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20 de dezembro de 2014

Natal surreal de Salvador Dalí






Não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza ou de liberdade. Apenas imagens.
.....
––  Walter Benjamin em "O surrealismo, último  
instantâneo da inteligência europeia" (1929) 


Uma série de aquarelas com cenas bíblicas que permaneceu inédita por mais de meio século e duas coleções de cartões de Natal criadas por Salvador Dalí (1904-1979) são as mais recentes novidades do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí com sede na Espanha. As obras foram incluídas no Catálogo Raisonné, que é a publicação completa dos trabalhos oficiais do artista, depois de aprovadas por especialistas em minuciosas avaliações comparativas e laudos técnicos. A série de 105 aquarelas foi pintada entre 1963 e 1964, sob encomenda para uma edição de luxo da Bíblia Sagrada em espanhol. Mas uma série de desentendimentos entre o artista e os editores interrompeu o projeto e só recentemente as aquarelas foram localizadas e autenticadas pelos técnicos da fundação.

Quanto às coleções de cartões de Natal, uma delas, com as aquarelas criadas por Salvador Dalí sob encomenda, no final década de 1950, para a editora norte-americana Hallmark, permanecia inédita. Quando recebeu a encomenda, Dalí exigiu um pagamento antecipado de 15 mil dólares para 10 cartões de felicitações com temas de Natal. O pagamento foi feito e a encomenda foi entregue no prazo previsto, mas os cartões foram considerados perturbadores e polêmicos demais para alcançarem sucesso comercial, motivo pelo qual a direção da empresa apresentou a série em uma exposição em sua galeria de arte, mas produziu apenas uma tiragem restrita. A outra coleção, com obras que em sua maioria também permaneciam inéditas, reúne aquarelas e ilustrações feitas entre 1958 e 1976 para os cartões que a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica enviava a um seleto grupo de clientes a cada final de ano. 

As obras que chegaram ao Catálogo Raissoné são surpreendentes e polêmicas, como sempre, em se tratando da arte de Dalí. “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista” – costumava dizer, em estado de provocação, o mestre Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol. Dalí sempre teve a seu favor uma técnica de pintura extraordinária, com habilidade e domínio criativo tão grandes quanto sua loucura e originalidade, e atravessou o último século influenciando artistas das mais diversas áreas, das mais diversas tendências e nacionalidades, da brasileira Tarsila do Amaral ao norte-americano Andy Warhol, entre muitos e muitos outros.










As imagens do Natal surreal segundo
Salvador Dalí: no alto e acima, o artista
fotografado em seu castelo em Cadaqués,
Espanha, no Natal de 1970, pelo turco
Ara Güller. Também acima, Dalí e Gala,
sua musa e agente que direcionou sua carreira
durante décadas, fotografados na cerimônia do
casamento civil, em 1934, por Eric Schaal.

Abaixo, Crucifixión, Cristo en la cruz,
aquarela criada sob encomenda para uma
edição de luxo da Bíblia Sagrada, em 1964.
Também abaixo, dois cartões de Natal
criados sob encomenda: o primeiro para
a empresa farmacêutica Hoechst Ibérica
(Anjo de Natal, 1967) e o segundo para
editora Hallmark na década de 1950












Dalí também merece destaque, entre os mestres da arte no século 20, como um dos que mais produziram, segundo apontam seus mais importantes biógrafos, Robert Descharnes e Gilles Néret. Suas obras, disputadas pelos grandes museus, estão em sua maioria nas coleções do Museu Salvador Dalí em Saint Petersbourg, na Flórida, Estados Unidos, e na Fundação Gala-Salvador Dalí, na Espanha. A fundação, criada pelo próprio Dalí, em 1983, administra três museus na Catalunha: a sede, em Figueras, e as duas residências de Dalí e Gala, sua esposa e musa inspiradora desde 1929, transformadas, após a morte do artista, no Teatro-Museu Dalí, também em Figueras, e no Museu Port Lligat, em Cadaqués.



Uma trajetória de polêmicas



O acervo do Catálogo Raissoné das obras de Dalí conta, entre suas peças mais valiosas, com mais de 1.500 quadros que se inscrevem entre as mais celebradas e reproduzidas pinturas do último século. Também fazem parte do acervo completo mais de uma centena de esculturas, milhares de desenhos e ilustrações feitas sob encomenda para livros e revistas, cartazes publicitários, obras realizadas em colaborações e parcerias para teatro e cinema, cartas e manuscritos autobiográficos, séries de performances em fotografias, entrevistas e vários outros projetos, todos com o traço e as formas inconfundíveis das criações de Salvador Dalí.










