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Na
maioria das vezes as fotografias recentes
que
encontro não me dizem nada. Só nas fotos
do
século passado eu encontro um certo frescor.
–– Miguel
Rio Branco. |
O
ano da pandemia chegou ao fim com uma importante homenagem a Miguel Rio
Branco, um dos principais nomes da
fotografia contemporânea no Brasil e, por coincidência, um
fotógrafo que há mais de meio século atua registrando o isolamento
social involuntário que a sociedade de consumo impõe a pessoas que,
por diversos motivos, estão proscritas do sistema, às margens das
grandes cidades. A homenagem veio do Instituto Moreira Salles (IMS)
com a apresentação, em sua sede imponente da Avenida Paulista, da
maior e mais abrangente mostra já realizada sobre a trajetória do
fotógrafo. Com um título também imponente, abrangente e paradoxal,
“Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas,
sangradas”, a exposição, organizada pelo próprio Miguel Rio
Branco em parceria com Thyago Nogueira, curador da área de Fotografia Contemporânea do IMS, reúne mais de 200
imagens em grandes painéis que, literalmente, ampliam detalhes para
destacar novos sentidos de uma obra singular, marcada pelos registros
documentais e pela experimentação do suporte fotográfico no
cruzamento de diferentes linguagens como a pintura, o cinema, a
música.
Miguel
Rio Branco, que completou 74 anos neste ano da pandemia, revê, pela
primeira vez, seu arquivo da vida inteira nas imagens em cores e em
preto e branco selecionadas para a exposição – um evento que, em
sintonia com os novos tempos, será apresentado com rígidos protocolos de segurança, horário restrito e
visitação em número reduzido, somente autorizado a partir de
agendamento prévio. Além da visitação presencial com restrições
e da versão on-line no site do IMS, o acervo fotográfico também
está reunido em um catálogo completo de 208 páginas, na verdade
uma narrativa visual editada pelo próprio fotógrafo e pela
curadoria. Na apresentação ao catálogo, Thyago Nogueira destaca
que Miguel Rio Branco tornou-se mundialmente conhecido por seus
fotolivros – livros fotográficos construídos através de edições
com critérios minuciosos e rigor técnico que conquistaram, no Brasil
e no exterior, o status de obras de arte.
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Cidades de Miguel Rio Branco: fotografias selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, apresentada pelo Instituto Moreira Salles. No alto, imagem da série de 1973 Azul e Vermelho com Cavalo. Acima, fotografia de Maria Clara Villas na abertura da exposição no IMS da Avenida Paulista. Também acima, fotografia de Miguel Rio Branco em homenagem à cantora de jazz Billie Holiday no rosto de uma mulher anônima em Salvador, Bahia, uma das três imagens da série Billy's Triptychy, de 1984.
Abaixo, outras fotografias de Miguel Rio Branco reunidas na exposição do IMS: Cinema Glória, de 1975; uma imagem da série Coração, Espelho da Carne, de 1980; e uma imagem da série Mona Lisa, de 1973
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“O
artista Miguel Rio Branco exibe sua maneira pessoal de encarar a
fotografia”, aponta o curador. “Aqui (na exposição ‘Palavras
cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas’), a
imagem não é apenas o registro de uma realidade vivida ou
observada, mas um momento capaz de oferecer uma nova experiência. O
que está em foco é a vivência do artista diante das cidades e sua
maneira própria de escrever com imagens. A ideia do projeto era
pensar a fotografia como escrita e investigar a sintaxe própria
deste universo fotográfico. Ela tem a ver com um cruzamento de
imagens de diferentes contextos e diferentes épocas para formar
novas palavras, novas frases”, completa. Além da apresentação de
Thyago Nogueira, o catálogo da exposição também apresenta um
texto da crítica de arte Luisa Duarte que destaca, na experiência urbana que o fotógrafo registra, uma série de contradições comoventes e violências forjadas por “carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam”.
