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13 de agosto de 2019

Vik Muniz na Arte Sacra






A história da arte é a história da luta de todas 
as representações óticas, dos espaços inventados 
e das figurações. É a história da luta das imagens. 

–– Carl Einstein (1885-1940).    



São fotografias. Mas um olhar atento descobre logo, nos detalhes, materiais surpreendentes que compõem em pequenas partes cada uma das imagens. Tinta, açúcar, molho de tomate, chocolate, geleia, algodão, botões, fragmentos de plástico, pedras, madeira, folhas e caules de plantas, terra, metal, tiras e remendos de anúncios de publicidade, pedaços de folhetos coloridos, de revistas, de jornais, de fitas, de embalagens para presentes e de outros recortes de papel formam as novas obras que Vik Muniz montou para criar ilusões de ótica e depois fotografou. Batizada de “Imaginária”, a série, que reúne imponentes fotografias, 20 no total, ampliadas com dois metros de altura e emolduradas, como os modelos solenes das pinturas originais de santos católicos a que fazem referência, foi apresentada em destaque no festival de fotografia Rencontres d’Arles (veja o link no final deste artigo), realizado a cada ano entre julho e setembro na cidade de Arles, às margens do mar Mediterrâneo, no sul da França.

Criado em 1970, o festival se mantém como um dos grandes eventos internacionais de fotografia e reúne dezenas de mostras que vão dos acervos históricos até as novas tendências, os experimentos recentes em novas tecnologias de câmeras e painéis de atualidades sobre fotojornalismo. As imagens de Vik Muniz frequentaram o festival nas últimas duas décadas como amostragens temáticas e em séries inéditas – como esta “Imaginária”, que pela primeira vez é exibida na Europa. Em entrevistas e no dossiê de imprensa distribuídos pela organização do festival, ele explica que a intenção foi homenagear grandes artistas que criaram imagens que há séculos fazem parte do imaginário coletivo, mas artigos na imprensa internacional destacam que a nova série, colorida e fulgurante, não esconde um melancólico tom de “réquiem”, de celebração fúnebre, em relação direta com a violência e as ações de destruição em vários níveis provocadas pelo governo de extrema-direita e de orientação fascista que em 2019 tomou o poder no Brasil.






Vik Muniz na Arte Sacra: no alto, retrato
do artista por Carolyn Cole. Acima e abaixo,
as releituras para imagens sagradas dos
santos católicos segundo Vik Muniz: acima,
Santo Agostinho (após Philippe de Champaigne).
Abaixo, Crucificação (após Thomas Eakins) e
Imaculada Conceição ou Nossa Senhora
da Conceição, a pintura original de 1768
do mestre italiano Giovanni Battista Tiepolo
e a recriação feita por Vik Muniz com materiais
nada convencionais. Todas as imagens fazem
parte do dossiê de imprensa do festival
internacional de fotografia Rencontres d’Arles












O simulacro da cópia e o peso da tradição



Diante das novas experiências de Vik Muniz com sua “Imaginária”, também são inevitáveis as referências sobre questões como o valor de culto e o valor de exposição, as interfaces entre o original e suas cópias, assim como as aproximações e as relações milenares entre a religião e a história da arte, entre o sagrado e o profano. Ao reconstruir formas e imagens tradicionais de obras de arte a partir de simulacros imprevistos, o artista provoca uma mistura por certo iconoclasta, mas que permite também interpretações extremas, em variações pontuadas tanto por veneração como por toques generosos de ousadia e ironia, diante do peso da tradição. Ao tomar como modelo figuras de devoção, perenes em seu significado e sua originalidade, as réplicas de Vik Muniz questionam a representação da obra de arte e o fascínio que o mistério da fé exerce, há séculos, sobre os grandes artistas.

A criação artística sempre teve fascinação pelo mistério da fé”, argumenta Vik Muniz em um breve depoimento reproduzido no dossiê de imprensa distribuído pela organização do festival. “A arte mistura elementos fundamentais que vêm da crença e das experiências coletivas e individuais para promover um consenso sobre a realidade, seja ela presentificada ou apenas imaginada. Com a obra de arte, a verossimilhança não é mais que uma ilusão. Escrever não é descrever, pintar não é evocar, mesmo se constatamos que grande parte do que admiramos na história da arte está, objetivamente, relacionada à arte sacra”, conclui. Segundo a descrição apresentada pelos organizadores da exposição, a nova série de Vik Muniz explora, incansavelmente, as possibilidades da fotografia e as mais variadas possibilidades da arte que buscam uma tradução para o indizível.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima,
as releituras para as imagens clássicas
de Santa Inês (após Simon Vouet) e
São Benedito (após Jose Montes de Oca).

