anos.










Memórias de Fellini: acima, o maestro e sua
musa e esposa, Giulietta Masina, em temporada
de férias em Veneza, em 1955; e em 1974
em Rimini, terra natal de Fellini, durante as
filmagens de Amarcord. Abaixo, Fellini e Giulietta
durante as filmagens de Estrada da Vida. Também
abaixo, cena de Satyricon, versão de Fellini para
um clássico da literatura da Roma Antiga, escrito
no século 1° depois de Cristo por Petrônio











Na mesma época em que encontrou sua Giulietta, Federico também conheceu um cineasta ainda sem prestígio e sem sucesso cuja amizade e influência mudariam para sempre sua trajetória. O cineasta, a quem sempre chamaria de “mestre” e que o conduziu no ofício de fazer filmes, era Roberto Rossellini. Ainda durante a ocupação alemã, Rosselini ficaria interessado em filmar um roteiro original de Fellini em locações reais pelas ruas, com câmera em movimento e com atores amadores. O filme seria “Roma, Cidade Aberta”, precursor do neorrealismo italiano e dos novos cinemas de vanguarda no mundo inteiro (incluindo o Cinema Novo no Brasil e a Nouvelle Vague na França), sucesso internacional desde seu lançamento ao final da guerra, em 1945 – uma obra-prima que consagrou Rossellini e também Anna Magnani, veterana que havia estreado no tempo do cinema mudo e que sob o roteiro de Fellini e sob a batuta do mestre Rossellini alcançou pleno reconhecimento como grande atriz.



Estranho e familiar



O que vem a seguir é a criação de um conjunto de filmes que firmaram posição entre as obras-primas do cinema e as grandes obras de arte do último século, cambiantes entre um imaginário muito pessoal, tanto sublime como bizarro, e o amor declarado pelas formas da cultura mais popular do circo, do teatro de variedades, das histórias em quadrinhos, das fotonovelas. O fato de Fellini ter começado desenhando caricaturas talvez seja uma pista importante para entender seu gosto por personagens em gestos orgulhosos e situações irônicas, quase sempre risíveis e delicadas, exuberantes e também grotescas. Muitos já escreveram sobre seus filmes, seu imaginário, seu exagero em figuras delirantes, seu gosto pela sátira, pela paródia, sua religiosidade iconoclasta, mas a poética de Fellini prossegue como enigma e deleite – a natureza secreta de algo estranho que parece familiar, como descreve Sigmund Freud naquele célebre estudo publicado no início do século 20.













Memórias de Fellini: no alto, em Veneza, 1955,
com Valentina Cortese e Giulietta Masina. Acima,

com Anna Magnani em 1970, durante as filmagens de
Roma; e com o amigo e colaborador Pier Paolo Pasolini
nas ruas de Roma, em 1961. Abaixo, fotografado em 1962
com Marcello Mastroianni; com seu alter-ego Bruno Zanin
em 1973, durante as filmagens de Amarcord; em cena como
ator 
e roteirista de Il Miracolo, um dos episódios de L'Amore,
filme de 1948 de Roberto Rossellini, contracenando de
cabelo e barba pintados de louro ao lado de Anna Magnani;
e no abraço com Lina Wertmüller, sua assistente de direção
e co-roteirista em La Dolce Vita e em Oito e Meio




  












Diante de um filme de Fellini, a maioria dos críticos concorda, o mais difícil é descrever uma sinopse, porque na imensa maioria dos casos o enredo é menos importante do que a forma e os detalhes de compaixão com os quais se conta aquela história. Um exercício comparativo interessante seria, talvez, tentar entender o que há do estilo “felliniano” nos comerciais de publicidade que ele fez para a TV ou nos roteiros e argumentos para filmes que ele escreveu e não filmou – alguns transformados em programas de rádio ou de TV, ou em filmes realizados por outros diretores: por Rossellini, por Osvaldo Valenti, por Mario Mattoli, por Riccardo Freda, por Pietro Germi, por Eduardo De Fellipo, por Mario Monicelli.

