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22 de setembro de 2014

Cândido Aragonez de Faria e o Cinema






O primeiro mérito da pintura em um 
quadro é ser uma festa para os olhos. 

–  Eugène Delacroix (1798-1863).     


Um brasileiro é o grande destaque na exposição de inauguração da primeira fundação dedicada aos primórdios do cinema. A Fundação Jerôme Seydoux-Pathé, aberta ao público a partir desta semana em Paris, França, traz um nome brasileiro como artista principal em meio a um dos mais importantes acervos mundiais de filmes desde a invenção do cinema, no final do século 19, incluindo câmeras, fotografias, cartazes, maquetes e milhares de documentos sobre a história da indústria cinematográfica.

O brasileiro em destaque é Cândido Aragonez de Faria (1849-1911), nascido em Sergipe e considerado internacionalmente como um dos mais representativos artistas da charge e dos cartazes dos primeiros tempos do cinema. Na exposição inaugural da Fundação Jerôme Seydoux-Pathé – que está sendo chamada pela imprensa internacional de “templo dos filmes mudos” – Cândido Aragonez de Faria é o nome em primeiro plano, com as centenas de belíssimas ilustrações e cartazes que ele criou para filmes produzidos no final do século 19 e começo do século 20.

O artista sergipano, que a exposição em Paris apresenta como “referência fundamental do Primeiro Cinema”, deixou sua cidade-natal, Laranjeira, e seguiu com a família em meados do século 19 para o Rio de Janeiro, onde estudou na Academia Imperial de Belas Artes. Em 1882, decidiu tentar a sorte na França e, em Paris, tornou-se o principal ilustrador da Pathé, na época em que a exibição dos filmes passava das feiras populares e circos para os primeiros prédios de teatros dedicados exclusivamente às sessões de cinema.












O brasileiro Cândido Aragonez de Faria
e o Cinema: no alto, saguão de entrada da
exposição que abre ao público a Fundação
Jerôme Seydoux-Pathé em Paris. Acima,
retrato do artista, datado de 1890, e dois
pôsteres de divulgação da exposição.

Abaixo, cartazes de lançamento criados
por Cândido Aragonez de Faria para
Les victimes de l'alcool, de 1902, e
Les Apaches de Paris, de 1905, filmes
de Ferdinand Zecca, diretor dos primeiros
grandes sucessos do cinema da Pathé;
seguidos por La poue aux oeufs d'or
(A galinha dos ovos de ouro), filme de
1906 de Gaston Velle; e uma
pequena amostra das centenas de
cartazes publicitários em litografia
e policromia que o artista brasileiro
produziu, da última década do século
19 até 1911, sob encomenda da Pathé















A maior parte das ilustrações e cartazes criados por Cândido Aragonez de Faria, agora apresentados na exposição que inaugura a Fundação Jerôme Seydoux-Pathé, foi produzida de forma artesanal, em litografias sobre pedra e em surpreendentes nuances de policromia. Dos últimos anos do século 19 até o ano de sua morte, em 1911, o artista sergipano foi o principal artista plástico ligado ao cinema e o principal ilustrador contratado pela Pathé – considerada a mais importante empresa cinematográfica do mundo, com produção de mais de 10 mil filmes de 1896 aos dias de hoje.

A Pathé, mais antigas das empresas de produção de filmes e equipamentos de cinema ainda em atividade, com todo o seu acervo de mais de 120 anos, foram comprados na década de 1990 pela família Seydoux. O acervo foi transformado na fundação que, a partir desta semana, estará aberta à visitação, com direito a uma sala de cinema para projeção de filmes mudos e acompanhamento permanente, ao vivo, de um pianista, da mesma forma como aconteciam as projeções nas primeiras décadas do século 20.



Um artista na trajetória da imprensa



Pouco conhecido no Brasil, Cândido Aragonez de Faria foi também um nome fundamental para a trajetória da imprensa – no Brasil, na Argentina e na França. Antes de seguir para Paris, Cândido e o irmão, Adolfo (que também seguiria para Paris, trilhando uma carreira bem-sucedida com um estúdio de fotografia), investiram em um ousado empreendimento jornalístico: no Rio de Janeiro, fundaram uma revista de caricatura e sátira que marcou época na década de 1870 – “O Mosquito”. Em 1878, Cândido deixa “O Mosquito” aos cuidados do irmão e vai para Porto Alegre, onde também funda outros dois importantes jornais ilustrados: “Diabrete” e “Fígaro”.











