Mostrando postagens com marcador biografia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador biografia. Mostrar todas as postagens

23 de março de 2016

Sagrado e Profano em Chagall





A Bíblia é um drama mundano o mundo é uma parábola religiosa. 
 
––  Marc Chagall (1887-1985).   
...........

Arte e Religião sempre estiveram muito próximas – desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e, posteriormente, com o Barroco.

Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de alguns dos grandes artistas no último século – com um florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall, um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista, gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração religiosa.

Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de 1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall. Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.







Sagrado e Profano em Chagall:
no alto, o artista no ateliê em Paris, em
1955, em frente a Le roi David, pintura
em óleo sobre tela de 1952. Acima, em
família, com a esposa, Bella Rosenfeld,
e a filha, Ida, fotografados em 1933,
em Paris, por André Kertész.

Abaixo, uma amostras das primeiras
obras de Chagall produzidas sob
influência das vanguardas, em 1911,
que foram batizadas por seu amigo
Blaise Cendrars: Moi et le Village
(Eu e a Vila) e Le soldat boit
(O soldado bebe). Também abaixo,
duas das primeiras obras-primas de
Chagall com temática de inspiração
religiosa, Tentation (Adam et Eve)
e Calvaire, pinturas em óleo
sobre tela de 1912


 












Judeu da Bielorrússia



Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall também merece lugar de destaque entre os principais artistas gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.

Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de 1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky, Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.








Sagrado e Profano em Chagall:
beijos e casais em cenas amorosas
segundo a arte do mestre da cor
nas pinturas em óleo sobre tela de
sua primeira fase, produzidas antes
da Primeira Guerra Mundial – acima,
Les amoureux, de 1913, e Les
amants en bleus, de 1914.
Abaixo, Aniversaire, de 1915,
Amateurs en Rouge (1916)









Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars: “Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna – e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em 1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era adolescente em sua aldeia.



Comissário para as Belas Artes



Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917 na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia – com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França. Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.









        




Sagrado e Profano em Chagall:
acima, os amigos Pablo Picasso e
Marc Chagall em 1955, em St. Paul
de Vence, França, fotografados
por Philippe Halsman; e Chagall
no ateliê em Paris, em 1934, em
fotografia feita no processo de
autochrome por Roger Violett.

Abaixo, uma pintura em óleo sobre
tela de 1938 com tema bíblico,
La crucifixion blanche (A crucificação
branca), e La résurrection, aquarela
sobre papel de 1948. Também abaixo,
uma seleção de três imagens da
série de gravuras produzidas sob
encomenda para ilustrar edições da
Bíblia Sagrada apresentadas na
exposição em Madri: Moisés e a
Serpente (1956); Moisés e as
Tábuas Sagradas (1952);
A Crucificação (1952)



















O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos – especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob encomenda para reprodução em livros e revistas.

Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De 1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos, encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos. Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo, sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios: judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como arte degenerada.







Sagrado e Profano em Chagall:
gravuras apresentadas na mostra
sobre Chagall em Madri – acima,
a cena dos namorados românticos
em Les Amoureux de la Tour Eiffel
(Amantes da Torre Eiffel, de 1960),
em que o monumento de Paris vem
substituir a cruz em cena que remete
ao sofrimento após a Crucificação.

Abaixo, Paysage bleu (Paisagem azul,
1958), referência direta a Maria que tem
nos braços Jesus Cristo, na tradicional
cena da “Pietá”; La descente de croix
(O descimento da cruz), a Paixão de
Cristo na versão surrealista, em pintura
de 1976; e a alegoria representada com
os Três Reis Magos que assumem
feições de animais em
Les trois acrobates (1957)












Folclore, sonhos, fragmentos do real



De volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente “religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série “Les Âmes Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.

Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.    

Outras vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de Chagall estão representadas em Madri através de fotografias – caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
















.






Sagrado e Profano em Chagall:
a partir do alto, detalhe do teto da
Ópera de Paris, em design, pinturas
e relevos criados em 1964 por Chagall;
o mosaico em técnica mista que representa
Profeta Elias, criado em 1970 e instalado
no Museu Marc Chagall em Nice, França;
e quatro das 96 gravuras de Chagall criadas
sob encomenda para ilustrar um clássico
da literatura russa, o romance de
Nikolai Gogol, Almas Mortas.