Alguns de seus roteiros não filmados também tiveram destino incomum e ganharam adaptações para o formato de histórias em quadrinhos  como é o caso das versões eróticas feitas por seu amigo Milo Manara nos álbuns “Viaggio a Tulum” (1986) e “Il viaggio di G. Mastorna, detto Fernet” (1992), este último um projeto para cinema acalentado e adiado durante anos, que chegou a ter o título provisório de “La Dolce Morte”. Contam os biógrafos que em 1966, durante o trabalho intensivo para a pré-produção do filme que jamais seria realizado, Fellini experimentou uma sequência insólita de pesadelos e acabou sofrendo um ataque cardíaco. Supersticioso, interpretou que de fato morreria se prosseguisse com o projeto.








Memórias de Fellini: acima e abaixo, as versões
em álbuns de histórias em quadrinhos criadas por
Milo Manara (foto abaixo, com Fellini) para roteiros
que foram escritos pelo cineasta e que chegaram
à fase de pré-produção, mas não foram filmados.
Também abaixo, a capa da primeira edição de
2013, em inglês, do roteiro completo para o filme
não realizado mais famoso do cinema italiano,
A jornada de G. Mastorna, escrito por Fellini
em colaboração com Dino Buzzatti,
Brunello Rondi e Bernardino Zapponi













Estreia com Giulietta



A estreia como cineasta, em 1950, foi com Giulietta Masina no elenco do melodrama sobre uma trupe de saltimbancos que apresenta seu pequeno show de variedades de cidade em cidade, “Mulheres e Luzes” (Luci del Varietá), em co-direção com Alberto Lattuada, com quem também divide a autoria do roteiro original. Depois Fellini iria dirigir “Abismo de um Sonho” (Lo Sceicco Bianco), baseado em uma fotonovela de Michelangelo Antonioni, contando a história de um casal ingênuo que se perde em Roma durante a lua de mel. A primeira palavra que ouvimos no filme é “Roma”, pronunciada na janela de um trem, próxima a seu destino. A palavra e a cidade seriam uma constante na maioria dos filmes de sua trajetória, incluindo a mescla de ficção e documentário batizada como “Roma” e lançada nos cinemas em 1972, retrato nostálgico e anárquico, tão original como peculiar, sobre a cidade e suas principais características, reunindo um mosaico de dimensões imprevisíveis sobre rituais e representações sociais.

Entre as exceções que não têm Roma como cenário estão a paródia poética de documentários “Os Palhaços” (I Clows), com o curioso título que reúne as palavras em italiano (“I”) e em inglês (Clows), filmada na França e no interior da Itália, lançada nos cinemas em 1970, e o enredo ilusionista de falso documentário “E La Nave Va” (1983), com seus personagens emblemáticos a bordo do luxuoso navio rumo ao funeral de uma lendária cantora de ópera. Outro filme conduzido fora de Roma, durante as viagens do protagonista, é “Il Casanova di Fellini” (1976), ambientado nos vários países da Europa por onde o escritor libertino Giacomo Casanova viveu suas aventuras na segunda metade do século 18. Há ainda, como exceção, “Os Boas Vidas” (I Vitelloni), de 1953, em que Roma não é o cenário, mas surge como o destino almejado entre os jovens amigos que vivem seus grandes sonhos e pequenos dramas em um lugarejo do interior.





Memórias de Fellini: acima e abaixo, durante
as filmagens de Otto e Mezzo (Fellini Oito e meio),
em fotografias de Tazio Secchiaroli. Também abaixo,
na pré-estreia de La Dolce Vita em Roma,
com Anita Ekberg e Marcello Mastroianni;
e com Roberto Rossellini em 1960 no
Festival de Cannes, quando La Dolce Vita
conquistou a Palma de Ouro












A Cidade Eterna, como dizem com orgulho os italianos, que Fellini adotou como sua a partir de 1940, também é cenário para os episódios que ele escreveu e dirigiu para os três filmes de realização coletiva em sua trajetória, três episódios de curta duração que em nada saem do tom poético autobiográfico e autoral de sua filmografia. São eles “Agência Matrimonial” (em “Amores na Cidade”, de 1953, com episódios de Fellini, Carlo Lizanni, Dino Risi, Michelangelo Antonioni, Alberto Lattuada, Francesco Maselli e Cesare Zavattini), “As tentações do Doutor Antônio” (em “Boccaccio ‘70”, de 1962, com episódios de Fellini, Mario Monicelli, Luchino Visconti e Vittorio De Sica) e “Toby Dammit” (em “Histórias Extraordinárias”, de 1968, adaptação de contos de Edgar Allan Poe, com o título em italiano “Tre Passi nel Delirio” e episódios de Fellini, Roger Vadim e Louis Malle).



