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23 de março de 2012

Um certo Rubião








Todos os erros humanos são impaciência, uma
interrupção prematura de um trabalho metódico.

–– Franz Kafka, 1931.    



Quando ele estreou em livro, em 1947, com os contos de "O Ex-Mágico" – que abre com uma citação bíblica dos Salmos ("Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre") e uma primeira frase afirmativa e amarga ("Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior") – houve quem apontasse a semelhança entre os textos do escritor Murilo Rubião (1916-1991), mineiro de Carmo de Minas, e certas obras do tcheco Franz Kafka (1883-1924), nome de destaque do onírico e do fantástico na literatura universal e um dos maiores da língua alemã no século 20.

Rubião, assim como Kafka, foi um mestre das parábolas, aquele gênero sempre associado aos evangelhos do Novo Testamento, com suas histórias que têm um fim didático baseado em comparações de costumes ou observações analíticas sobre questões só na aparência insignificantes. Muitos já haviam percebido o parentesco da literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de Murilo Rubião, mas é curioso que ele próprio nunca tenha admitido nem as semelhanças nem nenhuma influência vinda das obras do autor de “A Metamorfose”.

No final da década de 1980, o acaso e a sorte me proporcionaram a oportunidade de fazer uma longa entrevista com Rubião para o jornal "Tribuna de Minas", junto com outro repórter, Walter Sebastião, e com o fotógrafo Humberto Nicoline. Encontramos o escritor bem-humorado e cercado de estantes com coleções cuidadosamente encadernadas em couro, organizadas na sala ampla, com amplas janelas envidraçadas, no apartamento em que morava no Edifício Maletta, no centro de Belo Horizonte. Assim que começamos a conversa, ele foi veemente em negar qualquer aproximação com Kafka, o primeiro autor que surgiu, logo na primeira pergunta. Segundo Rubião, ele só chegou a ler pela primeira vez alguns textos do autor quando Kafka foi traduzido no Brasil, no final dos anos 1940 – mesma época em que Rubião publicava os contos de “O Ex-Mágico”.



.


Na entrevista, Rubião fez questão de esclarecer: Kafka não teve influência sobre o meu trabalho. Quando li os seus textos, no final da década de 1940, já tinha escrito a maioria dos contos que iria publicar 'O Ex-Mágico'. Era muito difícil o acesso aos textos dele. Uma ocasião, eu tinha mandado meus contos para o Mário de Andrade, pedindo a opinião dele, e ele me respondeu que era um tipo de literatura que o deixava muito insatisfeito. Explicava que era um trabalho inteligente, bem feito, mas que não o convencia plenamente, que não era o tipo de coisa que ele gostava e completava, na carta, dizendo 'como também é a literatura de Kafka'. Achei estranho aquele negócio”.

Concluindo os comentários sobre a constante aproximação que alguns críticos e leitores fazem entre sua literatura e a do autor tcheco, Rubião explicou por quais motivos achou estranha aquela comparação feita por Mário de Andrade. “Achei estranho porque eu nunca tinha ouvido falar de Kafka. Escrevi pedindo emprestado. Mário, então, respondeu que tinha dois livros. 'A Metamorfose' e 'O Processo', mas que estavam em alemão. Só muito mais tarde consegui ler 'O Processo', e vi que havia identidade com minha literatura. Achei curioso. Mas o fato é que eu já havia escrito três livros – eu só consegui editor para o terceiro – e, neste momento, você conhece um autor que poderia ter te influenciado. Verifiquei, ainda, que a identidade talvez se devesse às mesmas leituras. Kafka tem influência da mitologia grega; é possível que ele tenha influência da Bíblia, do Velho Testamento, que os judeus leem muito; que conhecesse os autores do fantástico alemão e francês. Sabe-se, ainda, do seu conhecimento das obras de Edgar Allan Poe, que teve muita influência sobre a minha literatura. Eu não tenho influência do Kafka, mas se tivesse seria ótima, é um bom autor. Agora a diferença é que a literatura dele é mais escura, noturna, enquanto a minha é mais solar.