 



Nos três empreendimentos, Cândido Aragonez de Faria conquistou sucesso de público, mas também muitas dívidas e muitos desafetos políticos. Por conta das dívidas e dos desafetos, depois de um ano no Rio Grande do Sul, Cândido vai para a Argentina e, em Buenos Aires, trabalha como ilustrador e técnico de artes gráficas em vários jornais e revistas.

Em 1882, aos 33 anos, ele toma uma decisão radical: deixar Buenos Aires para tentar a sorte na Europa, fixando residência na França e abrindo seu próprio estúdio de mestre de ofício em Paris – o Ateliê Faria, que conseguiu enfrentar e superar a forte concorrência de outros artistas e seus tradicionais estúdios de produção, entre eles, alguns dos grandes pioneiros da Arte Moderna como Henri de Toulouse-Lautrec (1864–1901), mestre da pintura, da litografia e das técnicas mais avançadas para o design gráfico dos cartazes publicitários.

















Das artes gráficas ao Cinema



Com seu ateliê em Paris, Cândido Aragonez de Faria passou a conquistar uma clientela fiel e, gradativamente, estabelece seu prestígio com a prestação de serviços em desenho, ilustrações e artes gráficas. Sua clientela em Paris vai incluir charges e caricaturas sob encomenda para jornais e revistas, ilustrações para livros, impressão de partituras e de programas para óperas, concertos e peças de teatro, criação e impressão de cartazes publicitários em geral e, finalmente, ilustrações e cartazes surpreendentes para os espetáculos de cinema dos irmãos Auguste e Louis Lumière.

Menos de um ano depois da invenção do Cinematógrafo e das primeiras projeções dos filmes pelos irmãos Lumière, em 1895, nos cafés parisienses, começaram a surgir em Paris e em outras grandes cidades de vários países os concorrentes que arriscavam-se no promissor negócio da produção e exibição de filmes. Entre a clientela de Cândido Aragonez de Faria, nesta época, também estavam os vários artistas que trocaram os palcos de teatro e de shows de variedades pela novidade do Cinematógrafo, como Georges Méliès (1861-1938), e empresários como os irmãos Pathé – Charles, Émile, Theóphile e Jacques.



















Admirador do trabalho em artes gráficas do brasileiro, Charles Pathé passa a ser um dos mais assíduos clientes do Atelier Faria. Para não perder o artista para a concorrência que proliferava, o empresário decide então oferecer um contrato de exclusividade para que o atelier do brasileiro passe a atender apenas às encomendas de ilustrações e impressão para os investimentos de sua companhia, a Société Pathé Frères, que concentrava todos os esforços e recursos financeiros na produção e exibição dos espetáculos de cinema. 
 
A partir de 1902, quando a Pathé se torna a principal indústria de produção cinematográfica da Europa, assim como a maior produtora fonográfica do mundo, Cândido Aragonez de Faria é contratado com exclusividade por Charles Pathé para criar todos os cartazes, folhetos e material publicitário que acompanhariam os filmes e equipamentos produzidos pela companhia. É este acervo criado pelo artista brasileiro, com centenas de belas ilustrações e cartazes adotados como modelo para a divulgação dos filmes no mundo inteiro, que está atualmente em destaque em Paris na exposição de inauguração da Fundação Jerôme Seydoux-Pathé.



por José Antônio Orlando



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Cândido Aragonez de Faria e o Cinema. In: Blog Semióticas, 22 de setembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/09/candido-aragonez-de-faria-e-o-cinema.html (acessado em .../.../…).



Para visitar a exposição da Fundação Jerôme Seydoux-Pathé, clique aqui.








 






A partir do alto, cartazes originais criados
por Cândido Aragonez de Faria. Acima e
abaixo, a fachada do prédio em Paris da Fundação
Jérôme Seydoux-Pathé, restaurado com projeto
de instalação e interiores por Renzo Piano





13 de setembro de 2012

Revistinha de vovô






Quem conduz e arrasta o mundo e os homens
não são as máquinas, mas sim as ideias.

–– Victor Hugo (1802-1885).    


Uma notícia policial trouxe “O Tico-Tico” de volta no tempo. As duas primeiras edições da primeira revista em quadrinhos do Brasil, publicadas em 1905, foram furtadas da Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. O crime ocorreu em 2011, mas não foi divulgado na época para não atrapalhar as investigações. Até hoje as revistas, extremamente raras e consideradas preciosidades do acervo da FBN, não foram recuperadas. A suspeita da Polícia Federal é de que o furto tenha sido ação de criminosos que se passaram por pesquisadores na seção de periódicos da instituição e simplesmente guardaram as duas edições da publicação em bolsas ou casacos, saindo sem serem notados.

