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13 de agosto de 2019

Vik Muniz na Arte Sacra






A história da arte é a história da luta de todas 
as representações óticas, dos espaços inventados 
e das figurações. É a história da luta das imagens. 

–– Carl Einstein (1885-1940).    



São fotografias. Mas um olhar atento descobre logo, nos detalhes, materiais surpreendentes que compõem em pequenas partes cada uma das imagens. Tinta, açúcar, molho de tomate, chocolate, geleia, algodão, botões, fragmentos de plástico, pedras, madeira, folhas e caules de plantas, terra, metal, tiras e remendos de anúncios de publicidade, pedaços de folhetos coloridos, de revistas, de jornais, de fitas, de embalagens para presentes e de outros recortes de papel formam as novas obras que Vik Muniz montou para criar ilusões de ótica e depois fotografou. Batizada de “Imaginária”, a série, que reúne imponentes fotografias, 20 no total, ampliadas com dois metros de altura e emolduradas, como os modelos solenes das pinturas originais de santos católicos a que fazem referência, foi apresentada em destaque no festival de fotografia Rencontres d’Arles (veja o link no final deste artigo), realizado a cada ano entre julho e setembro na cidade de Arles, às margens do mar Mediterrâneo, no sul da França.

Criado em 1970, o festival se mantém como um dos grandes eventos internacionais de fotografia e reúne dezenas de mostras que vão dos acervos históricos até as novas tendências, os experimentos recentes em novas tecnologias de câmeras e painéis de atualidades sobre fotojornalismo. As imagens de Vik Muniz frequentaram o festival nas últimas duas décadas como amostragens temáticas e em séries inéditas – como esta “Imaginária”, que pela primeira vez é exibida na Europa. Em entrevistas e no dossiê de imprensa distribuídos pela organização do festival, ele explica que a intenção foi homenagear grandes artistas que criaram imagens que há séculos fazem parte do imaginário coletivo, mas artigos na imprensa internacional destacam que a nova série, colorida e fulgurante, não esconde um melancólico tom de “réquiem”, de celebração fúnebre, em relação direta com a violência e as ações de destruição em vários níveis provocadas pelo governo de extrema-direita e de orientação fascista que em 2019 tomou o poder no Brasil.






Vik Muniz na Arte Sacra: no alto, retrato
do artista por Carolyn Cole. Acima e abaixo,
as releituras para imagens sagradas dos
santos católicos segundo Vik Muniz: acima,
Santo Agostinho (após Philippe de Champaigne).
Abaixo, Crucificação (após Thomas Eakins) e
Imaculada Conceição ou Nossa Senhora
da Conceição, a pintura original de 1768
do mestre italiano Giovanni Battista Tiepolo
e a recriação feita por Vik Muniz com materiais
nada convencionais. Todas as imagens fazem
parte do dossiê de imprensa do festival
internacional de fotografia Rencontres d’Arles












O simulacro da cópia e o peso da tradição



Diante das novas experiências de Vik Muniz com sua “Imaginária”, também são inevitáveis as referências sobre questões como o valor de culto e o valor de exposição, as interfaces entre o original e suas cópias, assim como as aproximações e as relações milenares entre a religião e a história da arte, entre o sagrado e o profano. Ao reconstruir formas e imagens tradicionais de obras de arte a partir de simulacros imprevistos, o artista provoca uma mistura por certo iconoclasta, mas que permite também interpretações extremas, em variações pontuadas tanto por veneração como por toques generosos de ousadia e ironia, diante do peso da tradição. Ao tomar como modelo figuras de devoção, perenes em seu significado e sua originalidade, as réplicas de Vik Muniz questionam a representação da obra de arte e o fascínio que o mistério da fé exerce, há séculos, sobre os grandes artistas.

