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11 de novembro de 2021

Cenas da Era do Rock

 




Saxum volutum non obducitur musco.      

    A rolling stone does not gather moss”. 

(Pedra que muito se move não junta musgo.)       

–– Publius Syrus (século 1° antes de Cristo).      



São fetiches para garantir a felicidade de muitas legiões de fãs: uma coleção de centenas de fotografias de grandes astros e estrelas da Era do Rock, que permaneciam inéditas desde as décadas de 1960 e início de 1970, e que só agora reveladas ao público. Trata-se do acervo do fotógrafo inglês Alec Byrne, que desde o final dos anos 1960 cobriu a cena cultural de Londres e acompanhou a trajetória de shows e entrevistas de bandas e músicos britânicos lendários como The Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, The Who, David Bowie, e também artistas de outros países que se apresentavam em Londres, incluindo Chuck Berry, Bob Dylan, Bob Marley, Jimi Hendrix, The Doors, Tina Turner, Aretha Franklin, Abba, Cat Stevens e muitos mais. Depois de mais de 50 anos, Alec Byrne revela seu acervo inédito no livro “London Rock: The Unseen Archive”, um catálogo de belas e surpreendentes imagens da Era do Rock.

Não foi intencional manter as fotografias inéditas por tanto tempo – como revela Alec Byrne na apresentação ao livro. Na verdade todas as imagens ficaram esquecidas em uma caixa nos fundos da garagem da casa onde o fotógrafo morou durante décadas em Los Angeles (EUA) e sobreviveram a incêndios e a inundações que destruíram milhares de outras imagens de sua coleção. Descobertas por ele próprio recentemente, quase por acaso, imediatamente foram digitalizadas, selecionadas e tratadas em photoshop e depois apresentadas à imprensa pelo próprio fotógrafo. Em seguida vieram eventos e shows para apresentação ao público no museu Rock and Rook Hall of Fame em Cleveland, Ohio, e no festival South By Southwest em Austin, Texas, além de uma exposição na National Portrait Gallery em Londres. Agora, finalmente, a seleção de imagens de Alec Byrne ganha publicação no livro de 254 páginas, na verdade um catálogo de luxo em lançamento da Insight Editions de Londres.






                             



Cenas da Era do Rock: no alto, o fotógrafo
Alec Byrne em autorretrato, no final da década
de 1960. Acima, a capa original de "London Rock",
livro de fotografias que reúne imagens que estavam
inéditas há mais de 50 anos, e Alec Byrne fotografado
trabalhando em seu estúdio em Los Angeles.

Abaixo, uma seleção de fotografias apresentadas
no livro, começando com David Bowie em
Paddington Street Gardens, em setembro de
1969; Jimi Hendrix com Mick Jagger em 1967;
e Elton John em julho de 1971, no palco, durante
o concerto no Crystal Palace Bowl

















Uma câmera Rolleiflex


Na apresentação ao livro, que também conta com um prefácio escrito pelo jornalista Tony Norman, o fotógrafo recorda que tudo começou quando ele tinha 17 anos e conseguiu um emprego de meio expediente como office-boy na agência Keystone Press, em Londres, em meados da década de 1960, e passou a conviver diariamente com muitos fotógrafos, repórteres e editores de jornais e revistas. Quando recebeu o primeiro salário, investiu comprando uma câmera Rolleiflex, com sua mãe assinando o contrato para a venda com pagamento em várias parcelas. Desde então, passou a frequentar shows e entrevistas, primeiro por prazer, e depois por investimento para construir um portfólio especializado em figuras do mundo do rock’n’roll, exercitando diariamente seu aprendizado como fotógrafo amador. Em pouco tempo, a publicação de suas fotografias ganhou espaço na revista “New Musical Express” e a assinatura de Alec Byrne passou de “fotógrafo amador” para “fotógrafo profissional”.

“Eu estava no lugar certo e na hora certa. Havia uma revolução musical acontecendo e eu estava bem no meio dela”, recorda o fotógrafo. No livro, ele também revela histórias saborosas e confidências sobre algumas das imagens, como o primeiro show de Jimi Hendrix em Londres, que teve na plateia nomes como Mick Jagger, Keith Richards, Eric Clapton e David Bowie, flagrados em retratos surpreendentes enquanto assistiam encantados à performance; a primeira apresentação das canções do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” pelos Beatles no Abbey Road Studios, em 1967, que também foi a primeira transmissão internacional de TV via satélite; ou um cigarro de maconha que Bob Marley dividiu com o fotógrafo na sessão de fotos realizada na suíte do cantor, no Montcalm Hotel, em Londres, em julho de 1975.