Marco inicial das publicações dedicadas às crianças e fetiche confesso, com suas páginas coloridas, na infância de uma lista interminável de escritores e de personalidades da cultura brasileira, a revista, que o poeta Carlos Drummond de Andrade havia definido como “a segunda vida dos meninos do começo do século 20”, também foi notícia em 2005, ano do seu centenário, quando “O Tico-Tico” e seus personagens reapareceram, depois de décadas de esquecimento, em reproduções nas páginas de dois livros especialíssimos que se tornaram obras de referência.

A duas publicações, com títulos muito parecidos, mas muito diferentes no formato e na abordagem do conteúdo, resgatam uma amostragem do trabalho magistral de pioneiros das histórias em quadrinhos e das artes gráficas no Brasil: “O Tico-Tico, Cem Anos de Revista” (Editora Via Lettera) e “O Tico-Tico: Centenário da Primeira Revista em Quadrinhos do Brasil” (Opera Graphica). Escrito pelo colecionador de quadrinhos Ezequiel de Azevedo, mineiro de Juiz de Fora e formado em Física pela Universidade de São Paulo (USP), “Cem Anos de Revista” apresenta e analisa, em 64 páginas com ilustrações coloridas, as galerias de imagens dos principais quadrinhos, colunas, adivinhações, páginas para recortar e armar e personagens que tiveram seu auge de popularidade nas primeiras décadas do século 20, antes de serem defenestrados pela invasão norte-americana do império Disney e dos super-heróis da Marvel.







Revistinha de vovô: no alto, ilustração
da capa do álbum de luxo O Tico-Tico:
Centenário da Primeira Revista em

Quadrinhos do Brasil. Acima, fac-símile
da primeira edição da revista, com data
de 11 de outubro de 1905, e outras três
capas de sucesso da publicação pioneira
na primeira década do século 20. Abaixo,
a capa da edição de final de ano em 1914 e
as capas de dois Almanaques O Tico-Tico,
o primeiro, publicado em 1911, e uma
edição edição especial publicada em 1938













Entre estes personagens que passaram de sucesso no imaginário nacional ao mais completo esquecimento, um dos destaques é o loiro Chiquinho, sucesso absoluto de popularidade em histórias inéditas publicadas até o fim das edições semanais, em 1957. Principal chamariz desde o primeiro número de “O Tico-Tico”, Chiquinho ainda viveria a maior polêmica na trajetória da revista. Depois de décadas ficaria provado que o Chiquinho, tão brasileirinho, era na verdade um decalque, copiado por Luís Gomes Loureiro e outros desenhistas, a partir das histórias de um outro personagem criado pelo norte-americano Richard Fenton Outcault (1863-1928).

As histórias inéditas terminaram em 1957, mas Chiquinho ainda retornaria com algum sucesso nas décadas seguintes, nas compilações do "Almanaque O Tico-Tico". Chiquinho, conforme destaca Ezequiel de Azevedo, tem comprovadamente sua matriz original em “Buster Brown” (1902), do mesmo Outcault que passou à história como criador de “Yellow Kid” (1895), que rivaliza na disputa pelo título de primeiro personagem de histórias em quadrinhos com o "Nhô-Quim", criado no Brasil em 1869 pelo italiano naturalizado brasileiro Angelo Agostini (1843-1906). O argumento dos defensores de "Yellow Kid" é que ele foi o primeiro personagem com histórias narradas com o texto em balões, enquanto o "Nhô-Quim" de Agostini trazia o texto em legendas abaixo de cada quadro das ilustrações. 







A polêmica sobre a "adaptação" do personagem de Outcault nas páginas de "O Tico-Tico", aponta Azevedo, só veio à tona depois da Segunda Guerra. Mas o argumento é indefensável: Chiquinho, seu cãozinho Jagunço e a garota Lili têm, no traço dos personagens e nas tramas das aventuras, as mesmas características dos personagens criados por Outcault, batizados pelo autor como Buster Brown, Tige e Mary-Jane. Acontece que o Buster original parou de ser publicado em 1910, enquanto Chiquinho sobreviveu bravamente até dezembro de 1957, recriado em aventuras inéditas pela criatividade dos artistas nacionais de “O Tico-Tico”.



