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3 de dezembro de 2011

O animal humano





Escravo é aquele que não pode dizer o que pensa.

(L'esclave est celui qui ne peut pas dire ce qu'il pense.)

–– Eurípides (circa 411-409 a.C.).     


Nem tudo são flores para a “prova de verdade” que a fotografia sempre pode representar. Desde a primeira metade do século 19, os pioneiros do registro fotográfico usaram a pretensa “verdade” da imagem fotográfica para ganhar fortunas reproduzindo, especialmente, os seres humanos considerados “exóticos, selvagens ou monstros” – muitos deles capturados como animais em seus países de origem e depois exibidos em feiras, circos e zoológicos das maiores e mais “civilizadas” capitais da Europa e Estados Unidos.

Por incrível que pareça, a última dessas grandes e populares exposições em jardins zoológicos com “humanos exóticos, quase animais” foi realizada em 1958, em Bruxelas, na Bélgica. A apresentação em uma jaula de uma “autêntica família de um vilarejo do Congo” foi interrompida antes da data prevista, apesar do estrondoso sucesso popular que levava todos os dias multidões ao “espetáculo”: críticas na imprensa e pressão dos países vizinhos provocaram o fechamento do próspero negócio. Não há registro sobre o destino da “autêntica família”.

Presentes em todos os manuais de história da fotografia, uma amostra das cenas registradas em daguerreótipos, dioramas, cartões postais, filmes de curta duração e outras técnicas pioneiras dos tristes espetáculos de “humanos exóticos, quase animais” foram reunidas pela primeira vez em uma exposição no Museu do Louvre, em Paris, no ano 2000, intitulada "Ces Zoos Humains de la République Coloniale" (Os zoológicos humanos da república colonial). O acervo, revisto e ampliado, retorna agora em "L'Invention du Sauvage" (A invenção do selvagem), uma impressionante exposição permanente aberta no museu Quai Branly, também em Paris, uma das capitais da Europa que também mobilizaram multidões para visitar jardins zoológicos também exibiam instalações com “humanos exóticos, quase animais”







    .



    .




    O animal humano – acima: 1) índios Galibi, que

    viviam no Oiapoque (território entre o norte do Brasil

    e a Guiana Francesa), são exibidos em uma jaula

    em espetáculo etnológico no jardim zoológico da

    Acclimatation, em Paris, em 1893; 2) e 3) nativos do

    Congo, África, exibidos em Bruxelas, na Bélgica,

    em um zoológico humano instalado em 1897;

    e 4) menina capturada nas tribos do Congo, África,

    é exibida em Bruxelas, em 1958, durante uma exposição

    que reconstruiu, na capital da Bélgica, o zoológico humano

    que fazia muito sucesso na segunda metade do século 19.


    No alto da página, o italiano apresentador de shows

    “excêntricos” Guillermo Antonio Farini posa com

    com pigmeus no Royal Aquarium de Londres,

    em 1888. Abaixo, o africano Ota Benga, nascido no

    Congo, grande sucesso de público durante exibição

    nos EUA, em 1904, no Louisiana Zoo, Missouri,

    e em 1906, no Bronx Zoo, em Nova York.

    Todas as imagens desta postagem fazem

    parte do catálogo da exposição permanente do

    museu Quai Branly "L'Invention du Sauvage"












Antes da exposição no museu Quai Branly, as imagens selecionadas do acervo haviam sido publicadas na Inglaterra pela Liverpool University Press em 2008 no catálogo “Human Zoos – Science and Spectacle in the Age of Empire” (Zoos humanos, ciência e espetáculo na era do império), resultado de uma minuciosa pesquisa feita durante décadas pelo historiador francês Pascal Blanchard. Sobre o mesmo tema há, também, o romance que Didier Daeninckx publicou em 1998, "Cannibale", que tem por tema a exposição colonial no Bois de Vincennes, em Paris, em 1931, que apresentava, em jaulas, famílias inteiras do povo Kanak capturadas nas ilhas do Pacífico Sul e transportadas como escravos para exibição nos "espetáculos" parisienses.  