Cenas da Era do Rock: no alto, Anita Pallenberg,
Michele Breton e Mick Jagger
fotografados por
Alec Byrne em 1969 durante as filmagens de
"Performance", filme com direção conjunta de
Donald Cammell e Nicolas Roeg. Acima,
um flagrante dos Rolling Stones no palco
durante as gravações do especial para a TV
"Rock and Roll Circus", em 1968, com
Mick Jagger, Keith Richards e Brian Jones.

Abaixo, Brian Jones chegando para as
gravações do "Rock and Roll Circus",
e o registro de Alec Byrne no funeral de
Brian Jones, em junho de 1969. Também abaixo,
The Beatles, Ringo Starr, Paul McCartney,
John Lennon e George Harrison, durante
a transmissão via satélite em junho de 1967,
e Paul McCartney ao telefone em 1968








 


Retratos de grandes lendas


Em 1976, Alec Byrne recebeu uma oferta de trabalho para Los Angeles e se mudou definitivamente de Londres. Nos Estados Unidos, passou a trabalhar com outras pautas além da cobertura de música e terminou abrindo sua própria agência de fotografia, passando a se dedicar em seguida às funções administrativas. Desde então seus arquivos ficaram guardados e, com o passar do tempo, apenas uma ou outra foto foi comercializada para ilustrar álbuns em lançamento ou reportagens sobre grandes lendas da história do rock. No livro, ele recorda que a primeira grande perda aconteceu em Londres, em 1971, quando um incêndio destruiu o estúdio em que ele trabalhava, destruindo grande parte de seu acervo.







Não foi a única perda na trajetória do fotógrafo: durante a mudança para os Estados Unidos, centenas de outros negativos foram danificados pela água do mar no vazamento de um contêiner no navio, durante a travessia do oceano Atlântico. Anos depois, em 1994, o terremoto com magnitude de 6,7 que atingiu Los Angeles destruiu o antigo prédio em que ficava o escritório de Byrne e novamente centenas de negativos foram danificados ou definitivamente perdidos. Nos anos seguintes, vieram um outro incêndio e depois um alagamento que atingiram a casa em que ele morava em Los Angeles, novamente provocando perdas definitivas em fotos ampliadas e em seus negativos. O material que sobreviveu a tantos acidentes permaneceu guardado, ou esquecido, até ser redescoberto pelo fotógrafo.









                             




Cenas da Era do Rock: no alto, Bob Dylan
na entrevista coletiva, minutos antes de subir
ao palco no Festival da Ilha de Wight em 1969;
acima e abaixo, Jim Morrison à frente da
banda The Doors no palco da
Roundhouse, em setembro de 1968.

Também abaixo, Jimi Hendrix no palco do BBQ
em maio de 1967; Led Zeppelin no show "Eletric Magic",
em novembro de 1971; Tina Turner no Empire Pool,
em 1972; Grace Slick à frente da banda
Jefferson Airplane, em uma rua de Londres,
em 1970; e The Yardbirds na formação original,
com Jimmy Page à frente, nas gravações
de um especial para a BBC em 1967.

Também abaixo, Chuck Berry no palco do
Hard Rock, em 1973; Bob Marley na sessão
de fotos no Montcalm Hotel, em 1975;
e Aretha Franklin no camarim antes do
show no Hammersmith Odeon em 1968


 

 







                                    






 

Impacto emocional


Ao recordar sua trajetória e a história de suas fotografias, Alec Byrne conta que o entusiasmo que teve ao ter seu trabalho publicado pela primeira vez pelas revistas “New Musical Express” e “Melody Maker” mudou sua visão de mundo e o levou a um caminho que ele nunca havia planejado ou cogitado. Em 1969, aos 20 anos, ele fundou sua própria agência de fotografia em Londres e começou a vender fotos para revistas de todo o mundo. A trajetória seguiu uma linha ascendente por mais de uma década de shows e encontros com músicos e bandas em entrevistas e sessões de lançamentos e gravações, até que no final dos anos 1970, também por um acaso não planejado, Alec Byrne assumiu cada vez mais as funções de empresário e “aposentou-se” da música e dos ambientes do rock e seu acervo de imagens foi para as caixas de arquivo, onde permaneceu praticamente intocado e inédito durante décadas.