A criação artística sempre teve fascinação pelo mistério da fé”, argumenta Vik Muniz em um breve depoimento reproduzido no dossiê de imprensa distribuído pela organização do festival. “A arte mistura elementos fundamentais que vêm da crença e das experiências coletivas e individuais para promover um consenso sobre a realidade, seja ela presentificada ou apenas imaginada. Com a obra de arte, a verossimilhança não é mais que uma ilusão. Escrever não é descrever, pintar não é evocar, mesmo se constatamos que grande parte do que admiramos na história da arte está, objetivamente, relacionada à arte sacra”, conclui. Segundo a descrição apresentada pelos organizadores da exposição, a nova série de Vik Muniz explora, incansavelmente, as possibilidades da fotografia e as mais variadas possibilidades da arte que buscam uma tradução para o indizível.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima,
as releituras para as imagens clássicas
de Santa Inês (após Simon Vouet) e
São Benedito (após Jose Montes de Oca).

Abaixo, as releituras de Maria Madalena
(após Giovanni Girolamo Savoldo)
e São João Batista no Deserto
(após Caravaggio)









Realidade e representação: enganar o olho



O indizível, no caso da série “Imaginária”, provoca um olhar que nunca é neutro nem desinteressado. Diante das imagens que o artista Vik Muniz selecionou e “montou” com a intenção de construir uma ilusão de ótica, provocando uma semelhança inegável e irrecusável com um modelo religioso pré-existente, há uma quase obrigatória curiosidade que enlaça a experiência da percepção à identificação dos detalhes. Identificado pelo olhar mais atento, cada detalhe interroga o pensamento e leva o observador a considerar tanto o modelo original como a cópia que no momento se apresenta e a pensar, talvez, na origem da própria representação, na remota pré-história da arte, no sentido que ela evoca e no que ela desencadeia sobre o que seja falso ou verdadeiro.

A partir da brutalidade apenas aparente dos materiais utilizados, os pequenos fragmentos foram reunidos para “enganar o olho” e formar a imagem. Ao final do processo de montagem, o artista registrou tudo em fotografias – porque a arte, neste caso específico, também é a arte da fotografia. Conhecidas desde a Antiguidade Clássica pelos mestres da arquitetura e da pintura, as técnicas de “trompe l’oeil” (em francês, “enganar o olho”) não surgem como novidade nas obras de Vik Muniz. Na verdade, são estratégias presentes na maioria de sua produção, seja em recriações de obras muito conhecidas, seja em retratos de celebridades ou em recomposições de mosaicos sobrepostos e fotografados.
 
As estratégias de Vik Muniz, para o olhar do observador mais atento, trazem pontos de semelhança com a arte do holandês M. C. Escher (1898-1972), mestre incomparável na criação das ilusões de ótica em padrões geométricos, mas também remetem às montagens e colagens criadas pelos primeiros mestres do cubismo, Pablo Picasso e Georges Braque, além de outros artistas das vanguardas na arte moderna, desde o começo do século 20. A partir da década de 1960, estas mesmas estratégias de composição e de justaposição tornaram-se uma constante na Pop Art de nomes como Andy Warhol, Jasper Johns, Peter Blake, Robert Rauschenberg, Tom Wesselmann, Claes Oldenburg e Roy Lichtenstein, ou de brasileiros como Nelson Leirner, Athos Bulcão, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Regina Silveira, entre outros.











Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Tiago, o Maior (após Guido Reni)
e Nossa Senhora de Guadalupe (imagem
da tradição religiosa do México).

Abaixo, São Pedro (após Girolamo Batoni)
e Santa Luzia (imagem da tradição da Itália)








Apagando as diferenças



A principal novidade das práticas de Vik Muniz, em especial nesta “Imaginária”, talvez esteja na “remediação”, ou no uso de novas mídias e tecnologias para reconstituir ou reconfigurar, reinventando ou apagando a diferença entre novas formas de expressão e formas cristalizadas em aparatos tradicionais. A palavra “remediação” (do latim “remedere”, curar, restaurar) foi apresentada na década de 1960 por Marshall McLuhan para identificar uma inter-relação entre os meios de comunicação e para afirmar que o conteúdo de uma mídia é, sempre, uma retomada de conteúdos de outra mídia.
 
