Este artigo aborda questões relacionadas à arte e à ciência a partir dos registros sobre Mary Elizabeth Banning, artista plástica e cientista pioneira no estudo de fungos e cogumelos, por sua vez tema apocalíptico de “The Last of Us”, a série de TV e o videogame. Mas antes de falar da série apocalíptica, e antes de apresentar a senhorita Banning, parênteses são necessários para uma introdução ao conceito de rizoma. Sabemos que árvores e suas raízes já foram utilizadas por diversos autores como metáfora para pessoas, lugares e ideias, então tal abordagem talvez não seja nem surpreendente nem mesmo novidade. O caso mais célebre sobre a estrutura do rizoma foi descrito pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari em “Mil Platôs”, um estudo em cinco volumes publicado em 1980 na França e traduzido no Brasil em 1995 pela Editora 34.
Deleuze e Guattari nos fazem lembrar que tanto árvores como raízes podem ser tomadas como metáforas para formas diferentes de organização a partir das quais podemos pensar variáveis sobre a realidade que nos cerca – ou seja: podemos extrair, a partir da observação das plantas, modelos de organização em torno da multiplicidade e da complexidade. Resumindo ao extremo o argumento de Deleuze e Guattari, temos que o modelo arbóreo é aquele que possui um fundamento e que depende dele para multiplicar-se: a raiz é a unidade, a gênese, a verdade que antecede a multiplicidade. A árvore-raiz resulta no pensamento inflexível, no modo sedentário de viver, na organização hierárquica das relações.
O
rizoma, aquela estrutura
dispersa como raiz que é geralmente subterrânea,
sugere outra forma de organização, sendo um sistema de caules
horizontais que têm um crescimento polimorfo e se entrelaçam sem direção
definida, representando formas
de pensamento e de
organização que desafiam
as estruturas hierárquicas e lineares tradicionais. Em vez de uma
árvore com raízes e tronco, o rizoma é uma rede horizontal, com
múltiplas entradas e saídas, onde cada ponto pode se conectar a
outro, sem hierarquia ou centro. O
gramado, que floresce e se espalha ocupando toda a superfície do
terreno, talvez seja um bom exemplo para
entender uma estrutura rizomática.
Um sistema sem um centro definido
O rizoma se contrapõe ao pensamento arborescente, que é linear, hierárquico e centralizado. No pensamento arborescente, a informação flui de cima para baixo, com uma raiz central que define a estrutura. O rizoma, por outro lado, é um sistema aberto e descentralizado, onde a informação circula em todas as direções, sem um centro definido. Na prática, o rizoma vem se associar ao novo, à mudança, à reconstrução, apresentando-se de forma completamente oposta às linhas duras, pois permite os escapes e as resistências ao instituído. Para manter a metáfora de Deleuze e Guattari, colher conceitos na botânica já seria uma forma de fazer um rizoma entre os saberes.
Lembrei
do rizoma de Deleuze e Guattari, e
de sua potência anárquica, assistindo
a uma série de TV de ficção-científica, apocalíptica
e de sucesso, “The Last of
Us” (produção HBO Max),
por sua vez adaptada
de um videogame homônimo que também têm legiões de adeptos. Em
"The Last of Us", tanto
a série como o videogame, os
fungos
que causam
a infecção e a consequente transformação de humanos em criaturas
semelhantes a zumbis são
uma versão fictícia do gênero Cordyceps. Na
vida real, tais
fungos
de fato existem,
mas
eles têm
infectado
principalmente insetos, não sendo
capazes
de infectar humanos. Na série e no videogame, os fungos
passam por mutações que permitem a contaminação de seres humanos,
desencadeando pânico generalizado e uma pandemia global que vai
dizimar a humanidade.
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Um
mundo de cogumelos:
no alto e acima, cenas
da
série de TV The
Last of Us,
que apresenta um
futuro apocalípto depois da contaminação
dos
seres humanos por uma espécie de fungos.