Evocação comovente e irônica



Outras exceções em que Roma está ausente são “Estrada da Vida” (La Strada), de 1954, primeiro grande sucesso de Fellini, com sua trama que acompanha as andanças mambembes de Gelsomina (Giulietta Masina), vendida pela mãe para o brutamontes Zampanó (Anthony Quinn), um artista de circo grosseiro e violento que vive em uma carroça viajando e se apresentando de vilarejo em vilarejo; e “Amarcord” – título em referência à expressão fonética usada no dialeto da sua terra-natal, a m' arcord (eu me recordo), uma evocação memorialista, tão comovente como irônica, da infância e da adolescência de alegrias e tristezas passadas com a família na pequena Rimini, filme em que reminiscências nostálgicas da história social, da educação escolar e da política da década de 1930, época da terrível ascensão do fascismo na Itália, se misturam à potência da imaginação onírica e encantam narrador e plateia.






Memórias de Fellini: acima e abaixo, durante
as filmagens de Satyricon, fotografado por
Mary Ellen Mark. Também abaixo, nas três
imagens coloridas, flagrantes do diretor
em ação durante as filmagens de Roma









Em várias entrevistas, Fellini contou que em 1939, quando avisou que iria para Roma, sua mãe pediu e insistiu que ele fizesse os exames para estudar direito na universidade. Ele fez a fazer a matrícula, mas nunca chegou a nenhum curso, nunca teve nenhum diploma universitário nem frequentou nenhuma escola de formação em cinema. A técnica e os procedimentos narrativos do cinema ele aprendeu na prática, assistindo filmes e espetáculos de variedades e prestando serviços nos estúdios da Cinecittà. Quando houve a deposição de Mussolini e teve fim a ocupação alemã em Roma, Fellini teve a iniciativa de abrir uma pequena loja chamada Funny Face Shop, onde caricaturas podiam ser produzidas em dez minutos. Entre os clientes estavam soldados das tropas norte-americanas e dos Aliados que chegaram com as batalhas violentas da guerra e que precisavam de algo para enviar para casa. Um dia, Roberto Rossellini decidiu visitar a Funny Face e a amizade com Fellini começou.

Seguindo orientações do “maestro” Rossellini, Fellini providenciou os ajustes nos roteiros sobre os cenários de guerra que escreveu para “Roma, Cidade Aberta” (pelo qual chegaria a ser indicado ao Oscar de melhor roteiro em 1947, junto com Sergio Amidei e outros, em co-autoria), para “Paisá” (1946) e para um dos episódios de “O Amor (L'Amore, de 1948), “Il Miracolo” (o outro episódio é A voz humana, baseado no monólogo teatral de Jean Cocteau). Em “Il Miracolo”, Fellini também foi o ator principal, com cabelos e barba pintados de louro, no papel de um vigarista confundido com São José por uma mulher ingênua e muito religiosa vivida por Anna Magnani. A quarta e última parceria com Rossellini foi o roteiro de Fellini para “Francisco, o Arauto de Deus” (Francesco, Giullare di Dio), filme de 1950 sobre São Francisco de Assis.

A prova dos nove para o cineasta viria também em 1950 com a estreia na direção, em parceria com Lattuada, para quem Fellini havia escrito os roteiros de “Il delitto di Giovanni Episcopo” (1947), “Senza Pietà” (1948) e “Il Mulino del Po” (1949). A partir dali viveria, finalmente, do cinema e para o cinema, com grandes sucessos e pequenos fracassos de público e crítica e uma lista extensa de premiações e de homenagens, incluindo os prêmios mais importantes nos grandes festivais internacionais e a posição de recordista no Oscar como diretor de quatro filmes vencedores na categoria de melhor filme estrangeiro (Estrada da VidaNoites de Cabíria“Fellini Oito e Meio”, Amarcord), além de outras 12 indicações, dos prêmios de melhor figurino (para Casanova e para “Fellini Oito e Meio”) e do Oscar honorário que receberia em 1993. A dedicação em tempo integral ao cinema nunca foi interrompida e ele continuaria na pré-produção de outros projetos depois de “A Voz da Lua”, seu último filme, lançado em 1990, com sua atmosfera de sonho e fantasia, três anos antes de sua morte. Definitivamente, não é pouco.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Memórias de Fellini. In: Blog Semióticas, 20 de janeiro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/01/memorias-de-fellini.html (acessado em .../.../...).