Mais recentemente, o mesmo conceito de "remediação" retornou às discussões teóricas sobre meios de comunicação, história da arte e literatura como um neologismo proposto por Jay Bolter e Richard Grusin (no livro “Remediation: Understanding New Media”, publicado no ano 2000 por The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, USA). No contexto das teorias da literatura e da comunicação, Bolter e Grusin lançaram o neologismo para refletir sobre novas versões baseadas nos escritos de ficção científica e horror de Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), com foco nos diferentes tipos de mídias: eletrônicas, impressas, digitais.

Remediação é um processo que ocorre quando um meio (de representação, de comunicação) passa a imitar ou incorporar elementos de outros meios, ou de outras mídias. Como processo, tem aproximações ou similaridades com as estratégias de citação, de paródia, de paráfrase e de intertextualidade, mas o que está em destaque é a transposição da obra original. Segundo Bolter e Grusin, a internet, por sua própria natureza, "remedia" todos os meios, fazendo a transposição de outras mídias que na origem estiveram veiculadas em jornais, nas revistas, na TV, no rádio, no livro, nas obras de arte e em todas as demais formas e tipos de linguagem e comunicação.

O termo remediação, portanto, tem equivalências diretas com as estratégias usadas por Vik Muniz na medida em que uma mídia “toma emprestado” de outra mídia 
as questões de forma e conteúdo para constituir, remediar, ou "fazer de novo", uma adaptação ou transposição. As estratégias nesta Imaginária evidenciam, também, relações com pressupostos específicos da história da arte, tais como o valor de culto e o valor de exposição, em suas referências diretas às relações fluidas e instáveis, quase sempre cambiantes, entre categorias conceituais de “cultura de massa”, “cultura popular e “cultura erudita”.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Sebastião (após José de Ribera) e
Santa Rita de Cássia (imagem da tradição).
Abaixo, a releitura para Santo Antônio de Pádua
(após Tanzio da Varallo) e Santa Terezinha
(segundo imagem da tradição). No final da página,
releituras de Vik Muniz para São Miguel Arcanjo
(após Darko Topalski) e para São Jorge e
o Dragão (após Gustave Moreau)








No contraste ou na fusão da riqueza das cores e das formas, situando em uma mesma obra elementos da expressão labiríntica e fragmentária pela escultura, pelo desenho, pela pintura, pela fotografia (que, ao final, sintetiza uma remontagem de todo o processo), Vik Muniz reúne e apresenta, em um mesmo plano, vários discursos simbólicos ou várias dimensões sobrepostas para engendrar a ilusão de uma só forma, um só objeto. A diversidade de materiais e de técnicas constrói uma unidade e se transforma em uma só imagem, que por sua vez reproduz, por analogia ou semelhança, uma imagem anterior muito conhecida.

O paradoxo de atrelar o mosaico e o múltiplo, o plural, a complexidade, à construção de uma só imagem, estabelece ainda um alerta importante para o observador, porque transforma a percepção da realidade e a percepção sobre a representação em coisas semelhantes e visualmente equivalentes. Observar com atenção a metamorfose dos detalhes reunidos pelo artista, que se fundem para constituir a ilusão de uma forma conjunta, torna-se também uma questão ideológica, porque denuncia que não há mais lugar para o olhar ingênuo e que o sentido da visão não pode ser separado da interpretação.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Vik Muniz na Arte Sacra. In: Blog Semióticas, 13 de agosto de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/08/vik-muniz-na-arte-sacra.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual às exposições do Rencontres d'Arles,  clique aqui.
























5 de fevereiro de 2019

O pintor Jack Kerouac







E foi exatamente assim que toda minha experiência na
estrada de fato começou, e as coisas que estavam por
vir são fantásticas demais para não serem contadas.

––  Jack Kerouac, “On the Road” (1957).   


