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7 de junho de 2012

Relíquias de Marc Ferrez







Depois da existência da fotografia e do cinema, 

a reprodução desenhada ou pintada da verdade 

não interessa nem vai interessar a mais ninguém. 

–– Giacomo Balla (1871–1958).    



Boas e más notícias trouxeram de volta à mídia o nome de Marc Ferrez (1843-1923), um dos mais importantes fotógrafos brasileiros de todos os tempos. As boas notícias: uma parte considerável da obra completa de Ferrez foi adquirida pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que lançou no Brasil e na França um catálogo impecável reunindo ensaios escritos por especialistas e uma coleção de 160 imagens primorosas do final do século 19 e do começo do século 20.

Além das fotografias reunidas na edição, há também um acervo de mais de 300 imagens originais de Ferrez, a maioria belas panorâmicas em negativos de grande formato (40cm X 110cm), que permanece em exposição itinerante nas sedes do IMS e em outros espaços no Brasil e no exterior. Parte do acervo também está aberta ao público no site que o IMS mantém na internet. Tanto o catálogo impresso como a mostra itinerante e as imagens disponíveis no site revelam a arte grandiosa de Ferrez, que criou no Brasil, antes de qualquer outro pioneiro da fotografia, uma linguagem que se tornaria universal e quase obrigatória em livros e reportagens de turismo e no formato de cartões postais.

Também há más notícias: o nome de Marc Ferrez frequentou as páginas policiais por conta de um grande roubo no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, registrado em 2005, quando desapareceram cerca de 150 de suas fotografias mais raras e celebradas. Um crime perfeito, que não deixou pistas, aparentemente realizado sob orientação de especialistas: além das séries valiosas de Ferrez, também furtaram fotografias e negativos originais de importantes e pioneiros fotógrafos do século 19, entre eles August Stahl (1828-1877), Guilherme Liebenau (1838-1900) e Benjamin Mulock (1829-1863).











Imagens de Marc Ferrez: o fotógrafo em
autorretrato datado de 1876, aos 33 anos.
No alto, registro da primeira locomotiva
(Trem de Ferro) e o grupo de engenheiros
responsáveis pelas obras da Estrada de
Ferro Rio-Minas, fotografados por Ferrez
no alto da Serra da Mantiqueira, no ano
de 1882. Acima, Ferrez registra a imperatriz
Teresa Cristina e Dom Pedro 2°  com a
princesa Isabel e a família reunida no
Paço Imperial do Rio de Janeiro, em 1887.
Abaixo, entrada da Baía de Guanabara no
Rio de Janeiro, vista de Niterói, em
fotografia de 1890 de Marc Ferrez






.



As boas e as más notícias colocaram em evidência o gênio de Marc Ferrez, nome fundamental da fotografia e do cinema brasileiro que, em seus 80 anos de vida, registrou todo o Brasil em belas panorâmicas e em retratos impressionantes, entre ilustres personalidades e anônimos que encontrou em cada região do país. Filho de um casal de escultores e gravadores franceses que vieram para o Brasil em 1816, com a Missão Artística Francesa, Ferrez foi comparado aos grandes pintores pelos intelectuais do Império e da primeira República, o que era a mais nobre das distinções, numa época em que o trabalho de fotografar estava longe de ser considerado uma arte. 



Arauto da Modernidade



O livro, na verdade um belo catálogo fotográfico intitulado “O Brasil de Marc Ferrez”, traz detalhada biografia, cronologia de seus principais trabalhos e ensaios de Françoise Reynaud, curadora do Museu Carnavalet, em Paris, e dos pesquisadores Maria Inez Turazzi, Pedro Karp Vasquez, Laurent Gervereau, Frank Stephan Kohl, Sérgio Burgi e Antônio Fernando De Franceschi, superintendente do IMS. Com a publicação e a exposição itinerante do acervo, foi a primeira vez que a obra de Marc Ferrez chegou ao público de forma abrangente.
 







Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
visita do imperador Pedro 2°, no ano
de 1882, à inauguração do Túnel da
Mantiqueira, na primeira Estrada de Ferro
que interligava Rio de Janeiro e Minas
Gerais. Acima, a princesa Isabel
Cristina de Bragança em 1887.
Abaixo, vista da construção da
Estrada de Ferro Santos Jundiaí
pela São Paulo Railway em 1880






.





Nas fotografias de Marc Ferrez, o que mais surpreende, junto com sua demonstração de domínio da luz, é sua precisão na escolha do ponto de vista para ressaltar no enquadramento a qualidade estética das cenas registradas. São imagens comoventes, mesmo depois de todos os avanços tecnológicos da maquinaria fotográfica. Como destaca De Fraceschi em um dos ensaios do livro, abordando as singularidades da obra de Ferrez e sua influência sobre pintores célebres que se dedicaram às paisagens do Brasil:

O que interessa, cada vez mais, é compreender as relações passadas e presentes entre a fotografia e a pintura, sobretudo agora, quando as vanguardas contemporâneas parecem ter se desinteressado do mundo objetivo, deixando para a fotografia a inteira responsabilidade de se ocupar do real. Diante da obra monumental de Marc Ferrez, fica mais fácil compreender porque se atribui às suas belas imagens, produzidas na segunda metade do Oitocentos e nas primeiras décadas do século 20, os primeiros registros sobre a entrada do Brasil na Modernidade”.







          



No alto, Igreja de São Francisco de Assis 
em Ouro Preto, Minas Gerais, uma das obras-
primas do Barroco Mineiro e do mestre
Aleijadinho, retratada por Marc Ferrez
em 1880. Acima, Paul Ferrand fotografado
por Marc Ferrez na Serra do Itacolomy,
em Ouro Preto, no ano de 1886. Abaixo,
vista do Porto de Santos em 1880



         



Além do privilégio da nomeação como primeiro (e único) Fotógrafo da Marinha Imperial, Ferrez pôde percorrer o país como um dos principais nomes da Comissão Geológica do Império, a partir de 1875, fotografando atividades econômicas, a construção das principais estradas de ferro, as construções seculares da arquitetura barroca, as minas de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, as belas paisagens e os cenários desconhecidos das cidades, das florestas e das fazendas, seus costumes e personagens dos salões, das ruas, dos grotões.

Funcionário dos mais destacados nos quadros do Segundo Império, primeiro entre seus pares a visitar os confins do território nacional e registrá-los em fotografias e documentos cartoriais, Marc Ferrez também desenvolveu equipamentos próprios e introduziu experiências técnicas como as fotografias coloridas, por ele batizadas de autocromo, em aperfeiçoamento à invenção dos irmãos Lumière. Observar a evolução temporal de sua arte equivale a uma leitura da história do Brasil e da trajetória da fotografia, dos processos químicos mais primitivos aos avanços da tecnologia das câmeras, lentes e processos de revelação e reprodução.










Cartões postais de Marc Ferrez: no alto,
escravos no garimpo de ouro na região de
Diamantina, no interior de Minas Gerais,
em 1888. Acima, paisagem surpreendente
às margens do Rio São Francisco no
Nordeste do Brasil no ano de 1875. Abaixo,
a praia de Ipanema, Rio de Janeiro, 1895









Expedições do Império



Filho mais jovem do francês Zéphyrin Ferrez, contando com mais quatro irmãs e um irmão, ficou órfão de pai e mãe no Rio de Janeiro aos sete anos. Mandado para a França, onde estudou até a adolescência, retornou ao Brasil em 1859 e passou a trabalhar na Casa Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha começado a trabalhar com uma seção dedicada à fotografia. Na Casa Leuzinger, Ferrez aprenderia as técnicas da arte de fotografar com o alemão Franz Keller (1835-1890). Aos 21 anos, em 1865, investiu tudo que tinha para abrir a firma Marc Ferrez & Cia., um estúdio fotográfico que o colocou entre os principais profissionais da corte.