Um certo Rubião: acima e abaixo, o escritor na sala
de seu 
apartamento, no Edifício Maletta, e nas ruas
do Centro 
de Belo Horizonte, fotografado em 1988
por Humberto Nicoline. Também abaixo,
imagens 
de arquivo publicadas nas edições dos
livros 
do autor sem identificação de autoria,
exceto quando indicado






Além de negar a aparente influência de Kafka, Murilo Rubião também não admitiu naquela entrevista, uma das últimas que concedeu, nenhuma filiação aos escritores do chamado "boom" do realismo mágico da literatura latino-americana, que a partir de 1960 ganhou repercussão no mercado editorial na Europa e Estados Unidos por conta do prestígio adquirido por nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez, entre outros. Para ele, o prestígio de Borges era exagerado: Rubião preferia Cortázar, que ele considerava como o mais importante entre os autores do gênero da literatura fantástica e que chegou a conhecer pessoalmente, nas visitas que Cortázar fez a Minas Gerais. Cortázar era um autor que admirava de longa data.



Todos os contos



Ele foi um homem público destacado em Minas Gerais durante décadas. A lista de sua atuação registra, entre outras funções, seu papel como fundador e redator de jornais e revistas; criador do "Suplemento Literário do Minas Gerais" (que, sob seu comando, seria por alguns anos uma das melhores publicações do gênero no Brasil); Oficial de Gabinete em Belo Horizonte do governador Juscelino Kubitschek, de 1951 a 1955; chefe da publicidade de JK na disputa pela Presidência da República, em 1956; Adido Cultural do Brasil na Espanha de 1956 a 1960; diretor da Rádio Inconfidência e diretor da Escola Guignard, de Belas Artes e Artes Gráficas, a partir de 1967. Além da trajetória nos gabinetes e em cargos executivos no serviço público, Murilo Rubião também ocupa um lugar ímpar na literatura brasileira, com sete livros publicados de 1947 a 1990, reunindo 33 contos tão breves quanto fora do comum. 






Morto em 1991, aos 75 anos, o escritor retorna à cena com a edição de sua "Obra Completa" pela editora Companhia das Letras, que reúne 33 de seus textos fantásticos. "Incluímos nas edições da obras completas o conto 'A Diáspora', que não foi publicado em vida pelo autor, mas que estava em versão final, datilografada e revisada por ele, nos arquivos que fazem parte do Acervo dos Escritores Mineiros instalado na UFMG", explica a professora aposentada de literatura da UFMG, Vera Lúcia Andrade, responsável pela transferência dos arquivos de Rubião para a universidade e pelo estabelecimento dos textos na nova edição.

"Na verdade, todos os 33 textos fantásticos do Murilo Rubião já tinham sido publicados. Eu mesma havia feito o estabelecimento dos textos definitivos para a primeira publicação na editora Ática, que aconteceu em 1998, sob o título 'Contos Reunidos', tendo como editor Fernando Paixão. Foi quando, pela primeira vez, todos os contos do Murilo apareceram juntos em uma única edição em livro”, explica a professora.







Como naqueles eventos insólitos que pontuam a literatura que ele produziu, Murilo Rubião morreu às vésperas da abertura de uma grande exposição no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Organizada para ser uma homenagem em retrospectiva sobre sua vida e obra, a exposição contou com curadoria do professor, escritor e artista plástico Márcio Sampaio, apoiado por vários colaboradores e pesquisadores da obra do autor de "O Ex-Mágico". Com a morte do escritor, todos os arquivos, livros e objetos reunidos para a exposição acabaram transferidos ao final do evento para o acervo de escritores mineiros da UFMG.

"Murilo Rubião passou a vida reescrevendo sempre os mesmos textos, de tão perfeccionista e cuidadoso que era", destaca Vera Andrade, revelando que no acervo de Rubião ainda existem vários textos incompletos que nunca foram publicados. "Os herdeiros não autorizaram a publicação porque o próprio autor disse que eles ainda não estavam concluídos. Então, todos eles permanecem inéditos".













Um mundo à parte, fabuloso



O espantoso talento de Murilo Rubião para narrar, como se fossem fatos corriqueiros, acontecimentos os mais inusitados, transparece nas 33 obras-primas reunidas na "Obra Completa". Como na história só aparentemente absurda do pirotécnico que, morto, segue vivendo. Ou no caso da mulher que engorda desmedidamente conforme seus desejos vão sendo atendidos por seu amado.