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26 de novembro de 2016

Mitologias de Fidel







Explicação do título: falando dos complexos problemas cubanos,
uma amiga francesa misturou os termos “crítica” e “política”,
inventando a palavra “policritique”. Ao escutá-la pensei (também
em francês) que entre “poli” e “tique” situava-se a sílaba “cri”, ou
seja, “grito”. Grito político, crítica política na qual o grito aí está
como um pulmão que respira; foi assim que sempre entendi, assim
continuarei entendendo e dizendo. É preciso gritar uma política
crítica, é preciso criticar gritando cada vez que se acredite justo:
só assim poderemos acabar um dia com os chacais e as hienas.

Julio Cortázar, “Policrítica na hora dos chacais” (1971).   



No capítulo final do célebre “Mitologias”, livro publicado em 1957, o francês Roland Barthes alerta para o fato de que não mantemos com os mitos relações de verdade, mas de utilização. “Existem objetos míticos que são postos de lado, entregues ao sono, por uns tempos; são apenas vagos esquemas míticos, cuja carga política perece quase indiferente. Trata-se unicamente de uma oportunidade de situação, e não de uma diferença de estrutura” – destaca Barthes, antes de concluir: “O mito, como se sabe, é um valor: basta modificar o que o rodeia, o sistema geral (e precário) no qual se insere, para poder determinar com exatidão o seu alcance”.

Barthes apresenta, como exemplo para suas reflexões, as ocorrências e significados dos mitos que surgiam na imprensa e na cultura de massa da França na década de 1950, mas suas reflexões também cabem perfeitamente para perceber a grandeza e o alcance de um mito atualíssimo como o líder cubano Fidel Castro, que morreu hoje, aos 90 anos. Dentro e fora de Cuba, Fidel há décadas já havia passado à História na condição de mito, alcançando a primeira grandeza, com todas as definições e características que tanto Barthes como outros grandes pensadores do século 20 apontam para o que seja “mitológico” – em suas questões e conjunções de representação coletiva elevada à categoria de metáfora universal.









Mitologias de Fidel: no alto, Otoño en el
Parque Almendares, fotografia de Julio
Maldonado Mourelle em Havana, Cuba, em
2006. Acima, o jovem Fidel Castro chupando
pirulito em foto com outros estudantes do colégio
Nuestra Señora de Dolores, em Santiago de Cuba,
1940; e na célebre fotografia de Alberto Korda,
que recebeu do autor o título David y Goliath,
durante a visita de Fidel ao Memorial Lincoln,
em Washington, EUA, meses depois da
Revolução Cubana de 1959.

Abaixo, outro registro de Alberto Korda,
fotógrafo oficial da Revolução Cubana e de
Fidel Castro: El Comandante falando
a jornalistas em Havana, em 1961
 



 


Morto em 1980, Barthes por certo acompanhou o desfecho lendário da Revolução Cubana de 1959 e os capítulos dramáticos da Ilha de Fidel nos anos e décadas seguintes, as aproximações com a extinta União Soviética, a rejeição com equivalência e peso de declaração de guerra aos Estados Unidos – mas não chegou a visitar Cuba nem a conhecer pessoalmente El Comandante, como fizeram muitos importantes escritores e intelectuais da esquerda que foram seus contemporâneos e conterrâneos. A lista dos admiradores e convivas de Fidel entre os grandes da intelligentsia” é extensa, incluindo, entre muitos outros, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Henri Cartier-Bresson, Arthur Miller, Noam Chomsky, Ernest Hemingway, Italo Calvino, Bernard Kouchner, Régis Debray, Jorge Semprun, François Maspero, Pablo Neruda, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Gabriela Mistral, Violeta Parra, Fernando Birri, José Saramago, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Chico Buarque...



