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12 de agosto de 2011

Canto para o mundo






As gravações de João Gilberto com Astrud Gilberto,
com ou sem o Stan Getz, fazem a gente pensar que
a música é o silêncio que existe entre as notas.

Tom Jobim.   




Quase cinco décadas separam as trajetórias de Céu e de Astrud Gilberto, duas cantoras e compositoras brasileiras que têm semelhanças no estilo e voz suave. Céu, desde o início de carreira, lançou canções e álbuns que conquistaram fãs no Brasil e no exterior, enquanto o prestígio de Astrud Gilberto no exterior é indiscutível, há mais de meio século, desde o começo da década de 1960. Astrud é presença obrigatória em todas as listas das grandes cantoras do Jazz, mas no Brasil, por incrível que pareça, ela continua restrita a públicos específicos, cultuada principalmente pelos ouvintes de repertório mais sofisticado, apreciadores da Bossa Nova. 

Afastada dos palcos e da mídia desde o final da década de 1990, Astrud Gilberto foi homenageada com uma raridade: o primeiro DVD da cantora e compositora chegou às lojas no Brasil e em outros países com décadas de atraso. "Astrud Gilberto Ao Vivo no Lugano Festival Jazz" foi gravado em 1985 no célebre festival da Suíça, que atrai todo ano, no mês de julho, uma multidão à centenária Piazza della Riforma para ouvir, ao ar livre, grandes nomes da música internacional e celebrar o verão.

Os fãs de Astrud Gilberto vão por certo ter uma grata surpresa com as imagens da musa em cena, sempre elegante e meio tímida, fazendo mudanças sutis no fraseado de canções conhecidas, subtraindo compassos, acelerando ou desacelerando o andamento da música, com a harmonia de seu tom inconfundível. Para a grande maioria do público, será a primeira vez que se vê Astrud cantando em um show na íntegra. As imagens de suas performances ao vivo são raríssimas, mesmo no YouTube e em outras plataformas da Internet. No Brasil, ela se apresentou uma única vez, em 1965, em São Paulo. Desde então, nunca mais se viu nem se ouviu ao vivo, por aqui, seu jeito suave de cantar, um estilo que sempre lembra o canto que João Gilberto consagrou e que virou marca registrada da Bossa Nova.

No show em Lugano, Astrud Gilberto e banda apresentam clássicos que ela própria lançou, desde a década de 1960, mas também algumas surpresas. Gravado pela TV da Suíça, o show acontece à noite, com a praça completamente lotada. Astrud entra em cena com uma versão personalíssima de "Águas de Março", com afinação impecável e fraseado bastante diferente da versão gravada por Tom Jobim e Elis Regina em 1970. Ela agradece os aplausos falando em italiano e em português e emenda com duas inéditas, "Kumbia" e "Milky Way", composições do então estreante Paulo Jobim, filho de Tom.









Na sequência vem "Dindi", comovente e nostálgica. Astrud tropeça na letra, faz uma pausa e retoma os versos perfeitos de Tom Jobim, sempre elegante. "A Rã", de Caetano Veloso, ganha versão instrumental com "scratches" cheios de "borogodó, berém, berenguedém..." que parecem vir direto do repertório de Carmen Miranda. "Canto de Ossanha" (Vinicius de Moraes) tem uma versão mais contida, com trechos em inglês e versos sussurrados ("pergunte ao seu seu orixá, o amor só é bom se doer...").



Parceria Getz & Gilberto



"Telefone" (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), do cancioneiro de Nara Leão, é apresentada em inglês no show em Lugano, seguida de "Girl From Ipanema", clássico dos clássicos de Tom Jobim e Vinicius, que levou Astrud para as paradas de sucesso do mundo inteiro em 1964 - ano do antológico disco "Getz/Gilberto", no qual ela e o então marido João Gilberto dividiram os vocais em parceria com o saxofonista Stan Getz. O repertório de "Getz/Gilberto" também foi a base para o célebre show de João Gilberto, Astrud, Tom Jobim, Milton Banana e companhia no ano de 1962 no Carnegie Hall, em Nova York, evento que consagrou a Bossa Nova fora do Brasil.