Em 1875, a trajetória de Ferrez mudou radicalmente quando ele recebeu convite para integrar, como fotógrafo, a expedição chefiada pelo geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878) e financiada pela Comissão Geológica do Império. Hartt faria história como autor da primeira obra rigorosamente científica sobre a geografia do Brasil – “Geology and Physical Geography of Brazil” (1870). A Expedição Hartt percorreu várias regiões do país e acendeu em Ferrez o gosto pela aventura de desbravar e registrar os confins de norte a sul do território nacional.













Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
menino índio, fotografia de 1880, e
índia e seu filho fotografados no sul
da Bahia, em 1875, e índios botocudos
no interior de Mato Grosso (1876).
Acima, a primeira fotografia no interior
de uma mina de ouro, em Ouro Preto,
Minas Gerais, no ano de 1888. Abaixo,
fotografia da série de 1876 dedicada
aos índios botocudos; um grupo de
índios Bororo em fotografia de 1880;
e duas fotografias que registram aspectos
da vida indígena feitos na década de 1870
e apresentados no Museu Nacional em 1882
na Exposição Antropológica Brasileira




             



              












Depois da experiência com a Expedição Hartt, Ferrez passa a investir esforços nos estudos sobre geologia e geografia e, no ano de 1880, decide encomendar na Europa a confecção de uma máquina fotográfica por ele idealizada, para a execução de imagens panorâmicas em grandes dimensões. Daí aos cargos oficiais de maior importância no Império de Dom Pedro 2°, também entusiasta da fotografia, foi um passo.

O destaque como funcionário a serviço da nação continuaria nos primeiros tempos da República. Reconhecido no Brasil e no exterior como fotógrafo de paisagens, de obras públicas, de cartões postais e de retratos de políticos e personalidades que se tornariam célebres, entre eles os escritores Machado de Assis e Rui Barbosa, Ferrez realizaria a partir de 1903 uma de suas séries mais reproduzidas até a atualidade: a documentação completa das obras no Rio de Janeiro de instalação da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, dos antigos edifícios às construções que foram erguidas no começo do século 20.





Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
mata de Araucárias, no interior do Paraná,
em fotografia datada de 1884. Abaixo, grupo
de escravos e seus filhos reunidos em uma
fazenda de café na Serra da Mantiqueira,
Sul de Minas Gerais, no ano de 1885;
e escravos na colheita do café em uma
fazendo do Vale do Paraíba,
no Rio de Janeiro, em 1882





Qualidade estética e documento histórico



Marc Ferrez obteve em sua época as mais importantes condecorações pela excelência de seu trabalho fotográfico, tanto no Brasil como em outros países, em diversas instituições internacionais, entre elas os primeiros grandes prêmios em exposições nos EUA (Philadelfia, 1876) e na França (Paris, 1878), além de ter suas fotografias exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Várias de suas séries e álbuns também foram incorporadas desde o final do século 19 aos acervos da Société Géographique, sediada na França.

Como se não bastasse, o nome de Marc Ferrez ainda está ligado ao nascimento do cinema no Brasil: foi ele quem patrocinou a produção dos primeiros filmes nacionais e instalou em 1907, no Rio de Janeiro, o Cine Pathé, primeira sala de exibição permanente de espetáculos cinematográficos. Ainda nesse ano, a Casa Marc Ferrez & Filhos tomaria para si a distribuição da grande maioria dos filmes exibidos nas diversas salas de cinema que surgiram no Rio de Janeiro. 










O Rio Antigo segundo Marc Ferrez:
no alto, panorâmica da Ilha Fiscal na
Baía da Guanabara, em 1885. Acima, a
Avenida Central no Rio de Janeiro de 1910.
Abaixo, a estação da estrada de ferro da
Central do Brasil, Rio de Janeiro, 1899







 
A extraordinária qualidade estética, formal e documental da obra de Marc Ferrez na produção de retratos de personalidades, além das panorâmicas, tanto as urbanas quanto a paisagem natural que emoldura e envolve seus enquadramentos, foi preservada intacta por seus familiares no último século. Depois da morte do fotógrafo patriarca, o guardião de sua obra completa foi Gilberto Ferrez (1908-2000), neto de Marc e um dos mais destacados historiadores da iconografia brasileira e da obra dos viajantes estrangeiros no decorrer da história do Brasil.