Abaixo,
painel da exposição sobre a obra de
Mary
Banning
destaca conexões de dependência
para espécies conhecidas
de fungos
e cogumelos
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Verdades e mentiras
Minha curiosidade sobre as verdades e mentiras no argumento de “The Last of Us” me levaram a fazer descobertas interessantes sobre os seres desta espécie, o reino Fungi, que inclui micro-organismos como as leveduras, o bolor ou mofo, e os cogumelos, em sua variedade de formas, cores e tamanhos. Fungos estão mais próximos aos animais do que às plantas, na cadeia evolutiva, mas por suas características biológicas são classificados em um reino separado dos animais, das plantas e das bactérias, sendo objeto de estudo de uma ciência denominada micologia (do grego “mykes”, que significa cogumelo, e “logos”, estudo), por sua vez derivada da botânica.
A
teia de informações sobre fungos também me levou de volta à leitura de
Deleuze e Guattari, uma vez que entre fungos e rizomas existe uma
aproximação quase inevitável, pois em ambos há uma vasta rede
orgânica de conexões que pode envolver ou atirar para fora de si em
qualquer ponto, recusando as bifurcações lineares e binárias que
estruturas semelhantes a árvores implicam. Fungos se multiplicam por
meio de esporos, que são estruturas microscópicas liberadas no ar
ou sobre superfícies. Quando encontram um ambiente com umidade,
matéria orgânica e temperatura favorável, os esporos germinam e
formam novos fungos. É por isso que surgem rapidamente em frutas,
pães e outros alimentos deixados fora da geladeira ou armazenados
por muito tempo.
Um
mundo de cogumelos:
no alto e acima, |
Um perigo iminente
Fungos
também podem matar, provocando infecções, alergias e doenças
invasivas. Segundo levantamentos da Organização Mundial da Saúde,
morrem por ano, em todo o planeta, cerca de 4 milhões de pessoas
diagnosticadas com infecções decorrentes de fungos. Há, também, a
questão de perdas econômicas e humanitárias, pois pelo menos 20%
da produção mundial de alimentos se perde antes da colheita, por
causa diretamente dos fungos. E há o agravante ecológico,
desencadeado pelas mudanças climáticas: as temperaturas no planeta
Terra estão subindo, ano após ano, em decorrência da maior emissão
de gases do efeito estufa, provocando maior número de eventos
meteorológicos extremos, como enchentes, furacões e secas, o que
também provoca a proliferação desordenada de fungos. O tema apocalíptico de "The Last of Us", como se vê, não é algo tão distante no horizonte de possibilidades catastróficas.

A rede de informações sobre fungos também me levou à descoberta de uma personagem fascinante, Mary Elizabeth Banning, uma cientista e artista plástica do século 19 que revolucionou o estudo sobre fungos e cogumelos. A iconografia e as pesquisas criadas por Mary Banning, a partir dos cogumelos que ela localizou, nomeou e preservou para a posteridade, ainda hoje são fundamentais para diversas áreas do estudo científico. Nascida em Maryland, nos Estados Unidos, em 1822, Banning viveu até 1903, quando morreu aos 80 anos, depois de dedicar grande parte da vida aos estudos sobre o reino Fungi, como autodidata, sendo o primeiro nome da pesquisa fora da Europa a descrever e nomear novas espécies de fungos e cogumelos para a ciência.
Obra de arte e de ciência
A
principal obra de Mary Banning, o manuscrito “The Fungi of
Maryland” (Os fungos de Maryland), redigido, desenhado e pintado
durante 20 anos, de 1868 a 1888, com minuciosas descrições
científicas e 175 aquarelas em policromia de fungos e cogumelos,
agora está disponível on-line em fac-símile (veja link no final
desta página). Observar as páginas do manuscrito é uma surpresa e
uma experiência indescritível diante de uma criação autoral de
pesquisa de ciência avançada feita por uma pioneira, escrita em
prosa com toques poéticos incomuns e valorizada, ao mesmo tempo, por
ser uma obra-prima em artes plásticas. Em um trecho, Banning
descreve que fungos são párias de vegetais porque “são como
mendigos à beira do caminho, vestidos com trajes alegres e por vezes
escandalosos; inspiram atenção, mas não reivindicam nenhuma”.