Herói mítico



Nenhum minuto da história é igual a outro; nenhuma ideia ou acontecimento humano pode ser julgado fora de sua própria época” – escreveu o próprio Fidel em 2004, em carta endereçada a outro líder revolucionário da América Latina, o venezuelano Hugo Chávez (1954-2013), reproduzida em “Fidel para Principiantes”, livro dos argentinos Néstor Kohan e Nahuel Skerma publicado em 2006 pela Era Naciente, editora de Buenos Aires. Herói mítico de sua própria época, desde o final da década de 1950 Fidel passou a representar a expressão máxima das rebeliões anti-imperialistas e socialistas do Terceiro Mundo – na América Latina, na África, na Ásia. Não é pouco.










Mitologias de Fidel – El Comandante
em fotografias de Alberto Korda: acima,
a prisão de Fidel em 1953, após a invasão
que ele liderou ao Quartel Moncada; e
com seus companheiros na guerrilha em
1957 em Sierra Maestra. Abaixo,
Fidel e Che Guevara na guerrilha,
em 1957 e na foto histórica em 1961











No comando de sua ilha, “tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” – como diz a frase lendária e irônica atribuída a outra personalidade polêmica latino-americana, Porfírio Díaz, presidente do México no final do século 19 – Fidel sobreviveria a nada menos que 11 presidentes norte-americanos e a mais de 600 tentativas de assassinato, segundo informam seus biógrafos. El Comandante resistiu e continuou enfrentando por décadas o Grande Império, cujos dirigentes não conseguiram derrubá-lo, nem eliminá-lo, nem modificar os rumos da Revolução Cubana, até que em dezembro de 2014, com Barack Obama na Casa Branca, tiveram que admitir o fracasso e a derrota diplomática para, enfim, iniciar um processo de normalização das relações com o sistema político cubano.

Na exata medida de nossa alienação, não conseguimos ultrapassar uma apreensão instável do real: vagamos incessantemente entre o objeto e a sua desmistificação, incapazes de lhe conferir uma totalidade” – conclui Barthes em “Mitologias”. Novamente, o raciocínio serve como uma luva para o caso Fidel Castro, porque avaliar a figura mítica de Fidel não é tarefa fácil. Seu lugar é o do líder revolucionário que dividiu com outra figura mítica, Che Guevara (1928-1967), o enfrentamento contra o regime brutal e corrupto instalado em Cuba pelo ditador sanguinário Fulgêncio Batista, subserviente aos EUA, mas seu apoio a muitas guerrilhas do Terceiro Mundo e sua aliança posterior com Moscou também fizeram dele uma referência libertária e personagem-chave da Guerra Fria em escala planetária.












Mitologias de Fidel: acima, cenas
da Revolução Cubana em fotografias
do inglês Lee LockwoodAbaixo, a
capa do livro Fidel para Principiantes,
editado na Argentina; e a fotografia de
Alberto Korda de 1961 que registra
travessia de Fidel com o casal
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
pelo pantanal de Cienaga de Zapata,
durante a visita dos intelectuais
franceses a Cuba


 







Ação internacional



Para seus detratores, Fidel, em sua necessidade estratégica de fazer vingar a Revolução Cubana, atropelou direitos humanos e liberdades individuais, principalmente de opositores associados aos governos dos EUA e saudosos das práticas do antigo regime – ao que a imensa maioria da população da ilha responde com a salvaguarda dos avanços sociais, com a reforma agrária, com os sistemas de educação e saúde pública reconhecidos como exemplares no mundo inteiro, com a inexistência de analfabetismo e de desnutrição infantil e com a expectativa de vida que alcança 79 anos, muito além de qualquer país das vizinhanças.

Aos detratores de Fidel, muitos deles exilados e entrincheirados em Miami, a intelectualidade de Cuba vem repetindo o questionamento: como seria possível uma democracia formal com embargo comercial, econômico e financeiro? Durante décadas, Fidel resistiu bravamente e a revolução vingou em Cuba – e sua influência avançou muito além das fronteiras da ilha: ano após ano a reputação internacional do mito Fidel Castro foi construindo uma política externa de apoio a outras lutas no Terceiro Mundo, incluindo campanhas de alfabetização e de saúde pública, com destaque para a reputação humanitária da medicina e dos médicos cubanos – no caso brasileiro e também em vários outros países.