Os cartões de Natal criados por
Salvador Dalí: acima, a Sagrada Família
em aquarela criada para a empresa
Hallmark na década de 1950; e um cartão
de Natal criado para o UNICEF em 1981.

Abaixo, variações para as árvores
de Natal nas ilustrações criadas por Dalí
para a Hoechst Ibérica, as duas primeiras
em 1958 e as duas seguintes em 1968














No século passado, Salvador Dalí foi muito criticado por conta de sua dedicação ao “irracional” e por suas posições políticas reacionárias, entre elas o apoio ao general Francisco Franco, que chegou ao poder no rescaldo da Guerra Civil Espanhola. Contudo, passou ileso pelas incontáveis polêmicas e continua em evidência, como uma autêntica celebridade, quase 30 anos depois de sua morte, com as exposições de suas obras sempre atraindo multidões e batendo recordes de público pelo mundo afora.

A trajetória de controvérsias e provocações de Dalí teve início nas primeiras décadas do século 20, com a expressão radical de suas obras que firmou o conceito de Surrealismo nas artes plásticas. No final da década de 1930, entretanto, ele foi expulso do grupo dos surrealistas da Europa pelo poeta e mentor do “Manifesto Surrealista” (1924), André Breton – que passaria a se referir ao desafeto como “Avida Dólares” (ávido por dólares), um anagrama perfeito para o nome Salvador Dalí.






O Natal segundo Salvador Dalí em
aquarelas criadas para os cartões da
Hoechst Ibérica: acima, Felicitación
de Navidad Astronautica, de 1962,
reflete o impacto que as notícias
sobre os primeiros voos
espaciais exerceram no artista.

Abaixo, Dalí em seu ateliê em 
Paris,
em 1930, começando a pintar
La persistência de la memoria,
uma de suas obras mais célebres;
e três variações criadas por Dalí
para a tradição das árvores de Natal
em ilustrações para cartões que foram
impressos em 1967, 1971 e 1970













A grande arte: caos e criação



Depois do rompimento com os surrealistas, Dalí e Gala partiram em 1940, rumo aos Estados Unidos, para prestar serviços em Hollywood e “comercializar” sua produção em artes plásticas (veja mais em Semióticas: Alice volta ao futuro). A temporada de uma década na América foi brilhante e também polêmica, como tudo o que se refere à obra do mestre surrealista. De volta, com Gala, à sua terra natal, Figueras, na Catalunha, Espanha, na década de 1950, Dalí iria diversificar cada vez mais seus projetos – incluindo, entre eles, as séries de aquarelas e ilustrações para cartões de natal criadas sob encomenda.

Pelo que relatam Robert Descharnes e Gilles Néret, nas biografias e catálogos publicados pela Taschen (“Dalí – A Obra Pintada” e “Salvador Dalí – A Conquista do Irracional”), Dalí produziu 19 aquarelas e ilustrações para os cartões de Natal produzidos pela empresa farmacêutica Hoechst Ibérica, entre 1958 e 1976. A empresa, que tinha sede em Barcelona, decidiu imprimir uma grande tiragem em formato de 10,04cm X 6,93cm e os cartões eram enviados, a cada final de ano, para médicos e profissionais de saúde. Atualmente, estes cartões originais com as ilustrações de Dalí são relíquias valiosas, disputadas por colecionadores.







O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a homenagem a
Don Quijote em cartão criado
para a Hoechst Ibérica em 1960.

Abaixo, uma homenagem de Dalí
para Las Meninascélebre pintura de
1656 de Diego Velázquez, no cartão
criado em 1961; a árvore de Natal no
cartão criado em 1974; e o Papai Noel
em um dos cartões rejeitados pela
empresa Hallmark em 1960









As imagens da série sob encomenda para a Hoechst Ibérica não foram as únicas criadas por Salvador Dalí com temas de Natal. Ele também criou cartões de Natal exclusivos para amigos e colaboradores como Enrique Sabater, seu secretário particular a partir de 1969. Há ainda uma série de pinturas em óleo sobre tela, criada entre 1964 e 1967, com variações sobre imagens de São José e da Virgem Maria com o Menino Jesus. Como quase tudo que o mestre produziu, são pinturas que também impressionam, talvez porque, mesmo representando o tema religioso, a série, batizada de “Iesu Nativitas” (Natal, em latim), revela imagens que fogem ao lugar-comum da tradição das cenas de Natal.