Melodia
visual
Completam
o acervo de duas centenas de imagens ampliadas da trajetória do
fotógrafo uma instalação, “Out of Nowhere”, que foi criada
para a Bienal de Havana em 1994 e agora surge remontada em nova
versão concebida para o espaço da exposição no IMS. Na
instalação, um fio condutor de colagens reúne fotografias de uma
academia de boxe da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, e retratos de
temas sobre a a violência, a miséria, a solidão, a sexualidade –
fragmentos de imagens de suportes diversos, à maneira das pranchas
do Atlas do historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), em um fundo
de tecido negro com espelhos antigos em formatos variados. O título
da instalação vem de uma antiga canção norte-americana de 1931, época
da Grande Depressão, uma composição em tons nostálgicos e
melancólicos de Johnny Green e Edward Heyman que virou “standard”
do jazz presente no repertório de Bing Crosby, Billie Holiday, Lena
Horne, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Frank Sinatra e outros. Como ressalta o curador Thyago
Nogueira, Miguel Rio Branco usa as fotografias como notas musicais
que associa em dípticos, trípticos, polípticos, como quem compõe
os acordes de uma melodia visual.
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Cidades de Miguel Rio Branco: acima, três imagens da série Neve em Nova York, de 1973. Abaixo, duas fotografias da série Parede Vermelha, realizada entre 1992 e 2020, todas presentes na exposição “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, apresentada pelo IMS
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Filho
de diplomatas de origem brasileira, Miguel Rio Branco nasceu em 1946
em um cenário exótico: Las Palmas de Gran Canária, uma das cidades
autônimas das Ilhas Canárias, território espanhol situado no
Oceano Atlântico, próximo aos arquipélagos de Açores e de Cabo
Verde, a oeste da costa africana do Marrocos. Depois da infância e
da adolescência que viveu em trânsito entre Espanha, Brasil,
Portugal, Suíça, Estados Unidos e outros países, Miguel veio
definitivamente para o Brasil em 1967 e reconhece que descobriu, no
Rio de Janeiro, uma realidade social que provocou nele um impacto tão
forte, tão duradouro, que mudou definitivamente sua vida e sua visão
de mundo. Segundo Miguel Río Branco, as fotografias que ele produz
tentam reproduzir e traduzir, ainda hoje, aquele mesmo impacto de
seus olhares em trânsito: entre a proximidade da beleza das cores
que predominavam nas praias da zona sul carioca e a miséria também
colorida das favelas que se espalhavam e se alongavam morro acima.
Seu
interesse pelo mundo das artes começou muito cedo, com dedicação
de autodidata às cores do desenho e da pintura. Sua primeira
exposição como pintor, quando ele era ainda adolescente, aconteceu
em uma galeria em Berna, na Suíça, no ano de 1964. Dois anos
depois, enquanto morava em Nova York, foi estudar não a pintura, mas
a fotografia, na condição de aluno matriculado no Instituto de
Fotografia de Nova York. Também dois anos depois, já como morador
da cidade do Rio de Janeiro, passou a estudar na ESDI, a Escola
Superior de Desenho Industrial, simultaneamente fazendo séries
fotográficas, diárias e intermináveis, sobre as ruas e favelas do
Rio de Janeiro e seus habitantes e trabalhando como diretor de
fotografia e como cinegrafista para cineastas como Gilberto Loureiro,
Antonio Calmon, Alberto Ruschel Filho, Jom Tob Azulay e Júlio
Bressane.
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Cidades de Miguel Rio Branco: fotografias selecionadas para a exposição “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas, sangradas”, apresentada pelo IMS. No alto, imagem da série de 2005 Babel Blues. Acima, Homem na janela da parede rosa, imagem da série realizada em 1979 no Pelourinho, em Salvador.
Abaixo, fotografia da série Thunderdog, de 1998; e duas imagens da série New York Sketches, realizada em 1972-1972: uma cena das ruas e um flagrante de Hélio Oiticica, também em Nova York, à espera do metrô
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Cores
saturadas
Não
é por acaso que uma das primeiras experiências de Miguel Rio Branco
no cinema tenha sido como assistente do diretor de fotografia Affonso Beato em “Pindorama”, filme que Arnaldo Jabor realizou em
1970, no auge da ditadura militar. Pindorama, nome dado ao Brasil pelos povo Tupi (a palavra, na língua tupi-guarani, significa “terra das árvores altas”), no filme de Jabor traduz uma alegoria sobre a formação
de uma grande cidade brasileira no século 16, reunindo imagens da beleza dos cenários tropicais em contrastes de guerras e destruição com negros, índios e
aventureiros europeus. Nos anos 1970, a trajetória do fotógrafo
incluiu outra longa temporada em Nova York, onde trabalhou e conviveu
com nomes de referência da arte brasileira contemporânea, entre
eles Hélio Oiticica (1937-1980), Rubens Gerchman (1942-2008) e
Antonio Dias (1942-2018). No final da década, em 1979, as
fotografias experimentais e documentais que Miguel Rio Branco
registrava, pelas ruas e pelas periferias do Rio de Janeiro e de Nova
York, o levaram a ser contratado como correspondente internacional da
prestigiada e lendária Agência Magnum de Paris, uma atividade em
que atuou até 1982.