Abaixo, as releituras de Maria Madalena
(após Giovanni Girolamo Savoldo)
e São João Batista no Deserto
(após Caravaggio)









Realidade e representação: enganar o olho



O indizível, no caso da série “Imaginária”, provoca um olhar que nunca é neutro nem desinteressado. Diante das imagens que o artista Vik Muniz selecionou e “montou” com a intenção de construir uma ilusão de ótica, provocando uma semelhança inegável e irrecusável com um modelo religioso pré-existente, há uma quase obrigatória curiosidade que enlaça a experiência da percepção à identificação dos detalhes. Identificado pelo olhar mais atento, cada detalhe interroga o pensamento e leva o observador a considerar tanto o modelo original como a cópia que no momento se apresenta e a pensar, talvez, na origem da própria representação, na remota pré-história da arte, no sentido que ela evoca e no que ela desencadeia sobre o que seja falso ou verdadeiro.

A partir da brutalidade apenas aparente dos materiais utilizados, os pequenos fragmentos foram reunidos para “enganar o olho” e formar a imagem. Ao final do processo de montagem, o artista registrou tudo em fotografias – porque a arte, neste caso específico, também é a arte da fotografia. Conhecidas desde a Antiguidade Clássica pelos mestres da arquitetura e da pintura, as técnicas de “trompe l’oeil” (em francês, “enganar o olho”) não surgem como novidade nas obras de Vik Muniz. Na verdade, são estratégias presentes na maioria de sua produção, seja em recriações de obras muito conhecidas, seja em retratos de celebridades ou em recomposições de mosaicos sobrepostos e fotografados.
 
As estratégias de Vik Muniz, para o olhar do observador mais atento, trazem pontos de semelhança com a arte do holandês M. C. Escher (1898-1972), mestre incomparável na criação das ilusões de ótica em padrões geométricos, mas também remetem às montagens e colagens criadas pelos primeiros mestres do cubismo, Pablo Picasso e Georges Braque, além de outros artistas das vanguardas na arte moderna, desde o começo do século 20. A partir da década de 1960, estas mesmas estratégias de composição e de justaposição tornaram-se uma constante na Pop Art de nomes como Andy Warhol, Jasper Johns, Peter Blake, Robert Rauschenberg, Tom Wesselmann, Claes Oldenburg e Roy Lichtenstein, ou de brasileiros como Nelson Leirner, Athos Bulcão, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Regina Silveira, entre outros.











Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Tiago, o Maior (após Guido Reni)
e Nossa Senhora de Guadalupe (imagem
da tradição religiosa do México).

Abaixo, São Pedro (após Girolamo Batoni)
e Santa Luzia (imagem da tradição da Itália)








Apagando as diferenças



A principal novidade das práticas de Vik Muniz, em especial nesta “Imaginária”, talvez esteja na “remediação”, ou no uso de novas mídias e tecnologias para reconstituir ou reconfigurar, reinventando ou apagando a diferença entre novas formas de expressão e formas cristalizadas em aparatos tradicionais. A palavra “remediação” (do latim “remedere”, curar, restaurar) foi apresentada na década de 1960 por Marshall McLuhan para identificar uma inter-relação entre os meios de comunicação e para afirmar que o conteúdo de uma mídia é, sempre, uma retomada de conteúdos de outra mídia.
 
Mais recentemente, o mesmo conceito de "remediação" retornou às discussões teóricas sobre meios de comunicação, história da arte e literatura como um neologismo proposto por Jay Bolter e Richard Grusin (no livro “Remediation: Understanding New Media”, publicado no ano 2000 por The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, USA). No contexto das teorias da literatura e da comunicação, Bolter e Grusin lançaram o neologismo para refletir sobre novas versões baseadas nos escritos de ficção científica e horror de Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), com foco nos diferentes tipos de mídias: eletrônicas, impressas, digitais.

Remediação é um processo que ocorre quando um meio (de representação, de comunicação) passa a imitar ou incorporar elementos de outros meios, ou de outras mídias. Como processo, tem aproximações ou similaridades com as estratégias de citação, de paródia, de paráfrase e de intertextualidade, mas o que está em destaque é a transposição da obra original. Segundo Bolter e Grusin, a internet, por sua própria natureza, "remedia" todos os meios, fazendo a transposição de outras mídias que na origem estiveram veiculadas em jornais, nas revistas, na TV, no rádio, no livro, nas obras de arte e em todas as demais formas e tipos de linguagem e comunicação.

