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16 de janeiro de 2012

O Livro de Ana






Sou frágil o suficiente para uma palavra me machucar, 
e sou forte o suficiente para uma palavra me ressuscitar. 

–– Bartolomeu Campos de Queirós.   



Hoje acordei com uma notícia triste: acabo de saber da morte, aos 68 anos, do escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Nos telejornais e nos sites de jornalismo, as primeiras notícias não foram além de duas ou três frases, dizendo que ele era membro da Academia Mineira de Letras, que recebeu prêmios brasileiros e internacionais pela excelência do seu trabalho literário e que seus livros foram traduzidos para diversos países.

Nenhuma das notícias, entretanto, nem listaram os tais prêmios nem explicaram o porquê do autor ter alcançado lista tão surpreendente que incluiu os cobiçados Jabuti e premiações da Associação Paulistas dos Críticos de Arte, da Academia Brasileira de Letras, Ibero-Americano (México), Nestlé de Literatura, Bienal de São Paulo, Selo de Ouro da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Medalha da Inconfidência Mineira e Medalha Santos Dumont (Governo do Estado de Minas Gerais), Rosa-Blanca (Cuba), Quatrième Octogonal (França), Chevalier de l'Ordre des Arts et des Lettres (França) e IBBY (Inglaterra), entre muitos outros.

Conheci Bartolomeu há mais de 10 anos, primeiro pelos livros que minha irmã, professora do ensino fundamental em Barbacena, sempre leu com atenção de fã e adotou como material de referência para a sala de aula. Depois fui conhecê-lo pessoalmente, quase por acaso, quando fomos apresentados por um amigo jornalista, Alécio Cunha, outro sábio no manejo das palavras, que também morreu recentemente.

Estávamos em um café, próximo ao jornal em que eu trabalhava. Era o mês de março de 2010 e Bartolomeu estava às vésperas de lançar “O Livro de Ana” (Global Editora), e como sempre estava otimista, bem-humorado e de bem com a vida, apesar de há algum tempo enfrentar graves problemas de saúde. Ainda em processo de recuperação da última crise que o levara a uma temporada de internação hospitalar, o escritor e educador dizia que comemorava com felicidade a grandeza de estar no mundo com mais um lançamento na sua extensa e premiada trajetória de 65 livros publicados. 





O escritor Bartolomeu Campos de Queirós
fotografado durante sessão de autógrafos
em 2010. No alto, uma das imagens barrocas
da Sant'Ana Mestra esculpida em madeira
policromada no século 18 e atribuída a
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
 Abaixo, a Sant'Ana Mestra na versão de
Pablo Picasso, Dos chicas leyendo, pintura
em óleo sobre tela de 1934; e um detalhe
da primeira capa de O Livro de Ana









Bartolomeu tinha nas mãos “O Livro de Ana”, que me deu de presente e autografou no ato com uma dedicatória emblemática. Comentei sobre a dedicatória, dizendo que era surpreendente demais para ser tão espontânea. Questionei se ela já estava pensada, ele achou graça na pergunta e a conversa de imediato transformou-se em entrevista, que foi publicada no dia seguinte. 

Folhei o livro de Bartolomeu e elogiei as belas ilustrações e projeto gráfico incomum, que ao incluir no miolo da brochura várias folhas recortadas multiplicava as possibilidades de leitura e convidava a reflexões e exercícios de metalinguagem. Ele, todo modesto, atribuiu o mérito da beleza e inteligência do novo livro à parceria com o designer Marconi Drummond, com quem também tinha desenvolvido outros projetos recentes.



O afeto: objeto livro


Gosto demais do objeto livro", confidenciou Bartolomeu, como se não fosse um segredo de polichinelo o amor declarado de todo escritor pelo objeto livro . "Mas gosto mesmo é dos livros de literatura, que trazem para o leitor, seja ele criança ou adulto, um convite à reflexão. O livro de brinquedo, que só propõe joguinhos ou informações triviais, de passatempo, não tem para mim nenhum interesse”, explicava, apontando na estante de lançamentos de livros infanto-juvenis que a maior parte estava incluída na categoria de passatempo ou de trivialidades, longe da literatura. 