Além da presença mítica de Astrud Gilberto no palco, comandando o show, a banda tem belos momentos e performance solo dos músicos que levam a muitos aplausos do público. Acompanham os vocais impecáveis de Astrud um time de bambas: David Saks no trombone, Steve Harrick ao piano, bateria de Duduca Fonseca e, no contrabaixo, a presença rara de Marcelo Gilberto, filho de João Gilberto e Astrud.

O show em Lugano termina com uma versão acelerada para outro clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, composição feita para o espetáculo "Orfeu da Conceição", que estreou no teatro em 1956 e que no ano seguinte ganharia uma versão nos cinemas, como "Orfeu Negro": "A Felicidade" ("tristeza não tem fim, felicidade sim..."). Na sequência, uma versão alto astral de Aloysio de Oliveira para "In the Mood", clássico de Glenn Miller na era das "big bands", na década de 1940 - que na versão Bossa Nova virou "Edmundo" e havia sido gravada originalmente por Elza Soares em 1967.






       






Astrud Evangelina Weinert, que nasceu
em Salvador, em 1940, adotou o nome
Astrud Gilberto em 1959, depois do
casamento com João Gilberto. No alto,
Astrud com João Gilberto na praia, no
Rio de Janeiro, em 1960, em fotografia para 
o álbum de João O amor, o sorriso e a flor.

Acima, Astrud em uma apresentação na
TV da Alemanha, em 1970; em fotografia no
estúdio em Amsterdam, Holanda, em 1966;
na capa do álbum lançado em 1964
The Girl from Bossa Nova (The Astrud
Gilberto Album); e com Tom Jobim em
Nova York, em dois momentos: em 1964
e em 1984. Abaixo, o casal recém-casado
Astrud Gilberto e João Gilberto no
Rio de Janeiro, no apartamento em que
moravam; no palco, em 1960; e em
fotografia no estúdio em 1963





















Geração de seguidores



Presente sofisticado para os mais exigentes, o DVD de Astrud Gilberto ao vivo em Lugano tem apenas uma ressalva: a pobreza franciscana do lançamento, que não tem encarte, nem ficha técnica, nem identificação dos músicos da banda ou dos compositores das 11 canções. Pela raridade que representa, merecia melhor acabamento, mas ainda assim é imperdível.

A importância histórica do canto de Astrud Gilberto não tem comparação, mas é impossível não associá-la ao marido João Gilberto, apesar do casamento ter durado poucos anos e das trajetórias de Astrud e de João terem seguido por caminhos diferentes. No mundo inteiro ela é a voz feminina da Bossa Nova, porque foi a primeira cantora do novo estilo musical e sua referência desde o início. Entre os marcos históricos de Astrud está seu lugar como primeira mulher a ganhar um prestigiado prêmio Grammy como melhor gravação do ano, em 1965, pela primeira gravação de "Garota de Ipanema" (do álbum "Getz/Gilberto"), concorrendo com Beatles e Barbra Streisand. Não é pouco. 


Sempre presente nas listas das grandes cantoras de jazz de todos os tempos - ao lado de divas do Olimpo como Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Nina Simone - as gravações de Astrud Gilberto mantêm seu impacto e formaram gerações de seguidores, como destacam em Belo Horizonte especialistas e entusiastas da Bossa Nova como Bob Tostes e Pacífico Mascarenhas.






Acima, Astrud Gilberto e o saxofonista
Stan Getz em 1964. Abaixo, Astrud com
João Gilberto e Marcelo Gilberto, filho
do casal. Após o divórcio, João voltou
para o Brasil e depois seguiu em turnês
internacionais, enquanto Astrud continuou
morando em Nova York com o filho e 
conduzindo a carreira em novas gravações 
e apresentações nos EUA e em países da
Europa. João Gilberto se casaria com a
cantora Miúcha, irmã de Chico Buarque,
com quem teve a filha Bebel Gilberto.