No texto de apresentação para o catálogo da exposição "L'Invention du Sauvage", que traz mais de 600 cartazes, fotografias e fotogramas de época, Pascal Blanchard defende a tese de que o desumano e popular espetáculo que proliferava em vários países da Europa e nos Estados Unidos tinha um objetivo político e ideológico: justificar e fazer propaganda das missões de guerra e de ocupações imperiais ao sul da linha do Equador nas Américas, na África e na Ásia pelos países da Europa. Segundo Blanchard, que assina como curador científico da exposição no museu Quai Branly, os espetáculos de “zoológicos humanos” legitimaram a colonização e influenciaram o desenvolvimento de terríveis ideias racistas que perduram até nossos dias.



Hierarquia racial



Pascal Blanchard explica que durante o século 19 se desenvolveram noções sobre a raça e o conceito de hierarquia racial, com teses absurdas como aquela que defende que os negros africanos seriam o elo que faltava entre o macaco e os homens brancos ocidentais, ou o "homem normal", como consideravam os cientistas. Seguindo a cronologia das imagens do catálogo publicado por Blanchard, a exposição começa com as primeiras chegadas de povos "exóticos" à Europa, trazidos pelos exploradores, como o caso da família de índios tupinambá, do Brasil, que desfilaram, em 1550, para o rei Henrique 2º e a nobreza em Rouen, na França.







O animal humano: acima, fotografia
para anúncio publicitário do grande
"espetáculo" de Guillermo Antonio
Farini, com adultos e crianças da tribo
Boschiman (de Botswana, Namíbia
 e África do Sul) são exibidos em
Paris entre 1898 e 1905. Abaixo, a
capa do romance de Didier Daeninckx
sobre a exposição colonial de 1931 no
Bois de Vincennes, em Paris; e o 
 casal de noivos da tribo Zulu,
levados da África para exibição em
um parque em Londres. A fotografia,
atribuída à equipe da revista norte-
americana National Geographic,
foi a primeira imagem de uma
mulher de seios nus publicada
pela revista e provocou grande
escândalo em 1896 não pela
situação de escravidão, mas
pela simples exibição dos seios













Londres, que foi a cidade pioneira ao apresentar uma exposição de índios brasileiros Botocudos em 1817, iria transformar-se na "capital dos espetáculos étnicos", seguida pela França, Alemanha, Bélgica e Estados Unidos. A exibição em Londres, em 1810, e em Paris, em 1815, da sul-africana Saartje Baartman, conhecida como "Vênus Hotentote", também foi um "espetáculo" que marcou época, atraindo multidões de espectadores e firmando no imaginário popular o sinistro e bizarro aspecto de “humanos exóticos, quase animais”. A palavra Hotentote (associada ao título de Vênus, a deusa do amor da Roma Antiga), era o nome pelo qual a tribo da sul-africana Saartje Baartman era conhecida à época. 

Saartje Baartman, exibida totalmente nua como grande atração numa jaula para plateias incrédulas, e ávidas por aberrações e monstruosidades, tinha como característica principal nádegas muito proeminentes e marcou, segundo Blanchard, uma reviravolta nesse tipo de apresentação. Depois do sucesso popular da negra nua de nádegas exageradas, pessoas com deformações físicas e mentais também passariam a servir de atração para exibições em forma de espetáculo para as plateias das cortes europeias na época. A história real de Saartje Baartman foi transformada em livro (no formato de história em quadrinhos ou "romance gráfico", também conhecido como "graphic novel") e em filme, em 2010, ambos com o título "Vênus Negra" (Vénus Noire), pelo cineasta franco-tunisiano Abdellatif Kechiche.