Feliz e orgulhoso por ter sido eleito, havia pouco tempo, como objeto de estudos por Ebe Maria de Lima, professora de Goiás que escreveu uma tese acadêmica sobre sua obra, Bartolomeu reconheceu durante a entrevista que aquele tinha sido o maior elogio de todos os que tinha recebido na vida. A tese defendida por Ebe, segundo Bartolomeu, apontou que sua literatura representava uma obra sem fronteiras entre o público infantil, adulto ou juvenil.

Fiquei muito emocionado com o elogio, mas como escritor e como ser humano tenho fascínio é pela infância e pelo universo da criança. A infância sempre me deixa atento”, explicou, lembrando "Alice" de Lewis Carroll e alguns dos clássicos de Monteiro Lobato. Também recordou em seguida uma máxima atribuída ao pensador alemão Carl Jung (1875-1961) que Bartolomeu considerava uma lição de vida.

Jung, que sabia das coisas, dizia que a gente nasce original e morre cópia. O que é uma grande verdade, já que muitos de nós vão perdendo pelo caminho as emoções mais fortes da infância”, disse, com lágrimas nos olhos, enquanto destacava questões sobre si mesmo e sobre sua literatura que acabou descobrindo com certa surpresa, através da tese de Ebe Maria de Lima.





Bartolomeu trabalhava como funcionário do Ministério da Educação em Belo Horizonte, no começo da década de 1970, quando começou a abraçar a literatura como missão. “Descobri que para me dedicar à literatura só preciso de papel, lápis e solidão. O que é meio mágico e maravilhoso, quando o resultado consegue tocar a emoção das pessoas”. 



A lembrança de Papagaio


Naquela breve entrevista de quinze minutos, ele recordou cenas de sua infância em Papagaio, cidade localizada no Centro-Oeste de Minas, e destacou uma ou outra história e personagens que conheceu quando menino e que terminaram por influenciar seu gosto pelos livros e pelas histórias da tradição de sua cidade natal, quase todas ligadas aos costumes de Papagaio, lugarejo ainda hoje voltado para a exploração de cristal, carvão e ardósia.

Lembro de ter feito um gracejo sobre o nome “papagaio” e o hábito que o pássaro domesticado tem de repetir as palavras e frases que mais ouve. Bartolomeu celebrou o comentário com uma gargalhada feliz e estende a piada, dizendo que a vida toda ele próprio tentava repetir nos livros que escrevia as emoções mais sinceras que aprendeu lendo outros autores e recordando histórias de sua infância em Papagaio.




Ao comentar suas lembranças mais antigas, disse que desde sempre se interessou pela leitura. A maior influência ele reconhecia no avô, que fazia de rabiscos nas paredes da casa suas listas de caderno de anotações. Por meio dos rabiscos do avô nas paredes da casa humilde, com chão de terra batida, recortando e colando sílabas, o menino Bartolomeu acabou por descobrir o encanto contido nas palavras. Praticando a soma das letras, Bartolomeu sentiu a riqueza contida em cada vocábulo nas paredes.

Ele veio adulto para BH, depois de viver a infância em Papagaio. “O Peixe e o Pássaro”, foi seu primeiro livro, publicado em 1974. “Não tenho filhos, mas tenho 65 livros publicados”, ironizou, explicando que não adiantava de nada eu pedir para que ele apontasse, entre tantos livros tão diferentes entre si, qual o seu preferido.

Ah, não. Prefiro fugir dessa tarefa de eleger o meu favorito entre todos. Cada um a seu modo tem uma qualidade ou uma história que lhe atribui um certo valor. A escolha dos preferidos depende do dia, da hora, da época”, explicou, com uma certa modéstia à flor da pele. Mas não evitou destacar suas preferências em música, listando antigas modas de viola caipira e duas ou três canções do canadense Leonard Cohen, para surpresa do entrevistador.