Na obra de Rubião, cada texto breve encerra um mundo à parte, fabuloso, como na história do coelhinho falante que aborda o narrador com um pedido e, mutante, vai se insinuando em sua vida cotidiana. Ou ainda no desespero do mágico devorado por sua própria capacidade de operar prodígios, entre outros relatos insólitos e imprevisíveis. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que fiz com a professora Vera Andrade, que destaca a importância e a atualidade da obra de Murilo Rubião. 



Quem foi mais importante e influente, o Murilo Rubião da política ou o escritor ?

Vera Andrade – Ambos são igualmente importantes. O escritor produziu uma obra preciosa, até porque é o precursor da literatura fantástica no Brasil e o seu exemplo mais bem acabado. Já o Murilo da política cultural influenciou toda uma geração de escritores, que ficou conhecida como a "Geração Suplemento". Ele foi o "guru" dessa geração.











Um certo Rubião: no alto, o escritor em 1988,
fotografado por Humberto Nicoline. Acima,
Murilo Rubião com amigos em 1943:
de pé, a partir da esquerda, Otto Lara Resende,
Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos;
sentados, Murilo Rubião e Emílio Moura.

Abaixo, 1) Fernando Sabino, Murilo Rubião e
Hélio Pellegrino em Belo Horizonte, em 1943;
2) Fernando Sabino, Otto Lara Resende,
Rubião e Hélio Pellegrino; e 3) Murilo Rubião em
maio de 1968, na redação do Suplemento Literário
 em BH (a partir da esquerda, Affonso Ávila,
Ildeu Brandão, Décio Pignatari e Murilo Rubião).
 
Também abaixo, Murilo Rubião no inverno
de 1957 em Madri, quando era Adido Cultural
do Brasil na Espanha, durante o governo JK;
e em fotografias da década de 1980














 










Que lugar Murilo Rubião ocupa na literatura e na cultura brasileira?

Ele ocupa um lugar de destaque porque foi um homem público comprometido com o seu tempo, além de ser um escritor de uma escrita impecável, preocupado sempre em escrever e reescrever seus textos.

Ele sempre dizia que seus contos traziam a influência de Machado de Assis, da Bíblia e da Mitologia Grega. Esta tríade resume o universo de Murilo Rubião?

Na verdade, essa tríade representa bem as influências que ele traz em sua obra, mas não "resume" o universo de sua literatura, que é riquíssimo. Murilo foi leitor também de E. T. A. Hoffmann e dos demais românticos alemães, bem como do italiano Luigi Pirandello, para citar apenas alguns autores do universo da literatura fantástica.

Qual a importância da publicação da "Obra Completa"?

É de grande importância, por dar mais visibilidade ao trabalho ímpar de Murilo Rubião, colaborando para uma maior divulgação de sua obra, não só para o grande público leitor, mas também para os especialistas e para a pesquisa acadêmica.
















Um certo Rubião: dois retratos do escritor,
na maturidade e no primeiro ano de vida.
Abaixo, homenageado em pintura de
1985 do amigo
Petrônio Bax







Para um autor que publicou durante quase 50 anos, surpreende que a obra completa compreenda apenas 33 contos breves, ainda que sejam todos textos emblemáticos e irrepreensíveis. O que ainda existe de inédito entre os escritos de Murilo Rubião?

Existem contos praticamente acabados, além de esboços de outros contos, e até de uma novela, mas tudo indica que esses textos, parece-me, continuarão inéditos, pelo menos por muito tempo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Um certo Rubião. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/um-certo-rubiao.html (acessado em .../.../...).







 
 
Obra Completa / Contos (Companhia das Letras)



1. O pirotécnico Zacarias 14

2. O ex-mágico da Taberna Minhota 21

3. Bárbara 27

4. A cidade 33

5. Ofélia, meu cachimbo e o mar 39

6. A flor de vidro 44

7. Os dragões 47

8. Teleco, o coelhinho 52

9. O edifício 60

10. O lodo 67

11. A fila 76

12. A Casa do Girassol Vermelho 90

13. Alfredo 98

14. Marina, a Intangível 103

15. Os três nomes de Godofredo 111

16. Memórias do contabilista Pedro Inácio 118

17. Bruma (a estrela vermelha) 124

18. D. José não era 129

19. A Lua 132

20. A armadilha 135

21. O bloqueio 139

22. A diáspora 145

23. O homem do boné cinzento 151

24. Mariazinha 156

25. Elisa 161

26. A noiva da casa azul 164

27. O bom amigo Batista 169

28. Epidólia 175

29. Petúnia 183

30. Aglaia 190

31. O convidado 197

32. Botão-de-rosa 207

33. Os comensais 216






Livros publicados por Murilo Rubião: 