O termo remediação, portanto, tem equivalências diretas com as estratégias usadas por Vik Muniz na medida em que uma mídia “toma emprestado” de outra mídia 
as questões de forma e conteúdo para constituir, remediar, ou "fazer de novo", uma adaptação ou transposição. As estratégias nesta Imaginária evidenciam, também, relações com pressupostos específicos da história da arte, tais como o valor de culto e o valor de exposição, em suas referências diretas às relações fluidas e instáveis, quase sempre cambiantes, entre categorias conceituais de “cultura de massa”, “cultura popular e “cultura erudita”.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Sebastião (após José de Ribera) e
Santa Rita de Cássia (imagem da tradição).
Abaixo, a releitura para Santo Antônio de Pádua
(após Tanzio da Varallo) e Santa Terezinha
(segundo imagem da tradição). No final da página,
releituras de Vik Muniz para São Miguel Arcanjo
(após Darko Topalski) e para São Jorge e
o Dragão (após Gustave Moreau)








No contraste ou na fusão da riqueza das cores e das formas, situando em uma mesma obra elementos da expressão labiríntica e fragmentária pela escultura, pelo desenho, pela pintura, pela fotografia (que, ao final, sintetiza uma remontagem de todo o processo), Vik Muniz reúne e apresenta, em um mesmo plano, vários discursos simbólicos ou várias dimensões sobrepostas para engendrar a ilusão de uma só forma, um só objeto. A diversidade de materiais e de técnicas constrói uma unidade e se transforma em uma só imagem, que por sua vez reproduz, por analogia ou semelhança, uma imagem anterior muito conhecida.

O paradoxo de atrelar o mosaico e o múltiplo, o plural, a complexidade, à construção de uma só imagem, estabelece ainda um alerta importante para o observador, porque transforma a percepção da realidade e a percepção sobre a representação em coisas semelhantes e visualmente equivalentes. Observar com atenção a metamorfose dos detalhes reunidos pelo artista, que se fundem para constituir a ilusão de uma forma conjunta, torna-se também uma questão ideológica, porque denuncia que não há mais lugar para o olhar ingênuo e que o sentido da visão não pode ser separado da interpretação.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Vik Muniz na Arte Sacra. In: Blog Semióticas, 13 de agosto de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/08/vik-muniz-na-arte-sacra.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual às exposições do Rencontres d'Arles,  clique aqui.
























11 de novembro de 2017

Levantes por Didi-Huberman






A perda, talvez inevitável em termos de realidade política,

consumou-se, de qualquer modo, pelo esquecimento, por um

lapso de memória que acometeu não apenas os herdeiros,

mas também os atores, as testemunhas, aqueles que por um

fugaz momento retiveram o tesouro nas palmas de suas mãos.

–– Hannah Arendt (1906-1975).  

  


A palavra “levante” tem muitos significados além do ato ou efeito de erguer ou levantar. Os dicionários registram dúzias de sinônimos, todos com o mesmo sentido rebelde de desobediência, desordem, irreverência, indisciplina, insubordinação, insurreição, contestação, rebelião, revolta, motim, protesto, manifestação, reivindicação, sublevação, subversão, transgressão, teimosia, tumulto, resistência, revolução. Levantes, no plural, com todas as variantes que a palavra representa, é o tema da exposição internacional que chegou ao Brasil e está aberta ao público no Sesc Pinheiros, em São Paulo, até 28 de janeiro de 2018, seguindo depois uma agenda itinerante que inclui temporadas no México e depois no Canadá e outros países.

Inaugurada no espaço Jeu de Palme em Paris, França, onde ficou em cartaz de outubro de 2016 a janeiro de 2017, sob curadoria do filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, e com o título original de “Soulèvements”, a exposição teve temporadas nas cidades de Barcelona, na Espanha, e Buenos Aires, na Argentina, antes de chegar a São Paulo. A proposta original, através da exibição de cerca de 200 obras dos últimos dois séculos, de diversos países, entre instalações, fotografias, pinturas, desenhos, gravuras, vídeos, filmes e documentos diversos, é, nas palavras do curador, apresentar múltiplas maneiras de transformar a quietude em movimento, a submissão em revolta, a renúncia em alegria expansiva.










