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4 de julho de 2012

Alice volta ao futuro






Preciso dizer que, quando acordei hoje de 
manhã, eu sabia quem eu era, mas acho 
que já mudei muitas vezes desde então. 

(Alice no País das Maravilhas)   



Os inúmeros trocadilhos e enigmas de matemática, de lógica, de gramática e de ocultismo cifrados nas viagens de “Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Alice Através do Espelho” (1872) encantaram a pequena Alice Pleasance Liddell (1852–1934) desde que ela ouviu pela primeira vez os relatos da imaginação de seu professor, o matemático, poeta e pioneiro da fotografia Charles Lutwidge Dodgson (1832–1898). As aventuras da garotinha que cai no buraco do coelho e descobre um estranho mundo de simetrias e disparates também passaram a encantar uma legião infinita de leitores quando foram publicadas por Dodgson sob o pseudônimo “Lewis Carroll” – na verdade, um anagrama em analogia para “Alice Liddell”.

O pseudônimo adotado pelo professor Dodgson ganhou lugar cativo entre os grandes mestres da literatura universal e as aventuras cifradas de Alice, que causaram espanto e admiração entre seus conterrâneos e contemporâneos, resistem incólumes. Transformada em clássico dos clássicos da fantasia e das heterotopias, “Alice” atravessou as décadas e os séculos ganhando novas edições e incontáveis versões, incluindo variações e paródias em livros, histórias em quadrinhos, peças de teatro, músicas, balés, filmes, séries de TV e até videogames (como "Alice: Madness Returns", game criado para várias plataformas pelo designer American James McGee, que transformou a história em uma saga de horror). As aventuras de Alice, seja no original de Lewis Carroll ou em suas variantes em outros formatos e mídias, há tempos vêm influenciando e seduzindo listas intermináveis de artistas, entre eles nomes díspares e mestres consagrados como Walt Disney (1901–1966) e Salvador Dalí (1904–1989).









Alice Pleasance Liddell fotografada
por Lewis Carroll aos 8 anos de idade e aos
18. No alto, Alice fotografada aos 20 anos,
em 1872, por Julia Margaret Cameron.

Abaixo, as irmãs Edith, Lorina e Alice
fotografadas em 1860 por Lewis Carroll;
Também abaixo, Alice, Dodgson e uma
das ilustrações criadas por John Tenniell
para a primeira edição de
Alice no País das Maravilhas






.


O mestre dos desenhos animados, que sempre reconheceu a literatura de Lewis Carroll como influência marcante, elegeu “Alice” para seu primeiro projeto de longa-metragem nos cinemas desde que foi para Hollywood, em 1923, mas sua produção seria atropelada diversas vezes por lançamentos dos concorrentes. “Alice”, na versão dos Estúdios Disney, só seria concluído em 1951, contando com a luxuosa supervisão de Salvador Dalí. O lançamento do filme, contudo, seria precedido por desentendimentos que interromperam a promissora parceria entre o mestre dos desenhos animados e o mestre surrealista.

Disney e Dalí romperam relações antes de “Alice” chegar aos cinemas: o nome de Dalí seria eliminado dos créditos e um outro projeto ambicioso da parceria, batizado de “Destino”, que começou a ser produzido em 1945 e que tentaria recriar a obra original do professor Dodgson, ficaria inacabado. Na autobiografia “Diário de um Gênio” (Tusquets Editores), Dalí lamenta o rompimento e afirma que sua parceria com Disney poderia ter dado origem a um filme diferente de tudo o que tinha sido visto no cinema. Anos depois, no final da década de 1950, Dalí e Disney voltaram a se entender e conviveram como amigos, mas os antigos projetos não foram retomados.












Dodgson, Disney, Dalí: D'Alice



A ideia de Dalí, a princípio endossada por Disney, era apresentar sequências que lembrariam sonhos, desenvolvendo uma técnica de projeção em que a imagem seria reconhecida como algo familiar e, lentamente, forçaria a visualização de formas cada vez mais estranhas, que poderiam revelar algo novo. O projeto foi conduzido por Dalí e por John Hench, veterano roteirista e artista de confiança de Disney para a criação em storyboard, durante meses, de 1945 até o final de 1946, mas dificuldades financeiras interromperam definitivamente a produção. Depois da morte de Disney e de Dalí, o projeto “Destino” foi retomado para fazer parte de “Fantasia 2000”, mas as controvérsias não demoraram a surgir.