Ciganos, espetáculo do grupo de teatro
Ponto de Partida, de Barbacena, baseado
na história do menino que ficava observando
os ciganos que apareciam em sua cidade e
torcia para ser roubado por eles, obra
de Bartolomeu Campos de Queirós







Entre seus livros mais premiados estão aqueles que já passaram à condição de clássicos – caso de “O Olho de Vidro do Meu Avô”, publicado em 2005 pela Editora Moderna e um de seus “campeões de venda”, vencedor dos prêmios Nestlé de Literatura, Jabuti e Fundação Nacional do Livro, entre outros. De sua trajetória ele destacou com orgulho que fez o curso de Pedagogia, que teve textos adaptados para o teatro (pelo grupo Ponto de Partida, de Barbacena) e que ocupou cargos públicos importantes, entre eles a presidência da Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte, além de ter sido membro, por muitos anos, do Conselho Estadual de Cultura. Sobre os prêmios, contudo, Bartolomeu evitou falar durante a entrevista:

Os prêmios são um reconhecimento, uma honra, mas só tem o mérito se conseguem ajudar a reunir novos e bons leitores. Se não conseguem isso, não têm muita razão de ser. E no fundo, no fundo, sempre que recebo um prêmio fico pensando se a escolha foi justa, se não havia outros concorrentes que fossem mais merecedores do que eu”, apontou, sempre lúcido no bom-senso e volta e meia retornando aos sábios ensinamentos do avô que marcou a infância e a vida toda.





Meu avô foi, de fato, uma grande influência. Só isso dele me apresentar à leitura usando as paredes de casa como caderno de anotações já é em si algo maravilhoso, mágico, parece até história inventada do mundo de Alice”, disse, feliz com a própria experiência. Sobre o novo livro, ele revelou que foi o resultado de uma ideia que ficou na cabeça durante muito tempo. Segundo Bartolomeu, o projeto para “O Livro de Ana” nasceu depois de uma visita à casa da empresária Ângela Gutierrez – a quem o livro é dedicado. 
 


A Sant'Ana Mestra


As amizades levam a gente a pensar em pessoas, em coisas, na vida. Minha amiga Ângela Gutierrez coleciona imagens de Sant'Ana Mestra, tem mais de 70 delas, de épocas e estilos diferentes. Observando toda aquela beleza resolvi imaginar o que estaria escrito no livro que a santa traz consigo”, explicou Bartolomeu, fazendo pausas entre breves comentários de encanto com cada uma das imagens que recorda, naquele momento da entrevista.

Intercalada às diversas lembranças, ele também ressalta uma série de detalhes mais conhecidos do culto à santa católica pela gente mais humilde. A principal: pela tradição religiosa, são chamadas de Sant'Ana Mestra as imagens que representam uma mulher que carrega um livro nas mãos acompanhada por uma criança – a criança seria a Virgem Maria, a Nossa Senhora do catolicismo; a mulher, sua mãe, conhecida por Sant'Ana ou Santa Ana. A imagem é considerada um símbolo da pedagogia.












Depois de confessar que é um leitor permanente de poesia (“dependendo do dia, varia entre Lorca, Cecília Meireles, João Cabral, Pessoa, Drummond...”), Bartolomeu contou que decidiu recriar com o novo livro o texto que poderia estar nas imagens de Sant'Ana Mestra e terminou chegando ao relato de “O Livro de Ana” – que aborda a beleza da criação do mundo e dos exercícios do criador.

A melhor literatura é a que segue na trilha da liberdade, que segue as invenções da ficção e do sonho”, defendeu, nomeando a si próprio como leitor contumaz e perdidamente apaixonado pelos clássicos. “É pela fantasia que primeiro o escritor e depois seus leitores procuram desvendar o segredo. Em paralelo aos melhores textos, os mais autênticos e iluminados, pode-se ler toda a teoria da arte e também sua impossibilidade. Daí a função integradora e profundamente reveladora do melhor da raça humana que toda grande arte proporciona, com sua capacidade de aproximar as pessoas e os povos, com sua perspectiva de gerar compartilhamentos”.

Bartolomeu também destacou que para ele, tanto no papel de leitor como no de escritor, a literatura tem exigências, como todo processo criativo: “A melhor literatura exige o novo, exige rompimento, exige cumplicidade do autor com seus possíveis leitores”. Ou, como dizem as palavras que abrem seu livro, objeto da sorte daquela entrevista apressada: “Jamais li o livro de Ana. Mas se fico atento ao mundo e sua festa, posso adivinhar a escritura”.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. O Livro de Ana. In: Blog Semióticas, 16 de janeiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/o-livro-de-ana.html (acessado em .../.../…).