O animal humano: negras sul-africanas
da tribo Khoisan (ou Hotentote, como
era conhecida) como Strinée (acima, em
fotografia de Louis Rousseau), com
nádegas extremamente proeminentes,
eram exibidas como atrações na Europa
 durante o século 19. A mais famosa negra
Hotentote nos zoológicos das capitais europeias
foi Saartje Baartman (gravura abaixo),
conhecida como Vênus Hotentote, exibida
pela primeira vez em Londres, em 1810.
Também abaixo, a capa do livro e o cartaz
original do filme de 2010. Livro e filme,
ambos com autoria do franco-tunisiano
Abdellatif Kechiche, foram baseados
na história real de Saartje Baartman














Esses "shows", apresentados com maior frequência desde o começo do século 19, nas capitais da Europa e nos Estados Unidos, se profissionalizaram e renderiam fortunas, com interesse cada vez maior do público, tornando-se uma indústria de espetáculos de massa. Os “animais humanos em jaulas” atraíam multidões em suas extensas turnês internacionais, mas é constrangedor constatar, como alerta Blanchard, que não há registro de que alguma vez tenham ocasionado qualquer impedimento ou sequer algum incômodo jurídico ou ético para os promotores dos tais "espetáculos".



Shows étnicos



Um dos “espetáculos” que percorreriam durante anos e anos as capitais e maiores cidades da Europa foi aberto em Paris, em 1895, quando um "vilarejo" africano foi montado em jaulas próximo à Torre Eiffel. Um sucesso que marcou época e provocava filas com antecedência, destaca Blanchard sobre a “aldeia dos animais humanos”, com apresentações sensacionalistas de mulheres quase sempre nuas ou seminuas e suas crianças assustadas, protegidas por homens por vezes manuseando seus instrumentos musicais estranhos, por vezes furiosos, anunciados como seres perigosos e canibais.










O animal humano: no alto, guerreiros
da tribo Nyambi, da África, exibidos
no jardim zoológico da Acclimatation de
Paris, em 1937. Acima, um grupo do povo
Kalina, chamados de índios Caribe pelos
colonizadores espanhóis, capturado na
região norte da América do Sul e exibidos
com grande sucesso de público também
no jardim da Acclimatation de Paris em 1882.

Abaixo, fotografia das jaulas da
exposição no Champs de Mars, também
em Paris, em 1895, com mais de
300 nativos da África capturados
no Senegal e no Sudão; a jaula com
a Vila dos Senegaleses na Exposição
Universal de 1905 em Liége, na Bélgica;
e um grupo de crianças da tribo Omaha,
capturado no território de Nebraska, nos EUA,
exibido como espetáculo em um zoo instalado
na Acclimatation, em Paris, no ano de 1883
















"É em um contexto expansionista e colonialista das grandes potências ocidentais e de pesquisa desenfreada dos cientistas da época com suas teses bizarras que essas exibições vão ganhar legitimidade necessária para existir e para atrair o interesse popular", afirma Pascal Blanchard no catálogo da mostra (clique aqui para acessar o catálogo). O apogeu das exibições de “zoológicos humanos” nas capitais da Europa e em outros países, explica o curador, ocorreu entre 1890 e até o final da década de 1930, perdurando ocasionalmente nas décadas seguintes, até ser extinto tardiamente no ano de 1958.


































O animal humano: no alto, cartão-postal
apresenta javanesas Kapong exibidas na
jaula durante a Exposição Universal de
Paris de 1889, que marcou a inauguração
da Torre Eiffel. Acima, mulheres da etnia 
Ashanti, de Gana, são exibidas com seus 
filhos no jardim zoológico da Acclimatation
de Paris, em 1903. Abaixo, casal de etnia
da Índia, exibido em jaula, na década
de 1920, também no zoo da Acclimatation;
a "instalação" com selvagens das tribos do
Senegal, em 1905, também na Acclimatation;
e uma seleção de pôsteres de época,
incluindo o cartaz da exposição
realizada no Museu de Quai Branly










.