O ex-mágico (Universal, 1947)

A estrela vermelha (Hipocampo, 1953)
 

Os dragões e outros contos (Movimento-Perspectiva, 1965)
 

O pirotécnico Zacarias (Quíron, 1974)
 

O convidado (Ática, 1974)

A casa do girassol vermelho (Ática, 1978)

O homem do boné cinzento e outras histórias (Ática, 1990)
 

 





18 de julho de 2011

O Bruxo e a crítica internacional





Machado de Assis é apenas o maior escritor já

produzido pela América Latina em qualquer época.

.........–– Susan Sontag, 1990.   




O maior cânone da literatura brasileira conquista cada vez mais prestígio fora do Brasil, reconhecido por muitos, em vários países – e muito além das fronteiras da língua portuguesa – como um dos maiores escritores de todos os tempos. Alguns dos mais importantes e influentes escritores, ensaístas e críticos literários de nossa época publicaram páginas de elogios a Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), Susan Sontag, Umberto Eco, Salman Rushdie, Carlos Fuentes, José Saramago, Allen Ginsberg, Michael Wood, John Updike, Philip Roth e Harold Bloom entre eles. Sobre Machado, citado em seus estudos "A Angústia da Influência" (1973) e "O Cânone Ocidental" (1994), Bloom dedicou um capítulo inteiro do livro de 2003 "Gênio  Os 100 autores mais criativos da história da literatura", no qual destaca a originalidade e a energia criativa do mestre brasileiro, definido por ele como "uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião, e todo tipo de contextualização que falsamente se crê que possa produzir ou determinar os talentos e o espírito humano".

Bloom também confessa que já havia lido e se apaixonado pela obra de Machado, especialmente por "Memórias Póstumas de Brás Cubas", antes de saber que o mestre brasileiro era mulato, neto de escravos, em um Brasil onde a escravidão só foi abolida em 1888, quando Machado estava para completar 50 anos. "Ao ler Machado de Assis, presumi, erroneamente, que fosse o que chamamos 'branco' (mas que E. M. Foster, com muita graça, chamava de 'rosa-cinzento')", completa, reconhecendo em Machado mérito e honraria surpreendentes: segundo Harold Bloom, Machado de Assis deve ser considerado "the supreme black literary artist to date" (o maior artista literário negro até os dias de hoje).

Mais de um século antes do reconhecimento incondicional por Bloom e outros avatares internacionais da crítica e do pensamento contemporâneo, Machado, o romancista, dramaturgo, contista, poeta, jornalista, crítico, cronista, político respeitado e fundador da Academia Brasileira de Letras, foi aclamado em vida por seus pares e convivas. Depois de morto, passou a ser publicado e respeitado primeiro em Portugal, depois na Argentina e em outros países da América Latina. Na década de 1950, começou a ganhar as primeiras traduções em inglês e outras línguas, com a divulgação de sua obra no exterior ficando mais acentuada a partir dos anos 1960, quando foi incluído talvez por acidente nos pacotes de lançamentos na Europa e Estados Unidos dos escritores do "boom" do realismo mágico latino-americano, aos quais Machado antecedia desde o século 19.

Ironia do destino – pois ainda que o mestre brasileiro tenha incorporado o universo fantástico a seu repertório de tramas e personagens, o realismo mágico ou realismo fantástico é, a rigor, uma referência específica à geração de escritores contemporâneos ou posteriores a Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, na Argentina, a Gabriel García Márquez na Colômbia, a Carlos Fuentes e Juan Rulfo no México, a Mario Vargas Llosa no Peru, entre outros que escreveram e publicaram pela primeira vez décadas e décadas depois da morte de Machado. Mais uma façanha do Bruxo do Cosme Velho, 'avant la lettre' (veja também Semióticas: Bodas do 'boom'). "Bruxo do Cosme Velho", aliás, é um antigo elogio – um codinome pelo qual Machado é conhecido nos meios literários desde o começo do século 20, pela força e pelos "encantamentos" da sua literatura. O termo ganhou força também a partir dos anos 1960, depois que Carlos Drummond de Andrade publicou o poema "A um bruxo, com amor" (no livro “A Vida Passada a Limpo”, de 1959), no qual o poeta fez referência à casa número 18 da rua Cosme Velho, situada no bairro de mesmo nome, no Rio de Janeiro, endereço lendário porque ali morou, durante muitos anos, o bruxo Machado de Assis. 