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15 de julho de 2011

A arte do grafite






O público tem direito à arte. O público tem sido
ignorado pela maioria dos artistas contemporâneos,
mas o público precisa da arte. Arte é pra todos.

-- Keith Haring (1958-1990).  


Os ícones de bonequinhos das obras de Keith Haring se transformaram em sua marca registrada: tanto faz se em pinturas, desenhos, gravuras, videoclipes, silk-screens, camisetas, bótons ou publicidade de tudo. As imagens do artista norte-americano tomaram de assalto a cultura pop assim que surgiu na mídia, nos anos 1980, o interesse por aquele sujeito que desenhava com giz e tinta nas ruas e metrôs de Nova York. Keith Haring ficou popular em pouco tempo e permanece: sua obra influencia artistas até hoje no mundo inteiro. Para ele, a arte deveria ser acessível para todos – e deveria ser feita a partir da linguagem visual só na aparência simples, colorida, infantil.

Grafites personalíssimos e desenhos em murais e nas ruas de Nova York com seus bonequinhos dançando, em traços sintéticos, provocantes, de cores gritantes, viraram marca registrada de seu estilo, também imortalizado em célebres pinturas, esculturas, colagens nos acervos dos grandes museus e em milhares de ilustrações para livros, discos, fachadas, filmes, revistas, jornais. Alguns dos trabalhos mais expressivos da arte genial de Keith Haring foram reunidos em duas publicações que chegaram às livrarias brasileiras pela primeira vez, mais de duas décadas depois da morte do artista: "O Livro de Nina para Guardar Pequenas Coisas" e "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir", os dois lançados pela Cosac Naify.












A história do antológico "O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas" (Cosac Naify, 72 páginas ilustradas) começou em 1988, no Brasil, no aniversário de sete anos da pequena Nina, filha do pintor italiano Francesco Clemente, grande amigo de Haring. É um livro dos mais surpreendentes que já foram imaginados, na fronteira da palavra livro,  incomum, que mistura catálogo de arte e diário infantojuvenil, todo feito a mão livre. Trata-se, na verdade, de um objeto pessoal para desenhar, pintar, colar adesivos, folhas, fotos dos amigos, lembranças de um dia no circo e até pensamentos – desde que sejam pequenas coisas, já que as grandes, ele recomenda, devem ser guardadas em caixas.

O Livro de Nina...” de Keith Haring recebeu um tratamento caprichado na edição brasileira, que manteve o formato alongado em capa dura dos antigos cadernos de fotos e lembranças. Para preservar o aspecto artesanal do objeto-livro inventado pelo artista, a letra de Haring foi mimetizada no projeto gráfico – com tradução assinada por Alípio Correia de Franca Neto.

Um purismo curioso: o nome do autor não aparece na capa e nem na folha de rosto, que já se apresenta como dedicatória. Um sol amarelo e sorridente, típico das imagens festivas celebrizadas por Keith Haring, saúda: "Para Nina, em seu sétimo aniversário – 15 de julho de 1988. Com amor, Keith". A edição nacional do livro - que foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos e em países da Europa em 1994 e tornou-se um clássico instantâneo – traz ainda um depoimento inédito da própria protagonista, Nina Clemente.
























A arte do grafite: no alto, Keith Haring em
ação em seu ateliê em Nova York, em 1988,
fotografado por William Coupon. Acima,
um pôster sem título de 1988, seguido pelas
capas das edições nacionais dos livros
Ah, se a gente não precisasse dormir e
O livro de Nina para guardar pequenas coisas.
Também acima, o artista em ação no estúdio
em 1982, fotografado por Allan Tannenbaum.