Quando eu estava fazendo essas fotografias, a princípio ainda adolescente, não tinha ideia – absolutamente nenhuma – de que estava registrando um dos momentos mais influentes da história da cultura pop. Na época, simplesmente senti que havia descoberto um ótima maneira de ganhar dinheiro e seguir a vida. Eu adorava tudo aquilo, mas a vida era agitada e não havia tempo para refletir sobre o que tudo significava”, confessa Alec Byrne, na apresentação ao livro. “Acho que uma das razões pelas quais todas essas fotografias ficaram guardadas nas caixas por tanto tempo é porque eu sempre pensei no que elas significavam para mim. Nunca me ocorreu, até depois das primeiras apresentações em público, o quanto estas imagens significavam também para outras pessoas. É maravilhoso, apesar dos incêndios, das inundações e do terremoto, e depois de todos esses anos, finalmente poder compartilhar estes retratos com outras pessoas e saber que o impacto das emoções que eles registram também significa muito para tanta gente”.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Cenas da Era do Rock. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2021. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2021/11/cenas-da-era-do-rock.html  (acessado em .../.../…).


Para comprar o livro "London Rock: The Unseen Archive",  clique aqui.
















31 de dezembro de 2020

Cidades de Miguel Rio Branco


 

 

Na maioria das vezes as fotografias recentes

que encontro não me dizem nada. Só nas fotos

do século passado eu encontro um certo frescor.

–– Miguel Rio Branco.   


O ano da pandemia chegou ao fim com uma importante homenagem a Miguel Rio Branco, um dos principais nomes da fotografia contemporânea no Brasil e, por coincidência, um fotógrafo que há mais de meio século atua registrando o isolamento social involuntário que a sociedade de consumo impõe a pessoas que, por diversos motivos, estão proscritas do sistema, às margens das grandes cidades. A homenagem veio do Instituto Moreira Salles (IMS) com a apresentação, em sua sede imponente da Avenida Paulista, da maior e mais abrangente mostra já realizada sobre a trajetória do fotógrafo. Com um título também imponente, abrangente e paradoxal, “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, a exposição, organizada pelo próprio Miguel Rio Branco em parceria com Thyago Nogueira, curador da área de Fotografia Contemporânea do IMS, reúne mais de 200 imagens em grandes painéis que, literalmente, ampliam detalhes para destacar novos sentidos de uma obra singular, marcada pelos registros documentais e pela experimentação do suporte fotográfico no cruzamento de diferentes linguagens como a pintura, o cinema, a música.

Miguel Rio Branco, que completou 74 anos neste ano da pandemia, revê, pela primeira vez, seu arquivo da vida inteira nas imagens em cores e em preto e branco selecionadas para a exposição – um evento que, em sintonia com os novos tempos, será apresentado com rígidos protocolos de segurança, horário restrito e visitação em número reduzido, somente autorizado a partir de agendamento prévio. Além da visitação presencial com restrições e da versão on-line no site do IMS, o acervo fotográfico também está reunido em um catálogo completo de 208 páginas, na verdade uma narrativa visual editada pelo próprio fotógrafo e pela curadoria. Na apresentação ao catálogo, Thyago Nogueira destaca que Miguel Rio Branco tornou-se mundialmente conhecido por seus fotolivros – livros fotográficos construídos através de edições com critérios minuciosos e rigor técnico que conquistaram, no Brasil e no exterior, o status de obras de arte.










Cidades de Miguel Rio Branco: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo Instituto Moreira Salles. No alto,
imagem da série de 1973 Azul e Vermelho com Cavalo.
Acima, fotografia de Maria Clara Villas na abertura da
exposição no IMS da Avenida Paulista. Também acima,
fotografia de Miguel Rio Branco em homenagem à
cantora de jazz Billie Holiday no rosto de uma mulher
anônima em Salvador, Bahia, uma das três imagens
da série Billy's Triptychy, de 1984.