Também abaixo, João Gilberto e Miúcha
em Nova York, em meados dos anos 1960;
João Gilberto com os filhos Bebel e Marcelo;
e Astrud Gilberto em dois momentos: em 1970,
passeando pelas ruas de Nova York; e em
1985, no palco do Festival de Lugano





.








"Ela é inigualável, simplesmente inigualável", aponta o músico e radialista Bob Tostes, pesquisador da música brasileira e da Bossa Nova em particular. "Astrud Gilberto criou um estilo e causou impacto nas cantoras de sua geração e em muitas das jovens cantoras que vieram depois. São muitas as grandes cantoras que buscam a suavidade e a interpretação frágil e contida que Astrud trouxe para o jazz e para a música brasileira e para a música internacional. E muitas cantoras e cantores que fazem sucesso no mundo inteiro reconhecem em Astrud a principal musa inspiradora", completa.

Para o compositor Pacífico Mascarenhas, Astrud Gilberto é um nome tão essencial para a Bossa Nova como o próprio João Gilberto. "Astrud viveu um certo tempo em BH, no final dos anos 1950, na casa de uma tia dela que morava no Bairro Santo Antônio. Eu apresentei um ao outro e foi aqui em BH que ela e João Gilberto começaram a namorar. Como ela tinha fluência no inglês, foi quem ajudou a treinar a pronúncia do João e sem dúvida nenhuma ajudou muito a abrir as portas para a Bossa Nova no exterior", recorda Pacífico, autor da canção "Pouca Duração", que foi gravada por Astrud na década de 1960. "Concordo com o Bob Tostes. Inigualável é a melhor palavra para descrever a presença e o estilo de Astrud Gilberto", conclui.










Durante quatro décadas, do início dos anos 1960 até o final dos anos 1990, Astrud Gilberto fez turnês por vários países e se apresentou nos principais festivais de Jazz. Uma de suas últimas gravações em estúdio foi em 1996, ao lado de George Michael, como contribuição para o Red Hot + Rio, do projeto beneficente Red Hot AIDS, que teve o produtor brasileiro Béco Dranoff entre os organizadores. Com George Michael, que na época estava no auge do sucesso e da popularidade, Astrud gravou a clássica "Desafinado". Desde então, recebeu prêmios e homenagens em vários países, mas não no Brasil. Também esteve na trilha sonora de muitos filmes e muitas séries de sucesso, além de canções como tema de novelas na TV do Brasil, e teve várias de suas gravações revisitadas pela música eletrônica, em remixes feitos pelos DJs mais celebrados. 









Acima e abaixo, Astrud Gilberto com Stan Getz
em cena do filme Get yourself a college girl,
comédia musical dirigida por Sidney Miller e
lançada nos cinemas em 1964. Também acima,
uma das faixas da coletânea "Verve Remixed",
que reuniu grandes sucessos de cantoras de
Jazz do acervo da gravadora Verve em
versões remixadas por convidados;
a gravação original de Astrud de 1965 para
"Who Needs Forever" teve remix do
Thievery Corporation em 2002.

Abaixo, Astrud Gilberto com Stan Getz e
Astrud no estúdio em Amsterdam, Holanda,
em 1966, em fotografia de Nico van der Stam;
e com Stan Getz na capa do álbum de 1969
Astrud Gilberto golden japanese album,
coletânea de gravações ao vivo lançada
somente no mercado japonês pela MGM 











Depois de Astrud, Céu



A lista de cantoras brasileiras que ganharam o mundo não é tão extensa. Começa com Carmen Miranda, no final da década de 1930, passa por Astrud Gilberto a partir da década de 1960, inclui o sucesso de Elis Regina no Festival de Montreux e algumas outras que investiram no filão do jazz e da Bossa Nova, principalmente no mercado da Europa e do Japão. Agora a lista ganhou mais um destaque: Céu, nome artístico de Maria do Céu Whitaker Poças, que despontou como jovem promessa da MPB em 2002, aos 22 anos, depois de começar na música aos 15 anos, quando chegou a gravar vocais para jingles publicitários.