Abaixo, fotografado 
por Wolfgang Wesener
em 1985, na casa de 
shows Palladium, em
Nova York, e uma seleção 
de imagens dos
arquivos da Fundação Keith Haring,
exceto quando indicados os
créditos e datas nas legendas
















O livro e a cozinha de Nina



A pequena Nina cresceu e hoje, aos 30 anos, ela trabalha como chefe de cozinha e estilista na Califórnia, EUA, onde também apresenta o programa de culinária "Cucina de Nina", exibido pela Plum TV (para assistir na Internet, clique aqui). "Ele tinha uma capacidade inata de transcender a vida adulta e foi meu melhor companheiro de infância, para além de nossa diferença de idade. "Ele tinha uma capacidade inata de transcender a vida adulta e foi meu melhor companheiro de infância, para além de nossa diferença de idade. Nunca o enxerguei como gente grande – todas as memórias que tenho dele são repletas de desenhos, de muitas risadas e muita alegria", explica Nina, em uma breve entrevista concedida por telefone.

"Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir" (Editora Cosac Naify, 40 páginas ilustradas) não é menos precioso que “O Livro de Nina para Guardar Pequenas Coisas”. Produzido e publicado originalmente em 1997 como um projeto da Keith Haring Foundation (criada em 1989 pelo artista para gerenciar seu acervo e apoiar projetos relacionados a crianças, a educação e a pesquisas e cuidados para pacientes com AIDS), o livro ganha na edição brasileira uma reportagem exclusiva do jornalista Mario Cesar Carvalho sobre Haring e sua relação com o Brasil, chegando a uma abordagem inédita sobre a arte do grafite.




















Traduzida em livro, a arte de Keith Haring traz uma surpresa a cada página, independente da idade do leitor, ainda que tenha endereço certo para pesquisadores, arte-educadores e para toda a nova geração de grafiteiros. Entre os incontáveis fãs estão os irmãos grafiteiros Otávio e Gustavo Pandolfo, mais conhecidos como OsGêmeos, que declaram na contracapa da edição brasileira:

Keith Haring foi sem dúvida um dos artistas da arte pop mais consagrados internacionalmente”, destacam os irmãos, no texto escrito em conjunto. “Com seu trabalho, atravessou barreiras, superou várias dificuldades e conquistou o mundo. Uma arte alegre, questionadora e divertida, com traços fortes e linguagem direta, que somou muito para a cena do grafite".








Temporadas de Keith Haring
no Brasil: o amigo Kenny Scharf
registrou passagens do artista
por Ilhéus, na Bahia (acima) e
na Bienal de São Paulo, em
1983 (fotos no alto e abaixo).
Homenageado pela Bienal, ele
produziu ao vivo um painel no
pavilhão do evento, com suas
impressões sobre o Brasil.

O painel foi fotografado, mas
terminou destruído, assim como
outras obras que Keith Haring
produziu em paredes e muros
da Avenida Sumaré e em outras
praças de São Paulo













 
No ensaio-reportagem incluído na edição nacional de "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir", Mario Cesar Carvalho destaca que a dupla paulistana OsGemeos foi convidada a homenagear Keith Haring no Lower East Side, em Nova York. "Keith fez o famoso mural na esquina da rua Houston com a Bowery, e após alguns meses o mural foi apagado. Anos depois, nós fomos convidados a pintar o mesmo espaço pela Deitch Project e Tony Goldman", contam os irmãos, confessando que foi uma honra participar da homenagem. 



Keith Haring e os brasileiros



Em busca de Keith Haring e sua relação com o Brasil, país que ele visitou diversas vezes, Mario Cesar Carvalho produziu uma autêntica reportagem investigativa. Pesquisou arquivos, foi aos álbuns de família dos amigos e colheu depoimentos importantes, e até então inéditos, de pioneiros do grafite, entre eles Ivo Mesquita, Rui Amaral e Fabiana de Barros.

No breve relato de sua pesquisa à procura da influência de Keith Haring sobre os brasileiros e sobre o destino das obras que ele pintou por aqui, Carvalho, na verdade, reconstitui a história do grafite no Brasil. Entre as preciosidades, enumera o muro pintado por Haring próximo à avenida Sumaré, em São Paulo, que hoje não existe mais. Carvalho também resgata outras imagens raras de Haring em solo brasileiro, incluindo a confecção do painel que figurou na Bienal de 1983 e outros inspirados na capoeira ou em nossas florestas.





















Retratos do artista imerso em sua
criação: acima e abaixo, Keith Haring
em Nova York, em ação na Factory de
Andy Warhol, fotografado por Nick Elgar
na abertura da Pop Shopuma mistura de
loja e instalação de arte que realizou em
1984. Nas fotos a seguir, abaixo, o artista
em 1983, em sua viagem ao Brasil, em
frente a um cartaz feito por Ziraldo, e
apresentando uma de suas performances
como artista homenageado durante a
Bienal de São Paulo














.


