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4 de junho de 2013

Silêncio de Hopper








A necessidade cada vez mais aguda de ruído só se
explica pela necessidade de sufocar alguma coisa.

–– Konrad Lorenz (1903-1989).   



Cenas de silêncio, solidão e cores fortes são as características mais marcantes das imagens belas e melancólicas do pintor e desenhista norte-americano Edward Hopper (1882–1967). Leitor dos estudos psicológicos de Sigmund Freud e observador realista da vida cotidiana, em uma época em que as influências do Cubismo e da Arte Abstrata avançavam no cenário das artes, e ficavam onipresentes as novidades do som estridente dos discos de 78 rotações tocados em gramofones, do rádio e do cinema falado, Hopper retratou com frequência os mesmos fragmentos de imagens enigmáticas com figuras anônimas e isoladas que jamais se comunicam, olhando pela janela ou perdidas em um mundo à parte, para além do quadro, em paisagens nostálgicas com tons de tristeza, iluminadas por uma luz estranha que suas cores registram como se fosse um elemento arquitetônico de linhas finas e formas largas. 

O vazio apresentado nos cenários de Edward Hopper tem balcões de bares e lanchonetes, hotéis, escritórios, escadas, postos de gasolina, ferrovias ou ruas no deserto, retratos realistas recriados com riqueza de detalhes em casas e prédios, fachadas, calçadas, postes, telhados, estações de passageiros, como se cada imagem, estática, contasse uma história muito particular sobre o cotidiano de homens e mulheres. Nas imagens de Hopper, todos são solitários, pessoas comuns mergulhadas em tristeza, como a mulher nua diante da janela em “Eleven A.M.” (1926), a leitora de “Hotel Room” (1931), as mulheres no café de “Chop Suey” (1929), o casal de “Room in NY” (1932), os pescadores de “Ground Swell” (1939), a jovem com semblante carregado de “Morning Sun (1952), os poucos fregueses tarde da noite na lanchonete da esquina em “Nighthawks” (1942).












Silêncio de Hopper: no alto, Nighthawks, de
1942, uma das obras-primas de Edward Hopper 
que, pela primeira vez, serão exibidas ao lado
dos rascunhos e esboços feitos pelo artista.

Acima, Le Café de nuit a Place Lamartine,
de 1888, de Vincent Van Gogh, que teria
inspirado "Nighthawks" e outras obras de
Hopper. Abaixo, Eleven A.M., de 1926;
Automat, de 1927, uma das homenagens
de Hopper à esposa, Josephine Nivison,
que também era pintora. O casal,
retratado abaixo em fotografia de
1960 de Alfred Newman, se conheceu
em 1923 e permaneceu junto até a morte
de Hopper, em 1967. Josephine, que morreu
10 meses depois de Hopper, doou todo o
acervo do marido para o Whitney Museum.

Também abaixo, algumas comparações
entre pinturas de Hopper e cenas do filme
de 1954 "Janela Indiscreta" (Rear window),
de Alfred Hitchcock, um dos vários cineastas
do primeiro time que têm influência confessa das
paisagens de melancolia e solidão de Hopper











  






No posto de destaque da Arte Moderna, precursor da Pop Art e reivindicado por escolas muito diferentes, Edward Hopper se mantém como influência e referência para importantes fotógrafos, pintores, diretores de teatro, dramaturgos, escritores e cineastas os mais diversos, de Hitchcock a Alain Resnais, Antonioni, George Stevens, Douglas Sirk, Elia Kazan, Nicholas Ray, Samuel Fuller, Fassbinder, Wenders, Lynch, Terrence Malick, Woody Allen e Wes Anderson, entre outros. Mas a arte incomum de Hopper ainda reserva surpresas, mais de meio século depois de sua morte, como revela a primeira exibição de seus desenhos apresentada em Nova York, no Whitney Museum of Modern Art.



Grafite, giz preto, carvão



Hopper drawing” reúne uma amostra da coleção completa com 2.500 desenhos em técnicas diversas de todas as fases do artista, com um panorama de sua carreira como desenhista desde os tempos em que ele era aluno do New York School of Art até os útimos anos de vida. A coleção, doada ao Whitney Museum pela viúva Josephine Verstille Nivison Hopper, que também era pintora e atriz quando se casou em Edward Hopper em 1924. Josephine morreu em 1968, um ano após a morte do marido, e o acervo guardado nas caixas e gavetas com os desenhos e rascunhos permaneceu inédito desde então. O próprio Hopper vendeu poucos deles e guardou a maioria para usar como referência em trabalhos futuros ou talvez como recordações afetivas. Para a exposição, que pode ser visitada on-line (veja link no final deste texto), os curadores, sob coordenação de Carter E. Foster, trazem finalmente a público os lendários e desconhecidos rascunhos e estudos de Hopper para espaços de ruas, bares, fachadas, quartos e estradas.