 




O Bruxo e a crítica internacional: no alto,
Machado de Assis em 1884, no Rio de Janeiro,
fotografado por Marc Ferrez, seis anos antes da
publicação do romance Memórias Póstumas de
Brás Cubas, uma de suas obras-primas, que
causou grande polêmica. Acima, o escritor
em pintura em óleo sobre tela de 1905,
retratado por Henrique Bernardelli.

Abaixo, as capas de duas edições em inglês
para Memórias Póstumas de Brás Cubas:
a primeira, que foi publicada em 1955
como Epitaph for a small winner e assinada
por William L. Grossman, foi relançada em 2008;
a segunda, assinada por Gregory Rabassa, foi
publicada em 1997 pela Oxford University Press











Assim como as gerações da vanguarda no Brasil e na América Latina que viriam depois dele, o autor de "O Alienista" (1882), "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), “Dom Casmurro” (1899) e outras obras-primas em gêneros narrativos diversos desafiou as convenções estabelecidas da literatura em sua época. A recepção sobre a literatura de Machado teve uma trajetória crescente desde sua morte e ganhou ainda mais destaque a partir da segunda metade do século 20, quando ele, aclamado como um dos maiores escritores do século 19, surgiu no mercado editorial e nos estudos da crítica do Primeiro Mundo na mesma leva em que surgiram grandes nomes da literatura da América Latina. Machado à frente de seu tempo: não é pouco.



Abrangência e complexidade



Político dos mais hábeis em sua época, elevado à categoria de efígie impressa nas notas de cruzeiro e de cruzado novo no último século, retratado como personagem no cinema e na TV, como tema de carnaval no samba-enredo de escolas de samba, Machado de Assis, quando vivo, assistiu a evoluções e transformações das mais marcantes na vida política, social e cultural da nação – entre elas grandes descobertas científicas, o fim da escravidão e a proclamação da República. A abrangência e a complexidade das obras de Machado, e sua fortuna crítica, receberam mais um tributo à altura com os ensaios reunidos em "Machado de Assis e a Crítica Internacional", livro organizado por Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta, publicado pela Editora Unesp.











Machado e sua esposa, Dona Carolina,
em fotografia datada de 1900 (de autor
desconhecido) e uma foto de Dona Carolina
nos arquivos do escritor. A esposa exerceu
grande influência sobre a literatura de Machado,
como primeira leitora, revisora e até co-autora,
mesmo que não creditada. O casal esteve unido
de 1869 a 1904, quando a morte de Carolina, aos
70 anos, os separou. O escritor passou os anos
seguintes muito abatido pela morte de Carolina.

Abaixo, a 
escritora e professora norte-americana
Helen Caldwell, em 1959,
mostra uma imagem
da máscara mortuária
de Machado de Assis.
Caldwell publicou
em 1960 um livro que marcou
época:
O Othelo brasileiro de Machado de Assis,
um estudo sobre Dom Casmurro que só
foi publicado no Brasil depois de 40 anos.

Também abaixo: 1) as capas de outro célebre
estudo crítico de um pesquisador estrangeiro sobre
Dom Casmurro, publicado em 1984 em inglês
por John Gledson e traduzido no Brasil com o
título Machado de Assis: Impostura e Realismo;
2) Dona Carolina em daguerreótipo datado de
1890; e 3) tres retratos de Machado, em
1864, aos 25 anos, e em 1874, aos 35 anos,
em fotografias realizadas no estúdio do
Rio de Janeiro do fotógrafo português
Joaquim José Insley Pacheco, que veio
trabalhar no Brasil a partir da década de
1850; e uma fotografia de Machado
aos 57 anos, em 1896 













Machado de Assis como testemunha de revoluções de seu tempo e como tradutor do turbilhão realista para uma dimensão de alta literatura, atemporal e universal, é uma tese que permeia o discurso da maioria dos 12 autores do Brasil e de outros países reunidos no dossiê de Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta. O ponto de partida foi o Simpósio Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela Crítica Mundial, realizado em 2008, ano do centenário da morte do autor, em São Paulo, com diversos estudiosos internacionais de Machado apresentando suas críticas, relatos de pesquisa e novos olhares sobre a obra do mestre.