Abaixo, La Saint Famille: Maria, o menino
Jesus e José de Nazaré, a Sagrada Família,
em litografia de 1970 de Chagall; Four Seasons
(Quatro estações), mural em cerâmica construído
em mosaico por Chagall em 1972 e instalado na
Chase Tower Plaza, em Chicago (EUA);
seguido de Les amoureux de Vence, de
1957, e a religiosidade traduzida em
duas obras-primas de 1966: Noé et l'Arc en
Ciel (Noé e o Arco-Íris) e Abraham et les
Trois Anges (Abraão e os Três Anjos).
No final da página, imagens da exposição
na Fundação Canal, em Madri, e Chagall
fotografado em janeiro de 1964 por
Lee Lockwood em frente aos vitrais
criados pelo artista para a sede
da ONU em Nova York











Se um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.

“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.











O acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas, tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam violinos.

Na terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise Vollard para as edições da Bíblia Sagrada, as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média. Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao cavalete...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html (acessado em .../.../...).


Para comprar o livro biográfico Chagall,  clique aqui.





Para comprar o livro ilustrado Marc Chagall,  clique aqui.






Para uma visita virtual à exposição Chagall. Divino y Humano,  clique aqui.














8 de janeiro de 2016

O passado intransitivo







Defender o nosso patrimônio histórico
e artístico é alfabetização.

––  Mário de Andrade (1893-1945).  
------------
 
O Brasil e a maioria de suas cidades cresceram em torno de igrejas católicas – tanto que, durante séculos, ser brasileiro era quase um sinônimo de ser católico. Neste terceiro Milênio, o Brasil continua sendo o maior país católico do mundo, mesmo que as estatísticas demonstrem uma crescente redução no número de fiéis ao longo das últimas décadas: no primeiro censo aqui realizado, em 1872, a religião católica era seguida por 99,7% da população; no último censo do IBGE, divulgado em 2012, há 123 milhões de católicos no Brasil, o que representa 64,6% da população.

Muito além das questões de fé ou do significado religioso, as antigas igrejas católicas são importantes marcos da construção do patrimônio histórico e cultural do Brasil, mas a maior parte delas não sobreviveu até nossos dias. Da maioria, não restaram sequer ruínas, mas em alguns casos as igrejas que já não existem tiveram sua imagem preservada em belos registros feitos pelos pioneiros da fotografia no século 19 e no começo do século 20. Estas imagens, relíquias produzidas em técnicas diversas, antes restritas apenas para um pequeno grupo de pesquisadores, estão agora disponíveis para acesso público pela Internet através do portal Brasiliana Fotográfica.

Resultado de uma parceria entre a Fundação Biblioteca Nacional e o Instituto Moreira Salles (IMS), o Brasiliana Fotográfica publicou nesta primeira semana de 2016 uma galeria de imagens das antigas igrejas nos primeiros tempos da fotografia. No total, 184 imagens já foram publicadas pelo portal em alta resolução – todas elas provenientes dos acervos das valiosas e raríssimas coleções fotográficas que estão atualmente preservadas e sob a guarda da Biblioteca Nacional e do IMS.




 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
no alto da página, a Igreja Matriz do Santíssimo
Sacramento, em Jequitibá, Minas Gerais,
fotografada em 1868 por Augusto Riedel.
Acima, a Igreja Catholica da Rua da
Telheira, em Joinville, Santa Catarina, em
fotografia de 1866 de Louis Niemeyer.

Também acima e abaixo, fotografias datadas
de 1865 de Georges Leuzinger na região do
Centro do Rio de Janeiro, a Igreja de Santa Luzia
(antes da formação dos aterros que afastaram o
mar) e a Rua Direita com a Capela Imperial










Alguns dos primeiros e mais importantes nomes da fotografia no Brasil estão na galeria de imagens raras e preciosas apresentada pela série da Brasiliana Fotográfica, com destaque para Marc Ferrez (1843-1923), Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), Augusto Malta (1864-1957) e Guilherme Antônio dos Santos (1871-1966), entre vários outros. Mas não são apenas os primeiros fotógrafos brasileiros que tiveram obras selecionadas. Na galeria do portal também estão pioneiros de outros países que instalaram seus ateliês de ofício de fotografia e serviços gráficos no Brasil ou que viajaram pelas regiões do litoral e do interior do país registrando em imagens fotográficas os cenários, os povos e os monumentos que encontraram.