O principal avatar da Geração Beat, que desafiou as convenções morais e sociais mais conservadoras do american way of life” com um coquetel de álcool, sexo, poesia, jazz e alucinógenos para uma alternativa menos materialista e mais espiritualizada de enfrentar a vida, volta ao destaque mais de 50 anos depois de sua morte –– não apenas pela literatura que o consagrou, mas também por um de seus talentos incomuns que poucos conheceram quando ele estava vivo: Jack Kerouac, autor de pinturas, desenhos e ilustrações em técnica mista. Uma seleção com 80 de suas obras originais, em vários formatos e materiais, na maioria inéditas, foi reunida para uma exposição apresentada pela primeira vez em um prestigiado espaço de arte na Itália, o Museo MAGA d'Arte Moderna de Gallarate na Lombardia, próximo a Milão, região onde o escritor viveu por um período em meados dos anos 1960, e agora surge publicada no catálogo “Kerouac: Beat Painting”, lançamento da casa editorial Skira com textos e organização pelos curadores do museu italiano Sandrina Bandera, Alessandro Castiglioni e Emma Zanella.

A força da arte de Kerouac, para além de sua literatura, já encontrou transposições para o cinema, para a música, para as artes cênicas e para histórias em quadrinhos, mas seu caráter de composição visual feita pelo próprio autor é a última faceta a ser revelada ao público. Basta alguma observação atenta sobre as imagens produzidas pelo Kerouac pintor e desenhista para perceber que ele transportou para as artes plásticas muito da composição sofisticada, experimental, surpreendente, sedutora, que ele imprimiu à criação literária em seus romances em prosa poética, contos, novelas, diários, relatos confessionais, correspondências, livros de poema e haikai. Descrito por biógrafos como um de seus principais interesses e talentos, o acervo de artes plásticas que Kerouac produziu, e que por diversos motivos não divulgou, ficaria restrito a seus herdeiros indiretos e permaneceu inédito e escondido em caixas, armários e gavetas até recentemente nos Estados Unidos na sua cidade natal, Lowell, em Massachusetts.






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O pintor Jack Kerouac: no alto, em Nova York,
1958, fotografado por Jerry Yulsman. Acima,
em foto do documento de identidade em 1943 e
fotografado no estúdio de Tom Palumbo em 1956.

Abaixo, a capa do catálogo Kerouac: Beat Painting
e Kerouac em Nova York, em 1957, com a namorada
Joyce Johnson, fotografados por Jerry Yulsman



















Antes da exposição mais abrangente apresentada no museu italiano e agora com a maior parte do acervo editado em catálogo pela Skira, as pinturas e desenhos de Kerouac apareceram reunidas pela primeira vez em 2004, em “Departed Angels: Jack Kerouac, the lost paintings” (Anjos que partiram: Jack Kerouac, as pinturas perdidas), um catálogo de 200 páginas organizado por Ed Adler e publicado pela Da Capo Press, editora de Boston, Massachusetts. Outras pinturas e desenhos também foram divulgados de forma pontual em fragmentos e amostras que ilustram algumas de suas obras literárias e também como parte integrante em três grandes mostras retrospectivas sobre a arte e a literatura da Geração Beat apresentadas na última década nos Estados Unidos (pelo Whitney Museum em Nova York), na França (pelo Centro Pompidou em Paris) e na Alemanha (pelo Centro de Arte e Mídia ZKM em Karlsruhe).

No Brasil também houve uma mostra abrangente sobre a Geração Beat organizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil e apresentada em 2016 em Brasília e em 2017 em São Paulo e Rio de Janeiro. Mas foi uma mostra de filmes, um evento com foco em fotografias e em uma extensa e variada programação de cinebiografias, documentários, adaptações para cinema de obras da Geração Beat e produções audiovisuais que estabelecem diálogos com a literatura do movimento ou que tiveram atuações ou narração dos seus mais célebres autores, incluindo Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, William S. Burroughs, Michael McClure, Neal Cassady, Rose de Prima, Carl Solomon e Gregory Corso, entre outros.