Seu disco de estreia, batizado de "Céu", lançado em 2005, foi uma aposta dos selos Urban Jungle e Ambulante Discos (do produtor Beto Villares) que teve a sorte de conseguir distribuição no exterior pela Warner Music. Bem recebido pela crítica lá fora, que num primeiro momento comparou Céu a Marisa Monte e a Bebel Gilberto, brasileiras que também têm público fiel em vários países, o CD de estreia transformou a cantora e compositora Céu em um surpreendente fenômeno de vendas também fora do Brasil.










Nos Estados Unidos, o disco de estreia da cantora e compositora alcançou a marca invejável de 30 mil discos vendidos em duas semanas, chegando à primeira posição nos rankings de "world music" - a mais alta posição conquistada por uma cantora brasileira no mercado norte-americano desde a gravação original de "Garota de Ipanema" por Astrud Gilberto, em 1963. O disco de estreia ainda vendeu mais de 25 mil cópias em países como França e Holanda e garantiu a Céu uma indicação ao Grammy Latino, em 2006, na categoria de artista revelação. Naquele ano, o prêmio foi para a banda Calle 13, de Porto Rico.

O segundo disco, "Vagarosa", lançado em 2009, cinco anos após o álbum de estreia, segue a mesma trilha do sucesso que aproxima Céu de artistas contemporâneos difíceis de classificar pelos gêneros e categorias tradicionais. Na trilha de nomes como o francês Manu Chao, de quem ela se diz fã e reconhece como uma das suas fontes de influência, Céu vem investindo radicalmente na pesquisa de novas possibilidades e sonoridades, com influências generosas de eletrônica, mas também de samba, frevo, tango, salsa, jazz, blues, folk, hip hop, afrobeat, ska, dance hall e, especialmente, reggae.








Menina Rosa



"Vagarosa" reúne um total de 12 surpreendentes composições próprias, inéditas, e uma única releitura - um rearranjo psicodélico para "Menina Rosa", clássico de Jorge Ben Jor que soa irreconhecível na nova versão. Produzido pela própria Céu em parcerias inspiradas com Beto Vilares, Gustavo Lenza e Gui Amabis, "Vagarosa" é um disco corajoso. Não faz concessões, na contracorrente dos repertórios "versáteis" e pretensamente moldados sob medida para o sucesso tão fácil como efêmero. Definitivamente, é daqueles discos para ouvir com atenção e gostar muito ou não gostar.

Destaque para o auxílio luxuoso de convidados especiais do porte de Luiz Melodia (no autêntico samba recriado por Céu em "Vira-Lata"), além dos vocais sussurrantes e impecáveis de Thalma de Freitas e Anelis Assumpção - que fazem lembrar Rita Marley e outras vocalistas dos mestres da Jamaica em "Bubuia". Marcelo Jeneci também marca presença em "Sonâmbulo", assim como BNegão e Curumin no reggae "Cordão da Insônia", uma das melhores surpresas de um disco que merece destaque entre os principais lançamentos da última temporada.







"Vagarosa" começa com uma pequena porém emblemática vinheta - o prelúdio em samba "Sobre o Amor e Seu Trabalho Silencioso", com seu belo fraseado que remete aos bambas da velha guarda do samba, mas tem letra e música originais de Céu. Tocada apenas ao cavaquinho (por Rodrigo Campos), tira partido da poesia do primeiro verso - "vai pegar feito bocejo/ o que só o sentido vê". É a primeira de uma série de metáforas que reforçam o clima lento, sossegado e sofisticado do CD.

Na sequência, a irresistível "Cangote" ("Fiz minha casa no teu cangote/ não há neste mundo quem me bote/ pra sair daqui...) instaura os ares modernos que as faixas seguintes vão estender até extremos da harmonia. "Cangote" traz o veterano baterista Gigante Brasil em seu show particular e Beto Vilares na guitarra, baixo e "scratches".