Abaixo, outras fotografias de Miguel Rio Branco
reunidas na exposição do IMS: Cinema Glória,
de 1975; uma imagem da série Coração,
Espelho da Carne
, de 1980; e uma imagem
da série Mona Lisa, de 1973














O artista Miguel Rio Branco exibe sua maneira pessoal de encarar a fotografia”, aponta o curador. “Aqui (na exposição ‘Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas’), a imagem não é apenas o registro de uma realidade vivida ou observada, mas um momento capaz de oferecer uma nova experiência. O que está em foco é a vivência do artista diante das cidades e sua maneira própria de escrever com imagens. A ideia do projeto era pensar a fotografia como escrita e investigar a sintaxe própria deste universo fotográfico. Ela tem a ver com um cruzamento de imagens de diferentes contextos e diferentes épocas para formar novas palavras, novas frases”, completa. Além da apresentação de Thyago Nogueira, o catálogo da exposição também apresenta um texto da crítica de arte Luisa Duarte que destaca, na experiência urbana que o fotógrafo registra, uma série de contradições comoventes e violências forjadas por “carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam.



Melodia visual



Completam o acervo de duas centenas de imagens ampliadas da trajetória do fotógrafo uma instalação, “Out of Nowhere”, que foi criada para a Bienal de Havana em 1994 e agora surge remontada em nova versão concebida para o espaço da exposição no IMS. Na instalação, um fio condutor de colagens reúne fotografias de uma academia de boxe da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, e retratos de temas sobre a a violência, a miséria, a solidão, a sexualidade – fragmentos de imagens de suportes diversos, à maneira das pranchas do Atlas do historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), em um fundo de tecido negro com espelhos antigos em formatos variados. O título da instalação vem de uma antiga canção norte-americana de 1931, época da Grande Depressão, uma composição em tons nostálgicos e melancólicos de Johnny Green e Edward Heyman que virou “standard” do jazz presente no repertório de Bing Crosby, Billie Holiday, Lena Horne, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Frank Sinatra e outros. Como ressalta o curador Thyago Nogueira, Miguel Rio Branco usa as fotografias como notas musicais que associa em dípticos, trípticos, polípticos, como quem compõe os acordes de uma melodia visual.












Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
três imagens da série Neve em Nova York,
de 1973. Abaixo, duas fotografias da série
Parede Vermelha, realizada entre 1992 e 2020,
todas presentes na exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas,
sangradas”
apresentada pelo IMS








Filho de diplomatas de origem brasileira, Miguel Rio Branco nasceu em 1946 em um cenário exótico: Las Palmas de Gran Canária, uma das cidades autônimas das Ilhas Canárias, território espanhol situado no Oceano Atlântico, próximo aos arquipélagos de Açores e de Cabo Verde, a oeste da costa africana do Marrocos. Depois da infância e da adolescência que viveu em trânsito entre Espanha, Brasil, Portugal, Suíça, Estados Unidos e outros países, Miguel veio definitivamente para o Brasil em 1967 e reconhece que descobriu, no Rio de Janeiro, uma realidade social que provocou nele um impacto tão forte, tão duradouro, que mudou definitivamente sua vida e sua visão de mundo. Segundo Miguel Río Branco, as fotografias que ele produz tentam reproduzir e traduzir, ainda hoje, aquele mesmo impacto de seus olhares em trânsito: entre a proximidade da beleza das cores que predominavam nas praias da zona sul carioca e a miséria também colorida das favelas que se espalhavam e se alongavam morro acima.

Seu interesse pelo mundo das artes começou muito cedo, com dedicação de autodidata às cores do desenho e da pintura. Sua primeira exposição como pintor, quando ele era ainda adolescente, aconteceu em uma galeria em Berna, na Suíça, no ano de 1964. Dois anos depois, enquanto morava em Nova York, foi estudar não a pintura, mas a fotografia, na condição de aluno matriculado no Instituto de Fotografia de Nova York. Também dois anos depois, já como morador da cidade do Rio de Janeiro, passou a estudar na ESDI, a Escola Superior de Desenho Industrial, simultaneamente fazendo séries fotográficas, diárias e intermináveis, sobre as ruas e favelas do Rio de Janeiro e seus habitantes e trabalhando como diretor de fotografia e como cinegrafista para cineastas como Gilberto Loureiro, Antonio Calmon, Alberto Ruschel Filho, Jom Tob Azulay e Júlio Bressane.









Cidades de Miguel Rio Branco
: fotografias
selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas,
sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”
,
apresentada pelo IMS. No alto, imagem da série de
2005 
Babel Blues
. Acima, Homem na janela da
parede rosa
, imagem da série realizada em
1979 no Pelourinho, em Salvador.