Mitologias de Fidel: acima, a entrada de
Fidel e Che com o Exército Rebelde em
Havana, em 1959; e El Comandante em
seu gabinete de trabalho, fotografado em
1959 por Burt Glinn. Abaixo, Fidel com
o líder soviético Nikita Khrushchev em
1963, durante a visita oficial a Moscou;
e Fidel no Brasil: poucos meses após a
Revolução Cubana, em 1959, com o
presidente Juscelino Kubitschek e seu
vice, João Goulart, fotografados no
Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro;
e com dona Marisa Letícia Lula da Silva,
com o líder sindical Jair Meneguelli e
com Lula, na época presidente do
Partido dos Trabalhadores, em 1989,
em São Bernardo do Campo, São Paulo,
em fotografias de Luiz Prado,
durante um encontro de lideranças
de esquerda da América Latina















.





No passado recente, o mito Fidel Castro paira sobre casos e números que impressionam: atualmente, mais de 51 mil profissionais de saúde de Cuba trabalham em 66 países do mundo, tanto como voluntários como em missões remuneradas. Depois do maior acidente nuclear da História, em Chernobyl, em 1986, a medicina cubana teve destaque no tratamento a mais de 25 mil vítimas da radiação, entre adultos e crianças, que são recebidas em Cuba e atendidas no centro de atenção especial instalado no território cubano em Tarara desde 1990, tornando-se um complexo médico de referência internacional. Em 2010, o governo cubano enviou 1.200 médicos para combater a epidemia de cólera no Haiti após um terremoto, quando todas as missões estrangeiras de apoio à saúde haviam partido. Também recentemente, quando o pânico causado pelo Ebola assolava a África Ocidental, Cuba liderou os esforços de ajuda humanitária, enquanto missões oficiais da Europa e dos EUA mantinham distância.

Além da ação surpreendente contra a epidemia de Ebola, os povos de países da América Latina, da África e da Ásia também devem a Fidel esforços de guerra contra ditaduras, pela soberania nacional e pela libertação das antigas colônias em processos de independência contra países europeus e contra os regimes de Apartheid. Os registros oficiais mais conhecidos destacam, entre outros casos, ações de Cuba para impulsionar movimentos de esquerda em países latino-americanos, em apoio a brasileiros, argentinos, venezuelanos, bolivianos, colombianos, uruguaios, paraguaios, nicaraguenses, salvadorenhos, chilenos.







Mitologias de Fidel: acima, Fidel em 2010,
durante as celebrações do 50º aniversário da
criação dos Comitês para a Defesa da Revolução,
em Havana, fotografado por Desmond Boylan.
Abaixo, com Oliver Stone em Havana, em
2004, durante as filmagens do documentário
Procurando Fidel (Looking for Fidel).

Também abaixo, Fidel com Nelson Mandela
em Cuba, em 1991, em fotografia de
Omar Torres; com Hugo Chávez, da
Venezuela, e Evo Moralesda Bolívia, em
Havana, em 2006; e com Vladimir Putin,
presidente da Rússia, durante a visita
oficial de Putin a Havana, em 2000














Há, também, o apoio cubano à Argélia, na guerra contra o colonialismo francês, em 1961, e em 1963, na guerra contra o Marrocos; em 1965, quando Che Guevara e guerrilheiros cubanos passaram um ano no Congo, em Angola e em Guiné-Bissau; a participação direta de Fidel nos conflitos e nos acordos que levaram ao fim da Guerra do Vietnã, em 1973; o envio da força expedicionária de Cuba, através do Atlântico, em 1975, para ajudar a salvar Angola, na época recém independente, de uma invasão sul-africana; e o apoio à libertação de Nelson Mandela e sua escalada de resistência rumo à presidência e à pacificação na África do Sul.

Com o Brasil os laços diplomáticos de Cuba seriam retomados em 1985 e sinalizaram a retomada da Democracia: a primeira ação internacional da ditadura militar que tomou o poder em 1964 havia sido o rompimento das relações oficiais entre o governo brasileiro e o governo cubano. O receio de que o Brasil seguisse o exemplo da Revolução Cubana e se alinhasse à União Soviética foi um dos pretextos para o apoio decisivo do governo norte-americano ao golpe de Estado que levou à deposição do presidente João Goulart e implantou a ditadura que duraria décadas.