O caso mais polêmico envolvendo Salvador Dalí e as encomendas para cartões de Natal parece ter sido mesmo a série produzida para a empresa norte-americana Hallmark. O fundador da empresa, Joyce Clyde Hall, desde o final da Segunda Guerra convidava artistas muito conhecidos para produzir imagens para os cartões de Natal da Hallmark. A iniciativa trouxe prestígio para a empresa e alavancou as vendas, com cartões criados por nomes como Pablo Picasso Georgia O'Keeffe, entre vários outros. Mas com a série criada em 1960 por Dalí surgiu um impasse.






O impasse com a encomenda a Dalí para a criação dos cartões de Natal aconteceu porque, assim que recebeu as imagens originais, pintadas a óleo e em guache sobre papel, a empresa passou a temer repercussão negativa ou até mesmo protestos do público. O pagamento de US$ 15 mil foi feito pelo Hallmark antecipadamente, por exigência do artista. Das 10 imagens criadas por Dalí, a maioria foi considerada pelos executivos da empresa “surreais” em excesso e terminaram rejeitadas e arquivadas, não sendo comercializadas no formato de cartões para produção em larga escala, como antes estava previsto. A série foi apresentada em uma exposição na galeria de arte da empresa, em Kansas City, Missouri, no Natal de 1960, e alguns cartões foram impressas para distribuição restrita. Desde então as imagens permaneceram inéditas.


Além dos cartões para a Hoechst Ibérica e para a Hallmark, Dalí também criou outras ilustrações natalinas sob encomenda para revistas e para anúncios publicitários. Alguns destes trabalhos já estavam no catálogo de suas obras-primas, caso das pinturas e aquarelas que tiveram versões publicadas em dezembro de 1948 na capa da revista “Vogue” norte-americana e dos anúncios de publicidade para as meias de nylon da marca Bryans, publicadas na edição de Natal da “Harper's Bazaar”, também em 1948, quando Dalí e Gala ainda moravam nos Estados Unidos.







Cartões de Natal segundo Salvador
Dalí: acima, o cartão criado em 1969
para presentear seu secretário
particular, Enrique Sabater

Abaixo, quatro cartões da série de Natal
criada por Dalí em 1960 para a Hallmark:
1) a árvore de Natal formada por borboletas;
2) a visita dos três reis magos; 3) o anjo
sem cabeça tocando alaúde para Maria
e o menino recém-nascido; e 4) a borboleta
noturna que visita a Madonna e seu filho.
Também abaixo, a Virgem Maria e Jesus
 em aquarela criada para o cartão
da Hoechst Ibérica em 1960



















As estranhas simetrias



Nas pinturas, desenhos e ilustrações com os temas de Natal criados por Salvador Dalí, existe a inevitável persistência de determinados símbolos que percorrem toda a sua trajetória: no lugar dos típicos cenários de neve, de pinheiros verdejantes, de laços e bolas coloridas, as imagens natalinas do mestre surrealista representam outros elementos, com sugestões arquitetônicas e formas geométricas em estranhas simetrias de corpos femininos, além dos adornos propositalmente incomuns que provocam saborosas ilusões de ótica e remetem a polêmicas que marcaram época.

O Natal surreal de Dalí é repleto de analogias que fogem dos limites da religiosidade e avançam em aproximações com o abstrato, o irreal, o sonho. Mesmo quando o que está representado é a Sagrada Família, formada por São José, a Virgem Maria e o Jesus Cristo recém-nascido, a imagem vai revelar outras simetrias – com cores imprevistas, com fragmentos de peixes e insetos, com anjos e árvores delineados em forma de ambiguidades, às vezes bizarras, e também com figuras lendárias da história da arte e da literatura, como a Infanta Margarita Teresa, imortalizada em “Las Meninas”, pintura de 1656 de Diego Velázquez, ou o Don Quijote de la Mancha criado por Miguel de Cervantes no livro de 1600.









O Natal surreal de Salvador
Dalí: acima, a capa de Dalí para a
edição que comemorou o aniversário
de 50 anos da revista Vogue, em abril de
1944, e a adaptação da ilustração do artista
na capa da Vogue de dezembro de 1946.