 

Depois da década de 1930, e após o término da Segunda Guerra, os "shows étnicos" foram pouco a pouco deixando de existir por razões diversas: falta de interesse do público, surgimento do cinema falado, e posteriormente do "Cinemascope" em suas cores espetaculares, e também pelo desejo das potências da Europa de excluírem o "selvagem" da propaganda de colonização. Blanchard resgata documentos e notícias publicadas na época para revelar que, antes da extinção definitiva dos shows que exibiam “humanos exóticos, quase animais”, um percentual considerável das populações das maiores cidades da Europa pagaram ingressos para ver os seres humanos trazidos de lugares distantes, ao Sul do Equador, apresentados em jaulas: somente pelos registros oficiais, mais de 1 bilhão de pessoas assistiram aos espetáculos exóticos realizados entre 1800 e 1958.

Contraponto ao secular antropocentrismo exclusivamente europeu e acervo que provoca reflexões, tanto sobre o comportamento do ser humano e sobre o racismo como sobre a evolução do gosto das grandes plateias nos centros urbanos, a exposição permanente em cartaz no museu do Quai Branly seguirá um calendário itinerante para uma extensa turnê internacional. O calendário terá, por ironia do destino, o mesmo roteiro que seguiram os nativos de lugares exóticos, aprisionados e exibidos em jaulas, há até pouco mais de meio século, nos espetáculos dos “zoológicos humanos”, pelas capitais e pelas maiores cidades da Europa e dos Estados Unidos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O animal humano. In: ______. Blog Semióticas, 3 de dezembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/12/o-animal-humano.html (acessado em .../.../...). 

















26 de julho de 2011

Imagens do Oitocentos







Apenas em Paris eles fazem do jeito
que eu quero, que é um retrato exato,
mas com a suavidade de um desenho.

–– Charles Baudelaire, 1859.  
      
São imagens impressionantes, cada uma a seu modo, retratando escravos e seus senhores no século 19. Em uma das fotografias, datada de 1899, uma criança branca está montada sobre a babá negra – criança e babá enfeitadas, endomingadas, com aquele olhar de pergunta que têm às vezes as antigas fotografias, as duas em roupas de renda, insinuando através da brincadeira nada inocente o exato retrato de uma época. Em outra imagem, na verdade um cartão-postal datado de 1880, uma ama de leite negra traz outra criança branca, sorridente, amarrada às suas costas.

Um inventário sobre fotografias de negros e escravos no Brasil do século 19 foi reunido por Sandra Sofia Machado Koutsoukos, autora de um extenso dossiê intitulado "Negros no Estúdio do Fotógrafo", uma preciosidade publicada pela Editora Unicamp. Na maioria das fotografias selecionadas, os retratos dos personagens, quase todos na condição de escravizados, com poucas exceções, trazem aquela estranha melancolia que o tempo passado confere às faces e olhares de ilustres e anônimos.

A época em questão, pontuada de contrastes, era marcada pela divisão rigorosa da sociedade em duas categorias de pessoas: os senhores e seus escravos. Os primeiros, europeus em sua maioria, exerciam o poder com mão de ferro e não hesitavam em comprar, vender, subjugar, prender, reprimir ou matar o escravo ou o negro recém-libertado que ousasse contrariar suas vontades ou não se curvasse às suas exigências.









 
 

O segundo grupo, com pessoas nascidas na África ou descendentes diretos de africanos, formava a parte mais numerosa da população no Brasil de nossos avós e de seus pais e parentes, há pouco mais de 100 anos. Esta sociedade dividida entre escravos e senhores, traduzida em fotografias pelo dossiê publicado por Sandra Koutsoukos, também foi registrada pelas tintas e pinceis dos artistas e naturalistas que viajaram em expedições e missões pelo território nacional


Brasil em preto e branco  


Depois das míticas missões de naturalistas estrangeiros, quase sempre comandadas pelos europeus, que rastreavam o território coletando e documentando espécies vegetais e animais e retratando em pinturas e desenhos o povo nativo e seus costumes tropicais, entrariam em cena outros artistas com novas técnicas e maquinarias, uma delas batizada de fotografia ("photographie") por um desenhista, pintor e inventor no Brasil, pelo menos cinco anos antes da palavra e das técnicas fotográficas serem adotadas por outros pioneiros em países da Europa.
 