Levantes por Georges Didi-Huberman: acima,
o filósofo e historiador fotografado em junho de
2017, em Buenos Aires, por Bernardino Avila
para o jornal Página 12, e uma imagem das
instalações da exposição no Sesc Pinheiros,
em São Paulo. Abaixo, o catálogo da exposição,
que reproduz como imagem de capa uma
fotografia de 1969 de Gilles Caron sobre uma
ação de resistência de jovens manifestantes
contra discriminação dos católicos pelo
governo protestante na Irlanda do Norte.
No alto, saguão da exposição em São Paulo











A cada nova cidade que a exposição visita, desde Barcelona e Buenos Aires, a curadoria tem a iniciativa inédita em eventos semelhantes de inserir novas obras diretamente ligadas ao contexto local. No caso brasileiro, Didi-Huberman providenciou como complemento uma série de conteúdos relacionados à escravidão, à negritude e à pobreza – temas representados em obras que ele selecionou de nomes como Sebastião Salgado, Hélio Oiticica e Oswald de Andrade. Não se trata, contudo, de apresentar uma antologia de imagens de protestos populares, conforme esclarece o curador em entrevistas e no catálogo da exposição, editado com o acervo das obras e com ensaios escritos especialmente para o evento por pensadores de destaque, entre eles a norte-americana Judith Butler e os franceses Nicole Brenez e Jacques Rancière.



Uma constelação de imagens



O objetivo de “Levantes”, explicou Didi-Huberman em uma entrevista em junho de 2017 ao jornal “Página 12” da Argentina, é apresentar não uma antologia cronológica de imagens, mas uma constelação em que as imagens se relacionam em cinco blocos ou eixos: “elementos”, “gestos”, “palavras”, “conflitos”, “desejos”. “As imagens reunidas, a princípio”, destaca o curador, “funcionam por meio dos gestos. O fato é que quando se está alienado e se protesta contra essa alienação, o protesto toma uma forma corporal: é o braço que se levanta, o corpo que se movimenta, a boca que se abre, entre palavras e cantos, tudo isso é corporal. O corpo humano é a coisa mais antiga que possuímos, o corpo humano é mais antigo que um fóssil, que uma obra de arte grega; o corpo humano é muito antigo, é nossa antiguidade.”







Levantes por Didi-Huberman: no alto, duas gravuras
de Francisco de Goya datadas do início do século 19,
El cargador e No harás nada con clamor. Acima,
a comemoração dos marinheiros no motim a bordo
do Encouraçado Potemkin, filme de 1925 de
Serguei Eisenstein. Abaixo, crianças brincando em
Barcelona, na época da Guerra Civil Espanhola,
em fotografia de 1936 de
Agustí Centelles






A investigação que a curadoria de Didi-Huberman propõe ao visitante da exposição, ou mesmo ao leitor que observa as imagens do catálogo, segue o percalço dos gestos – dos trabalhadores braçais individualizados em desenhos e aquarelas do espanhol Francisco de Goya (1746-1828) às associações de revolta coletiva em cenas dos filmes do russo Serguei Eisenstein (1898-1948) e daí às representações contemporâneas da contracultura e das contestações mais diversas da atualidade. Em cada gesto, diferentes formas de representações dos levantes de rebeldia, sejam elas de apenas um indivíduo ou de multidões engajadas em transformações sociais, políticas, religiosas, éticas, estéticas. Na maioria das representações, não por acaso, o protesto contra a opressão surge na imagem de um mesmo gesto que se repete aqui e ali com algumas variações: os braços erguidos em direção ao céu.

No catálogo da exposição, Didi-Huberman também ressalta esta coincidência do mesmo gesto. “Levantar-se é resistir, erguer o punho ou o braço é resistir”, destaca. “Antes mesmo de começar e levar adiante uma ação voluntária e compartilhada, o levantar se faz por um simples gesto que, de repente, vem revirar a prostração que até então nos mantinha submissos (por covardia, cinismo ou desespero). Levantar-se é jogar longe o fardo que pesava sobre nossos ombros e entravava o movimento. É quebrar certo presente – mesmo que a marteladas, como queriam Friedrich Nietzsche e Antonin Artaud – e erguer os braços ao futuro que se abre é um sinal de esperança e de resistência. É um gesto e uma emoção (…). No gesto do levante, cada corpo protesta por meio de todos os seus membros, cada boca se abre e exclama o não da recusa e o sim do desejo.”










.