Acima, catálogo da mostra no Whitney Museum e
três esboços com nudez: Female Nude on Model’s
Platform (c. 1900–03); Standing Female Nude by
Window, Sketch for Etching (c. 1915–18); Paris
Courtyard at 48 rue de Lille with Nude (c. 1907),
desenhos do jovem Hopper em carvão, giz e
grafite sobre papel.

Abaixo, Morning in a Citypintura em
óleo sobre tela de 1944, seguida pelo rascunho
do mesmo ano em giz sobre papel e pelo esboço
de um nu masculino de 1903. Também abaixo,
Reclining Female Nude, Rear View
(c. 1900-1906) e Evening Wind, gravura de
1921, seguidas por uma paisagem rural na
aquarela House by the sea (1923) e pela
paisagem urbana em Early Sunday Morning,
pintura em óleo sobre tela de 1930














O estilo do Hopper desenhista é econômico. Na maioria dos desenhos em exposição, pode-se mesmo contar os traços através dos quais ele delineia suas figuras. Na sequência dos papeis originais, Foster e equipe intercalaram lado a lado os estudos traçados a grafite, giz preto ou carvão, que Hopper iria transformar em muitos de seus mais conhecidos quadros a óleo, entre eles “Early Sunday Morning” (1930), “New York Movie” (1939), “Office at Night” (1940). Confrontados com seus desenhos preparatórios, cada quadro ganha em complexidade e lança luzes sobre o processo criativo do artista.

A obra mais conhecida e também a mais valiosa da mostra, “Nighthawks” – emprestada pelo Art Institute of Chicago – é mostrada pela primeira vez ao lado dos 19 estudos feitos por Hopper, no intervalo de alguns meses. Há esboços de figuras deslocadas, como o homem que está sentado no balcão de frente, o que está de costas, bules e açucareiros com indicações de cor “âmbar” e “prata” escritas pelo artista. Entre estudos e obras finalizadas, veem-se retratos, testes de diferentes partes do corpo e até uma versão de Hopper para “O tocador de pífano”, de Manet.





















Segredos de composição



Outra das obras-primas de Hopper, “Soir bleu” (1914) ganha um espaço em separado, acompanhada por dezenas de esboços feitos nas três temporadas passadas em Paris, entre 1906 e 1910. Os desenhos em papeis de diferentes formatos registram tipos urbanos e detalhes captados nas ruas, que mais tarde seriam usados para compor a tela. Comparar desenhos e esboços com a obra finalizada pode revelar segredos de composição e perspectiva, caso de “New York movie” e seus 52 estudos para detalhes reais dos cinemas que o artista frequentava em Manhattan, incluindo o lanterninha de olhos fechados, em pé, no fundo da sala, que tornou-se o foco do quadro.

Idealizada pelo crítico de arte e curador Carter E. Foster, a mostra “Hopper drawing” reconstitui a formação do artista desde o início do século 20, até sua morte, como pintor consagrado, em 1967. Para explicar esse percurso, a primeira parte da exposição reúne imagens dos anos de sua formação (1900- 1924), assim como suas referências e influências. É a época em que Hopper aprendia no ateliê de Robert Henri na New York School of Art. Aluno dedicado, Hopper estava entre os discípulos de Henri na fundação da chamada Ashcan School ("Escola da Lixeira", literalmente).





                        




Desde o rascunho: Study for Stairway,
o estudo em carvão e papel e o trabalho
finalizado em 1919. Abaixo, o esboço
para Summertime, pintura de 1943;
o esboço em desenho a lápis e giz para
a pintura Sunlights on Brownstonesde
1956; e os esboços para a pintura em óleo
sobre tela, New York Movie, de 1939






































 
No texto de apresentação ao catálogo da exposição sobre os rascunhos e esboços de Hopper, Carter E. Foster explica que este primeiro período deixa claro o encanto de Hopper pelas técnicas impressionistas, tanto que ele conseguiu estabelecer temporadas para estudos em Paris, em 1906, 1909 e 1910. “Seus desenhos desta fase são estudos para tentar reproduzir os ângulos e a teatralização do mundo de Degas, as luzes de Félix Vallotton, a mise-en-scène de Walter Scikert”, explica Foster.