Aura questionadora e libertária



A coleção de pinturas, desenhos e esboços deixados por Kerouac veio à tona depois da morte de seu último cunhado e amigo de infância na cidade de Lowell, John Stampas, aos 84 anos, em 2017. A irmã de John, Stella Stampas, que morreu há alguns anos e também tinha sido amiga de infância de Kerouac em sua cidade natal, se tornaria a terceira esposa do escritor quando ele retornou em 1966 da última temporada na Europa e foi morar com a mãe. O casamento durou pouco tempo, assim como os casamentos anteriores de Kerouac: o primeiro, com Edie Parker, durou de 1944 a 1948; o segundo, com Joan Haverty, durou menos de um ano, entre 1950 e 1951; e Kerouac também viveu alguns meses com Joyce Johnson entre 1957 e 1958.

Kerouac estava desiludido, muito doente e com muitas dívidas quando foi morar de novo com sua mãe em seus últimos anos de vida. A mãe, Gabrielle-Ange Lévesque, uma católica fervorosa e fundamentalista, aproveitou a oportunidade para isolar Kerouac do mundo, impedindo qualquer contato com seus amigos e seus editores. Os biógrafos não sabem quase nada sobre este período nem sobre o último casamento, arranjado pela mãe com Stella Stampas, que pagou algumas dívidas e fugiu com o escritor e sua mãe para a Flórida, onde conseguiram cortar os contatos de Kerouac com tudo e com todos. Depois da morte do autor, aos 47 anos, em 21 de outubro de 1969, Stella, a última esposa, ficou com as caixas de arquivos de papéis, rascunhos, fotografias, diários, correspondências e textos inéditos, além das pinturas e desenhos. Com a morte de Stella e de John, os herdeiros negociaram a concessão de direitos para a exposição no museu italiano e para a publicação do acervo pela casa editorial Skira.








O pintor Jack Kerouac: no alto, a capa do
catálogo Departed Angels, publicado em 2004.
Acima, pintura em óleo sobre tela criada por
Kerouac no final da década de 1950, sem título,
identificada no catálogo da casa editorial
Skira como Woman with guitar.

Abaixo, pintura sem título do mesmo período;
Sacred Heart (Sagrado coração), pintura sem
data em óleo sobre papel. Também abaixo, o
desenho original de Kerouac para a capa de
On the Road um dos mapas em desenho a
caneta feito no diário de Kerouac para traçar,
cidade por cidade, o trajeto de uma viagem que
ele fez de carona de julho a outubro de 1948
e que, uma década depois, surgiria como
modelo para a jornada de aventuras de
Sal Paradise e Dean Moriartya dupla
lendária de protagonistas de On the Road




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Kerouac_cover_on_the_road.jpg



               



O catálogo inclui também, além de pinturas em óleo sobre tela e aquarelas, alguns desenhos feitos por Kerouac nos rascunhos e originais de seus textos, entre eles a ilustração feita a lápis e caneta de um autorretrato diante de uma estrada infinita que ele projetou para capa do romance “On the Road”, sua obra mais célebre, traduzido no Brasil como “Pé na Estrada” e adaptado para o cinema por Walter Salles com roteiro do porto-riquenho José Rivera, mesmo roteirista da adaptação de Salles para os diários do jovem Che Guevara em “Diários de Motocicleta”, filme de 2004. Kerouac sonhou com uma adaptação para o cinema com Marlon Brando e chegou a escrever uma carta para o ator, mas nunca teve resposta. No final da década de 1970, Francis Ford Coppola comprou os direitos para a adaptação, mas o projeto seria anunciado e cancelado por diversas vezes.