Levantes por Didi-Huberman: no alto, 
dois fotogramas de Le Route, filme de 2006
de Chen Chieh-Jen, artista de Taiwan. Acima,
Beaubien Street, fotografia de 1971 do
norte-americano Ken Hamblin. Abaixo,
fotografia de Eduardo Gil, da Argentina,
Niños desaparecidos, secunda marcha de la
Resistencia, Buenos Aires, 9-10 décembre
1982; e uma das fotografias de Bruno Barbey
em destaque, Manifestation, Paris,
France, mai 1968








Gestos contra tempos sombrios



A atualidade dos gestos de resistência e de rebelião contra os tempos sombrios do discurso do ódio e das ações violentas, de grupos de direita e extrema direita, move a constelação de imagens, textos e objetos selecionados por Didi-Huberman para convidar a reflexões sobre as manifestações populares por meio da arte. Porque, afinal, não há levantes e resistência sem arte, sem música, hinos, palavras de ordem, sem imagens que ficarão na memória.

O próprio curador alerta, na apresentação à exposição, que um levante pode acabar em lágrimas de decepções, em lágrimas de mães chorando sobre os filhos mortos, mas ele também adverte que essas lágrimas não são de esgotamento: elas ainda podem ser força de ação e paixão, de teimosia e rebeldia –– “como nas marchas de resistência das mães e avós de Buenos Aires (…), seja na floresta do Chiapas, na fronteira greco-macedônica, em qualquer parte da China, no Egito, em Gaza ou na selva das redes da internet, pensadas como uma Vox Populi. Sempre haverá uma criança que pule o muro.”

Movimentos políticos ou objetos de arte? A potência física e visual dos corpos que resistem contra as formas de opressão está sempre na fronteira dos sentidos que podemos encontrar, conforme destacou Didi-Huberman na conferência “Imagens e Sons como Forma de Luta”, que marcou a abertura da exposição “Levantes” em São Paulo. Segundo o curador, “as imagens pertencem a todo mundo. Não há autoctonia, nem propriedade no universo das imagens. Como todos os objetos culturais, as imagens são feitas para migrar, a exemplo do selo que é feito para atravessar uma fronteira. Porém, o legado dos levantes depende de nós, da nossa capacidade de transmitir o sentido dessas imagens.”









Levantes por Didi-Huberman: acima,
fotogramas extraídos de Idomeni, 14 mars
2016, Frontière gréco-macédonienne, filme
de Maria Kourkouta, da Grécia. Abaixo,
fotografia de Eustachy Kossakowisk registra
a performance de Tadeusz Kantor em 1967
Panoramic Sea Happening, Sea Concerto,
Osieki (extraído de uma série).

Também abaixo, fotogramas extraídos de
Cruzar un Murofilme de 2013 do chileno
Enrique Ramirez que mostra a fotografia
e também como ela foi produzida;
Parangolé - Encuentros de Pamplona,
fotografias e montagem de 1972 de
Hélio Oiticica e Leandro Katz que
fazem parte do acervo do Museo Nacional
Reina Sofia de Madri, Espanha

















Na trajetória de Didi-Huberman, que nas últimas duas décadas está presente com seus livros e ensaios como teórico da arte e da cultura em destaque e como referência importante em diversas áreas da pesquisa acadêmica, a exposição “Levantes” marca um novo capítulo no percurso de curadoria que ele iniciou em 2010 com a mostra intitulada “Atlas –– Como levar o mundo às costas?”, inaugurada no Museu Reina Sofía, em Madri. “Atlas”, a exposição, foi motivada pelos estudos de Didi-Huberman sobre o historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), conhecido pela criação de pranchas de montagens iconográficas, nomeadas por ele de “Atlas Mnemosyne”, um projeto concebido entre 1924 e 1929 e que ficou inacabado na meta de relacionar uma grande variedade de imagens de épocas e de geografias distintas.



Diálogo entre passado e presente



O observador atento poderá perceber que a figura mitológica do Atlas, o titã gigantesco imaginado na Grécia da Antiguidade que ergue os braços para sustentar o peso do globo terrestre, permanece como referência incontornável para a exposição “Levantes”. As diferenças são sutis: enquanto em “Atlas” o trabalho de curadoria encontrava analogias visuais entre representações diversas, exibindo lado a lado gravuras, vídeos e fotografias aleatórias que estabeleciam um certo diálogo conceitual, em “Levantes” são as constelações de variações sobre gestos de punhos e braços que fazem emergir trajetórias e memórias de manifestações históricas –– todas elas construindo entre si um diálogo intenso entre passado e presente, entre repetição e sobrevivência das formas e dos ideais.