Desde a morte de Gilberto, a guarda e a preservação dos arquivos dos Ferrez estão a cargo de sua filha, Helena Ferrez, que mantém há décadas a catalogação dos documentos da família. Os catálogos preservados contam com um extenso patrimônio em suportes variados, no qual estão incluídos desde as relíquias de Zéphyrin, pai de Marc e tataravô de Helena, às clássicas séries de ensaios em panorâmicas registradas em daguerreótipos e fotografias por Marc Ferrez.











Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
amostra da experiência de Marc Ferrez
com o autocromo em cores, realizada em
1915 na Quinta da Boa Vista, no Rio de
Janeiro, seguida de duas imagens do Rio no
ano de 1875: o Pão de Açúcar, visto a partir
do bairro do Flamengo, e uma panorâmica da
entrada da Baía da Guanabara. Abaixo, o Largo
do Paço e a Rua Primeiro de Marco, no 
Rio de Janeiro, em 1890. No final da
página, mais duas imagens de Marc Ferrez em
1875: orla do Rio de Janeiro, com vista para o
Cais Pharoux e adjacências, e panorâmica que
registra os arrecifes e o porto do Recife, feita
por Ferrez no alto do Farol da Barra, tendo
em primeiro plano o Forte do Picão, que foi
construído em 1614 e batizado desde então
pelos holandeses como Castelo do Mar








Aos cuidados de Helena Ferrez também estão os acervos reunidos durante décadas por Gilberto Ferrez e todos os arquivos e filmes em negativo do filho de Marc e pai de Gilberto, Júlio Ferrez (1881-1945) – pioneiro que trouxe os primeiros equipamentos de cinema para o Brasil e realizou as primeiras filmagens em território brasileiro. Os catálogos dos Ferrez contam ainda com séries de correspondências, muitos álbuns da intimidade da família, cadernos de anotações das várias gerações, peças de artes plásticas e impressos em geral.

A maior parte deste imenso acervo, entretanto, não faz parte do material reunido no livro e na mostra “O Brasil de Marc Ferrez”. As imagens que constam do livro e da mostra foram selecionadas da coleção adquirida pelo IMS em 1998 – uma coleção que totaliza cerca de 5.500 fotografias diferentes, produzidas no século 19 e começo do século 20, incluindo mais de 4 mil negativos originais em superfícies de vidro.

Importante como resgate da importância capital do trabalho de Marc Ferrez, o livro, assim como a mostra e a manutenção do acervo pelo IMS, também consolidam e estendem para além do círculo de especialistas um trabalho que é um dos mais importantes legados visuais do Segundo Império e da República Velha. Compreendida no período que vai de 1865 a 1918, a perícia técnica e a grande arte de Marc Ferrez se mantêm, até os dias de hoje, como um dos registros fundamentais da fotografia no Brasil e no mundo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Relíquias de Marc Ferrez. In: Blog Semióticas, 7 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/reliquias-de-marc-ferrez.html (acessado em .../.../...).



 







1 de maio de 2012

O trabalho de Lewis Hine





A fotografia não sabe mentir,
mas os mentirosos sabem fotografar.

––  Lewis Wickes Hine (1874-1940).  

      

 O Brasil e outros países comemoram no dia 1° de maio o feriado do Dia do Trabalhador, mas poucos se lembram da origem da data e menos ainda de seu sentido. O registro mais antigo de que se tem notícia sobre o assunto é a Revolta de Haymarket, com manifestações de protestos de trabalhadores nas ruas de Chicago, Estados Unidos, no início do mês de maio de 1886. Os protestos, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho de 16 para 8 horas, foram reprimidos pela polícia com violência e resultaram em dezenas de mortos e feridos. A repressão teve um resultado contrário ao esperado pelos patrões: a data e os protestos passaram a ser propagados em sua força simbólica.