 

                 
Imagens do Oitocentos: acima,
autorretrato de Hercules Florence,
pioneiro das técnicas processos
fotográficos e inventor da palavra
photographie, em daguerreótipo
datado de 1875. Nas imagens a partir
do alto: 1) daguerreótipo de autor
desconhecido, datado de 1859, que
registra o fidalgo João Ferreira Villela
Artur Gomes Leal com Mônica, uma
escrava identificada como propriedade de
sua família (acervo Museu Afro-Brasil);
2) babá com criança, fotografia de 1882
de Alberto Henschel; e 3) retrato de casal,
fotografia em cartão de visita datado de
1879 de Militão Augusto de Azevedo;
e 4) cerimônia de adivinhação e dança
do século 17 em raro domingo de folga de
escravos em uma fazenda de Pernambuco,
uma das 109 ilustrações em policromia
do diário do Brasil Holandês do
alemão Zacharias Wagener

Abaixo, aquarela que Hércules Florence
produziu (quando acompanhava, contratado
como desenhista e pintor, a Expedição do
Barão Langsdorff pelo território nacional)
para identificar uma fazenda de café em 1829
situada na região da Serra da Mantiqueira,
na Província de Minas Gerais. Também
abaixo, mulher escravizada carrega seu filho
em Salvador, Bahia, em fotografia de 1884
de Marc Ferrez; e três registros fotográficos
sobre as imensas levas de africanos
capturados para trabalhar como escravos
que chegavam ao Rio de Janeiro em
navios negreiros: na primeira e na segunda
imagem, fotografias de autores anônimos
em meados do século 19; na terceira imagem,
fotografia de Marc Ferrez de 1882 registra
um grupo de escravos libertados antes do
desembarque no Rio de Janeiro, a bordo
do HMS London, navio inglês que perseguia
traficantes de cativos africanos nos oceanos
Índico e Atlântico, devolvendo-os à liberdade















A palavra, que vem do grego antigo φως [fós] ("luz") e γραφις [grafis] ("estilo", "pincel''), formando γραφη [grafê], que significa "desenhar com luz e contraste”, ao que se sabe teria sido usada pela primeira vez por Hercules Florence (1804-1879), francês naturalizado brasileiro. Integrante da lendária Expedição do Barão Langsdorff, Hércules Florence chegou ao Rio de Janeiro em 1824 com a tarefa de fazer o relato completo da aventura da expedição, que percorreu mais de 13 mil quilômetros do ainda desconhecido território nacional, entre os anos de 1825 a 1829

Além de concluir o único relato completo sobre a expedição científica, Hércules Florence também produziu a maior parte da documentação iconográfica com suas habilidades incomuns de desenhista, polígrafo e incansável inventor de novas técnicas e processos – uma de suas invenções, somente reconhecida recentemente, quase dois séculos depois de suas primeiras experiências, foi o processo fotográfico.

Mais de 100 anos depois da morte de Hércules Florence, o exame detalhado de manuscritos e relíquias de acervo do pioneiro foi feito pelo especialista Boris Kossoy. As peças do acervo e os relatos registrados em sua época pelas autoridades do Império e pelo próprio Florence, levaram Kossoy a comprovar o emprego pioneiro por Hércules Florence da palavra "photographie", pelo menos cinco anos antes que o vocábulo e também o processo a que se referiam fosse utilizado pela primeira vez na Europa.

Entre as experiências impressionantes realizadas por Hércules Florence está, entre várias outras, a fotografia, em 1833, em Campinas, São Paulo, da imagem de uma janela. O pioneiro, de acordo com seus próprios relatos, registrados em documentos cartoriais, utilizou uma caixa equipada com uma lente e um papel embebido em nitrato de prata. Cinco anos depois, em 1837, em Paris, França, Louis-Jacques Mandé Daguerre aperfeiçoa o sistema, que também vinha sendo testado por Joseph-Nicéphore Niepce, e vende a patente do “daguerreótipo” para o governo da França.


