Levantes por Didi-Huberman: acima,
Mujer con la bandera, fotografia de 1928
da italiana Tina Modotti no México.

Abaixo, Black Panthers in Chicago, Illinois,
fotografia de 1969 do japonês Hiroji Kubota;
e uma imagem de um fotógrafo anônimo que
registra t
rabalhadores da construção em greve
levantando os punhos em saudação durante
um comício no Bois de Vincennes, em Paris,
em 13 de junho de 1936











À imensidão de levantes em épocas e geografias diversas, dos primórdios da Revolução Industrial à comoção das multidões em Havana no auge da Revolução Cubana, das legiões de estivadores chineses de meados do século 20 aos rostos contemporâneos nas fileiras do Occupy Wall Street em Nova York, de momentos dramáticos do movimento feminista a surpreendentes flagrantes anônimos ou desconhecidos sobre a natureza humana de mulheres e homens em seus anseios por melhores condições de vida, Didi-Huberman acrescenta, na montagem da exposição no Brasil, referências à memória da resistência e das insurreições em território nacional. A História sempre pode ser reconstruída através de cacos e de resquícios que foram considerados como detritos pela história oficial –– como professa o pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940), um dos mestres na linhagem a que se filia o trabalho e as ideias de Didi-Huberman.



Testemunho, paradoxo, esperança



Assim é que o público pode encontrar na montagem brasileira de “Levantes” as fotografias de Sebastião Salgado que registram ações do MST (Movimento dos Sem Terra), o cartaz “Seja marginal, seja herói” e os flagrantes libertários dos Parangolés de Hélio Oiticica (a partir de fotogramas que Eduardo Viveiros de Castro extraiu do filme “H.O.” de Ivan Cardoso), a poesia dos manifestos Pau-Brasil e Antropofágico de Oswald de Andrade, fragmentos de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, fiéis na procissão de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, Minas Gerais, em fotografias da década de 1950 de Marcel Gautherot, e a percepção do racismo em imagens da série “Dito Escuro”, que Rafael RG registrou em 2014. Entre tantas imagens de impacto, que provocam memórias e reflexões e paixões, Didi-Huberman repete a presença de quatro fotografias em pequeno formato que fazem parte de momentos anteriores de sua reflexão filosófica em livros, ensaios e conferências.






Levantes por Didi-Huberman: acima, procissão
do Bom Jesus do Matosinhos em Congonhas
,
Minas Gerais, em fotografia da década de 1950
de Marcel Gautherot. Abaixo, Os ícones da
vitória
, fotografia de 1997 de Sebastião Salgado
que registra o Movimento dos Sem Terra.
No final da página, as quatro fotografias
tiradas clandestinamente por membros dos
Sonderkommandos, em agosto de 1944, no
campo de extermínio em
Auschwitz-Birkenau






As quatro fotografias, à primeira vista enigmáticas e quase indecifráveis, permanecem como os únicos registros visuais que sobreviveram ao tempo dos campos de extermínio do Holocausto na Segunda Guerra, em Auschwitz-Birkenau. São imagens realistas e de valor simbólico muito forte que só recentemente se tornaram conhecidas, depois de décadas. O curador Didi-Huberman confessa que as quatro fotografias estão na gênese da ideia inicial que resultou no projeto “Levantes”.

Alguns pedaços de película de filme, alguns gestos políticos: as quatro fotografias foram feitas em agosto de 1944, clandestinamente, por um integrante dos Sonderkommandos, os pequenos grupos de judeus que tiveram a terrível tarefa de colocar na câmara de gás seus semelhantes, depois enterrá-los, sendo que eles próprios também eram executados em seguida. As fotografias ficaram escondidas em um tubo de pasta de dente com uma breve carta explicativa. Perturbadoras, mostram à distância fileiras de mulheres e, lado a lado, cadáveres queimados. Imagens que revelam. Testemunhos, extremos, que resistiram à violência, ao tempo, e chegaram ao futuro. E que também são, na escuridão, por paradoxo, esperança.



por José Antônio Orlando


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Levantes por Didi-Huberman. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/11/levantes-por-didi-huberman.html (acessado em .../.../...).






Para assistir a conferência Imagens e Sons como Formas de Luta, de Georges Didi-Huberman,  clique aqui.


Para ler a entrevista de Didi-Huberman ao jornal da Argentina Página 12 sobre a exposição Levantes,  clique aqui.


Para ler a entrevista de Didi-Huberman à revista francesa L'Humanité sobre a abertura da exposição Soulèvements na França,  clique aqui.









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