Somente em 2010 o projeto para transformar “On the Road” em filme teve início sob a direção de Walter Salles. Contando com a co-produção da American Zoetrope de Coppola, o filme finalmente estreou em 2012 na competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes. Consagrado como “Bíblia dos hippies”, obra de referências lendárias na biografia de astros e estrelas de primeira grandeza da literatura, da música e do cinema como Bob Dylan, John Lennon, Jim Morrison, Janis Joplin, Lou Reed, David Bowie, Patti Smith, Kurt Cobain, Francis Ford Coppola, Gus Van Sant, Terry Gilliam, Wim Wenders, Jim Jarmusch, Oliver Stone ou David Lynch, entre muitos outros, e elevado à categoria de leitura obrigatória para gerações e gerações desde a primeira edição em 1957, passando pelo movimento estudantil, pela onda da contracultura, pela liberação feminista e o movimento pelos direitos dos homossexuais, “On the Road” saiu editado sem a capa planejada pelo autor, mas foi um sucesso estrondoso desde que chegou às livrarias em lançamento da pequena Viking Press. Até mesmo as críticas negativas, que classificavam o livro como “imoral” e 
má influência”, foram transformadas em um ingrediente a mais de publicidade espontânea para iluminar e expandir sua aura mística de obra questionadora, rebelde, libertária.

A publicação veio depois de sete anos de tentativas frustradas de apresentação em editoras, período em que o autor viajava com o original datilografado guardado na mochila. O original também é lendário pela gênese de ter sido escrito na forma de “escrita automática”, à maneira dos surrealistas franceses e do estilo be-bop dos músicos de jazz, na base do improviso criativo, sem parar para pensar ou reformular frases, totalmente datilografado em apenas três semanas em um rolo quilométrico de texto colado página a página com fita adesiva. Assim como seus textos fragmentados em diversas formas narrativas, a composição visual de Kerouac em pinturas e cores inclui referências a retratos distorcidos de pessoas que ele conhecia ou admirava, seus colegas escritores e músicos ainda anônimos, e também famosos como a atriz Joan Crawford ou o escritor Truman Capote. Há também muitas imagens de figuras nuas, eróticas, formas abstratas, paisagens incertas, crucifixos e outros signos relacionados ao sagrado do catolicismo em que ele foi criado e às crenças e ensinamentos identificados por sua aproximação com o budismo.






      


O pintor Jack Kerouac: no alto, pintura em
óleo sobre tela sem data identificada como
Woman (Joan Rawshanks) in blue with black hat,
inspirada em uma filmagem com a estrela
Joan Crawford que Kerouac assistiu por acaso
nas ruas de Los Angeles, em 1952. Acima,
William Burroughs e Jack Kerouac no outono
de 1953, declamando poemas, fotografados por
Allen Ginsberg em seu apartamento, em Nova York.

Abaixo, Truman Capote, pintura de 1959; e quatro
obras com temática religiosa: 1) uma pintura
em óleo sobre tela também de 1959 que
retrata o cardeal Giovanni Montini vestido
como papa, quatro anos antes do cardeal se tornar
o Papa Paulo VI; 2) uma aquarela datada de 1959
com o título Old Angel Midnight Over Lowell 
(Velho Anjo da Meia-Noite sobre Lowell);
3) um desenho com giz de cera colorido sobre
papel com o tema da crucificação de Cristo,
feito por Kerouac para sua sobrinha na década
de 1960; e 4) um desenho em grafite sobre
papel com data de 1956 que também tem
a crucificação como tema.

Também abaixo, Kerouac apresentando seus
poemas em um sarau no Artist's Studioem
Nova York, 1959, em fotos de Fred W. McDarrah;
e uma amostra de três de suas pinturas 
em óleo
sobre tela, todas sem data sem título, a primeira
identificada como Sunset scene; os dois amigos
inseparáveis que cruzam os Estados Unidos
viajando de carro, Sal Paradise (interpretado por
Sam Riley) Dean Moriarty (Garrett Hedlund),
em cena da versão no cinema de Walter Salles
para On The Road; Kerouac na praia de Tangier,
no Marrocos, em 1957, e com Peter Orlovsky,
amigos inseparáveis, na mesma viagem ao
Marrocos, fotografados por
Allen Ginsberg;
Kerouac com o fotógrafo Robert Frank
em Nova York, em 1959, fotografados
por John Cohen
e Kerouac caminhando
n
o Central Parkem Nova York, também
em 1959, fotografado por Robert Frank