Alienação e isolamento



A mostra inclui também séries de Hopper vendidas na época como material de ilustração para jornais e revistas, que lhe garantiram o sustento financeiro. Mas o centro das atenções no percurso é mesmo a segunda parte da trajetória de Hopper, com a chegada de sua maturidade como artista, quando os mais respeitados críticos de arte reconhecem que poucos pintores conseguiram expressar tão bem a alienação e o isolamento das pessoas nos centros urbanos como Hopper.









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Cenas da vida cotidiana segundo Hopper:

 acima, Office at Nightde 1940, com dois dos

respectivos rascunhos; e um estudo em giz e

carvão parGas, pintura de 1940. Abaixo,

Cape Cod Morning, seus esboços e a pintura

finalizada em 1950; seguida de Night Windows,

pintura de 1928; e Study for Morning Sun,

no rascunho em giz sobre papel de 1952


















Prosaico, corriqueiro, cotidiano, para o observador comum os cenários retratados por Hopper poderiam estar em uma página de revista, ou num álbum de retratos de família. Com uma diferença: as cenas de Hopper parecem dominadas por um silêncio perturbador e remetem à introspecção, nunca à euforia do consumismo irrefreável do sonho norte-americano que a mídia propaga ou às poses publicitárias que acompanham sua ideologia de felicidade fugaz. Hopper destaca o mistério e o silêncio, nunca a alegria, mesmo quando sua paleta de cores tem uma grande variedade de tons em contraste.

Também há as controvérsias. Entre elas, a gênese curiosa que é descrita por Gail Levin, biógrafa de Hopper. Em "Edward Hopper: An Intimate Biography" (New York: Alfred A. Knopf, 1995), ela especula que “Nighthawks” (Gaviões da noite), divisor de águas na trajetória do artista, teve sua inspiração no quadro “Le Café de nuit a Place Lamartine” (1888), de Vincent Van Gogh, que Hopper visitou várias vezes levando sua caderneta de anotações, em 1942, durante uma temporada em que obras de Van Gogh estiveram em exposição em Nova York.














Silêncio de Hopper: acima, estudos para Nighthawks
produzidos entre 1941 e 1942 em giz sobre papel.
Abaixo, estudos para 
Morning Sun de 1952 com
anotações em grafite e caneta preta sobre papel.
Também abaixo, as pinturas em óleo sobre tela
Morning Sun (1952) e Excursion into Philosophy,
de 1959); uma obra-prima do início de carreira
do artista, Couple Drinking (1906-07); e duas
das salas da exposição no Whitney Museum











A similaridade nas luzes, na perspectiva e nos temas tanto na obra-prima de Van Gogh quanto na "releitura" de Hopper confirma esta possibilidade. Segundo Gail Levin, Hopper começou a pintar “Nighthawks” em janeiro de 1942, ainda sob o impacto do ataque militar dos japoneses a Pearl Harbor, no mês anterior, quando a Segunda Guerra Mundial estava no começo. Mas há algo em "Nighthawks" que vai muito além da possível influência fauvista, impressionista ou expressionista de Van Gogh.

Há as cores marcantes, o contorno das figuras realistas, mas também há uma atmosfera comovida de solidão e um sentimento de tristeza que são estranhamente retratados por Hopper. A rua está vazia fora do restaurante. No interior, no balcão de madeira, três clientes, mas nenhum dos três está conversando uns com os outros. Todos estão distraídos, perdidos nos seus próprios pensamentos. Dois são um casal, enquanto o terceiro é um homem sentado sozinho, de costas para o espectador.

De boné e uniforme branco, o funcionário olha para fora da janela, como se ignorasse a presença dos clientes. Pairando sobre tudo, a iluminação noturna, a acentuar a sensação de melancolia e confinamento, somada ao vazio provocado pelas paredes do restaurante, que formam um triângulo na esquina, de vidro transparente em dois lados. Em destaque no sonho norte-americano, segundo Hopper, parece haver tão somente mistério, alguma melancolia e silêncio.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Silêncio de Hopper. In: Blog Semióticas, 4 de junho de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/06/silencio-de-hopper.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o catálogo ilustrado "Hopper, portraits of America",  clique aqui.