Depois da retomada oficial das relações diplomáticas, uma missão oficial do Brasil visitou Cuba em 1987 e, em 1989, o presidente Fidel Castro visitou o Brasil e teve participação importante, ao lado do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em um encontro de lideranças de esquerda da América Latina que aconteceu em São Paulo. Depois da eleição de Lula para a Presidência da República, as relações entre Brasil e Cuba ficaram mais próximas com acordos de cooperação em diferentes áreas. Lula realizou visitas oficiais a Cuba em 2003, em 2008 e em 2010. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff implantou um programa importante na área da saúde: o Mais Médicos, com participação ativa dos médicos cubanos no atendimento à população de baixa renda e também às comunidades mais afastadas dos grandes centros urbanos. 



Um mito e suas variações



Com o desfecho de sua trajetória mítica, as glórias e as polêmicas sobre Fidel proliferam. Herói revolucionário que enfrentou os EUA? Ditador que em nome da revolução ignorou os direitos humanos? Estrategista que treinou e armou guerrilheiros em lutas pela liberdade política em vários países de vários continentes? Tudo isso junto e misturado? Provavelmente sim: tudo isso e mais. Um mito é a soma de suas variações – explicaria Roland Barthes, nas reflexões reunidas em “Mitologias”, ressaltando que todas as possíveis variações são expressão da verdade última do mito.















Mitologias de Fidel: acima, El Comandante
no Brasil, em 2003, na posse do ex-presidente 
Lula;, fotografados por Ricardo Stuckert;
e com a ex-presidente Dilma Rousseff 
durante encontro em Havana em 2014.

Abaixo, Fidel com Dom Pedro Casaldáliga,
bispo católico e referência para a defesa dos
Direitos Humanos e para a causa dos povos
indígenas no Brasil; Fidel com o escritor
norte-americano Ernest Hemingway,
Prêmio Nobel de Literatura em 1954,
fotografados em Havana por Alberto Korda
em maio de 1960; Fidel com Jorge Amado,
em 1974, fotografados em Havana pela esposa
de Jorge, Zélia Gattai; Fidel em Havana com
Gabriel García Márquez em 1982, ano em que
o escritor venceu o Prêmio Nobel de Literatura;
Fidel com o jogador de futebol da Argentina
Diego Armando Maradona, militante de
esquerda e ativista das causas sociais; Fidel
com o Papa Francisco, também em Havana,
em 2015; e Fidel em duas fotografias de 1965
registradas por Lee Lokwood: discursando
para uma multidão em Havana e em um raro
momento de descanso, na Ilha de Pines,
ditando uma carta para a secretária.
Também abaixo, as homenagens póstumas
ao líder revolucionário nas ruas e na
Universidade de Havana, em três
fotografias de Alejandro Ernesto


























A História me absolverá” – declarou certa vez o próprio Fidel, na época um jovem revolucionário de 26 anos, preso depois de liderar em julho de 1953 a invasão ao quartel militar de Moncada, em Santiago de Cuba, uma ação de resistência contra o golpe de Estado em que Fulgêncio Batista tomou o poder e instalou uma ditadura sangrenta. A invasão terminaria de forma trágica, com a morte da maioria dos manifestantes e com a prisão do líder Fidel. A história, porém, nunca tem fim: é um constante vir a ser, como destaca o cientista político Moniz Bandeira em "De Martí a Fidel  A Revolução Cubana e a América Latina", livro de referência em que analisa a evolução do regime revolucionário de Cuba e as conquistas sociais desde os antecedentes da Revolução de 1959.

Depois de passar 76 dias preso em um cela solitária, Fidel, recém-formado em Direito, apresentou-se em 1953 para fazer sua própria defesa no julgamento. As palavras com que encerrou seu discurso de defesa no tribunal têm um caráter premonitório, quase de profecia – antecipando uma trajetória que estava apenas no início: “Sei que a prisão será dura como nunca foi para ninguém, cheia de ameaças, de enfurecimento ruim e covarde, mas não a temo, como não temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida de 70 dos meus irmãos. Condene-me, não importa, a História me absolverá.”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Mitologias de Fidel. In: Blog Semióticas, 26 de novembro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/11/mitologias-de-fidel.html (acessado em .../.../...).


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