Quando as equipes começaram, depois de meio século, a trabalhar nos arquivos e storyboards de “Destino”, descobriram que Disney planejava com o filme retomar a literatura de Lewis Carroll com uma Alice levada à vida adulta e envolvida em sonhos sobre as emoções do primeiro amor – enquanto Dalí tinha em mente um argumento em que o deus Chronos, personificação do tempo na mitologia grega, se apaixonava radicalmente por uma mortal.



 



A parceria interrompida de dois artistas geniais:
Salvador Dalí e Walt Disney fotografados na
Espanha, na década de 1950, e trabalhando
na criação e na montagem de protótipos nos
Estúdios Disneyem Hollywood, 1948 (abaixo)








.


Ou seja: eram dois filmes diferentes. Um, descrito por Dalí como "a exibição mágica do problema da vida no labirinto do tempo"; outro, descrito por Disney como "a história simples sobre uma jovem em busca do verdadeiro amor". “Destino” seria finalmente simplificado e concluído em 2003 por Baker Bloodworth e por Roy Edward Disney, sobrinho de Walt Disney, mobilizando uma grande equipe, com o francês Dominique Monféry assinando a direção e tendo na trilha sonora a composições do mexicano Armando Dominguez criadas sob encomenda para o projeto original, em performance da cantora Dora Luz. John Hech, já aposentado e com mais de 90 anos, foi convidado a acompanhar a produção e é creditado como co-autor do roteiro, junto com Dalí e com o editor e animador Donald W. Ernst. 

A versão final de "Destino", entretanto, dividiu opiniões. Para alguns, trata-se de uma preciosidade que deixa transparecer nuances adultos presentes tanto em “Alice” quantos nas obras-primas atribuídas a Salvador Dalí e a Walt Disney; para outros, uma versão convencional e melancólica sobre um projeto que poderia ter atingido outras dimensões. Na forma de uma animação de seis minutos e apresentando apenas 18 segundos do projeto original (a sequência das tartarugas), o enredo onírico apresenta a protagonista entre imagens abstratas e estranhas figuras suspensas pelo ar. “Destino” foi exibido em festivais e chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Curta de Animação em 2003, mas não foi lançado nos cinemas nem em DVD.



      




Dois gênios: acima, "Five O'Clock Shadows in
Disney-Dalí Land" (Sombras de cinco horas da
tarde na terra de Disney e Dalí
), pintura em óleo
sobre tela de 1996 de Todd Schorr, um retrato
irônico sobre os desentendimentos durante
a polêmica parceria entre Disney e Dalí.

Abaixo, uma imagem 
em que o encontro de
Disney e Dalí, metamorfoseados 
em tartarugas,
forma ao centro uma figura feminina, n
a
sequência final de Destino
Também abaixo,
a íntegra do filme que foi 
concluído e
lançado em DVD em 2003




      






Apaixonados pela literatura de Lewis Carroll desde a infância, Disney e Dalí se aproximaram depois de um jantar em 1945 na casa de Jack Warner, o todo-poderoso chefão da Warner Brothers. Dalí, que naquela época estava contratado para criar a sequência do pesadelo do personagem de Gregory Peck em “Spellbound” (1945), de Alfred Hitchcock, chegou a Hollywood precedido pelo sucesso como artista plástico e como criador de duas obras-primas do cinema e do Surrealismo: “Um Cão Andaluz” (1928) e “A Idade do Ouro” (1930), realizados em parceria com Luis Buñuel.



Política da Boa Vizinhança



A parceria com Salvador Dalí aconteceu em um período especialmente difícil para Walt Disney. O projeto de “Fantasia” (1940), que consumiu anos de produção e teve altos custos, não alcançou sucesso comercial. A situação piorou mais ainda com a drástica redução do mercado de exibição na Europa, em decorrência da Segunda Guerra. Disney perdeu as linhas de crédito do Bank of America e, para não perder os estúdios, passou a fazer todo tipo de concessão comercial e a colaborar com o FBI e as forças armadas.