Na equipe de críticos convidados, Roberto Schwarz, Jean Michel Massa, K. David Jackson, Paul Dixon, Thomas Sträter, Todd Garth, Élide Valarini Oliver, Amina Di Munno, Luiz Roncari e Daphne Patai, além dos organizadores, trazem contribuições privilegiadas que intensificam e ampliam o debate sobre o Bruxo, estimulando novas abordagens e interpretações sobre a literatura que ele produziu e que permanece muito sedutora e muito atual, mesmo depois de mais de um século das publicações originais do autor.

Na apresentação aos ensaios reunidos, Antunes e Motta constatam a crescente valorização do Machado no exterior, bem como o interesse despertado pelas ambiguidades surpreendentes em seus trabalhos. Entre os tantos destaques na diversidade, Schwarz, no texto "Martinha vs. Lucrecia", discute a divisão entre críticos universalistas e localistas, lembrando que "a grandeza de Machado suscitou linhas de explicação contrárias que em algum momento teriam de discutir e competir".























No artigo que encerra o livro "Machado de Assis e a Crítica Internacional", Jean Michel Massa provoca e destaca, a partir do título: "A França que nos legou Machado de Assis". Na argumentação de Massa, a cada ano que passa Machado de Assis é cada vez menos "um estrangeiro fora de seus país". Massa sugere que os leitores façam o caminho inverso daquele que sempre foi apontado pelos muitos críticos brasileiros que se dedicaram aos estudos sobre Machado, buscando desta vez um certo olhar de Machado para o exterior.

Nestes tantos caminhos cruzados, o leitor atento mais familiarizado com o universo literário de Machado acaba percebendo uma breve cartografia dos estudos, das tendências e das conquistas crítico-analíticas nacionais e internacionais em relação à obra ímpar e extensa de um dos maiores nomes da literatura. Benedito Antunes e Sérgio Motta, professores de Literatura e Cultura Brasileira da Unesp, destacam que tanto o simpósio de 2008 como o livro agora lançado representam importante passo para a descoberta de comentários não só inovadores, mas multiplicadores das formas de ler Machado de Assis. 









Retrato atualizado: o escritor, que
foi apelidado por seus pares de Bruxo
do Cosme Velho, nas ilustrações em estilo
Pop Art da capa e da contracapa do livro
Machado de Assis e a Crítica Internacional.

Também abaixo, Machado de Assis em sua última
fotografia conhecida, feita em estúdio, com data
de 1907, que pertence ao acervo da família de
Mário de Alencar, filho de José de Alencar












"Trata-se de um autor que oferece reflexões universais sobre a alma e o comportamento humano, mesmo se reconhecidos seus vínculos regionais", diz Antunes. Os caminhos cruzados entre a crítica nacional e internacional, segundo Antunes, resultam em panoramas surpreendentes que destacam a qualidade do grande escritor e verificam como sua valorização no exterior é gradual e progressiva.

Na apresentação aos ensaios, Antunes e Motta ainda apontam que "há um universalismo que Machado legou à nossa literatura e uma projeção de nossa literatura à esfera internacional, ao construir uma arte ao mesmo tempo brasileira e universal". A invenção machadiana já pressupunha, portanto, os "caminhos cruzados".









Machado de Assis fotografado por seus
contemporâneos: acima, o escritor é acudido
na rua, no Rio de Janeiro, em 1907, durante
o que se supõe ser uma crise de epilepsia,
em fotografia de Augusto Malta.; e Machado
de chapéu
no "terrasse" da Confeitaria Castelões,
na antiga Avenida Central (atual Avenida Rio Branco),
no centro do Rio de Janeiro. Na mesa com Machado,
Euclides da Cunha, José Veríssimo e Waldrido Ribreiro.
Foto publicada pela revista Fon-Fon em 1907.

Abaixo, Machado em duas fotografias atribuídas
a Augusto Malta com autoridades e a elite da
literatura brasileira em sua época: na primeira
fotografia, com amigos e patronos da Academia
Brasileira de Letras, estão, de pé, Rodolfo Amoedo,
Artur Azevedo, Inglês de Souza, Olavo Bilac,
José Veríssimo, Sousa Bandeira, Filinto de Almeida,
Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo
Bernardelli, Rodrigo Octavio e Rodolfo Peixoto;
sentados, João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio
Furtado de Mendonça e José Júlio da Silva Ramos.