"Quase todos os primeiros grafiteiros dos anos 1980 trabalhavam com moldes em papel para desenhar, e a passagem de Haring pela cidade ajudou a disseminar o grafite a mão livre, estilo pouco praticado na época, segundo Rui Amaral, um dos lendários pioneiros que continua na ativa", aponta Mario Cesar Carvalho, contextualizando através da presença de Keith Haring os caminhos da arte do grafite no Brasil, com destaque para a cidade de São Paulo.

Repleto de leveza e ironia, com inventividade que estimula a percepção visual e lida com a arte moderna de uma maneira contemporânea, “Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir” tira proveito dos ícones dançantes multicoloridos de Keith Haring, criador intuitivo que começou a desenhar ainda criança, quando inventava histórias em quadrinhos com o pai. Depois fez sucesso meteórico com seus trabalhos, que passaram das ruas e estações de metrô para as maiores galerias e museus do mundo. 










Um cara de óculos



É um daqueles livros que começam com uma pergunta e vão direto ao assunto. "Está vendo esse cara de óculos aí do lado?" - questiona o autor, logo na primeira linha da primeira página. "Ele é o Keith Haring. Daqui a pouco vamos olhar com atenção as obras de arte dele e várias coisas relacionadas a elas. Também vamos saber o que outras crianças pensam quando veem esses trabalhos. Mas, antes, uma perguntinha rápida: qual é, na sua opinião, a coisa mais importante para Keith Haring nessa foto? Claro! É o tênis que está calçando, um tênis do qual ele gostava ainda mais à medida que ia ficando velho e gasto! Keith sempre aparecia com esse tênis, seja quando usava camiseta e jeans, seja ao vestir um terno azul".

Com pequenos textos tão breves quanto saborosos, mais transcrição de depoimentos e análises feitas por crianças de escolas públicas de Nova York sobre o trabalho de Haring, desenhos, pinturas, uma reportagem sobre as temporadas do artista no Brasil, fotos do artista trabalhando e grafites, muitos grafites: assim é "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir". Cada desenho grafitado inspira milhares de interpretações e, no livro, as frases das crianças intercalam a sequência de imagens, mistura de curiosidade e senso de humor inteligente, para além da aparência de ingênuo, exatamente como a arte de Keith Haring.









De maneira despretensiosa, meninos e meninas de 5 a 15 anos dão a sua interpretação para alguns dos trabalhos mais representativos do artista. Diante do “Grafite 84”, com mãos que perfuram cérebro e peito, em fundo azul, os pequenos leitores de Nova York interpretam e buscam significados:

Parece uma cobra”, diz o primeiro. “Ele está enfiando a mão por dentro do corpo, talvez para agarrar o cérebro”, completa o segundo. “Ele não quer ser inteligente”, diz o terceiro menino. “Ele não gosta mais de si mesmo e está jogando fora o cérebro e o coração”, propõe um outro pequeno intérprete, ao que o terceiro menino responde:

Acho que é uma pessoa que está muito confusa, com as emoções atrapalhadas. Alguém machucou o cara emocionalmente, bateram na cabeça dele e ele não é muito bom em matemática”. O primeiro garoto conclui: “Talvez ele esteja tentando encontrar um pouco de amor”. Diante dos comentários, tão ingênuos como reveladores de sentidos e percepções da realidade, o narrador do livro interroga: “Você também já se sentiu desse jeito?”






Além de didático, sedutor em seus traços multicoloridos e poético ao extremo, "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir" também é, acima de tudo, uma homenagem à grande arte de um jovem sonhador que rompeu barreiras e levou para galerias, museus e as mais importantes bienais do planeta Terra a efervescência pop da cultura de rua.

"Nos jantares e festas chiques, Keith era o único adulto com lugar garantido na mesas das crianças", recorda Nina Clemente ao comentar a importância e o afeto que tem pelo artista, pelo livro que ganhou de presente aos sete anos e pela edição brasileira de "O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas". Na época em que recebeu o incrível presente feito a mão por Keith Haring, Nina morava no Brasil com a família. Logo depois, mudaram-se para Nova York, onde Nina cresceu e, muito tempo depois, entendeu que o amigo que sempre visitava sua família era um artista importante.