É nesta época – no intervalo entre as produções de “Bambi” (1942) e “Cinderela” (1950), considerado o período mais fraco de sua trajetória na arte da animação – que Disney é forçado por seus credores a se envolver com a produção de filmes para treinamento militar e propaganda, incluindo “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos, 1943) e “Você Já Foi à Bahia?” (“The Three Caballeros”, 1945), projetos sob encomenda para a “política da boa vizinhança” do governo dos EUA com o objetivo de aproximação com o Brasil e demais países da América Latina.







Terminada a Segunda Guerra, Disney participa da Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses, com a meta de combater o comunismo no meio artístico, e presta voluntariamente diversos depoimentos na Comissão de Atividades Antiamericanas, um "comitê de caça aos comunistas" comandado pelo senador republicano Joseph McCarthy. Do primeiro encontro, em 1945, até o rompimento da parceria, em 1950, Disney e Dalí mantiveram sigilo sobre os projetos de “Alice” e “Destino”, que envolveram um grande número de contratados nas equipes técnicas, substituídas continuamente.

Para ensinar a Dalí as técnicas de animação do estúdio foi convocado John Hench, artista que tinha trabalhado com Disney em “Fantasia” (1940), “Dumbo” (1941) e “Bambi” (1942). Para protagonista de “Alice”, Disney queria Ginger Rogers, estrela dos musicais, contracenando com os desenhos animados, que por sua vez seriam baseados nas ilustrações de John Tenniel publicadas na primeira edição do livro de Lewis Carroll. A meta de Disney era aprimorar com “Alice” a tecnologia inaugurada por seus estúdios em “Você Já Foi à Bahia”, que trouxe Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda, cantando e dançando em cena com os desenhos do Pato Donald e do Zé Carioca.








   



Como não conseguiu contratar Ginger Rogers, que estava envolvida em outros projetos simultâneos, Disney passou dois anos fazendo testes e audições com mais de 200 atrizes. Por fim, escolheu Kathryn Beaumont como modelo de referência para o trabalho das equipes de desenhistas e dos técnicos de animação. Kathryn estava com 10 anos na época dos testes de seleção, no final de 1948. Ela havia participado de filmes da série “Lassie” e teve pequenos papeis em musicais. Após atuar na produção de “Alice”, também participou como modelo e dubladora de Wendy Darling, a garotinha de Peter Pan, filme de 1953 dos estúdios de Walt Disney.



Alice em heliogravura



Acontece que mesmo depois de todo o investimento, Disney não ficou satisfeito com as sequências misturando atores aos cenários em desenho animado para “Alice” e alterou os rumos do projeto, retornando ao roteiro com 100% de desenhos em animação. Quando o filme chegou aos cinemas, não foi um fracasso, mas também não alcançou o sucesso de público e crítica que era esperado. Entretanto, mesmo não estando entre seus maiores sucessos comerciais, a versão de “Alice” por Disney marcou o imaginário coletivo com qualidades que sobreviveram ao tempo e continua encantando crianças e adultos. Tal e qual o estranho livro escrito com exatas 36 mil palavras pelo professor Charles Lutwidge Dodgson.













Salvador Dalí com Alfred Hitchcock
em Hollywood, em 1944, na época em
que a parceria com Dalí rendeu ao Mestre
do Suspense ideias e sequências muito
especiais, entre elas as cenas do pesadelo em
"Spellbound" (Quando Fala o Coração),
filme de 1945. Abaixo, Dalí brincando com
crianças em 1952, em Paris, em foto de
Francesc Català-Roca; e no célebre estudo
"Dalí Atômico", que foi arquitetado e
produzido por Dalí em parceria com
Philippe Halsman em 1948










Depois da experiência interrompida com Disney, Dalí retornaria ao universo de “Alice” em vários outros projetos, incluindo o documentário “Impressões de Alta Mongólia” (1975), no qual apresenta a história sobre uma expedição em busca de cogumelos alucinógenos gigantes. Alusões a “Alice” também surgem em produções do mestre surrealista para estilistas de moda como Elsa Schiaparelli e Christian Dior, além de seus trabalhos em parceria com os fotógrafos Man Ray, Brassaï, Beaton e Philippe Halsman. Mas a tradução mais completa de Dalí para a obra de Lewis Carroll só seria conhecida em 2009, uma década após a morte do mestre surrealista.