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Expressionismo abstrato



Uma das referências ao sagrado chama atenção do observador: uma pintura em cores expressionistas e sombrias da época da publicação de “On the Road” traça um retrato do cardeal italiano Giovanni Montini, que anos depois, em 1963, se tornaria o papa Paulo VI. Kerouac nunca o conheceu, mas uma vez disse que viu a imagem do cardeal em trajes de papa durante ou depois de uma alucinação com mescalina ou LSD, e segundo informa o texto de apresentação Sandrina Bandera, ele teve como modelo para a pintura a óleo tão somente uma fotografia publicada pela revista “Time”. Entre outras revelações ou possibilidades, o leitor que conhece a literatura de Kerouac também vai perceber, nas imagens, algumas cenas que sugerem identificação com suas tramas e seus personagens –– caso da pintura nomeada como “Mulher de azul com chapéu preto”, uma figura andrógina, ambígua, fumando um cigarro, que traz à memória de imediato Joan Rawshanks, de seu romance de publicação póstuma “Visões de Cody”, que tem aquele célebre aviso do narrador ao leitor: “Estou escrevendo este livro porque vamos todos morrer...”

Escrito entre 1951 e 1952 e considerado pelo autor sua obra-prima, “Visões de Cody” seguiria inacabado, com apenas uma edição de fragmentos em pequena tiragem de 750 exemplares feita em 1960 pela New Directions, editora consagrada à Geração Beat em Nova York e fundamental para a promoção dos autores ligados ao movimento, assim como a livraria e editora City Lights, fundada em 1953, em San Francisco, por Lawrence Ferlinghetti. Como parte do espólio de Kerouac, “Visões de Cody” só foi publicado na íntegra em 1973, revelando sua dimensão como estudo em tom autobiográfico sobre o herói de “On the Road”, Dean Moriarty, que neste livro é chamado de Cody Pomeray. Joan Rawshanks, que tem uma seção inteira em destaque no livro, teve inspiração, segundo Kerouac, na lembrança de uma noite quente e sufocante de 1952 em San Francisco em que ele assistiu, por acaso, a estrela Joan Crawford, a “vamp”, “femme fatale” de Hollywood, filmando nas ruas as cenas de um thriller criminal e “noir’ que depois do lançamentos nos cinemas se tornaria, para surpresa geral, um retumbante fracasso de público e de crítica, “This woman is dangerous” (Essa mulher é perigosa).




























Seria equivocado ler essas obras de arte usando o método tradicional de um crítico de arte”, escreve Sandrina Bandera, destacando a coragem do trabalho do escritor que mesmo com o sucesso avassalador alcançando com “On the Road” ousou enveredar por outras searas como a música jazzística, os pinceis, as telas, as formas abstratas e as paletas de cores. “Porque Kerouac não era totalmente um artista plástico e nem somente um escritor. É preciso antes considerar que ele foi e continua sendo um fenômeno pop-cultural importante e que estas pinturas e desenhos agora são uma parte essencial daquela entidade potente reconhecida como Jack Kerouac. São como os membros de um único corpo girando em seu próprio eixo, tão dinâmicos que precisam de uma abundância de ferramentas diferentes para se expressar”.



Uma jornada poética



Enquanto relata as fontes de pesquisa para o trabalho de curadoria da primeira exposição no museu italiano e para a edição do catálogo, que incluiu, além do acervo dos herdeiros de Kerouac, obras cedidas por colecionadores como os irmãos Arminio e Paolo Ciolli, Sandrina Bandera revela as relações que alguns biógrafos estabelecem entre a dedicação do autor às artes plásticas e as mais diversas referências encontradas nas obras de literatura que ele produziu. Estudo e também inspiração, suas experiências sucessivas e simultâneas com uma ou outra forma de expressão são tentativas permanentes de testar seus limites, destaca a curadora, assim como têm significados muito especiais ao apontar suas relações com autores que influenciaram muito sua obra, com artistas plásticos e fotógrafos que conheceu e com os quais travou relações de amizade ou com os mestres da história da arte europeia que muito admirava, todos com um lugar decisivo no percurso de sua formação. No acervo das pinturas e desenhos que produziu, a diversidade de técnicas mistas, aquarelas, óleo sobre tela, acrílico sobre madeira ou formas com lápis, caneta e tinta na mesma obra revelam que seu campo de influências foi muito amplo. 