A fotografia no fim do mundo 
 


A prática da escravidão, disseminada em todo o território brasileiro e garantida por leis até o final do século 19, também deixou como registros as imagens fotográficas: os escravos e seus senhores foram registrados pela maioria dos pioneiros da fotografia que atuaram no Brasil – à maneira do que fizeram antes, utilizando desenhos e pinturas, artistas como o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) e o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), como aponta a pesquisadora Sandra Sofia Machado Koutsoukos em "Negros no Estúdio do Fotógrafo" (Editora da Unicamp, 2010). 

Graduada em Belas Artes pela UFRJ, mestre em Artes e doutora em Multimeios, Mídia e Comunicação pelo Instituto de Artes da Unicamp, com pesquisa de pós-doutorado apoiada pela Fapesp, Sandra Koutsoukos apresenta em seu livro-tese um acervo de documentos pouco conhecidos e imagens raras, belas e impressionantes, garimpado em diversas instituições pelos quatro cantos do Brasil.

 
 




Acima, imagem reproduzida na capa do
livro Negros no Estúdio do Fotógrafo:
senhora da família Costa Carvalho em
Salvador, Bahia, na cadeirinha de passeio,
também chamada de "liteira", com dois
escravos descalços a seu serviço, em
daguerreótipo anônimo datado de 1860.

Abaixo, duas cenas de rua também com
liteiras de transporte com os senhores
carregados por seus escravos: em Manaus,
no Amazonas, em 1860, em fotografia de
George Leuzinger, e em Salvador, Bahia,
em fotografia de 1869 de Alberto Henschel.
Também abaixo, daguerreótipos que
registram o trabalho de escravos em
fazendas de café, na região da Serra da
Mantiqueira, nas províncias dos estados
de Minas Gerais e São Paulo




















"Negros no Estúdio do Fotógrafo" surge como um estudo pioneiro, reunindo imagens que permaneciam inéditas sobre as representações de pessoas negras, livres, forras e escravas, produzidas em estúdios de fotografia, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. “As cenas construídas nos estúdios, com os símbolos que expunham, eram 'narrativas', mensagens facilmente entendidas pelos parentes e amigos que recebiam os retratos dos entes queridos ou dos conhecidos”, explica Sandra Koutsoukos. “Os retratos deviam deixar explícita a posição que a pessoa ocupava, ou que pretendia demonstrar que ocupava. Embora fossem cenas 'construídas', ou por isso mesmo, costumavam deixar claro o papel de cada um”.

A pesquisadora também destaca em cada fotografia os sinais legíveis, a “narrativa construída” sobre o que o corpo de um escravo ou ex-escravo podia conter, das marcas e cicatrizes às mutilações pelo trabalho ou por açoites, até indicativos simbólicos como o sapato, que em pé de negro costumava indicar liberdade. O livro está organizado em três capítulos, tão breves quanto reveladores. São eles "A fotografia no Brasil no século 19", "Entre liberdade e escravidão, na fotografia" e "Na casa de correção da corte, a Galeria dos Condenados". Em cada capítulo, Sandra Koutsoukos enumera fotografias e estudos de fontes agrupadas em três categorias.





Na primeira categoria listada por Kotsoukos, estão fotografias de negros transformados em escravos para o trabalho doméstico que foram levados aos estúdios por seus senhores, os quais queriam aquelas fotos em seus álbuns de família. Na segunda categoria estão as fotografias que foram exploradas na chave do "exótico" e vendidas como souvenir a estrangeiros. Na terceira categoria, fotografias etnográficas, produzidas para servir de suporte a teorias racistas que na época estavam em voga e que são repetidas ainda hoje de forma criminosa por grupos racistas de extrema direita e por fascistas em geral. 
 

Acervo de escravos e libertos



A Galeria dos Condenados representou a maior surpresa para Sandra Koutsoukos, autora de "Negros no Estúdio do Fotógrafo". Na extensa trajetória de anos de pesquisas e viagens pelo Brasil e por acervos do exterior, relata a autora, foi um susto a descoberta das fotos de negros escravos na condição de presos em dois álbuns por ela localizados e que permaneciam praticamente inéditos há mais de um século. 