Celebridades de outras épocas



Tanto “O Tico-Tico, Cem Anos de Revista” como “O Tico-Tico: Centenário da Primeira Revista em Quadrinhos do Brasil”, apresentam a revista às novas gerações e descrevem o sucesso imediato de personagens originais do Brasil, como Zé Macaco e Faustina, Kaximbown, Jujuba, Carrapicho, a crioulinha Lamparina e o trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona, entre muitos outros. “O Tico-Tico” também foi uma publicação pioneira ao apresentar celebridades estrangeiras que nasceram no começo do século 20 – todas com nomes abrasileirados pela revista, caso de, entre outros, Little Nemo (“O Pequeno Nemo”), Popeye (“Brocoió”), Mickey Mouse (“Ratinho Curioso”) e Felix The Cat (“Gato Maluco”).

 






A versão nacional e o personagem original:
Chiquinho, destaque na revista O Tico-Tico
 desde 1905, e Buster Brown, que foi criado e
publicado a partir de 1902 nos EUA pelo
norte-americano Richard Fenton Outcault




O principal destaque do livro de Azevedo são as ilustrações coloridas e os perfis de colaboradores que marcaram época na revista, entre eles artistas magistrais como Angelo Agostini. Coube a Agostini a honraria de ser um dos principais pioneiros dos quadrinhos no Brasil e no mundo. Seus trabalhos gráficos, que misturavam desenhos e pequenos textos, surgiram ainda nas últimas décadas do século 19 e teriam um marco com “As aventuras de Nhô-Quim”, publicadas entre 1869 e 1883.

Nhô-Quim estreou na historinha ilustrada “Impressões de uma viagem à Corte”, cujo primeiro capítulo foi publicado na revista “Vida Fluminense”, em 30 de janeiro de 1869, apresentando o personagem caipira que se muda para a cidade do Rio de Janeiro e que fica chocado com as novidades da civilização urbana. Com o sucesso de "Nhô-Quim", no mesmo ano seria publicada a primeira ilustração apresentando um outro personagem lendário criado por Agostini: o aventureiro Zé Caipora.






Um gênio da arte da ilustração:
Angelo Agostini, pioneiro na criação de
personagens e de ousadias gráficas




A importância da obra de Agostini é tão grande que, para alguns pesquisadores, Nhô-Quim e Zé Caipora foram o ponto de origem para a criação da revista “O Tico-Tico”. Nhô-Quim também passou a ser o símbolo dos quadrinhos no Brasil e comprova a surpreendente atualidade do trabalho de Agostini, que ainda tem outros méritos de pioneirismo: além de Nhô-Quim rivalizar com Yellow Kid e outros heróis estrangeiros na disputa pelo posto de primeiro dos personagens dos quadrinhos, muitos especialistas defendem que também foi ele o inventor da revista de quadrinhos, pois, em 1886, relançou as aventuras de Zé Caipora em fascículos individuais, encadernados com seis capítulos cada. 



Agostini, primeiro entre seus pares
 


Zé Caipora também consta em outra disputa como o primeiro dos heróis de aventura dos quadrinhos, décadas antes de personagens lendários como "Little Nemo" (1905), Tarzan (1912), Zorro (1920), Jim das Selvas e Flash Gordon (1934), Batman (1939) e super-heróis como Superman (1938), Capitão América e Mulher Maravilha (1941), entre outros. A lista de marcos pioneiros na trajetória de Agostini traz ainda a amada de Zé Caipora, a índia chamada Inaiá, primeira heroína do Brasil e do mundo com conotações eróticas.

Agostini foi homenageado no ano 2000, com a publicação de um catálogo ilustrado pelo Senado Federal. “Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros 1869-1883”, organizado pelo jornalista e pesquisador Athos Eichler Cardoso, traz na íntegra as histórias dos personagens criados por Angelo Agostini, reunindo o que foi publicado nas revistas “Vida Fluminense”, “O Malho” e “Don Quixote”.











 

Revistinha de vovô: acima, Hully Gee,
mais conhecido por Yellow Kid, criado
em 1895 por Richard Fenton Outcault.
Abaixo, uma amostra das aventuras e das
ousadias gráficas de Zé Caipora e de
Nhô-Quim, no traço de Angelo Agostini












Por conta da estreia de Nhô-Quim, o dia 30 de janeiro foi escolhido como data comemorativa das HQs nacionais. Agostini, sempre atuante na florescente imprensa brasileira, abraçou o projeto e foi um dos mais ativos mentores da novidade da primeira revista em quadrinhos: criou o projeto gráfico e o logotipo de “O Tico-Tico”, além de desenhar as primeiras capas, muitas das ilustrações e algumas histórias completas, como “História do Macaco”, “Chico Caçador” e “A História do Pai João”.