Trata-se de uma série de ilustrações que Dalí produziu em policromia no processo conhecido como heliogravura, em que a impressão das imagens é feita através de placas gravadas em baixo-relevo. Identificada com a data de 1969, a série, que teria sido idealizada para uma edição especial de “Alice no País das Maravilhas”, foi descoberta nos arquivos que Dalí deixou na Catalunha, Espanha, e apresenta 13 ilustrações: uma capa e uma imagem para cada um dos capítulos do livro de Lewis Carroll.













"Alice" na versão de Dalí: acima,
imagem da capa e ilustrações
dos capítulos "Para baixo na toca
do coelho" e "A lagoa de lágrimas"




A série de ilustrações sobre “Alice” e outros trabalhos de Dalí, depois de uma negociação com os herdeiros, foram liberados para uma exposição permanente instalada na William Bennett Gallery, em Manhattan, Nova York, intitulada “O Universo Surreal de Salvador Dalí”. Os títulos de cada capítulo e as ilustrações do mestre surrealista resumem o itinerário da viagem de Alice:

"Para baixo na toca do coelho", "A lagoa de lágrimas", "Uma corrida de comitê e uma longa história", "O coelho manda Bill O Lagarto", "Conselho de uma lagarta", "Porco e pimenta", "Um chá maluco", "O jogo de críquete no campo da rainha", "A história da falsa tartaruga", "A dança da lagosta", "Quem roubou as tortas?" e "O depoimento de Alice", por certo, continuarão sua viagem rumo ao futuro, como tem sido nos últimos 150 anos da história – conforme previsto naquelas situações enigmáticas e nos diálogos fantásticos imaginados por um certo Lewis Carroll:

Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: Às vezes apenas um segundo...



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Alice volta ao futuro. In: Blog Semióticas, 14 de julho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/07/alice-volta-ao-futuro.html (acessado em .../.../...).


 





















"Alice no País das Maravilhas" na versão
de Salvador Dalí: a partir do alto, ilustrações
para os capítulos "Uma corrida de comitê e uma
longa história", "O coelho manda Bill O Lagarto",
"Conselho de uma lagarta", "Porco e pimenta",
"Um chá maluco". Abaixo, "O jogo de críquete
no campo da rainha", "A história da falsa
tartaruga", "A dança da lagosta", "Quem roubou
as tortas?" e "O depoimento de Alice"















19 de julho de 2011

Alice vai ao futuro

















Quando, em 1865, o matemático inglês apaixonado por jogos e enigmas e pioneiro da fotografia Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), hoje conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll, publicou o romance "Alice no País das Maravilhas", encontrou um sucesso inesperado e também muitos problemas. A começar pela primeira edição, de 2 mil exemplares, que mal saiu da gráfica, na época, e foi recolhida pelo ilustrador John Tenniel, sob a alegação de que a qualidade da impressão estava ruim.

Tenniel, patrocinador, destruiu a maioria dos livros. A edição seguinte, bancada pelo próprio professor Dodgson, esgotou em pouco tempo e rendeu ao autor um processo por ir contra os bons costumes e escrever um livro incompreensível. Depois vieram outras edições, mas os poucos exemplares que sobreviveram daquelas primeiras tiragens hoje são guardados a sete chaves. Em 1998, um deles foi leiloado por US$ 1,5 milhão. 

"Alice no País das Maravilhas" foi escrito pelo professor Dodgson com exatas 36 mil palavras, a pedido de Alice Pleasance Liddell, uma garotinha que na época tinha 10 anos e que era filha do reitor da escola onde Dodgson lecionava. O retrato de Alice Liddell, a fotografia mais conhecida feita pelo professor Dodgson (reproduzida acima), está completando 150 anos.







Alice vai ao futuro: acima e abaixo,
ilustrações da edição britânica da
década de 1960 que fez homenagem ao
centenário da primeira edição do clássico
Alice in WonderlandNa imagem do alto
da página, Alice, em tradução, desenhos e
projeto gráfico que o designer mineiro
Rafael Resende realizou a partir do texto
original e das ilustrações incluídas na primeira
edição do livro clássico de Lewis Carroll.