Assombra o leitor, no relato de Sandra Koutsoukos, não só as minúcias descritivas mas também as imagens fotográficas que ilustram o texto sobre a tal Galeria dos Condenados – impressionante também pela curiosidade adicional da feitura dos álbuns na época, decorrentes do fato de que o próprio fotógrafo era um dos prisioneiros. Os motivos que levaram à montagem dos álbuns, entretanto, ainda permanecem como enigmas.

"No decorrer do trabalho de pesquisa nos arquivos, bibliotecas e coleções, a surpresa maior foi quando pus as mãos nos dois álbuns da Galeria dos Condenados, com fotos de presos que estavam na Casa de Correção da Corte na década de 1870, constantes da Coleção Dona Theresa Christina na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro", destaca Koutsoukos.










Memórias da escravidão: as amas
de leite negras eram encomendadas e
compradas pelos nobres e senhores de
engenho para servir à casa grande e para
cuidar de suas crianças brancas
 










"Surpresa, pela riqueza, qualidade e quantidade de fotos. Susto, pelo trabalho que não contava que iria ter. Como falar daquelas fotos? Falar o quê, se eu nem sequer imaginava para que os álbuns haviam sido montados? Por onde começar", ela recorda, reconstituindo os passos que levaram à conclusão da pesquisa e à sua posterior transformação no livro agora lançado pela Unicamp.

Sandra Koutsoukos também destaca a importância do estudo na abordagem pioneira entre liberdade e escravidão no universo da fotografia: para uma pessoa negra livre ou forra "parecer livre", havia a necessidade de se fazer aceita (ou, ao menos, tolerada) pela sociedade e, dessa forma, tentar abrir nela o seu espaço. Estar representado em uma imagem fotográfica trazia para o indivíduo uma posição simbólica que o distinguia na esfera social.









"Comparo, no livro, algumas fotos de negros livres e de negros forros com fotos de escravos domésticos. Nas fotos, os pés, calçados ou descalços, costumavam expor a condição social do retratado. Pelo menos, os símbolos pé descalço ou sapato eram dessa forma exibidos e entendidos", explica a autora. 



Amas de leite e amas-secas



Sobre as amas de leite e amas-secas, Sandra Koutsoukos destaca que elas são maioria no acervo enumerado ao longo dos anos de pesquisa. "No texto, tento traçar a complexidade do tema da amamentação (por mãe, por ama, por animal, por objeto) à época, e os problemas que advinham dele para as partes envolvidas: o bebê branco é o interesse da fotografia encomendada", aponta. 








A questão, ela explica, volta-se para o entendimento dos motivos pelos quais as amas foram retratadas sempre de forma que se pretendia tão "positiva" - tentando passar ideias de intimidade, harmonia e afeto, num período em que já se condenava o uso de amas de leite e se tentava estimular a construção da imagem da "nova mãe", a mãe branca que amamentava seus próprios filhos.

Aos raros e pioneiros estúdios fotográficos do século 19, destaca Koutsoukos, iam pessoas de todas as camadas sociais, desde a alta sociedade até os mais humildes. No livro, o que se vê são retratos impressionantes de uma época: negros libertos e escravos domésticos, além da sequência final com as fotos de presos da primeira penitenciária do Brasil.







Por meio de vasta pesquisa, a autora traça o caminho daqueles retratos, sua significação, sua circulação e seu armazenamento em álbuns. Ao explorar as histórias por trás das imagens, o livro dá vida a cada um dos personagens – trazendo à memória do leitor seus próprios álbuns e retratos.

Ou, como conclui a autora ao final de seu relato em "Negros no Estúdio do Fotógrafo", trata-se de um acerto de imagens que não só impressionam, mas que são também reveladoras sobre as dimensões dos problemas do Brasil atual, na medida em que as lições do passado costumam equacionar as melhores soluções para os desafios do presente.