Ilustres e desconhecidos



Entre os estrangeiros que registraram em fotografias as antigas igrejas do Brasil, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica, estão os alemães Revert Henrique Klumb (1830-1886), Augusto Riedel (1836-1877) e George Huebner (1862-1935); os franceses Jean-Victor Frond (1821-1881) e Theophile Auguste Stahl (1824-1877); os suíços George Leuzinger (1813-1892) e Guilherme Gaensly (1843-1928); o inglês Benjamin Robert Mulock (1829-1863), o português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903) e outros pioneiros célebres. Há também, no acervo publicado pelo portal, diversas fotografias muito bem preservadas mas que têm autoria anônima, porque a identificação do fotógrafo se perdeu com o tempo.








 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
a partir do alto, Igreja Catedral em Belém
do Pará, em fotografia de 1875 de
Felipe Augusto Fidanza; Igreja da
Piedade em Salvador, Bahia, em 1865,
fotografada por Camillo Vedani; e Igreja
de Madalena no Recife, Pernambuco, em
fotografia de 1880 de Moritz Lamberg.
Abaixo, relíquias do Aleijadinho registradas
em 1880 por Marc Ferrez nas antigas
cidades do Barroco em Minas Gerais:
a Igreja de São Francisco de Assis em
Ouro Preto e o Santuário do Senhor Bom
Jesus de Matosinhos com as capelas dos
Passos da Paixão de Cristo em Congonhas









 

Além das fotografias de autoria anônima, há também aquelas atribuídas a fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos – como Schleier J., que atuou em Salvador, Bahia, na década de 1870; Bernardo Scheidemantel, que atuou na região de Blumenau, Santa Catarina, na década de 1860; Louis Niemeyer, que atuou na região de Joinville, também em Santa Catarina na década de 1860; Camillo Vedani, que atuou no Rio de Janeiro e em Salvador, nas décadas de 1850 e 1860; e Reginald Gorham, identificado como autor de raridades como a vista panorâmica datada de 1927 que mostra a antiga igreja de Nossa Senhora da Conceição em Pedras de Maria da Cruz, Minas Gerais.

Entre os fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica sobre antigas igrejas, um caso singular é Augusto Flávio de Barros, conhecido tão somente porque realizou a primeira e única documentação em fotografia sobre a fase final da Guerra de Canudos. O fotógrafo esteve presente na quarta e última investida militar contra os seguidores do beato Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel), mas não se sabe ao certo se ele acompanhou as tropas como voluntário ou se foi convocado para o trabalho.












Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
relíquias registradas por Flávio de Barros
em ruínas, ao final da Guerra de Canudos,
no arraial de Antônio Conselheiro, sertão da
Bahia, em outubro de 1897 – a partir do alto,
a Igreja de Santo Antônio; o Flanco Esquerdo
da Igreja do Bom Jesus; e uma imagem frontal
dos escombros da Igreja do Bom Jesus.
Abaixo, Igreja da Boa Morte em Barbacena,
Minas Gerais, fotografada em 1924 por
Mário de Andrade durante a visita que
o grupo modernista fez a Minas





.




Augusto Flávio de Barros foi o único fotógrafo a acompanhar a guerra, que terminou com a destruição completa e com cerca de 5 mil mortos no arraial de Canudos, no sertão da Bahia, entre o fim de setembro e o início de outubro de 1897. Na série divulgada pela Brasiliana Fotográfica estão cinco imagens de ruínas das igrejas de Canudos registradas, ao final da última batalha das tropas militares o contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, pela impressionante reportagem fotográfica de Augusto Flávio Barros, que no total é formada por 164 fotografias – sendo que 72 delas pertencem ao Museu da Republica, no Rio de Janeiro; 24 permanecem no acervo da Casa de Cultura Euclides da Cunha de São José do Rio Pardo, em São Paulo; e, infelizmente, 68 das fotografias de Barros desapareceram do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.



O fotógrafo Mário de Andrade



Na trajetória cronológica, as mais recentes fotografias de igrejas antigas na série publicada pela Brasiliana Fotográfica datam do final da década de 1920 – época em que Mário de Andrade, um dos principais expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, liderou o engajamento pela preservação do patrimônio histórico e artístico. É quase inevitável relacionar a preservação do patrimônio e da memória nacional com Mário de Andrade – o intelectual, escritor, poeta, crítico literário, jornalista, musicólogo, ensaísta, folclorista, fotógrafo e, sobretudo, produtor de ideias, sempre a procura de um germe novo que se abriga na tradição e que traz à tona um Brasil muitas vezes esquecido e submetido a processos de conquista e dominação.