A partir do alto, Lewis Carroll, na verdade
Charles Lutwidge Dodgson, (o pseudônimo
"Lewis Carroll" era um anagrama para o nome
"Alice Liddell") em três autorretratos solitários e
em um passeio com sua amiga Louise, esposa do
escritor George MacDonald, e seus quatro filhos;
também acima, os irmãos Liddell, Alice, Lorina,
Harry (o irmão mais velho) e Edith, em fotografia
de 1860; e Alice Pleasance Liddell aos 8 anos,
em fotografia de Lewis Carroll datada
de julho de 1860








Charles Lutwidge Dodgson era amigo da família e se dizia perdidamente apaixonado pela inteligência de Alice, a quem fotografava com certa frequência. Durante um passeio de barco no rio Tâmisa, com Alice e outras crianças, o professor contou uma história engraçada e de puro nonsense sobre uma garotinha que segue um coelho e começa a viver uma aventura fantástica. Anos depois de sua morte, o professor Dodgson ganharia popularidade no mundo inteiro com seu pseudônimo: Lewis Carroll, autor de “Alice no País das Maravilhas”.



Nudez, jogos, ilusionismo



Apaixonado por magia, ilusionismo e todo tipo de jogos, Dodgson gostava de teatro e era frequentador de ópera. Nunca se casou, mas manteve uma relação amorosa por toda a vida com a atriz Ellen Terry, o que também escandalizava a sociedade de sua época. Algumas das acusações que se fazia ao professor Dodgson perduram até nossos dias – a mais cruel delas é que ele tinha um comportamento obsceno e pedófilo.







A acusação vem da amizade que o professor mantinha com Alice e outras garotinhas, mas tudo não passava de suspeitas: nunca ficou provado nenhum delito contra ele. As amizades eram aprovadas pelas famílias e algumas também autorizaram Dodgson a fotografar as garotas. Mas ele temia que a divulgação das imagens pudesse causar problemas às famílias e às crianças, motivo pelo qual pediu em testamento que, após morte, todas as fotografias fossem destruídas ou devolvidas às crianças e a seus pais.

Algumas das fotos de Alice e das outras meninas, por sorte, sobreviveram e foram reunidas em 1995 no livro publicado por Carol Mavor, “Pleasures Taken - Performances of Sexuality and Loss in Victorian Photographs". Versão da tese acadêmica que a autora apresentou na Duke University, o livro apresenta um estudo sobre as fronteiras entre a arte e o obsceno a partir das primeiras fotografias produzidas na Inglaterra sob o reinado da austera e puritana Rainha Vitoria (1819-1901).

A partir da análise das fotografia de Dodgson e de outros fotógrafos pioneiros da segunda metade do século 19 (incluindo Julia Margaret Cameron, autora da foto que ilustra a capa do livro), Carol Mavor faz uma defesa veemente da arte e da personalidade do autor de “Alice no País das Maravilhas”, descrito como alguém muito à frente de seu tempo. O livro de Carol Mavor inclui uma seleção de imagens surpreendentes, como a foto da menina Evelyn Hatch, fotografada por Dodgson em 1878 totalmente nua.




















No alto, a capa da primeira edição do
livro de Carol Mavor. Acima, a pequena
Evelyn Hatch, que foi fotografada por
Lewis Carroll em 1878 totalmente nua.
Acima, ilustrações da edição britânica para
o centenário de Alice; e The Elopement,
de 1865, um dos vários estudos fotográficos
refeitos por Lewis Carroll durante décadas.

Abaixo, Alice Liddell (à direita) e suas
irmãs Edith e Lorina fotografadas por
Dodgson em 1858; e as irmãs Lorina, Edith
e Alice já adultas, em 1872, em fotografia
de Julia Margaret CameronTambém abaixo,
Alice fotografada por Dodgson em 1858 e
duas ilustrações criadas por John Tenniel
para publicação original de 1865 de
Alice no País das Maravilhas: o encontro
com Humpty Dumpty, personagem folclórico
de uma canção de ninar, descrito por Lewis Carroll
como um ovo gigante; e com Dodô, pássaro
gigante que não voava e habitava as Ilhas Maurício,
no Oceano Índico, sendo que a espécie foi dizimada
por marinheiros famintos no século 16


















As edições brasileiras já reuniram as obras completas de Lewis Carroll, à exceção de seus estudos de lógica e matemática e dos seus manuais manuscritos com instruções sobre passes de mágica e truques de ilusionismo – alguns dos quais se tornaram muito comuns no mundo inteiro, como a modelagem de um camundongo com um lenço para em seguida fazê-lo pular misteriosamente com a mão e as dobraduras para fazer chapéus e barquinhos de papel. 