Abaixo, fotografia da série Thunderdog, de 1998;
e duas imagens da série New York Sketches,
realizada em 1972-1972: uma cena das ruas
e um flagrante de Hélio Oiticica, também
em Nova York, à espera do metrô


















Cores saturadas



Não é por acaso que uma das primeiras experiências de Miguel Rio Branco no cinema tenha sido como assistente do diretor de fotografia Affonso Beato em “Pindorama”, filme que Arnaldo Jabor realizou em 1970, no auge da ditadura militar. Pindorama, nome dado ao Brasil pelos povo Tupi (a palavra, na língua tupi-guarani, significa “terra das árvores altas”), no filme de Jabor traduz uma alegoria sobre a formação de uma grande cidade brasileira no século 16, reunindo imagens da beleza dos cenários tropicais em contrastes de guerras e destruição com negros, índios e aventureiros europeus. Nos anos 1970, a trajetória do fotógrafo incluiu outra longa temporada em Nova York, onde trabalhou e conviveu com nomes de referência da arte brasileira contemporânea, entre eles Hélio Oiticica (1937-1980), Rubens Gerchman (1942-2008) e Antonio Dias (1942-2018). No final da década, em 1979, as fotografias experimentais e documentais que Miguel Rio Branco registrava, pelas ruas e pelas periferias do Rio de Janeiro e de Nova York, o levaram a ser contratado como correspondente internacional da prestigiada e lendária Agência Magnum de Paris, uma atividade em que atuou até 1982.

É desse período uma de suas séries fotográficas mais conhecidas, realizada durante uma longa temporada em Salvador, Bahia: “Pelourinho”, registro de 1979 sobre a parte mais antiga e mais degradada do bairro tradicional da capital baiana, em que se destacam as imagens dos corpos da prostituição e os rostos na penumbra, com detalhes em destaque de cicatrizes na pele e nos enquadramentos de velhas construções arruinadas pelo tempo. As características das imagens que o fotojornalista Miguel Rio Branco produziu sob encomenda para a Agência Magnum reúnem, em síntese, as qualidades mais abrangentes de sua concepção de arte e fotografia: cores saturadas em variações de contrastes cromáticos, experimentos com foco e movimento, diluição dos contornos, jogos de espelhamentos e de texturas, a temática de impacto para as denúncias sobre os contrastes sociais das cidades, a exclusão dos marginais, a violência, a pobreza, as atmosferas ao mesmo tempo sensuais e melancólicas.









Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
duas imagens da série Maldicidade #3,
realizada entre 1970 e 1990. Abaixo:
1) três jovens mulheres do povo Kayapó,
na Amazônia brasileira, em fotografia
de 1983; 2) imagens de Amaú, 1983-2016,
projeto iniciado em 1983 com a instalação
Diálogos com Amaú, que foi apresentada
na Bienal Internacional de São Paulo,
com a experiência da fotografia em interface
com a pintura e o cinema; e 3) fotografias da
série "Blue tango", sobre os movimentos e
a dança da capoeira, realizada na Bahia no
período entre 1984 e 2003. Também abaixo,
duas fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista
























Em 1983, depois de interromper sua colaboração com a Agência Magnum e de realizar uma experiência incomum como cineasta (com um documentário realizado em 1981, “Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve cobrarei no inferno”), uma participação na Bienal Internacional de São Paulo, com a instalação Diálogos com Amaú, iria inaugurar uma nova etapa na trajetória do fotógrafo, pintor, artista multimídia e cineasta, com instalações que reúnem fotografia, pintura, escultura, música e cinema, levando Miguel Rio Branco a realizar diversas exposições no exterior. Com as novas investidas em instalações e obras de formas híbridas também vieram as publicações de livros de catálogo e premiações importantes, entre elas o Prêmio Kodak da Crítica Fotográfica (1982), a Bolsa de Artes da Fundação Vitae (1994) e o Prêmio Nacional da Funarte, Fundação Nacional de Artes (1995). Entre os livros com registros sobre séries fotográficas e instalações, com recursos gráficos e editoriais incomuns de transparências e uma diversidade de suportes de impressão estão “Dulce sudor amargo” (1985), “Nakta, uma reflexão sobre a parte animal do homem” (1986), “Silent book” (1996), “Entre olhos, o deserto” (2001), “Você está feliz?” (2012), “Out of nowhere” (2013) e “Mechanics of women” (2018).