Sintonia com a grande arte



"Morei algum tempo no Rio de Janeiro e sei que Keith ficaria contente também com a edição brasileira): a energia, as cores intensas, o ritmo e a vibração deste país estão em sintonia com sua arte e seu modo de vida. Espero que todas as crianças brasileiras, especialmente as Ninas, divirtam-se com este livro tanto quanto eu", confessa pelo telefone a protagonista do livro.

Nos Estados Unidos e na Europa, biografias, documentários, exposições, livros inéditos, reedições e antologias sobre Keith Haring também trazem o artista de volta à mídia, mais de 20 anos depois de sua morte precoce. Entre os lançamentos, um dos títulos mais aguardados é “Keith Haring Journals" (editora Penguin), que trazem em edições temáticas ilustradas os fac-símiles dos diários inéditos do artista grafiteiro que era amigo e confidente da então estreante Madonna, do também grafiteiro e companheiro de geração Jean-Michel Basquiat e do Midas todo-poderoso da Pop Art, Andy Warhol, entre outras celebridades e estrelas de grandezas variadas.









Keith Haring, referência mundial na cultura pop,
em fotos com amigos: acima, com Andy Warhol,
que homenageou como Andy Mouse ns grafites.

Abaixo: 1) com Warhol e Grace Jones, uma das 
divas da Dance Music, no lendário Studio 54;
2) também no Studio 54, em 1984, com dois
estreantes no cinema norte-americano, a brasileira
Sonia Braga e o inglês Rupert Everettfotografados
por Andy Warhol; 3) com Madonna, uma estrela em
ascensão, em 1985; 4) beijado pela amiga e confidente
Madonna, que estreava como cantora e assinava seu
primeiro contrato com a gravadora Sire, em 1982.

Também nas imagens abaixo, o artista em ação,
produzindo em 1985 duas performances da estrela
Grace Jones; no encontro com um de seus grandes
amigos e parceiros, outra lenda do grafite nas
ruas de Nova York, Jean-Michel Basquiat;
e no encontro com Warhol e Basquiat
















Também para relembrar a arte de Keith Haring, está em cartaz desde dezembro de 2010 a mais completa retrospectiva de sua carreira, na Galeria Tony Shafrazi, em Nova York. A mostra reúne suas obras mais célebres e séries completas de ilustrações e desenhos –– entre elas as que produziu para ilustrar "Apocalypse", ensaio do poeta beatnik William Burroughs (1914-1997), além de seus desenhos contra o "apartheid" e dos principais trabalhos engajados em prol dos direitos civis e dos direitos humanos em vários países.

A meta número um para Keith Haring pode ser traduzida por seu empenho para que suas obras, nos mais variados suportes, alcançassem o grande público. "Pintar para quê, se não é para ser transformado por seu próprio trabalho?", questiona Haring, em breve depoimento transcrito no perfil biográfico publicado na última página de "O Livro de Nina…".























Nesse empenho para que sua obra chegasse de graça ao maior número possível de pessoas ele também foi pioneiro: preferia expor nas ruas, em galerias do metrô, em lojas e casas noturnas "alternativas". Depois de sua morte prematura em 1990, vítima de Aids, sua obra libertária foi alçada à categoria de grande arte e levada para os grandes museus e galerias sofisticadas. 



Brasil e brincadeiras visuais



Keith Haring viajou com frequência ao Brasil, durante os anos 1980, para visitar amigos no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Durante as viagens, e nos intervalos entre elas, em seu estúdio em Nova York, produziu murais, telas e esculturas com referências à diversidade da cultura do Brasil. Na primeira vez que esteve em terras brasileiras, em 1983, foi homenageado pela Bienal de São Paulo. Pintou murais e grafites em praças e avenidas, entre eles um painel imenso no pavilhão da Bienal. Todos foram fotografados, mas ficaram no passado: nenhum dos trabalhos existe atualmente.