Aqueles primeiros relatos sobre as lutas sindicais de Chicago correram o mundo e foram lembrados nos anos e décadas seguintes, com muitas passeatas e protestos por melhores condições de trabalho. O que a princípio parecia um sonho impossível começou a se concretizar anos depois, em 1890, quando a repercussão do massacre em Chicago levou o Congresso norte-americano a decretar a redução da jornada de trabalho: de 16 para 8 horas diárias. Algumas décadas se passaram e, em abril de 1919, o Senado da França também ratificou a jornada de trabalho de 8 horas e proclamou o dia 1° de Maio como feriado nacional em homenagem aos trabalhadores assalariados.

O exemplo da redução da jornada foi seguido em muitos países, menos no Brasil. Por aqui, o processo foi muito mais lento. Da mesma forma como detém o triste recorde de ter sido o último país do mundo ocidental a abolir o trabalho escravo, em 1888, no Brasil a redução da jornada de 16 horas também demorou a se concretizar. O dia 1° de maio virou feriado nacional somente em 1925, por um decreto do presidente Artur Bernardes. A questão da jornada e os direitos do trabalhador, entretanto, só foram legalizados 20 anos depois do feriado, com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo presidente Getúlio Vargas, não por acaso em 1° de maio de 1943.









Fotografias de Lewis Hine: no alto,
Trabalhador na casa de força (1920);
acima, New Jersey: garoto de oito anos
com cavalo no campo (1910), Garotos
à meia-noite na fábrica de vidros (1908)
e Operário erguendo o mastro (1932), da
série que o fotógrafo dedicou à construção
do Empire State Building em Nova York.

Abaixo, uma imagem das séries que Hine
dedicou às levas de imigrantes e seus filhos
que chegavam à América: mãe e seus três
filhos, vindos da Itália, desembarcam no
porto de Nova York em 1905








Se no plano político as lutas e reivindicações de trabalhadores no mundo inteiro geram batalhas permanentes, coube a um fotógrafo o trabalho pioneiro de transformar em arte as denúncias de situações de trabalho aviltantes. Há pouco mais de 100 anos, o sociólogo norte-americano Lewis Wickes Hine (1874-1940) encontrou na fotografia a sua forma de denunciar as injustiças sociais e as mazelas do trabalho infantil.

No começo do século 20, crianças compunham uma boa parcela da mão de obra na indústria, nas ruas e no campo nos Estados Unidos e em vários países, inclusive no Brasil. Diante do que percebeu como situação de abuso e imoralidade, Hine produziu, a partir de 1903, um dos mais impressionantes acervos sobre condições desumanas de trabalho, questões de saúde pública e discriminação de minorias, com mais de 5 mil fotografias em papel e 300 negativos de vidro.












O trabalho de Lewis Hine: a partir 
do alto e abaixo, retratos heroicos sobre
infância perdida com o trabalho no
campo, em New Jersey, em fotografias
das séries realizadas por Hine em 1910.

Abaixo, três fotografias com denúncias de
Lewis Hine contra o trabalho infantil no campo:
1) os irmãos Campbell, de 5, 6, 7 e oito anos,
que trabalhavam no campo em New Jersey,
em 1911, em troca de uma refeição por dia;
2) Callie Campbell, 11 anos, trabalhava
na colheita de algodão durante 12 horas
por dia no condado de Potawotamie, em
Oklahoma, também em 1911; e 3) a colhedora
de frutas Bertha Marshall, de 9 anos, que
trabalhava diariamente em troca de uma
refeição na fazenda Jenkins, em
Baltimore, Maryland, em 1909  



















Hoje aclamado como um dos mais importantes fotógrafos de todos os tempos e com seu legado estudado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento acadêmico, Lewis Hine também é reconhecido como um pioneiro na luta pela criação de leis trabalhistas e de reforma social. Contratado em 1908 como fotógrafo e inspetor do Comitê Nacional do Trabalho Infantil dos EUA, Hine acreditava que o semblante de uma criança poderia mostrar muito mais do que qualquer outro tipo de prova sobre a realidade do trabalho infantil.