Imagens-poemas, ruínas do mundo



Dois fotolivros lançados em 2020 vêm somar complexidades às publicações de acervos de imagens de Miguel Rio Branco. O primeiro é uma nova versão, revista e atualizada, para “Maldicidade”, catálogo fotográfico que teve primeira edição pela Cosac Naify em 2014, em parceria com o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, diretor do MAR, Museu de Arte do Rio de Janeiro. O segundo é um catálogo em edição bilíngue, francês e inglês, em lançamento pela editora parisiense especializada em livros de artista, Toluca Éditions, com uma retrospectiva que vai dos seus primeiros trabalhos em fotografia, no final dos anos 1960, até o começo dos anos 1990.

Enquanto o catálogo da Toluca Éditions, com o título “Miguel Rio Branco: Oeuvres Photographiques / Photographic Works, 1968-1992”, apresenta o acervo que foi reunido para uma exposição em cartaz em Paris, no espaço LE BAL (de 16 de setembro de 2020 a 14 de março de 2021), que os curadores Alexis Fabry e Diane Dufour definem como “realismo exorbitante” e “imagens-poemas nas ruínas do mundo”, o acervo reunido em “Maldicidade”, na definição do próprio fotógrafo, é um inventário com cenas urbanas e justaposições de imagens capturadas de 1970 a 2010 para retratar diferentes partes do mundo, como Japão, Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil.








Cidades de Miguel Rio Branco
: acima,
fotografias da montagem da exposição
apresentada no IMS da Avenida Paulista.
Abaixo, o fotógrafo em entrevista via Zoom






Em outro catálogo, que teve como título o nome do fotógrafo, “Miguel Rio Branco”, publicado em primeira edição pela Companhia das Letras em 1998, um outro nome de referência da fotografia contemporânea, Sebastião Salgado, escreve no posfácio uma definição bastante precisa e preciosa, em artigo co-assinado por sua esposa Lélia Wanick Salgado:

Como brasileiros que somos, também vemos Miguel Rio Branco como um fotógrafo profundamente brasileiro. Ele capta a umidade das cores tropicais do Brasil, a fera luz que transfigura rosas, verdes e azuis. Ele entra no espírito da cor, penetrando seu âmago como nenhum outro fotógrafo de hoje que trabalha com a cor. Talvez se beneficie do fato de ser também artista plástico e cineasta: Miguel Rio Branco usa a cor como um pintor e a luz como quem faz cinema. Um outro Brasil também está presente aqui. Não tanto em imagens específicas, porque Rio Branco também trabalha em outros lugares, mas no espírito. É como se o fato de ter nascido fora de seu país, numa família de diplomatas, tenha despertado nele uma ânsia, um sentimento quase de urgência, de descobrir suas próprias raízes. Ao captar a beleza e a brutalidade de sua terra, ele descobriu a alegria e a tristeza de ser brasileiro. Em seu trabalho, vemos o coração do Brasil. Olhamos esse livro e nos vemos em suas páginas.”

Nos dois fotolivros recentes, publicados em 2020, assim como no catálogo da exposição que está em cartaz no IMS, ou no catálogo que mereceu o artigo de elogios de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, ou mesmo nos demais fotolivros da trajetória incomum de Miguel Rio Branco, não se trata tão somente de livros de luxo e de arte sobre belezas exóticas de paisagens urbanas, nem de registros que exaltam monumentos históricos e arquitetônicos. Também não se trata de cenários de cartão postal emoldurados para enfeitar ambientes comerciais de grifes de interiores ou publicações sobre turismo e roteiros de viagens. Para além da beleza das cores e dos contrastes nos flagrantes sobre as ruínas do mundo, uma outra definição sobre a arte da fotografia segundo Miguel Rio Branco talvez possa acrescentar que suas imagens registram a catástrofe de nossa época – registros sobre os abismos sociais de nossas cidades, ainda que cada flagrante que ele captura também seja, de alguma forma, o resgate de algo estranhamente poético, de algo que guarda alguma empatia pelas pessoas mais simples e excluídas, algo que resta do sentimento humano nos cenários da miséria, da violência, da melancolia.


por José Antônio Orlando


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Cidades de Miguel Rio Branco. In: _____. Blog Semióticas, 31 de dezembro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/12/cidades-de-miguel-rio-branco.html (acessado em .../.../...).



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