Abaixo, a mesma ilustração nas
versões originais criadas por Dalí;
na terceira ilustração, a dobra que
permite outra visualização da figura











O próprio Dalí declarou muitas vezes que a irracionalidade e o apelo ao universo do pensamento onírico sempre foram os princípios condutores de todo o seu processo criativo. Em dois dos documentários que ele realizou, em parcerias com o fotógrafo Philippe Halsman (“Chaos and Creation”, 1960) e o cineasta Jack Bond (“Dalí in New York”, 1965), Dalí explica, com muitos exemplos e em mínimos detalhes, as etapas de seu processo de criação e as técnicas envolvidas dos primeiros esboços à finalização, condenando toda arte que esteja pautada sobre as regras da tradição e do “bom gosto”.







O Natal surreal segundo Dalí:
acima, o anúncio publicitário
para as meias de nylon da marca
Bryans, publicado em dezembro de
1948 pela revista Harper's Bazaar.

Abaixo, mais três pinturas sob encomenda
para estampar cartões de Natal, a primeira
de 1967 duas seguintes criadas em 1964, da
série intitulada Iesu Nativitas, com o nascimento
de Jesus na gruta em Belém e com a fuga da
Sagrada Família para o Egito. Também abaixo,
uma estampa em homenagem a Dalí,
instalada em dezembro de 2013 na escadaria
do Philadelphia Museum of Art (EUA)














A tradição da ruptura



No filme em parceria com o fotógrafo Philippe Halsman, seu mais fiel colaborador desde a década de 1940, Salvador Dalí volta às suas declarações polêmicas da época do rompimento definitivo com o grupo surrealista (“a diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista”) para avaliar os avanços que a Arte Moderna e o Surrealismo proporcionaram ao século 20. Segundo Dalí, toda a influência e as referências que a arte produzida por ele legou à História vão muito além das exposições em galerias e do destaque de suas obras nos acervos dos principais museus internacionais: elas atingiram o comportamento individual de muitos, muito antes da "atitude rock" de estrelas da música e da cultura pop, e marcaram presença até em questões de ciência e tecnologia.

Na sequência final do filme, o artista das controvérsias e das polêmicas apresenta sua conclusão profética que continua extremamente atual, depois de mais de 50 anos. "O Surrealismo irá, pelo menos, ter servido para provar que a esterilidade e as tentativas de automatizações foram longe demais e ainda correm o sério risco de conduzir toda arte e toda civilização a um único sistema totalitário", alerta. Não resta nenhuma dúvida: o provocador Salvador Dalí permanece como um daqueles grandes mestres, raros e visionários, que sempre conseguem surpreender.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Natal surreal de Salvador Dalí. In: Blog Semióticas, 20 de dezembro de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/natal-surreal-de-salvador-dali.html (acessado em .../.../...).

















 Para uma visita ao acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí, clique aqui.






13 de março de 2014

Flagrantes de Cartier-Bresson






Fotografar é encontrar o momento
decisivo, é colocar na mesma linha
de mira a cabeça, o olho e o coração.
–– Henri Cartier-Bresson (1908-2004).  


Morto em 2004, aos 95 anos, aclamado como um dos maiores nomes da história da fotografia, Henri Cartier-Bresson é o grande homenageado do Centro Pompidou de Paris, que apresenta a mais completa retrospectiva já feita sobre sua obra. Uma unanimidade quando se fala em arte da fotografia, Cartier-Bresson inventou o conceito de “momento decisivo” (definido na citação acima, em epígrafe) e alterou completamente os critérios de qualidade e composição fotográfica. Como fotógrafo, ele viajou e registrou cenas de países dos cinco continentes, retratou famosos, anônimos e miseráveis, fez a cobertura jornalística de grandes festas populares, de guerras, de revoluções, e fundou, com Robert Capa, a Agência Magnum, cooperativa internacional de profissionais da fotografia que marcou época e mudou os rumos do fotojornalismo. Além de tudo, Cartier-Bresson também foi pintor, desenhista, cineasta, ator, poeta e antropólogo, entre outras habilidades às quais se dedicava ocasionalmente.

A exposição no Centro Pompidou, homenagem ao fotógrafo e ao pensador Cartier-Bresson, militante das esquerdas, do comunismo e do surrealismo, vai permanecer em cartaz até 9 de junho e depois segue para Madri e outras capitais de países da Europa (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), reunindo uma seleção de 500 fotografias em preto e branco e um vasto acervo de documentos diversos de Cartier-Bresson e sobre Cartier-Bresson, incluindo filmes, desenhos, pinturas, cartas, rascunhos, livros, catálogos, jornais e revistas. Uma das surpresas é uma ampla sala dedicada ao trabalho ainda pouco conhecido do cineasta Cartier-Bresson, incluindo a exibição dos documentários que ele realizou e as obras em parceria com nomes como o mestre do cinema francês Jean Renoir, de quem foi assistente de direção e ator em vários filmes.