É
desse período uma de suas séries fotográficas mais conhecidas,
realizada durante uma longa temporada em Salvador, Bahia:
“Pelourinho”, registro de 1979 sobre a parte mais antiga e mais
degradada do bairro tradicional da capital baiana, em que se destacam
as imagens dos corpos da prostituição e os rostos na penumbra, com
detalhes em destaque de cicatrizes na pele e nos enquadramentos de velhas construções arruinadas pelo tempo. As características das imagens
que o fotojornalista Miguel Rio Branco produziu sob encomenda para a
Agência Magnum reúnem, em síntese, as qualidades mais abrangentes
de sua concepção de arte e fotografia: cores saturadas em variações
de contrastes cromáticos, experimentos com foco e movimento,
diluição dos contornos, jogos de espelhamentos e de texturas, a
temática de impacto para as denúncias sobre os contrastes sociais
das cidades, a exclusão dos marginais, a violência, a pobreza, as
atmosferas ao mesmo tempo sensuais e melancólicas.
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Cidades de Miguel Rio Branco: acima, duas imagens da série Maldicidade #3, realizada entre 1970 e 1990. Abaixo: 1) três jovens mulheres do povo Kayapó, na Amazônia brasileira, em fotografia de 1983; 2) imagens de Amaú, 1983-2016, projeto iniciado em 1983 com a instalação Diálogos com Amaú, que foi apresentada na Bienal Internacional de São Paulo, com a experiência da fotografia em interface com a pintura e o cinema; e 3) fotografias da série "Blue tango", sobre os movimentos e a dança da capoeira, realizada na Bahia no período entre 1984 e 2003. Também abaixo, duas fotografias da montagem da exposição apresentada no IMS da Avenida Paulista
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Em
1983, depois de interromper sua colaboração com a Agência Magnum e de realizar uma experiência incomum como cineasta (com um documentário
realizado em 1981, “Nada levarei quando morrer aqueles que mim deve
cobrarei no inferno”), uma participação na Bienal Internacional
de São Paulo, com a instalação “Diálogos com Amaú”, iria inaugurar uma nova etapa na trajetória do
fotógrafo, pintor, artista multimídia e cineasta, com instalações
que reúnem fotografia, pintura, escultura, música e cinema, levando
Miguel Rio Branco a realizar diversas exposições no exterior. Com
as novas investidas em instalações e obras de formas híbridas
também vieram as publicações de livros de catálogo e premiações
importantes, entre elas o Prêmio Kodak da Crítica Fotográfica
(1982), a Bolsa de Artes da Fundação Vitae (1994) e o Prêmio
Nacional da Funarte, Fundação Nacional de Artes (1995). Entre os
livros com registros sobre séries fotográficas e instalações, com
recursos gráficos e editoriais incomuns de transparências e uma diversidade de suportes de impressão estão “Dulce sudor amargo”
(1985), “Nakta, uma reflexão sobre a parte animal do homem”
(1986), “Silent book” (1996), “Entre olhos, o deserto”
(2001), “Você está feliz?” (2012), “Out of nowhere” (2013)
e “Mechanics of women” (2018).