Além de “Alice no País das Maravilhas” e “Alice no País do Espelho”, foram publicados no Brasil “Algumas Aventuras de Silvia e Bruno”, “Rimas no País das Maravilhas”, “A Caça ao Turpente” e “Obras Escolhidas”, coletânea de seus contos e histórias curtas. Outro livro, o mais polêmico de todos, foi publicado em 1997 pela editora 7 Letras: "Cartas às suas amiguinhas", que como indica o título reúne o conteúdo das cartas de Lewis Carroll às meninas com quem ele se relacionou. Nas cartas, o autor revela a mesma personalidade, tão ingênua quanto enigmática, que consagrou na literatura universal a presença de Alice.











Piadas e trocadilhos visuais
 

Traduzidas para mais de 50 línguas, as incríveis aventuras da garota que foi parar em um mundo inacreditável após cair na toca do coelho ganharam muitas versões e variantes pelo mundo afora. A mais recente, dirigida pelo cineasta norte-americano Tim Burton, entusiasta do fantástico e do sobrenatural, dividiu opiniões – exatamente como tem sido há décadas e décadas com o próprio livro de Lewis Carroll, que já provocou processos e acusações delirantes de pedofilia, má influência, elogio da loucura e outras blasfêmias.

O teor mais provocante das aventuras de Alice, contudo, perde-se inevitavelmente nas traduções. Muitos enigmas e situações ambíguas contidos no livro são quase que imperceptíveis para os leitores atuais, com suas tiradas filosóficas e por vezes absurdas, suas palavras-valise (“alicinações” é uma delas) e suas muitas referências cifradas, incluindo as piadas e os trocadilhos lógicos que só fazem sentido na língua inglesa. 


 




Nas livrarias e na cultura pop, quase 150 anos após a primeira edição do clássico de Lewis Carroll, viagens ao mundo dos sonhos, monstros, seres encantados, magia e poderes sobrenaturais – que por incrível que pareça provocaram a repulsa sobre Alice de muitos leitores e críticos mais puritanos no último século – nunca fizeram tanto sucesso, incluindo a saga milionária saída dos livros com as aventuras do bruxo adolescente Harry Potter, que descobre um outro mundo quando entra para uma escola de magia, e dos romances da saga "Crepúsculo", sobre a garota que cai em um mundo fantástico e delirante, povoado de criaturas surreais, quando descobre o amor por um vampiro.

A Alice imaginada por Lewis Carroll teve dezenas de versões no cinema, no decorrer do século 20, e permanece como presença marcante adaptada para mídias diversas e formatos diversos, incluindo histórias em quadrinhos, teatro, TV, videogames e também no mundo da moda, como é o caso do célebre editorial fotografado por Annie Leibovitz para a revista "Vogue" em 2003, com estilistas do primeiro time no papel de personagens do livro apresentando criações de figurinos de alta costura para a Alice interpretada pela modelo Natalia Vodianova. 

Nos últimos anos, a publicidade em torno da superprodução para o filme de Tim Burton sobre "Alice no País das Maravilhas" (fotos abaixo) impulsionou e continua impulsionando o lançamento de novas edições e novas versões do clássico da literatura fantástica assinado por Lewis Carroll. Entre os muitos lançamentos, algumas edições são dignas de nota, entre elas a versão do artista plástico Luiz Zerbini (editora Cosac Naify), com ilustrações autorais feitas com maquetes de cartas de baralho de diversos países.

Também merecem destaque, entre vários outros, o mineiro de Belo Horizonte Rafael Resende, com “Alice" (editado pela 2 Pontos Wide Business); outro mineiro de Juiz de Fora, Arlindo Daibert (1952-1993), com uma sequência espelhada nomeada como Alice no País das Maravilhas" produzida com ilustrações de grafite e lápis de cor sobre papel, atualmente no acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; o espanhol Iban Barrenetxea, premiado em 2010 pela Sociedade Lewis Carroll do Reino Unido por sua coleção de aquarelas baseadas na história original e publicadas em uma edição de "Alice" pela editoria Anaya (Espanha); e a uruguaia Verónica Leite, com “Uma história para Alice” (Editora Melhoramentos), autores de trabalhos surpreendentes que dialogam com o original de Lewis Carroll e estendem as fronteiras da história que todos sabemos de cor e salteado.






