Para uma visita virtual à exposição no Whitney Museum, clique aqui. 



Veja também:





 



 











23 de janeiro de 2013

O primeiro Warhol









É uma notícia surpreendente: 300 desenhos inéditos de Andy Warhol foram descobertos pelo crítico de arte e curador alemão Daniel Blau. Apesar de serem os trabalhos mais antigos produzidos pelo Warhol, na época recém-formado em um curso de design, são desenhos sofisticados, que lembram o traço de mestres. À primeira vista, o observador poderia até pensar que se trata de estudos feitos por Matisse, ou quem sabe Picasso, Schiele, Klimt, Toulouse-Lautrec.

A coleção de desenhos – a maioria deles em grafite sobre papel, com 45,3 por 40,9cm e algum retoque de tinta ou aquarela – cobre a lacuna que existia sobre o período menos conhecido do trabalho do artista, que vai de seus primeiros trabalhos e sua formação numa escola técnica de desenho industrial em sua terra natal, Pittsburgh, até a primeira exposição individual que ele conseguiu realizar em Nova York, em meados da década de 1950.

O mais novo “tesouro” de Andy Warhol foi descoberto quase por acaso. De passagem por Nova York, em 2011, Daniel Blau visitou uma exposição na Andy Warhol Foundation for the Visual Arts e soube, através de um dos coordenadores da instituição, Vincent Fremont, que os trabalhos de inventário e catalogação do que Warhol produziu ainda não estavam concluídos, mesmo depois de tantos anos da morte do artista. Fremont, que foi um dos secretários pessoais de Warhol, revelou a Daniel Blau que ainda há um grande número de obras não avaliadas, além de várias séries de gravuras e outros projetos que ficaram inacabados. O galerista alemão, ávido por novidades, programou uma nova temporada em Nova York para investigar os inéditos no espólio de Warhol.






















Andy Warhol aos 21 anos, fotografado
no supermercado em Nova York, em 1950,
quando ainda assinava Andrew Warhola.
A ironia fica por conta da fixação explícita
de Warhol pelas garrafas de Coca-Cola,
pelas caixas de sabão Brillo pelas
latas de sopas Campbell's que, anos
depois, seriam reproduzidas em suas
célebres gravuras e pinturas.

Abaixo, três autorretratos retocados pelo
artista em 1956. Todas as imagens foram
extraídas do catálogo da exposição
From Silverpoint to Silver Screenque
reúne a coleção de desenhos que o jovem
Warhol fez na década de 1950, antes
da fama, e que permaneciam inéditos








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O garimpo não poderia ter resultado mais inesperado: entre os arquivos trancados por mais de 20 anos na sede da fundação, em Nova York, estavam os desenhos, cuidadosamente organizados em envelopes lacrados desde 1990, mas erroneamente etiquetados como “sem valor comercial”. Daniel Blau, que foi quem descobriu e identificou o tesouro, recebeu carta-branca da direção da Andy Warhol Foundation e não perdeu tempo nem dinheiro: organizou a publicação dos desenhos em um catálogo de luxo de 280 páginas e apresentou os originais inéditos na exposição “From Silverpoint to Silver Screen”, aberta ao público desde o último final de semana no Louisiana Museum of Modern Art, em Copenhagem, Dinamarca (veja no final desta página os links para o catálogo da exposição e para uma visita virtual ao museu).



Trabalhos sob encomenda



Warhol é uma lenda e ele próprio amava propagar as mistificações sobre sua biografia e sua trajetória. Filho de imigrantes tchecos, estudou desenho técnico e industrial no Carnegie Institute of Technology de Pittsburgh e, em 1949, aos 21 anos, recém-formado, resolve dar um passo arriscado: decide trocar Pittsburgh por Nova York, com a cara e a coragem. Mas, como ele gostava de repetir, sua sorte brilhou depois de um breve período de dificuldades. Ainda naquele ano de 1949, recebeu a primeira encomenda de uma ilustração para a “Glamour”, uma das revistas que representavam para o designer recém-formado todas as qualidades da sofisticação.