O pintor Jack Kerouac: acima, pintura d1960
em óleo sobre tela intitulada The slouch hat
(Chapéu descuidado) e The silly eye (portrait
of William Burroughs), pintura de 1959.
Abaixo, Kerouac fotografado por John Cohen
na noite de Nova York, em 1959, com a artista
plástica Dody Muller, que foi sua amante
durante anos, e com o músico David Amham;
e duas obras marcantes do artista Kerouac:
Raven (Corvo), pintura em óleo sobre tela,
sem data; e um desenho a lápis e caneta sem
data identificado como Retrato de Dody Muller
pelos curadores da mostra e do catálogo.

Também abaixo, pintura em óleo sobre papel
com o detalhe da mão escolhida para estampar
a capa do catálogo editado pela Skira,
seguido de desenho a lápis sobre papel e
aquarela sobre papel, ambos sem título e sem data;
e um visitante anônimo em uma exposição na
Biblioteca Pública de San Francisco, Califórnia,
observa os rolos originais de manuscritos de
"On The Road", em fotografia de 2006 de
Justin Sullivan. Na última imagem,
Allen Ginsberg e Bob Dylan leem poemas
diante do túmulo de Jack Keroauc no
Edson Cemetery na cidade de Lowell,
fotografados por Ken Regan em 1975












Desta formação plural e dispersa também fazem parte: o círculo de amigos da Geração Beat que o escritor conquistou nas temporadas de aventuras e viagens permanentes de costa a costa, de Nova York a San Francisco (a mais conhecida delas com seu maior parceiro, Neal Cassady, uma amizade que surgiu nos tempos de estudante na Universidade de Columbia e foi o ponto de partida que gerou “On the Road”); as primeiras viagens internacionais de Kerouac engajado na Marinha; as paixões amorosas sucessivas, tão intensas como passageiras; as surpresas com as descobertas das invenções dos surrealistas franceses das décadas de 1920 e 1930; a dedicação tardia à cultura italiana; a aproximação afetiva e criativa com o fotógrafo e cineasta Robert Frank e, em maior ou menor grau de intimidade, com os mais destacados expoentes do expressionismo abstrato de Nova York, incluindo, entre outros mentores, Jackson Pollock, Willem de Kooning, Stanley Twardowicz, Larry Rivers, Franz Kline, Adolph Gotlieb, Philipe Guston, Clyfford Still e, principalmente, Dody Muller, que permaneceu sua amante durante anos.

Para quem conhece o universo literário de Kerouac (“um índio, norte-americano e bretão”, como definiu certa vez seu parceiro Allen Ginsberg), e de seus conterrâneos e contemporâneos da Geração Beat, as cenas e sugestões de suas pinturas e desenhos parecem mesmo completar, com confidências nas ilustrações, seus textos de poesia e prosa poética, pois as imagens estão em cruzamento constante com seus escritos. É assim, também, a conclusão de Sandrina Bandera, que escreve –– “as pinturas em seu conjunto reconstroem uma narrativa na qual as obras escritas e as incursões na arte figurativa coincidiram perfeitamente em diferentes aspectos para construir a mesma jornada poética”. A literatura de Kerouac, que alcançou destaque e importância universal na segunda metade do século 20, assim como suas obras em artes plásticas agora encadeadas, no fim das contas revelam e confirmam que tanto a palavra escrita, como a composição imagética de formas e de cores, são apenas maneiras complementares e simultâneas para expressar e para experimentar as complexidades diversas, talvez infinitas, das formas de tradução e de registro às quais damos o nome genérico e abrangente de linguagem.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O pintor Jack Kerouac. In: Blog Semióticas, 5 de fevereiro de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/02/o-pintor-jack-kerouac.html (acessado em .../.../...).



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