A aproximação do artista com o Brasil, as relações de amizade e os trabalhos que ele produziu aqui são o tema de um documentário que está sendo produzido pela Keith Haring Foundation, com roteiro e direção de Guto Barra e Gisela Matta e com a colaboração de Kenny Scharf. O filme, com o título "Restless: Keith Haring in Brasil", ainda não tem data de estreia anunciada. Em 2009, Guto Barra, em parceria com Béco Dranoff, dirigiu "Beyond Ipanema: Ondas brasileiras na música global", um documentário sobre a influência da música brasileira no exterior que foi premiado como melhor filmes nos festivais de cinema de Chicago, Miami e Vancouver.







Arte do grafite: o artista plástico Kenny Scharf
trabalha na restauração de um painel pintado
por Keith Haring nos anos 1980 na varanda de
sua casa em Serra Grande, na região de Ilhéus,
no litoral da Bahia. As restaurações de obras
que Keith Haring produziu no Brasil estão
sendo realizadas com apoio da Keith Haring
Foundation e estão registradas no documentário
Restless: Keith Haring in Brasil, com direção
e roteiro de Guto Barra e Gisela Matta













O humor característico das imagens criadas por Haring está intacto em “Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir” e em "O Livro de Nina para Guardar Pequenas Coisas", entre trocadilhos e brincadeiras visuais típicos do universo infantil. Depois de uma página em branco, ele avisa: "Não use está página!!!". Mas avisa, na margem inferior: "Brincadeirinha! Rá rá!". Na página seguinte, com traços coloridos e sugestivos, ele propõe: "Página da pequena bagunça. Eu comecei uma bagunça. Você termina. Tente transformar minha bagunça numa pequena história".

Nascido no estado da Pensilvânia, Estados Unidos, Keith Haring interrompeu o curso de design gráfico numa escola de arte em Pittsburgh para ir morar em Nova York, onde iria descobrir a arte do grafite, que começava a tomar as ruas. Começou a ganhar notoriedade em 1980, ao desenhar a giz nas estações de metrô. Logo depois, foi convidado para expor seus trabalhos e fazer performances ao vivo de grafite nos famosos Studio 54 e Club 57, redutos vanguardistas da cidade, onde ficaria amigo e consultor para capas e encartes de álbuns, cenários, figurinos e videoclipes de vários artistas, entre eles Madonna, Grace Jones, Laurie Anderson, Lou Reed, Iggy Pop, David Bowie e David Byrne, líder dos Talking Heads.









Arte do grafite: acima,
Keith Haring em ação em
Nova York, em 1986, em
fotografias de Vladimir Sichov.
Abaixo, uma seleção de suas
criações em personalíssimos
ícones multicoloridos 








Em uma década de trabalho ininterrupto, participou de bienais no mundo inteiro e pintou diversos murais na Austrália e no Japão, além da Europa e Estados Unidos. Sua última obra pública – um mural de grandes proporções intitulado "Tuttomondo" – foi instalada na Itália e dedicada à paz universal. Ele queria um tipo de arte que fosse pública. Para Keith Haring, era inconcebível pensar a arte em separado da vida real. Seus desenhos, que têm na primazia da linha sua maior força, sobrevivem até hoje e são imitados por muitos, com objetivos os mais diversos.

Nas últimas viagens que fez ao Brasil, no final da década de 1980, Keith Haring costumava se hospedar em Ilhéus (BA), na casa do amigo e também artista Kenny Scharf, na região de Serra Grande, onde pintou murais e produziu telas e esculturas inspiradas na arte brasileira. Sempre rodeado pelas crianças, o artista deixou um registro em seus diários, em outubro de 1987, sobre sua relação com a pequena Nina Clemente:

"Alguns dias antes de deixar o Brasil e voltar a Nova York, visitei Nina e Chiara Clemente, e ficamos desenhando juntos nas paredes de sua casa. Acho que esse foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Tenho certeza de que fui um bom companheiro para muitas crianças e talvez tenha marcado suas vidas de forma duradoura, e lhes ensinado um pouco sobre o que é compartilhar e cuidar". Nina certamente concorda com todas as palavras de Keith Haring.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A arte do grafite. In: Blog Semióticas, 15 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/a-arte-do-grafite.html (acessado em .../.../…).

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