Na segunda fotografia, com data de 1906,
que registrou os convidados para um almoço
no Clube dos Diários oferecido pelo general
colombiano Rafael Uribe, em sua
visita ao Rio de Janeiro, estão, entre outros,
Machado de Assis (o segundo na primeira fila)
e, a seu lado, à direita da foto, Joaquim Nabuco;
o colombiano Rafael Uribe; o prefeito do Rio de
Janeiro, na época Distrito Federal, Francisco
Pereira Passos; Oswaldo Cruz e Olavo Bilac





     
 



Machado de Assis era um realista?

Machado de Assis era um realista?

O ensaísta e professor Gustavo Bernardo defende uma tese que vai contra quase um século de crítica literária no Brasil. Em seu livro "O problema do realismo de Machado de Assis" (Editora Rocco), que está chegando às livrarias, ele argumenta que Machado, cânone maior da literatura no Brasil, não é um escritor realista. Na entrevista que fiz com ele, pelo telefone, para o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, Gustavo Bernardo aponta que seu estudo, por certo audacioso, busca mostrar que os escritos do Bruxo do Cosme Velho não condizem com a classificação acadêmica imposta e ensinada há décadas em salas de aula de todo o Brasil.


No livro você destaca que a ficção de mestres como Machado de Assis estabelece um duplo caráter da linguagem, que tanto diz mais do que queria dizer quanto não consegue dizer exatamente o que queria dizer. Diante de tantos paradoxos, qual é o lugar de Machado de Assis na literatura e na cultura brasileira?

Gustavo Bernardo – Eu quis dizer que toda a linguagem que usamos tem esse caráter duplo: sempre dizemos mais do que queríamos dizer e nunca conseguimos expressar exatamente o que queríamos dizer. Ao contrário do que imagina o senso comum escolar, a linguagem é fundamentalmente equívoca. A compreensão da língua de escritores como Machado faz com que eles explorem os equívocos de linguagem da sua sociedade e do seu tempo, em especial aqueles que confundem a realidade com os discursos sobre a realidade. Essa circunstância faz com que possamos considerar Machado de Assis não apenas nosso maior escritor mas também como nosso mais importante filósofo, uma vez que a sua obra até hoje parece pensar profundamente sobre os nossos equívocos, sobre os nossos paradoxos, sobre as nossas hipocrisias.




O Bruxo do Cosme Velho em adaptações
no cinema e na TV: acima Petrônio Gontijo
e Viétia Rocha vivem o jovem Brás Cubas
e sua amada Virgília em cena do filme de
2001, Memórias Póstumas, com roteiro e
direção de André Klotzel. Abaixo, o casal
Michel Melamed e Maria Fernanda Cândido
vivem Bentinho e Capitu na minissérie de
2008 da TV Globo Capitu, com roteiro
adaptado do romance Dom Casmurro
e direção de Luiz Fernando Carvalho



 






Considerando a literatura em língua portuguesa e a literatura produzida no Brasil, o gênio de Machado de Assis encontra algum precursor?

Não há precursor na literatura em língua portuguesa para Machado de Assis. É certo que autores como Eça de Queirós e José de Alencar foram muito importantes para ele, mas para que escrevesse antes contra eles do que como se os sucedesse esteticamente. Dom Casmurro é de certa forma uma resposta a ambos, tanto a O primo Basílio, de Eça, quanto a Lucíola, de Alencar: o romance machadiano desmonta tanto o realismo do autor português quanto o romantismo do brasileiro, de tabela desconstruindo radicalmente a visão que ambos tinham da mulher. Luísa e Lúcia/Maria da Glória começam suas histórias como personagens femininas densas e fortes, mas os autores as enfraquecem tanto que chegam mesmo a matá-las ao final, enquanto Capitu mantém sua força, sua densidade, sua ambiguidade e sua dignidade do princípio ao fim do romance, morrendo não em função das ações e omissões do narrador mas sim em função da idade. 

Então é um erro apontar Eça de Queirós ou José de Alencar como precursores da literatura de Machado de Assis?