Um fotógrafo deve respeitar a atmosfera de uma cena para integrar o cenário de fundo, acima de tudo, para evitar qualquer artifício que suprime a verdade humana. Também deve esquecer a câmera e quem a manipula” – repetia Cartier-Bresson em entrevistas. A vasta e sempre atual produção do fotógrafo, que inclui retratos, paisagens, estudos sobre construções de arquitetura, flagrantes impressionantes de fotojornalismo e registros de viagens por vários países, já mereceu estudos célebres dos mais importantes pensadores da fotografia – de Roland Barthes a Susan Sontag, de Paul Valery a Jean Baudrillard e Fredric Jameson – mas nunca havia sido reunida em uma amostra abrangente como a que apresenta o Pompidou.













Henri Cartier-Bresson em ação:
 no alto e acima, o fotógrafo em 1989,
em ação nas ruas de Paris, fotografado
por Charles Platiau. Acima, duas de
suas fotografias mais conhecidas,
ambas de 1932: Allée du Prado, 
Marseille, France; e o homem que
salta sobre a água em Derrière
la Gare Saint-Lazare.

Abaixo, Henri Cartier-Bresson
fotografado em 1932, quando retornou
a Paris, depois da temporada de um
ano na África; L'escalier en spirale
et les enfants, fotografia feita em um
orfanato em Paris, em 1955, trabalho
em parceria de Cartier-Bresson e sua
segunda esposa, Martine Franck,
também fotógrafa; a festa da
Peregrinação de Santo Inocêncio na
província de Grassano, Itália, em 1973;
e os anjos e freiras nas ruas de Paris,
na foto de 1955. Todas as fotografias
reproduzidas nesta página estão no
catálogo da exposição organizada pelo
Centro Pompidou de Paris

















Organizada cronologicamente, em três grandes núcleos, a exposição é uma parceria do Centro Pompidou com a fundação que mantém o acervo do fotógrafo – a Fondation Henri Cartier-Bresson, que foi criada por ele próprio em 2003, com sua esposa e a única filha. A exposição também inclui imagens inéditas do fotógrafo, considerado por muitos como “pai do fotojornalismo”, além das obras que ele realizou em conjunto com vários outros artistas – entre elas os registros de seu trabalho no cinema, como assistente de Jean Renoir e como diretor de documentários.



Surrealismo & fotojornalismo



O primeiro núcleo da exposição, que cobre o período de 1926 a 1935, destaca a ligação do fotógrafo com André Breton e outros artistas do Surrealismo, suas viagens pela Europa, África, México e Estados Unidos e sua descoberta da fotografia: segundo os biógrafos, a fixação de Cartier-Bresson com a atividade de fotógrafo surgiu em 1932, quando ele viu pela primeira vez na revista “Photographies” uma foto do húngaro Martin Munkacsi que o impressionou muito. A foto de Munkacsi registrava três rapazes negros no Congo, África, correndo nus contra a luz, em direção ao mar. Desde então, uma câmera Leica 35mm passou a ser sua companhia permanente.












Flagrantes de Cartier-Bresson: acima,
Livourne, Toscane, Italie, fotografia
em composição surrealista de 1933;
Couples par la Seine, de 1936; e
Femmes musulmanes en prière,
Srinagar, Cachemire, de 1948.

Abaixo, Mahatma Gandhi, líder pacifista
da resistência não violenta que levou
à independência da Índia do Reino Unido
e inspirou movimentos pela liberdade
no mundo inteiro, fotografado por
Cartier-Bresson em 1948; a multidão
na fila para atendimento em um banco
em Xangai, China, em 1948; e uma
procissão de Corpus Christi em 1952
em County Kerry Tralee, na Irlanda.