Uma certa aura de misticismo paira sobre esta primeira encomenda. Klaus Honnef, um dos biógrafos de Warhol, diz que o aspirante a artista teve a inspiração em um sonho e, em seguida, procurou a editora de arte da "Glamour" para mostrar um portfólio com seus melhores trabalhos. Aguardou na sala de espera o dia todo e só foi atendido no final da tarde. A editora, Tina Fredericks, olhou alguns dos desenhos, fez elogios, mas lamentou que nenhum deles servisse: ela precisava, com urgência, de ilustrações sobre sapatos. Na manhã seguinte, Warhol reapareceu muito cedo na redação com mais de 50 desenhos, ilustrações e aquarelas de sapatos, de todas as formas, cores, perspectivas. Foi imediatamente aceito. Uma das ilustrações foi publicada naquela semana e outras encomendas viriam, para as edições seguintes.

Parece até um trocadilho, bem ao gosto do principal expoente da Pop Art: “Glamour” foi sua porta de entrada no mundo das revistas e da publicidade. Naquele momento, o jovem artista abandonaria o nome de batismo, Andrew Warhola, e passou a assinar Andy Warhol, começando uma intensa produção de ilustrações sob encomenda para agências de publicidade e para revistas de prestígio como “Vogue”, “Look”, “Life”, “The New Yorker”, “Harper's Bazaar”. Cartazes, anúncios, pôsteres, capas de revista, de disco, de livros, ilustrações para crônicas e reportagens, layouts para embalagens, projetos de desenhos industriais para sapatos, cintos e acessórios, cosméticos, perfumaria – Warhol produzia tudo, com brilho, mas sua assinatura raramente aparecia nestes trabalhos.













Mesmo sem nenhum reconhecimento fora das agências e das redações das revistas, Warhol não para. Neste começo de carreira, durante o dia ele cumpre a maratona infinita de trabalhos sob encomenda. Mas, para compensar, à noite, em seu apartamento minúsculo – quase sempre compartilhado com amigos e com amigos de amigos para dividir os custos de aluguel – ele se dedicava à arte: aos desenhos sobre os mais variados temas e estudos para aquarela, aperfeiçoando o traço ao tentar reproduzir detalhes das imagens de famosos e de anônimos estampadas em jornais e revistas.


Ilustrador de revista


A quase totalidade dos trabalhos desta primeira fase do artista somente agora foram descobertos e revelam um outro Warhol: extremamente poético e inventivo no minimalismo do traço, ao contrário de seus trabalhos que criaram a tradição da Pop Art, nos quais ele investiria nas décadas seguintes, com a repetição à exaustão das gravuras apropriadas da publicidade e do cinema para experiências com policromia e sobreposições – em técnicas híbridas que fizeram dele uma celebridade internacional e um capítulo em destaque na História da Arte.













Separar a “arte-arte” dos trabalhos para publicidade e sob encomenda é uma prática que ele iria adotar durante toda a sua trajetória, desde estes primeiros tempos. Mesmo depois, nas décadas seguintes, no auge do sucesso, quando sua presença e assinatura funcionavam como grife em lances geniais de marketing e autopromoção, Warhol sempre manteria esta distinção: uma coisa era a arte, seu empenho nas experiências formais e de expressão em diversos suportes, artes plásticas, fotografia, cinema; outra coisa eram os trabalhos que ele produzia sob encomenda.

Como a maior parte de seus trabalhos nesta primeira fase foram publicados ou veiculados sem assinatura, se conhece muito pouco sobre este acervo e sobre o estilo adotado pelo primeiro Warhol – o que reforça a importância da coleção inédita descoberta por Daniel Blau. Entre biógrafos e historiadores, o mais frequente é marcar a trajetória da obra de Warhol a partir dos trabalhos reunidos em sua primeira exposição, em 1952, na Hugo Gallery de Nova York – com 50 desenhos baseados nos escritos de Truman Capote.





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Dos seus trabalhos publicados na imprensa, nesta época, sabe-se que a maioria são ilustrações de sapatos, não por acaso tema de sua segunda exposição individual, “Golden Shoes”, apresentada em Nova York com prêmios e distinções em 1956, na Madison Avenue. “From Silverpoint to Silver Screen”, a coleção de desenhos inéditos descoberta por Daniel Blau, estende a trajetória aos primeiros trabalhos e lança luzes sobre a evolução da técnica e as principais influências do jovem Warhol, especialmente Toulouse-Lautrec e outros mestres da Belle Époque.