Imagens-poemas,
ruínas do mundo
Dois
fotolivros lançados em 2020 vêm somar complexidades às publicações
de acervos de imagens de Miguel
Rio Branco. O
primeiro é uma
nova versão, revista e atualizada, para “Maldicidade”, catálogo
fotográfico que
teve primeira edição pela
Cosac Naify em
2014, em parceria com o curador e crítico de arte
Paulo Herkenhoff, diretor do MAR, Museu de Arte do Rio de Janeiro. O
segundo é um
catálogo em edição bilíngue, francês e inglês, em lançamento
pela editora
parisiense especializada em livros de artista, Toluca Éditions, com
uma retrospectiva que vai dos seus primeiros trabalhos em fotografia,
no final dos anos 1960, até o começo dos
anos 1990.
Enquanto
o catálogo da Toluca Éditions, com
o título “Miguel Rio Branco: Oeuvres
Photographiques / Photographic
Works, 1968-1992”, apresenta o acervo que foi reunido para uma
exposição em cartaz em Paris, no espaço LE BAL (de 16 de setembro
de 2020 a 14 de março de 2021), que os curadores Alexis Fabry e
Diane Dufour definem como “realismo exorbitante” e
“imagens-poemas nas ruínas do mundo”, o acervo reunido
em
“Maldicidade”,
na definição do próprio fotógrafo, é um inventário com cenas
urbanas e
justaposições de imagens capturadas
de 1970 a 2010 para retratar diferentes partes do mundo, como Japão,
Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil.
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Cidades de Miguel Rio Branco: acima, fotografias da montagem da exposição apresentada no IMS da Avenida Paulista. Abaixo, o fotógrafo em entrevista via Zoom
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Em
outro catálogo, que teve como título o nome do fotógrafo, “Miguel
Rio Branco”, publicado em primeira edição pela Companhia das
Letras em 1998, um outro nome de referência da fotografia
contemporânea, Sebastião Salgado, escreve no posfácio uma
definição bastante precisa e preciosa, em artigo co-assinado por
sua esposa Lélia Wanick Salgado:
“Como
brasileiros que somos, também vemos Miguel Rio Branco como um
fotógrafo profundamente brasileiro. Ele capta a umidade das cores
tropicais do Brasil, a fera luz que transfigura rosas, verdes e
azuis. Ele entra no espírito da cor, penetrando seu âmago como
nenhum outro fotógrafo de hoje que trabalha com a cor. Talvez se
beneficie do fato de ser também artista plástico e cineasta: Miguel
Rio Branco usa a cor como um pintor e a luz como quem faz cinema. Um
outro Brasil também está presente aqui. Não tanto em imagens
específicas, porque Rio Branco também trabalha em outros lugares,
mas no espírito. É como se o fato de ter nascido fora de seu país,
numa família de diplomatas, tenha despertado nele uma ânsia, um
sentimento quase de urgência, de descobrir suas próprias raízes.
Ao captar a beleza e a brutalidade de sua terra, ele descobriu a
alegria e a tristeza de ser brasileiro. Em seu trabalho, vemos o
coração do Brasil. Olhamos esse livro e nos vemos em suas páginas.”
Nos
dois fotolivros recentes, publicados em 2020, assim como no catálogo
da exposição que está em cartaz no IMS, ou no catálogo que
mereceu o artigo de elogios de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, ou
mesmo nos demais fotolivros da trajetória incomum de Miguel Rio
Branco, não se trata tão somente de livros de luxo e de arte sobre
belezas exóticas de paisagens urbanas, nem de registros que exaltam
monumentos históricos e arquitetônicos. Também não se trata de
cenários de cartão postal emoldurados para enfeitar ambientes
comerciais de grifes de interiores ou publicações sobre turismo e
roteiros de viagens. Para além da beleza das cores e dos contrastes
nos flagrantes sobre as ruínas do mundo, uma outra definição sobre
a arte da fotografia segundo Miguel Rio Branco talvez possa
acrescentar que suas imagens registram a catástrofe de nossa época
– registros sobre os abismos sociais de nossas cidades, ainda que
cada flagrante que ele captura também seja, de alguma forma, o resgate de algo
estranhamente poético, de algo que guarda alguma empatia pelas pessoas mais simples e excluídas, algo que
resta do sentimento humano nos cenários da miséria, da violência,
da melancolia.
por
José Antônio Orlando
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Cidades de Miguel Rio Branco. In: _____. Blog
Semióticas,
31 de dezembro de 2020. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2020/12/cidades-de-miguel-rio-branco.html
(acessado
em .../.../...).
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