J. Carlos, meu amor, e outras tiras



Além da presença fundamental de Agostini, o livro de Azevedo também chama atenção para outros nomes da equipe de “O Tico-Tico” que estiveram entre os principais artistas nacionais do século passado, caso do carioca J. Carlos, na verdade José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), considerado nosso maior caricaturista e também ilustrador, designer gráfico, escultor, escritor, letrista de samba, autor de teatro de revista, inventor das melindrosas e de muitas capas, páginas e personagens de sucesso em “O Tico-Tico”.

À frente da revista com Agostini desde o primeiro número, J. Carlos foi um de seus principais ilustradores, criando e publicando a série “O talento de Juquinha” e diversos personagens de tiras e histórias completas, entre eles Jujuba e seu pai, Carrapicho, e a impagável negrinha Lamparina, que é considerada sua maior criação nas HQs. Além de Agostini e J. Carlos na linha de frente, também são surpreendentes as criações originais de Luiz Sá, Max Yantok, Alfredo e Oswaldo Storni, Leônidas Freire, Lino Borges, Theo e muitos outros.









 Revistinha de vovô: acima, o pioneiro J. Carlos,
considerado o maior de todos os caricaturistas
brasileiros, e seu maior sucesso nas páginas de
O Tico-Tico, a garota negra Lamparina (1910).
Abaixo, o jornalista e pesquisador dedicado às
histórias em quadrinhos, Álvaro de Moya; e o
cartunista, chargista, pintor, dramaturgo, caricaturista,
escritor, cronista, desenhista, humorista e jornalista
Ziraldo, que sempre apontou a revista O Tico-Tico
como sua primeira e principal influência

 









Os saudosistas mais exigentes, entre os colecionadores e pesquisadores, por certo vão preferir a edição de luxo “O Tico-Tico 100 Anos – Centenário da Primeira Revista de Quadrinhos do Brasil”, organizada pelos professores universitários Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos. O álbum conta com colaboração de especialistas como Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Diamantino Silva, Sérgio Augusto, Franco de Rosa, Sônia Buyten e Marco Aurélio Lucchetti, que assinam capítulos analíticos e reproduzem depoimentos de grandes nomes da literatura e da imprensa que acompanharam as edições semanais e os famosos “Almanaques Tico-Tico”.



Trajetória no século 20



O livro de Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio alerta sobre a fragilidade de nossa memória cultural e destaca que a pioneira entre as revistas em quadrinhos nacionais também é citada em muitos poemas, crônicas, contos e romances, contando entre seus leitores os nomes de ilustres escritores como Carlos Drummond de Andrade e toda a geração dos modernistas, mais Rui Barbosa, Érico Veríssimo, Lygia Fagundes Telles, o sociólogo Gilberto Freyre, o folclorista Luiz Câmara Cascudo, o bibliófilo José Mindlin e centenas de outros, incluindo ainda expoentes da literatura infantil, dos cartuns e do grafite, numa lista extensa de fãs que tem, entre outros, de Ruth Rocha a Jaguar e Ziraldo, de Maurício de Souza a Millôr Fernandes e Henfil.







Além de ilustrações primorosas, “O Tico-Tico, Cem Anos de Revista” traz um brinde simplesmente irresistível para os fãs de HQ: um encarte em fac-símile com a reprodução completa e colorida da raríssima primeira edição da revista, fundada no Rio de Janeiro pelo grupo editorial que também editava “O Malho” (lançada em 1902), sob comando do jornalista Luiz Bartolomeu de Souza e Silva (1866-1932). Sobre o nome da revista há duas versões: seria uma referência ao passarinho típico do Brasil ou ainda uma alusão às escolas Tico-Tico, que apareceram no final do século 19 com a novidade de receber crianças pequenas para alfabetização.

A primeira edição de “O Tico-Tico” é uma história à parte: por erro de impressão, o dia 11 de outubro de 1905, data de lançamento da revista, foi grafado como quinta, e não como quarta-feira. A nova revista – alertam os estudos de Ezequiel de Azevedo, Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos – foi um sucesso imediato pelo ineditismo e pelas qualidades artísticas de seus colaboradores, mas também graças à logística do grupo “O Malho” e sua equipe de profissionais, incluindo parque gráfico e estrutura de distribuição.