Encontro precursores verdadeiros para Machado quer no filósofo francês Michel de Montaigne quer no escritor espanhol Miguel de Cervantes. Concordo inteiramente com o escritor mexicano Carlos Fuentes, que considera Machado de Assis o único herdeiro literário de Cervantes em toda a América, chegando a chamá-lo pela alcunha de “Machado de La Mancha”. Na nossa língua, o melhor sucessor de Machado, até porque muito diferente dele, é João Guimarães Rosa, que por mágica coincidência nascia no mesmo ano em que morria Machado de Assis. Sua Diadorim, de Grande sertão: veredas, é sem dúvida a melhor companheira de Capitu na literatura brasileira.






E a literatura brasileira hoje? Está melhor ou pior do que há tempos passados?

Darei uma resposta categórica: não sei! Acho que não temos como responder a essa pergunta, e sempre me incomodam aqueles que tentam, o que acontece periodicamente. Como diria o historiador Fernand Braudel, “a fumaça dos acontecimentos nubla a visão dos contemporâneos”. Primeiro, não temos a distância necessária para avaliar a literatura contemporânea; segundo, não temos meios adequados para comparar termos incomparáveis, quais sejam os escritores e as suas obras. O estudo da literatura, no meu entender, é o estudo da singularidade, não da similaridade. Penso que empobrece a literatura e a leitura enquadrar obras e autores, quer nos escolares estilos de época, quer nos modernos rankings de melhores e piores.






Dos tantos escritos que compõem a obra de Machado, qual você escolhe como o seu favorito?

São justamente tantos e tão bons que esta pergunta se faz a mais difícil de todas. Meu primeiro impulso é oscilar entre Dom Casmurro O alienista, pela crítica devastadora que ambos os títulos fazem à maneira moderna de pensar, mas logo me vem à mente um romance da chamada primeira fase, tão desprestigiada e tão excepcional quanto a chamada segunda fase. Trata-se justamente do primeiro romance de Machado de Assis, sua obra-prima nos dois sentidos do termo: Ressurreição. Este romance, de maneira discreta, já contém em germe todas as qualidades estéticas e filosóficas de Machado, a começar pela excepcional ironia contida no título: não há ressurreição alguma.

Esta ironia é um golpe de “canhões de pelica” no romantismo...

Isso mesmo. Machado é o nosso escritor mais cético. Aliás, são três as qualidades de Machado que mais incomodam nossa crítica e nossa pedagogia, por isso seus próceres tentam negá-las quase desesperadamente: primeiro, nosso maior escritor é negro, logo, tentam embranquecê-lo de diversas maneiras pouco sutis; segundo, nosso maior escritor é o maior adversário do realismo, logo, tentam sustentar o absurdo de que ele mesmo seria não só realista como o próprio fundador do realismo no Brasil; terceiro, nosso maior escritor é cético, logo, tentam desqualificar seu ceticismo, vendo-o equivocadamente como pessimismo ou niilismo.







Woody Allen, em recente entrevista ao jornal inglês The Guardian, destaca que Machado é um de seus escritores preferidos e que ele se identifica com o estilo e as tramas do autor de Dom Casmurro. Você concorda que há semelhanças entre os filmes de Woody Allen e a literatura de Machado?

Sim, sem dúvida. Primeiro, ambos são tremendamente irônicos e engraçados, apesar de não provocarem gargalhadas mas sim sorrisos inteligentes. Segundo, ambos são mestres na arte difícil da tragicomédia, a tal ponto que suas obras não evoluem da comédia para a tragédia, como de hábito, mas são cômicas e trágicas do início ao fim, da primeira à última página ou cena. Terceiro, ambos são herdeiros da meta-ficção de Cervantes, porque ambos quebram a cada página ou cena o contrato de ilusão realista entre autor e leitor, ou entre diretor e espectador. Quarto, ambos questionam a raiz de todos os discursos humanos, desconfiando sempre de que não sabemos o que temos certeza de que sabemos, o que prova que ambos são profundamente céticos – o que não torna nem um nem outro pessimista ou niilista, mas todo o contrário. Ambos, por fim, são príncipes da dúvida, da inteligência e da tolerância.



por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Bruxo e a crítica internacional. In: Blog Semióticas, 18 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/o-bruxo-e-critica-internacional.html (acessado em .../.../...).



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