Exploração e vertigem



Além de seu trabalho investigativo como funcionário do governo, Lewis Hine também realizou séries de documentação fotográfica humanitária na Europa, a serviço da Cruz Vermelha Internacional, durante a Primeira Guerra, registrando imagens que ainda hoje são sempre reproduzidas para ilustrar reportagens e documentários, tais como “Soldier thrown in the air”, com o soldado lançado ao ar em comemoração das tropas aliadas ao fim do conflito. As fotografias de Lewis Hine registraram os momentos de descontração e até poéticos da tropas militares, mas também os horrores da guerra que, em quatro anos de matança e destruição nunca vistas, resultou em incontáveis milhões de mortos. Somente entre as tropas militares, os números oficiais apontam 11 milhões de soldados mortos e 21 milhões com ferimentos graves ou mutilados, com uma média diária de 6 mil soldados mortos por cada dia de conflito.

De volta aos Estados Unidos, Lewis Hine passaria os anos seguintes e toda a década de 1920 engajado em campanhas pelo estabelecimento de leis que regulamentassem a segurança no trabalho e a saúde do trabalhador. Em 1930, ele registraria outra de suas séries que ganharam o mundo: as panorâmicas de altitude sobre os operários na impressionante e vertiginosa etapa de finalização das obras de construção do Empire State Building, que era até então o prédio mais alto do planeta. Em plena época da chamada “grande depressão”, Lewis Hine documentou o que também se tornou, para muitos, um símbolo de esperança e de progresso naqueles tempos difíceis.













O trabalho de Lewis Hine: operários
sem nenhuma segurança, nas alturas,
durante as obras para a construção
do Empire State Building. As cenas
que, ainda hoje provocam vertigem,
foram reunidas por Lewis Hine no livro
Men at Work (Homens trabalhando),
publicado pela primeira vez em 1932.

Também abaixo, o soldado lançado ao
ar na comemoração das tropas aliadas
pelo fim da Primeira Guerra Mundial,
em 1917, época em que Lewis Hine
trabalhou na Europa como
fotógrafo da Cruz Vermelha















Na fronteira entre a denúncia e a exaltação da coragem, as fotografias de Hine sobre os operários no Empire State são sempre lembradas por muitos como tributo à individualidade e à importância do trabalho. Nas palavras de Hine, cada uma dessas imagens são um lembrete de que "as cidades não são construídos por si só. Elas têm atrás de si o sacrifíco e o suor de muitos homens". Os operários e as cenas de vertigem no alto do Empire State foram reunidas em 1932 em “Men at Work”, o único livro que Hine publicou. 

A dedicação à fotografia teve início quando Lewis Hine comprou sua primeira câmera, em 1903. Desde então, seu mergulho no registro de imagens e seu empenho em denunciar a pobreza e a vida miserável dos imigrantes, os abusos da exploração e das condições degradantes de trabalho, o levaram a deixar o cargo de professor na Ethical Culture School e a viajar durante anos por todo o território dos Estados Unidos, documentando com suas fotografias as condições de trabalho em diversas atividades. 


















Trabalho Infantil na América: imagens
comoventes de crianças de 6 a 12 anos
em jornadas e condições abusivas nas
fábricas e minas de carvão foram
registradas por Lewis Hine em 1910
em South Pittston, Pennsylvania





















As fotografias de denúncia de Lewis Hine, que ainda hoje impressionam pela crueldade a que crianças e trabalhadores em geral eram submetidos, provocaram escândalo desde as primeiras publicações em jornais e revistas de Nova York, há mais de 100 anos, e foram o motor para a criação da legislação para o controle e regulamentação do trabalho primeiro nos Estados Unidos e depois em outros países. Nas fotografias de Hine, à exceção das séries de operários no Empire State, são poucos adultos: na maioria são crianças substituindo a tração animal em grandes plantações ou exploradas nas ruas das grandes cidades, em minas de carvão, nas usinas e na indústria têxtil.