Revistinha de vovô: a estreia dos heróis
estrangeiros em O Tico-Tico começa 
com Felix The Cat, rebatizado como
"Gato Maluco", e Mickey Mouse, que foi
apresentado como "Ratinho Curioso"




Disney e super-heróis: ameaça fulminante
 

Uma curiosidade: esgotado no lançamento, o primeiro número da revista rendeu um lucro que não estava previsto pelos editores, tanto que teve sucessivas reimpressões nos meses seguintes. As novas edições de “O Tico-Tico”, semanais a partir do início de 1906, atingiriam a impressionante tiragem inicial de 30 mil exemplares, chegando muitas vezes em sua trajetória ao número de 100 mil exemplares vendidos, sem contar reimpressões de exemplares antigos e reedições em formato almanaque – um sucesso que poucas vezes iria se repetir na trajetória de outras publicações, mesmo considerando as tiragens e vendagens da atualidade.

O Tico-Tico”, que custava 200 Réis, trazia o atrativo de colunas fixas e personagens variados em quatro páginas coloridas e quatro páginas impressas em vermelho, verde e azul. A partir da Segunda Guerra, a chegada dos super-heróis norte-americanos em novas revistas e formatos avançaria como uma ameaça para o sucesso das edições ingênuas de “O Tico-Tico”. O último número semanal saiu em 1957, seguido do lançamento de uma ou outra edição especial, até o final definitivo da revista, em 1977.

Sem nenhum rival à altura, O Tico-Tico” seguiria rentável e imbatível até o final da década de 1930, quando outros jornais e revistas começaram a investir em seções infantis e passaram a importar os quadrinhos produzidos em escala industrial nos Estados Unidos. O humor, a novidade dos quadrinhos, o tom brasileiro de personagens e os joguinhos para preencher ou recortar estavam entre os trunfos principais da revista, mas havia também as atividades de caráter didático, que ajudaram a dar prestígio à revista e garantir seu reconhecimento e importância no meio intelectual.






Já a partir do número 3 começaram a ser narrados em "O Tico-Tico", em forma de quadrinhos, fatos da história do Brasil como “O Descobrimento”, de Leônidas Freire, com ilustrações e legendas, como era comum aos quadrinhos da época. Leônidas também foi o autor de uma série que marcou época, “História Ilustrada – Páginas Relembradas”, publicada em 1910, que abordava o regime de escravidão que vigorou até o final do século 19.



Diversão & educação: fronteiras



Outro trabalho importante na trajetória da revista, pelo que apresentava de inovação em questões pedagógicas, é apontado por Roberto Elísio: trata-se da série em quadrinhos “A vida de Floriano Peixoto”, com texto de A. Plessen e ilustrações de Cícero Valladares. Sobre o caráter didático da revista, há também o depoimento saboroso do poeta Drummond, que em carta a Álvaro de Moya confessa a saudosa lembrança que sentia da revista que o ajudou a aprender a ler e a ver figuras, no lendário ano de 1910. 



 


Segundo Drummond, a primeira reminiscência literária que o sensibilizou não foi de um texto de literatura em verso e prosa, mas legendas e quadrinhos de um personagem de romance – uma versão infantil de “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe (1660–1731), que saiu na revista “O Tico-Tico”. A ilha e o náufrago, em "Infância", segundo poema do livro de estreia de Drummond (“Primeira Poesia”, 1930), fornecem um contraponto marcante à oscilação entre reminiscências da infância e isolamento existencial, temas dos mais frequentes na obra de Drummond.

O poeta, mineiro de Itabira, também declarou que devia a Robinson Crusoé sua primeira emoção literária, pois quando este “conseguiu se mandar da ilha”, o menino Carlito sentiu um nó na garganta, uma emoção produzida por uma personagem literária, um mito. Queria que o herói continuasse lá, solitário e dominador, mas não era bem a solidão da ilha que o encantava e sim a sugestão poética. Para Drummond, menino antigo, “O Tico-Tico” revelou a literatura.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Revistinha de vovô. In: Blog Semióticas, 13 de setembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/09/revistinha-de-vovo.html (acessado em .../.../…).


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Veja também:
 






Infância


Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.


       (Publicado em “Alguma Poesia”, de 1930, livro de
       estreia do poeta Carlos Drummond de Andrade)






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