As páginas do manuscrito, com suas aquarelas coloridas e suas descrições escritas com uma caligrafia tão uniforme que poderia passar por letras tipográficas, ganharam recentemente sua primeira exposição pública no Museu do Estado de Nova York, onde permanecerão até janeiro de 2026, seguindo depois para um calendário itinerante em outras instituições. Denominada “Outcasts: Mary Banning’s World of Mushrooms” (Proscritos: O mundo dos cogumelos de Mary Banning), a exposição pode ser considerada a primeira revelação para o grande público sobre uma pioneira, uma mulher cientista e artista, silenciada e ignorada em seu tempo, vítima do que hoje se convencionou nomear como apagamento histórico.
Preciosidade da pesquisa científica
As poucas referências científicas concedidas a Mary Banning em seu tempo ocorreram por conta da amizade epistolar que ela manteve por quase 20 anos com um botânico de Nova York, Charles Horton Peck, que fez citações sobre algumas das descobertas de Banning em um anuário científico, especialmente sobre 23 espécies que ela registrou no manuscrito e que eram desconhecidas. Ao que se sabe, Peck foi o único que respondeu às correspondências que Banning enviava aos cientistas de sua época. A exposição também apresenta uma seleção de amostras originais de cogumelos que Banning reuniu em seu trabalho de campo, agora preciosidades da pesquisa científica, possibilitando que pesquisadores da atualidade tenham em mãos espécimes raros do século 19 que Banning localizou, descreveu, nomeou e preservou para a posteridade.
O manuscrito de Mary Banning, reunindo as 175 aquarelas impressionantes, textos descritivos e algumas anedotas sobre a coleta cotidiana dos cogumelos, junto com amostras do material que ela encontrou na zona rural de Baltimore, foram enviados por ela, cuidadosamente embalados, para o Museu do Estado de Nova York, mas permaneceram arquivados e esquecidos nos almoxarifados por mais de um século. “Você é meu único amigo na terra dos fungos”, escreveu ela para Charles Peck em uma carta de agradecimento em 1889. Peck, no entanto, ao que tudo indica não demonstrou entusiasmo pelo material enviado nem teve empenho para publicar o manuscrito. Mary Banning nunca se casou e morreu solitária pouco depois de completar 80 anos, sem nunca ter seu livro publicado e sem reconhecimento por seu trabalho incomparável.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Um mundo de cogumelos. In: Blog Semióticas, 29 de julho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/07/um-mundo-de-cogumelos.html (acesso em .../.../…).
Para uma visita à exposição sobre a obra de Mary Banning, clique aqui.
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Uma beleza de artigo que vale por uma aula.
ResponderExcluirVou ter que voltar muitas vezes aqui e com muito gosto, porque são muitas as postagens que preciso visitar.
Parabéns pelo alto nível deste Blog Semióticas!
Paulo Afonso Silveira
Parabéns pelo alto nível.
ResponderExcluirFoi uma surpresa e uma alegria encontrar esta postagem e este blog Semióticas. Muito obrigada por compartilhar beleza e sabedoria.
Maria Carmen de Araújo
reunir The Last of Us com Gilles Deleuze e Félix Guattari e mais esta personagem estraordinária no estudo do reino Fungi que é Mary Banning (que eu não conhecia) resultou em um dos mais fascinantes artigos que encontrei nos últimos tempos.
ResponderExcluirParabéns de novo.
Sempre fico muito impressionado com o alto nível de todas as outras que visito neste blog Semióticas, mas esta, realmente me trouxe muitas surpresas e alegrias pelo aprendizado.
Só agradeço.
Ricardo Sussekind
Foi uma felicidade encontrar este artigo e este blog Semióticas que é uma surpresa e um espetáculo em todas as postagens. Muito obrigado por compartilhar. Virei fã nesta primeira visita e vou ter que voltar muitas vezes.
ResponderExcluirCarlos Alexandre Pozas
Gostei imensamente desta postagem e aprendi muito.
ResponderExcluirTudo neste blog Semióticas é de alto nível.
Parabéns de novo.
Renato Silva dos Santos
Muito obrigada por compartilhar.
ResponderExcluirAprendi muito nesta postagem.
Virei fã nesta primeira visita.
Vou ter que voltar muitas vezes.
Juliana Nascimento