Inflexível e hipnótica



Por "Vagarosa" ainda desfilam, entre muitos outros, o talento de Fernando Catatau (em "Espaçonave", que inclui sons da floresta amazônica gravados por Guilherme Ayrosa), Los Sebozos Postiços (formados por Lucio Maia, Pupilo, Dengue, Bactéria, Gustavo da Lua e Jorge du Peixe, egressos do Mundo Livre S/A). Outra presença importante é Chiquinho, mentor da banda Mombojó, em faixas como "Comadi", "Espaçonave" e "Cordão da Insônia".

Eleito entre os melhores discos do ano de seu lançamento (2009) pela maior parte dos críticos musicais da imprensa brasileira, "Vagarosa" também uma recepção incomum e elogios de veículos influentes da imprensa estrangeira, incluindo o norte-americano The New York Times e os ingleses BBC, The Guardian e The Independent. Pela BBC, Colin Irwin definiu Céu como "uma cantora sublime", destacando para o público do Reino Unido que era impossível falar de Céu ou ouvir suas canções sem invocar as semelhanças e aproximações dela com Astrud Gilberto.








Entre tantos convidados ilustres, Céu consegue se impor como o melhor destaque. Com sua voz pequena e sussurrada, que por vezes lembra a jovem Gal dos anos 1960, por vezes soando inflexível e hipnótica, por outras sedutora e caliente, a jovem cantora e compositor equilibra timbres e músicos com raro talento e carisma.

Ao pegar carona na eletrônica e na nova onda de "scratches" e remixes, características de suas investidas desde o disco de estreia, Céu em "Vagarosa" deixa para trás os clichês surrados de medalhões da MPB tradicional e renova as possibilidades do samba e da Bossa Nova entre outros gêneros e categorias. E acerta em cheio, alcançando sonoridades que retratam os novos tempos e acrescentam novidade, sem retomar aquela fórmula de tantos outros que apenas repetem referências para oferecer mais do mesmo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Canto para o mundo. In: Blog Semióticas, 12 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/canto-para-o-mundo.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o DVD 
Astrud Gilberto / Festival de Lugano,  clique aqui.





 

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11 de julho de 2011

Louis entre os Cronópios







Não há absolutamente nada no trompete que não venha

de Louis Armstrong. Na verdade, você pode dizer que

não há nada no jazz que não venha de Louis Armstrong.

Miles Davis (1926-1991).  



Há um conto de Cortázar, publicado em “Valise de Cronópio”, editado em 1993 pela Perspectiva, em que o narrador está em um concerto de Pops em Paris, em 1952. Tudo é normalidade e expectativas, mas quando o artista surge no palco, o fabuloso se instala, multiplicado em risos, pausas, canções, gestos mirabolantes.

A história de Pops é a história do blues e do jazz desde o começo do século 20. Nascido no primeiro ano do século, em Nova Orleans, ele é um daqueles artistas que superaram a infância miserável e uma condenação penal como menor infrator para ganhar o mundo como incontestável e incontestado porta-bandeira do gênero que ajudou a criar e do qual permanece como maior protagonista.

Pops, o apelido, veio dos amigos. Para os fãs, ele era Satchmo (em inglês, forma reduzida de “satchelmouth”, boca de saco), por conta de sua expressão facial nos solos prolongados de voz e trompete. Quatro décadas depois de sua morte, o trompetista, cantor, compositor, ator e chefe de orquestra Louis Armstrong (1901-1971) encontrou no jornalista Terry Teachout um biógrafo que não se opõe à mitologia criada em torno do artista. Tampouco a repete.