.



Alice vai ao futuro: acima, Tim Burton 
durante as filmagens de Alice (2010), que teve
a atriz australiana Mia Wasikowska no papel
principal. Abaixo, Alice, a Lebre Maluca e o
Chapeleiro Louco em uma das ilustrações
do espanhol Iban Barrenetxea, que foi
premiado em 2010 pela Sociedade
Lewis Carroll do Reino Unido; e uma das
sequências de Alice: Madness Returns,
videogame criado em 2001 pelo designer
American James McGee, que transformou
em uma saga de horror a história original.

Também abaixo, Fiona Fullerton em cena de
Alice no país das maravilhas, superprodução
britânica para o cinema de 1972 com direção
de William Sterling; a primeira versão para
cinema de Alice, no curta de 1903 com
roteiro e direção de Cecil Hepworth e
Percy Stow; e uma releitura para Alice
com a modelo Natalia Vodianova no
editorial fotografado por Annie Leibovitz
para a revista Vogue em 2003, que também
teve como modelos, entre outros, os estilistas
Stephen Jones (Chapeleiro Louco), Christian
Lacroix (Lebre Maluca), Jean-Paul Gaultier
(Gato de Cheshire) e Tom Ford (Coelho Branco)
































Escrita, ilustrada e apresentada em belo projeto gráfico – cheio de inovações inteligentes e saborosas – pela premiada autora e ilustradora de livros infantis Verónica Leite, a edição de "Uma História para Alice" tem surpresas inteligentes para leitores de todas as idades que atualizam as incontáveis ironias e alegorias com palavras e números inventadas por Lewis Carroll. 



Antes e depois da viagem



Autora de "El Mandado del Tatú" e "Un Misterio para el Topo", premiados no Uruguai, seu país de origem, Verónica Leite investe no contexto histórico da Inglaterra da era vitoriana, em que foi criado o texto mais célebre de Lewis Carroll, e aposta principalmente na inteligência do leitor, acrescentando um "antes" e um "depois" à narrativa sobre a "viagem" delirante de Alice.






Acima, Alice Pleasance Liddell aos 6 anos,
 em 1858, em fotografia de Lewis Carroll.
Abaixo, Alice no País das Maravilhas
na versão do artista plástico brasileiro
Luiz Zerbini, que em 2010 lançou em livro
sua tradução do clássico de Lewis Carroll
com ilustrações autorais feitas de maquetes
de cartas de baralho de diversos países.

Também abaixo, uma sequência de
quatro ilustrações em grafite e lápis de
cor sobre papel criadas em 1979 pelo
artista Arlindo Daibert, nomeada como
Alice no País das Maravilhas, atualmente
no acervo do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro (MAM/RJ); e a ilustração
da capa de Uma História para Alice
da escritora e ilustradora uruguaia
Verónica Leite com humor e enigmas
cifrados para crianças e adultos






















O livro-álbum de Verónica Leite, que traz enigmas visuais para o leitor adulto, por certo vai encantar os pequenos ao brincar com forma e conteúdo para contextualizar a origem da história: o passeio de barco no rio Tâmisa do professor Dodgson com a pequena Alice Liddell, sua preferida, na época com 10 anos, e suas duas irmãs, Edith e Lory. Verónica reconstitui a cena, diálogos, trajeto, até que a pequena Alice convence o professor a escrever aquela história mirabolante de números, cálculos, sonhos e seres inacreditáveis. À viagem de Dodgson e de Alice pelo mundo da lógica e da matemática, a nova versão de Verónica Leite acrescenta citações sofisticadas e bem-humoradas.

Bem no espírito da narrativa original, a autora investe em detalhes à margem das páginas: à Rainha Vitória, símbolo do moralismo extremado da época em que viveram Alice Liddell e o professor Dodgson, e a grandes escritores dos domínios do fantástico e do mundo maravilhoso dos sonhos que vieram antes e depois dele, entre eles Shakespeare, Swift, Freud, Borges, mais The Beatles (que adaptaram a história de Alice e Dodgson em “I Am the Walrus”) e os mestres surrealistas Dalí, Chagall, André Breton, Magritte e Paul Klee. Um deleite inteligente – para cativar leitores de todas as idades.