Apelo estranho e comovente



No decorrer no último século, as imagens de denúncia produzidas por Hine foram reproduzidas com frequência em reportagens, em panfletos sindicais, em livros de história e nos manuais sobre fotografia, além de lugares mais improváveis, de montagens de arte underground a capas de discos de punk-rock. Cada uma delas mantém seu apelo estranho e comovente, ao mesmo tempo real e abstrato – como destaca Roland Barthes em seu célebre estudo sobre a arte e a técnica da fotografia intitulado “A Câmara Clara”.












O trabalho de Lewis Hine: o fotógrafo
em autorretrato no final da década de 1930
e três garotos registrados por ele em
seus locais de trabalho na cidade de
Brown, West Virginia, em 1909.
Abaixo, as três irmãs Josie (seis anos),
Bertha (seis anos) e Sophie (dez anos),
que trabalhavam como descascadoras de
ostras em 1911 na Maggioni Canning Co.,
em Port Royal, Carolina do Sul, em
troca de uma refeição por dia









Entre a invenção de uma “teoria do olhar” e a análise sobre imagens de Nadar, Kertész, Niépce, Stieglitz, Avedon, Mapplethorpe e William Klein, entre outros grandes fotógrafos citados por Barthes, Hine é quem tem o maior número de fotografias reproduzidas na edição original de “A Câmara Clara”, publicada em 1980. Barthes destaca em Hine um certo “punctum”, o sentido da arte e não apenas a exposição da dor, do sofrimento, da exploração e da miséria: “o punctum de uma foto é esse acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere)”. 

No breve texto de apresentação a “Men at Work”, Hine chegou a relatar algumas das inúmeras dificuldades e perigos que enfrentou em suas “investigações”. Os donos das fábricas não permitiam que ele fotografasse e não raro contratavam capangas para ameaçá-lo e tentar tomar seus equipamentos. Hine tinha por método esconder a câmera e se apresentar como um inspetor de incêndio. Assim, capturava as fotos mais reveladoras.












Os pequenos jornaleiros chegam às
ruas de madrugada em Washington,
em 1910. Acima, dois flagrantes sobre
o trabalho do pequeno Francis Lance,
de apenas 5 anos de idade, fotografado
por Lewis Hine na cidade de
St. Louis, Missouri, em 1912.

Abaixo, Lewis Hine em ação, em 1913,
registrando a família Sherrica em que os
quatro irmãos (de 11, 10, 7 e 3 anos)
trabalhavam em uma fábrica em Bluffton,
na Carolina do Sul, limpando peixes e
frutos do mar, durante 12 horas por dia;
e a imagem célebre que registra
Anormais em uma instituição,
fotografia de 1924 de Lewis Hine
destacada por Roland Barthes
no livro A Câmara Clara










Em uma das muitas vezes em que foi preso, acusado de invadir uma propriedade particular para fazer suas fotografias de denúncia sobre exploração do trabalho infantil, Hine declarou em uma audiência diante das autoridades policiais e da justiça: “Talvez vocês estejam cansados de tantas fotos que fazem denúncias sobre o trabalho infantil. Preciso dizer que eu também estou, mas quero fazer vocês e o resto do país ficarem tão enjoados destas cenas a ponto de obrigar isso a ter fim. Tenho esperança de que haverá um dia em que o trabalho infantil será apenas um registro esquecido em fotografias do passado.”

A experiência proporcionada por uma das imagens de Lewis Hine, conforme destaca Roland Barthes em “A Câmara Clara”, é exemplar sobre o que o fenômeno da fotografia pode provocar de mais intenso e revelador. Ao observar o registro feito por Lewis Hine, em 1924, de duas crianças anormais em uma instituição de New Jersey, Barthes localiza um conceito que se tornaria célebre em análises sobre fotografia: o “punctum”.