No alto, Louis Daniel Armstrong em 1970,
fotografado durante seu último show, na
Sala Imperial do Waldorf Astoria, Nova York.
Acima, Louis aos 17 anos, em março de
1918, quando se casou com Daisy Parker.
Louis trabalhava carregando carvão em
uma fábrica em Nova Orleans e, à noite,
frequentava os bares de Storyville, na zona
da prostituição da cidade, para ouvir os
músicos e, com atenção, aprender as canções
e aprender a tocar os instrumentos. Em 1922,
com o fechamento de Storyville, decidiu
tentar a sorte como tocador de trompete em
Chicago, a convite de Joe "King" Oliver,
que na época era um músico de sucesso.
Em pouco tempo, Louis também se tornaria
referência no  mundo do jazz e do blues.


Também acima, Louis ensinando garotos
a tocar trompete na vizinhança da casa onde
morou com a esposa Lucille Wilson em Nova York,
de 1943 até sua morte em 1971; e um flagrante
do escritor Julio Cortázar diante do Olympia de
Paris, em fotografia de Antonio Gálvez em
abril de 1962, antes de um dos lendários
concertos de Satchmo. Abaixo, o músico
em casa, no seu quarto de ensaios, em
fotografia de 1958 de Charles Graham;
dois retratos de Louis na célebre sessão
de fotos de 1966 por Philippe Halsman;
Louis fotografado por William P. Gottlieb;
Louis no estúdio da NBC em 1967, fotografado
por David RedfernLouis em 1956, em
cenas do documentário Satchmo the Great, com
narração e direção de Edward R. Murrow, que
foi lançado nos cinemas brasileiros com o título
O Embaixador do Jazz. Também abaixo, em
visita ao Vale das Pirâmidesno Egito, em 1961,
Louis toca trompete em homenagem a Lucille,
que foi sua quarta esposa, com quem ficou
casado de 1942 até sua morte em 1971











Em “Pops: A Vida de Louis Armstrong”, lançamento Larousse do Brasil, o biógrafo vai além do lugar-comum. Repórter de cultura do “Wall Street Journal” antes de seu livro virar best-seller internacional, Teachout é conhecido do público de jazz como produtor e autor dos textos de encartes de CDs de nomes de prestígio como Karrin Allyson, Diana Krall e a brasileira Luciana Souza, entre outros.

Em 2009, Teachout recebeu prêmios e seu livro "Pops" entrou nas listas de melhores do ano do “Washington Post”, “The New York Times” e “The Economist”. Louis Armstrong era um homem muito consciente da importância que tinha na história da arte americana”, registra Teachout, que não poupa o leitor de revelações surpreendentes, além de enumerar dos primeiros tempos do artista tocando corneta e trompete à trajetória do sucesso, destacando o poder de Louis como protagonista maior do jazz clássico.






















Munido de um arsenal de entrevistas, publicações de época, fotos inéditas e registros audiovisuais, o biógrafo reconstitui o entorno no qual a presença calorosa do mito, seu “swing”, sua voz grave e rouca, suas improvisações geniais confrontavam a tradicional submissão do negro na cena cultural e política dos Estados Unidos – e do mundo inteiro, por extensão.

Em “Pops”, Louis surge introspectivo, contraditório, quase sempre muito amável. Durante mais de meio século inventou canções que se tornariam standards, tocou inúmeros solos com inúmeras bandas, fez parcerias antológicas com outros gigantes do jazz como Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Duke Ellington, participou de filmes, programas de rádio e TV e enfrentou críticas de ativistas negros por não militar no movimento dos direitos civis. “Ele trabalhou muito e morreu feliz, dormindo em casa, em Nova York”, destaca Teachout.















Fruto da miséria social, mas também de um fervilhante caldeirão musical, a saga do genial Louis Armstrong se espraia em detalhes minuciosos em “Pops”, biografia assinada por Terry Teachout. Infância miserável, adolescência difícil como cantor de rua, depois trompetista de cabaré. Com o fechamento do “bairro de tolerância” Storyville, em 1917, Louis fica sem emprego e segue à deriva para Chicago com outros negros adeptos da novidade do jazz. Acaba fazendo história.

Lançado por King Oliver em 1922, Louis foi contratado por Fletcher Henderson em 1924. Em 1925 funda seu próprio conjunto, o Hot Five, passa a gravar discos e, a partir daí, sua fama não parou de crescer. Na biografia, Teachout destaca que Louis Armstrong cresceu e chegou à juventude ao mesmo tempo em que o jazz começava a ganhar forma.