O chapeleiro é louco e a lebre é maluca


Outra edição de “Alice”, produzida em Belo Horizonte por Rafael Resende, não é menos surpreendente e inteligente. Para comemorar seu aniversário de 10 anos, a 2 Pontos Wide Business lançou o livro em belíssimo projeto gráfico, desenvolvido pelo próprio Rafael Resende, que também traduziu o texto original e elaborou uma série de sofisticadas ilustrações (imagem abaixo).

Rafael, que trabalha como ilustrador, conta que o livro teve origem como projeto de graduação em Design Gráfico na UEMG. "Foi um presente esta proposta para editar o livro", comemora. Além da dedicação profissional às ilustrações, ele também trabalha como fotógrafo de eventos, incluindo aniversários, casamentos e formaturas. Uma amostra do trabalho de Rafael Resende está disponível em seu site (clique aqui).






Traduzida para o português, a "Alice" de Rafael Resende é fiel ao extremo ao original em inglês, repleta de trocadilhos e ironias sutis. A pesquisa de Rafael também avançou pela biografia de Lewis Carroll e da garota Alice Liddell, investigando sutilezas que virariam a inspiração do escritor para inventar a incrível personagem que segue um coelho branco e descobre um mundo onírico com estranhas criaturas depois de cair num buraco.

Perfeccionista, o designer de Belo Horizonte pesquisou a linguagem figurada do livro original de Lewis Carroll para representar expressões ligadas à cultura popular da época vitoriana. Na versão de "Alice" segundo Rafael Resende, personagens como o Chapeleiro Louco e a Lebre Maluca ganham sentidos insuspeitados e muitas vezes surpreendentes. Um deles: antigamente, na Inglaterra, os chapeleiros usavam mercúrio na confecção de chapéus e muitos deles sofriam de demência pelo contato excessivo com o produto. Enlouqueciam. 











Alice vai ao futuro: no alto, uma cena de
"Alice" (Néco z Alenky), premiado filme de 1988
do diretor checo Jan Svankmajer, versão em tom
surrealista para o livro de Lewis Carroll. Acima e
abaixo, "Alice" na versão Disney, que na verdade
foi o primeiro projeto para um filme de
longa-metragem dos estúdios criados por
Walt Disney, ainda na década de 1920, mas
o projeto só seria concluído e lançado nos
cinemas em 1951, com uma colaboração
polêmica e não creditada de Salvador Dalí












Já a Lebre Maluca vem da sabedoria de um dito popular daqueles tempos, "louco como uma lebre de março": as lebres que habitam os campos e bosques do Reino Unido costumam procriar neste mês e, por conta do cio, ficam completamente descontroladas, em estado de euforia, à beira da loucura. Entre outras histórias saborosas que dialogam com o original de Lewis Carroll, Rafael Resende lembra, na entrevista, do filme que Walt Disney fez baseado nas aventuras da garotinha no país das maravilhas. Ele diz que sempre gostou muito do visual da versão Disney e que ele é uma inspiração inevitável porque faz parte do imaginário coletivo.

Lançado somente em 1951, “Alice” foi, na verdade, o primeiro projeto de Walt Disney, mas demorou décadas para ser concluído. A versão final, que teve problemas com a censura no Pós-Guerra, incluiu a colaboração não creditada e polêmica de Salvador Dalí, que terminou com o rompimento entre Disney e o artista espanhol e sobre a qual há muitas versões e rara documentação (sobre a parceria entre Disney e Dalí, veja também Semióticas: Alice volta ao futuro). Mesmo não estando entre os maiores sucessos comerciais dos estúdios Disney, “Alice” tem qualidades que sobreviveram ao tempo e continua encantando crianças e adultos de todas as idades. Tal e qual o estranho livro das aventuras de Alice Pleasance Liddell escrito por um certo professor Dodgson.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Alice vai ao futuro. In: Blog Semióticas, 19 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/alice-vai-ao-futuro.html (acessado em .../.../...).



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