O que vejo é o detalhe descentrado, a imensa gola Danton do garoto, o curativo no dedo da menina. Sou um selvagem, uma criança – ou um maníaco; mando embora todo o saber, toda cultura, abstenho-me de herdar de um outro olhar”, confessa Barthes. É a  subjetividade do leitor que vai perpassar o enquadramento do objeto retratado, pondo-o em movimento, dando-lhe tanto a continuidade como a descontinuidade narrativas.

A reflexão a respeito da trama situacional, que fez a fotografia emergir, se impõe através da atenção do receptor que observa e pode, por fim, enveredar por um percurso que articula razão e emoção. Cabe ao observador encadear o que o fotógrafo quis que ele visse e fundir a maior parte dos elementos que fazem convergir fotografia e memória, essa “estocagem” cultural que vem alinhavar cada uma das experiências vividas.



Horror cotidiano



Com a autenticidade da grande arte, o trabalho de Lewis Hine emociona, como destaca Barthes em "A Câmara Clara". E emociona exatamente porque não estava à procura de piedade ou de sentimentalismos, nem mesmo de caridade. Como nos épicos monumentais da literatura universal ou nos afrescos góticos das grandes catedrais da Idade Média, Hine produziu registros sobre cenas cotidianas que reservam algo de mitológico exatamente porque conseguem recriar o que na época era muito comum e hoje provocam estranhamento, provocando no observador emoções contraditórias e levando ao entendimento sobre alguns dos horrores que se repetiam nos primórdios da sociedade industrial.







O trabalho de Lewis Hine: acima,
garoto de 8 anos de idade durante a
madrugada, no trabalho em uma
estação ferroviária em Boston,
Massachusetts (EUA), em 1909.

Abaixo, crianças operam máquinas
na fábrica de tecidos de algodão
Whitnel, em North Carolina, 1908.
Lewis Hine registrou que, ao perguntar
para a garota (última foto) quantos anos
tinha e qual era seu nome, ela fez uma
longa pausa e finalmente respondeu:
"Não me lembro..."









Numa época em que a escravidão humana ainda era uma experiência muito recente, quando era tão comum haver tanta injustiça social e com a maioria das pessoas estando tão acostumadas com esses problemas, Lewis Hine ousou se manifestar em defesa dos mais explorados e das vítimas mais contumazes da ordem vigente. Quando o jornalismo e os repórteres investigativos ainda não tinham saído a campo e quando quase todos acreditavam que o trabalho mais aviltante de crianças e de adultos era algo inevitável, e até mesmo os próprios operários pareciam estar conformados e resignados em tal situação, o fotógrafo enfrentou a tudo e a todos na intenção de fazer suas denúncias contra o que o senso comum ainda considerava natural ou inevitável.
 
Por ironia do destino, o reconhecimento da importância do trabalho de Lewis Hine tanto na imprensa como por parte de críticos e historiadores da arte foi muito tardio e não garantiram a ele nem fama nem fortuna. Em seus últimos anos de vida, talvez por força da resistência dos interesses corporativos que ele enfrentou e contrariou durante décadas, Lewis Hine não conseguiu mais nem emprego e nem espaço nos jornais e revistas para publicar suas fotografias.

Sem dinheiro e com poucos amigos, acabou hipotecando e perdendo a casa em que morava e tornou-se vítima da pobreza que sempre fez questão de retratar. Morreria esquecido e na miséria, em 1940. Entretanto, sua herança de realismo e de percepção pioneira sobre o papel fundamental da fotografia como documento, a força das situações de trabalho aviltantes e dos rostos comoventes das crianças e dos adultos que registrou, assim como suas denúncias contundentes contra as formas criminosas de injustiça social, continuam como um alerta a questionar, a impressionar e a assombrar a experiência humana.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O trabalho de Lewis Hine. In: _____. Blog Semióticas, 1° de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/o-trabalho-de-lewis-hine.html (acessado em .../.../...).



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