Armstrong não inventou o jazz, não foi sua primeira figura importante, e não é correto afirmar que foi o primeiro grande solista do gênero”, decreta no prólogo o autor, sem ignorar que Louis foi o mais popular e influente dos primeiros solistas de jazz. As inovações rítmicas e melódicas, a voz granulada e repleta de modulações, assim como o expressivo sorriso e o impagável senso de humor também têm destaque no livro.

Teachout lembra que, no auge da forma, em 1950, as performances de Louis tomam a forma do virtuosismo dos músicos eruditos, mas transformadas por largos vibratos de complexas passagens de conjunto, mudanças súbitas de tempo, alterações harmônicas inesperadas, um senso de ritmo irresistível.




























Louis Armstrong e suas célebres parcerias
com outros gigantes do jazz: acima,
ao lado das duas maiores cantoras do jazz,
com Billie Holiday e com Ella Fitzgerald;
com Duke Ellington em Paris, em 1960,
e no estúdio, em 1961, quando gravaram
dois álbuns e seguiram juntos em uma
turnê internacional; e em 1970, fotografado
por Jack Bradley no estúdio com Miles Davis.

Abaixo, no camarim em Nova York, em
1958, fotografado pelo amigo Dennis Stock;
e Louis nos estúdios da NBC, em Nova York,
em 1967, em fotografias de David Redfern











Os dotes literários do músico também são destacados: na sala de casa ou nos camarins, ele batucou em sua máquina de escrever dois livros de memórias, vários manuscritos biográficos, artigos para revistas e jornais e extensas cartas, além de 650 fitas com seus próprios depoimentos — gravações a que Teachout teve acesso e usadas pela primeira vez por um biógrafo.

Pops” também revela casos hilariantes e outros dramáticos – quiproquós decorrentes do apreço de Louis por marijuana, os impedimentos do preconceito racial, empresários metidos com a máfia negociando seus contratos, represálias de gângsteres, embates públicos com jazzistas como Dizzie Gillespie e Miles Davis e com autoridades como o então presidente dos EUA Dwight Eisenhower, num caso que marcou época e mostrou um Louis Armstrong corajoso, libertário e consciente de seus direitos. 

Teachout investiga os motivos de cada atitude arriscada de Louis – que fez da música sua tábua de salvação, capaz de tirá-lo da sarjeta onde nasceu, em Nova Orleans, e fazer dele uma celebridade mundial que na última década de vida bateu todos os recordes de vendagem de discos e viajou pelos cinco continentes em shows que arrastavam multidões e eram celebrados pelos críticos mais renitentes.







.





Armstrong preferiu a arte à política


Diversas biografias de Louis Armstrong já foram escritas, motivo pelo qual o esforço de Teachout correria o risco de cair em redundância. Correria, não fosse o pulo do gato: jornalista dos bons e músico treinado, ele dedicou anos às pesquisas sobre o mestre do jazz e cita passagens sobre Louis em uma centena de livros e de entrevistas. Diz que ouviu e ouviu de novo todas as 650 fitas gravadas pelo próprio músico, nas quais Louis se revela por inteiro.

Louis gravou todas estas fitas justamente para salvar para a posteridade tudo o que podia de si”, destaca Teachout, que fez uma decupagem inspirada da enorme quantidade de material que dispunha para escrever o que seria recebido como um dos melhores livros de 2009 na lista do jornal The New York TimesO biógrafo também aponta o orgulho que o músico sentia por ter visitado todos os continentes e chega a listar algumas das performances memoráveis ou inusitadas que ele realizou em palcos célebres e quadras de esportes pelos quatro cantos do planeta. Mas não menciona o Brasil entre os roteiros de shows de Louis.