Arturos, um tributo à tradição


Enquanto o livro “Negros no Estúdio do Fotógrafo” resgata um acervo inédito sobre os primórdios da fotografia no Brasil, um outro trabalho de pesquisa registrado em belas imagens em preto-e-branco pelo fotógrafo e pesquisador Mário Espinosa apresenta a beleza e a tradição da Comunidade Negra dos Arturos em Minas Gerais. Uma seleção de 20 imagens belas e surpreendentes de Espinosa ganhou uma exposição recente e incomum na praça do Big Shopping, em Contagem, Minas Gerais. 

 





Nascido em 1943 em Montevidéu, Uruguai, e naturalizado brasileiro desde 1974, quando se casou com uma brasileira, Mário Espinosa, que é afro-descendente e professor universitário, pesquisa há décadas as manifestações culturais que ele define como "afro-diaspóricas" – aquelas que sobrevivem em remanescentes de comunidades quilombolas.

A mostra, que ele define como ''um estudo sobre a abolição da escravatura no Brasil'', destacou as tradições culturais de um dos mais importantes patrimônios históricos de Contagem. As 20 fotografias, que registram a festa da Abolição da Escravatura realizada pela comunidade em maio de 2007, foram doadas pelo próprio Mário Espinosa para os Arturos. 

 




"Foi um amigo de Minas Gerais, também jornalista, quem me passou a sugestão para visitar a comunidade quilombola dos Arturos. Fui conferir e foi uma paixão à primeira vista. Desde então tenho viajado a Contagem com muita frequência, pelo menos duas vezes por ano, e com duas datas marcadas: na festa do Rosário e na festa da Abolição da Escravatura. Não tem mais jeito de evitar: além da relação de pesquisa, também já estabeleci com a comunidade uma relação afetiva muito forte", destaca o fotógrafo.

Nas fotografias de Mário Espinosa, a música e as danças religiosas do congado estão representadas em cenas expressivas que revelam a intimidade dos Arturos, remanescente de um antigo quilombo que é considerado um dos patrimônios históricos e também, de forma até contraditória, um cartão postal de Contagem, mais conhecida por ser uma cidade industrial.

 
Escravos e seus descendentes


A comunidade dos Arturos foi fundada há cerca de 120 anos, em meados do século 19, pelos escravos Artur Camilo Silvério e sua esposa Carmelinda Maria da Silva. Seus descendentes, filhos, netos e bisnetos, constituem cerca de 70 famílias que se dedicam a preservar sua identidade cultural de origem africana, transmitida de geração em geração há quase dois séculos.

"Estas fotos que doei para a comunidade dos Arturos fazem parte de um acervo muito maior, que hoje soma mais de 5 mil imagens", explica Mário Espinosa, que tem planos de realizar uma grande exposição itinerante por outras cidades do Brasil e de outros países sobre o tema e publicar um livro com uma seleção representativa de seu acervo sobre a comunidade quilombola.




"Já encaminhei o projeto completo para um edital de incentivo e agora estou aguardando o resultado. Se tudo der certo, começaremos em breve a apresentar esta grande exposição itinerante que deve reunir cerca de 70 fotografias ampliadas em grande formato, com um catálogo que registre a exposição e uma amostragem geral sobre estes anos de pesquisa e contato com a comunidade dos Arturos", explica o fotógrafo, que para a publicação do catálogo já conta com parceria com o jornalista Oswaldo Faustino.

"Em comum a todas as fotos está a memória das tradições de origem africana que sobreviveram até os nossos dias. E tudo registrado em preto-e-branco, porque só o preto-e-branco traduz a beleza e a melancolia de um tema como este. A cor é muito festiva. Prefiro o preto-e-branco pelo resultado plástico e porque é a técnica sobre a qual tenho mais domínio. Creio que imagens coloridas não conseguiriam jamais alcançar o efeito que tenho procurado", completa.

por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Imagens do Oitocentos. In: Blog Semióticas, 26 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/imagens-do-oitocentos.html (acessado em .../.../...).










Imagens do Oitocentos: fotografia com data
de 1899, extraída do álbum de família
do autor do Blog Semióticas, mostra
uma criança branca montada a cavalo
sobre as costas de uma babá negra



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