Também abaixo, imagens do pós-guerra
de Cartier-Bresson na Américaem
1947: 1) um homem negro enforcado
no Mississippi; 2) negros no Harlem,
em Nova York; 3) três mulheres
em Los Angeles, Califórnia. E a
mobilização em Washington, em 1957,
contra o racismo e pelos Direitos Civis
















O segundo núcleo, que vai de 1936 a 1946, destaca a atuação política de Cartier-Bressn: seu engajamento na luta contra o fascismo, sua participação como colaborador em jornais e revistas de militância comunista e socialista, sua atuação na Resistência Francesa contra os nazistas e sua extensa cobertura sobre a Segunda Guerra Mundial. Quando explodiu a guerra, ele alistou-se no exército francês e acabou prisioneiro das tropas nazistas, mas conseguiu fugir e juntar-se à Resistência.

O terceiro núcleo da exposição vai do fim da Segunda Guerra Mundial à década de 1970, quando ele decidiu abandonar as atividades de repórter fotográfico. Em 1947, há um capítulo especial em sua biografia e na história da fotografia – é quando Cartier-Bresson fundou a agência de fotógrafos Magnum, junto com Robert Capa, Bill Vandivert, George Rodger e David Seymour e começou o período mais sofisticado de seu trabalho, cumprindo pautas de fotojornalismo em vários países sob encomenda de publicações internacionais como as revistas “Life”, “Vogue” e “Harper's Bazaar”.
















Na apresentação à exposição no Centro Pompidou, o curador Clement Cheroux destaca que o objetivo principal da retrospectiva, além de demonstrar que a trajetória de Cartier-Bresson se confunde com os avanços da fotografia no século 20, é lançar luzes sobre alguns aspectos da obra do fotógrafo que permaneciam como referências cifradas apenas para especialistas e pesquisadores de sua obra – especialmente as questões políticas e o surrealismo. 



Fotografia como Grande Arte



Segundo o curador Clement Cheroux, as questões políticas ficam evidentes quando se observa cada uma de suas imagens a partir do contexto da época, na Segunda Guerra e em outros conflitos armadas ao longo do século 20, mas também nas cenas impressionantes de linchamentos de negros nos EUA, nos movimentos populares nas ruas da China ou da Índia, nos processos de independência das ex-colônias francesas na África, na Ásia, na América e nas barricadas dos estudantes nas ruas de Paris, em maio de 1968.



 


Acima, a célebre fotografia de 1931
de Martin Munkacsi no Congo,
África, que, segundo os biógrafos,
provocou fixação em Cartier-Bresson
e o levou ao ofício de fótografo.

Abaixo, o casal anônimo na véspera
de Ano Novo em Times Square,
Nova York, em fotografia de 1959;
e quatro célebres cenas parisienses
de Cartier-Bresson: o garotinho feliz
em Rue Mouffetard, Paris, 1954;
o trabalhador braçal em Les Halles,
Le Marché Central, fotografia
de 1952; e os beijos flagrados
em Jardin des Plantes, 1959,
e no bistrô em 1968




















O ponto de vista especialíssimo de Cartier-Bresson, que demonstra à perfeição os preceitos seculares da proporção áurea aplicada à fotografia, também deve muito ao Surrealismo, segundo Cheroux, que destaca a influência de André Breton na formação do fotógrafo. Uma influência reconhecida pelo próprio Cartier-Bresson em entrevistas e em suas últimas anotações – entre elas, uma confissão datada de 2003: "O surrealismo teve um efeito profundo em mim e toda a minha vida eu fiz o meu melhor para nunca mais traí-lo”.

Neste contexto, até mesmo algumas das imagens do fotógrafo mais conhecidas do grande público – como aquela foto em que um homem salta sobre a água na Gare Saint-Lazare em Paris, em 1932 – assumem novos sentidos e possibilidades de interpretação que não afastam nem diminuem seu valor “jornalístico”, mas elevam o registro fotográfico à condição explícita de grande arte. Estudioso dos cálculos geométricos e das perspectivas desde a juventude, Cartier-Bresson é um caso raro que conseguiu reunir, ao “realismo” dos flagrantes em fotojornalismo, um sem número de nuances e sugestões sobre as cenas de absurdos e impasses da condição humana. 
 

por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Flagrantes de Cartier-Bresson. In: Blog Semióticas, 13 de março de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/03/flagrantes-de-cartier-bresson.html (acessado em .../.../...).











Flagrantes de Cartier-Bresson: acima,
Simone de Beauvoir em Paris, 1946,
e uma cena prosaica registrada em
Camagey, Cuba, 1963. Abaixo, um
anônimo visitante na exposição de
Cartier-Bresson no Centro Pompidou,
em Paris; e Cartier-Bresson em ação
em Nova York, em 1961, em
fotografia de Dennis Stock








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