Louis Armstrong em terras brasileiras em 1957:
acima, ao lado do mestre do choro Pixinguinha.
Abaixo, com Dorival Caymmi; no encontro com
o presidente Juscelino Kubitschek (fotografado
para a revista O Cruzeiro) e, entre outros
convidados e músicos, com Dorival Caymmi,
Herivelto Martins, Fernando LoboLamartine Babo,
Pixinguinha, Benedito LacerdaAtaulfo Alves.

Também abaixo, nos encontros com Elizeth Cardoso
e com Ângela Maria, coroada "rainha do rádio" no
ano de 1957; com Grande Otelo, Juscelino,
Pixinguinha e outros convidados; cantando
acompanhado por Sivucadurante o almoço
oferecido pelo presidente JK no Palácio das
Laranjeiras, no Rio de Janeiro; e durante uma
apresentação para convidados na Embaixada
dos Estados Unidos, também no Rio de Janeiro































Em sua viagem em 1957 às terras brasileiras, ele fez questão de encontrar alguns dos nossos mais importantes cantores, compositores e artistas tradicionais, e posou para fotos ao lado de nomes como Pixinguinha, Grande Otelo, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Elizeth Cardoso, Ângela Maria (que tinha acabado de ser eleita “rainha do rádio”) e até do presidente Juscelino Kubitschek. No Brasil, Louis se apresentou em uma série de shows com sua banda All Stars. Sua apresentação em São Paulo, que reuniu uma multidão no ginásio do Ibirapuera, fez história: foi um dos primeiros shows transmitidos ao vivo pela TV Record.

Seguindo a trajetória de sucessos do artista, o livro de Terry Teachout consegue colocar o leitor no cotidiano de Louis – percebendo e comentando, de forma sutil, por que o músico negro, embora tenha em certo momento levantado a voz para o presidente Eisenhower pelo descaso em implementar medidas antirracistas, preferiu sempre, em sua longa trajetória, a expressão artística à expressão na política.













Sua maneira de cantar era uma extensão da maneira de tocar: o fraseado é o mesmo e semelhantes são o balanço e o sentido de tempo”, conclui Teachout. O final de “Pops” é poético, feliz, com o autor recordando sua própria emoção com a notícia da morte do artista. Faz lembrar o final de “Louis, Enormíssimo Cronópio”, o conto de Cortázar, quando o narrador na plateia em Paris percebe que o concerto acabou mas a sala continua cheia – com todos perdidos no seu sonho.

O fantástico show de Satchmo, descrito e comentado de forma poética nas palavras iluminadas de Cortázar: “Montões de cronópios que procuram lentamente e sem vontade a saída, cada um com seu sonho que continua, e no centro do sonho de cada um Louis pequenininho soprando e cantando”. Louis morreu no dia 6 de julho de 1971, em Nova York.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Louis entre os cronópios. In: Blog Semióticas, 11 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/ha-um-conto-de-cortazar-publicado-em.html (acessado em .../.../…).












Louis entre os cronópios
: no alto,
Satchmo e sua Big Band com Billie Holiday
em uma sequência de New Orleans, filme
de 1947. Acima, o artista homenageado em
pintura fauvista do russo Leonid Afremov
e uma das mais célebres fotografias do jazz,
registrada por Art Kane
para uma reportagem
da revista Esquire, no bairro do Harlem, reduto negro
de Manhattan, em 1958 – uma época fortemente
marcada pelo racismo nos EUA.

Estão reunidos na fotografia de Art Kane, entre outros,
Count Basie, Art Blakey, Art Farmer, Dizzy Gillespie,
Benny Golson, Coleman Hawkins, Hank Jones,
Thelonious Monk, Charles Mingus, Gerry Mulligan
e Lester Young. Art Kane declarou que uma das
ausências notáveis foi Louis Armstrong, que
estava viajando em turnê. O fotógrafo também
lamentou as ausências de Billie Holiday,
Ella Fitzgerald, John Coltrane, Miles Davis,
Duke Ellington, Benny Goodman e Ben Webster,
entre outros, que na manhã daquele dia
12 de agosto não estavam em Nova York



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