São muitos estudos anatômicos do torso masculino, retratos de mulheres (quase sempre inspirados em senhoras da alta sociedade que frequentavam as colunas sociais), rostos de crianças e cupidos barrocos, mãos em muitos ângulos e variações de perspectivas, beijos de jovens casais, estrelas de cinema, pessoas anônimas a dançar. Na imensa maioria dos desenhos, o elemento humano é o centro da atenção, com raras exceções, quase sempre dedicadas a um dos fetiches diletos de mister Warhol: sapatos.



  






Moda, fetiche, sapatos


O fetiche e sua mística: na infância o pequeno Andrew Warhola, tímido e de saúde frágil, era um leitor apaixonado de histórias em quadrinhos – especialmente “Dick Tracy” e “Superman” – e passava horas a copiar das revistas os sapatos de seus heróis. Mais tarde, adolescente, substituiria os heróis pelas colagens com sapatos e rostos recortados das estrelas de cinema.

Seu primeiro trabalho publicado, em 1949, também foi uma ilustração de sapatos. Mais: seu primeiro projeto de um produto industrial foi para uma fábrica de sapatos e a maioria dos catálogos sobre a arte de Warhol costuma abrir a cronologia de suas telas e serigrafias com as imagens de sapatos. Com frequência, são duas as imagens (de sapatos) apontadas como inaugurais da trajetória do artista: “À la Recherche du Shoe Perdu” (A procura do sapato perdido), aquarela negociada em 1955 para ilustrar a capa do livro de Ralph Pomeroy, e “Judy Garland” (1956), colagem em forma de bota dourada, cravejada de arabescos, com técnicas de litografia e bico de pena.











Desenhos inéditos de Andy Warhol da década
de 1950: 
abaixo, Two male heads face to face
(Duas cabeças 
masculinas face a face),
desenho em grafite sobre 
papel de 1952;
Two heads (Duas cabeças), desenho em

esferográfica preta sobre papel de 1953
Excited male torso (Torso masculino
excitado), 
desenho a caneta de 1957












  

Na apresentação ao catálogo que reúne a íntegra dos desenhos inéditos, Daniel Blau enumera alguns aspectos técnicos que a nova coleção acrescenta à obra de Warhol e reconstitui a surpresa e a alegria que experimentou ao constatar que a coleção era rigorosamente inédita, descrevendo o passo a passo que o levou à descoberta.

"Toda a coleção estava esquecida em um envelope de papel e eu, realmente, não entendo como até agora estes desenhos incríveis não haviam sido descobertos em nenhuma triagem”, confessa. “Desde a morte de Warhol, em 1987, muitas equipes de especialistas catalogaram mais de uma vez o acervo, mapearam o paradeiro das principais obras, dispersas em museus e coleções particulares no mundo inteiro, mas ainda assim um tesouro como este estava escondido, esquecido há tantos anos num labirinto de armários, gavetas e depósitos fechados que Warhol gostava de manter em segredo”.











Warhol, o artista profissional, Warhol e suas mistificações, Warhol e suas surpresas. A nova coleção de desenhos confirma a complexidade de sua obra, sem nenhuma dúvida o ponto mais alto da Pop Art, com uma influência que continua perdurando, tanto na arte quanto na publicidade, na TV, nos videoclipes, no cinema, na internet, no desenho industrial. Para o público em geral, acostumado a associar o nome de Andy Warhol às imagens fauvistas do rosto de Marilyn e de outras estrelas, às simpáticas latas de sopa Campbell ou às bananas psicodélicas criadas para ilustrar os discos do Velvet Underground, pode ser difícil identificar o traço do artista nos desenhos minimalistas da coleção descoberta por Daniel Blau.

Contudo, estes primeiros desenhos do artista quando jovem também sinalizam claramente um confronto: ao contrário da tendência da maioria e dos grandes artistas em evidência naquela época, entre eles Jackson Pollock, Willem de Kooning, Mark Rothko – todos adeptos e militantes ferrenhos do Expressionismo Abstrato – o jovem Warhol aposta no retorno à figuração e às imagens recortadas da mídia, publicidade, imprensa, cinema. Estava na contramão, em um movimento que poucos arriscariam naquele momento. Warhol bancou a aposta e se posicionou na origem de um novo capítulo na História da Arte.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O primeiro Warhol. In: ____. Blog Semióticas, 23 de janeiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/o-primeiro-warhol.html (acessado em .../.../…).












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