Imagens do acervo do fotógrafo
Mário de Andrade: acima, as ruínas
da única igreja que Mário encontrou
em Porto Velho, Rondônia, na viagem
que fez em 1927. Abaixo, a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário na
localidade de Goiana, Pernambuco,
em 1929; e uma vista panorâmica do
antigo convento da cidade de Catolé
do Rocha, Paraíba, também em 1929






 







A relação de Mário de Andrade com as questões do resgate das tradições artísticas e da memória da cultura nacional vem de antes da Semana de Arte Moderna de 1922 e culmina com o anteprojeto que ele redigiu para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a pedido de Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1934 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas. Mário foi o primeiro secretário de cultura do Brasil, na época em que exerceu o cargo de diretor e fundador do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, e sempre esteve ligado às questões da preservação da memória e do patrimônio da cultura nacional, mas tudo indica que esta dedicação passou a ter para ele maior importância depois de sua primeira viagem a Minas Gerais, em 1919.

Desta primeira viagem de Mário a Minas resultou a publicação de seu estudo sobre os monumentos e igrejas das cidades mineiras do Ciclo do Ouro, intitulado “Arte Religiosa em Minas Gerais”. Sua segunda e lendária viagem a Minas aconteceria em 1924, em companhia de um grupo de amigos modernistas que incluía Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta e escritor francês Blaise Cendrars. Naquela viagem o grupo redescobriria o encanto da Arte Barroca, sua arquitetura, sua pintura, sua religiosidade popular, como uma manifestação legítima das mais preciosas e autênticas raízes e matrizes da cultura brasileira, que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais importante intérprete.










Fotografias de Mário de Andrade:
no alto, a Igreja de São Bento em Olinda,
Pernambuco, fotografada por Mário na
viagem de 1929; acima, Igreja Matriz de
São Paulo e São Pedro, construída pelos
Jesuítas por volta de 1930 em Mamanguape,
Paraíba, também fotografada em 1929.

Abaixo, Mário e Luís da Câmara Cascudo
fotografados durante a viagem pelo Rio Grande
do Norte, em 1929; Mário proseando com
Cândido Portinari na rua, em São Paulo,
em março de 1940; e o casal Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral fotografado
por Mário em São João Del Rei, em 1924,
durante a viagem do grupo modernista
pelas antigas cidades de Minas Gerais.

Também abaixo, Mário de Andrade com
Tarsila do Amaral e amigos na praia do
Chapéu Virado, também conhecida por
praia do Mosqueiro, em Belém, no Pará, em
1927, durante a expedição comandada por
Mário pela Amazônia para documentar o
folclore nacional, depois transcrita
no livro "O Turista Aprendiz";
e os jangadeiros na Praia de Iracema,
em Fortaleza, Ceará, em fotografia de
agosto de 1927 de Mário de Andrade






















O Turista Aprendiz



Depois viriam outras viagens, outros livros e outros projetos da maior importância. Algumas destas viagens de Mário pelo Brasil foram registradas por ele no relato para o livro ilustrado com suas fotos “O Turista Aprendiz”, concluído em 1943, mas publicado pela primeira vez somente em 1976. O livro agora está sendo relançado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo), em edição organizada pelas professoras Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo.

A nova edição ilustrada, com 462 páginas, inclui um CD-Rom com os diários de Mário de Andrade fotógrafo, formado por imagens e legendas feitas por ele com muito bom humor e em tom de informalidade, narrando sua trajetória de viagens e suas descobertas pelo interior do Brasil. A edição também traz encartado um DVD com o documentário de autoria de Luiz Bargmann, “A Casa do Mário”, que através de imagens de arquivo, fotografias, peças de sua coleção de arte, livros e discos, reconstitui o cotidiano familiar e social do ilustre paulistano na casa em que morou entre 1921 e 1945, situada em um endereço que se tornou lendário para seus amigos e leitores, na Rua Lopes Chaves, n° 546, Barra Funda, em São Paulo.






Em “O Turista Aprendiz”, Mário de Andrade registra detalhes saborosos sobre as viagens de pesquisa que fez à região Norte, até as fronteiras com Peru e Bolívia, em 1927, e depois, em 1928, ao Nordeste, incluindo Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte. Vale lembrar que, além das imagens publicadas no livro, Mário também deixou cerca de 1600 fotografias em positivo e centenas em negativo que comprovam suas habilidades como exímio fotógrafo.

Todas as fotografias das viagens foram feitas com sua câmera Kodak tipo “caixão” (máquina Codaque, como ele mesmo escrevia), durante suas viagens e nas expedições folclóricas que coordenou. A maior parte do acervo de Mário, que inclui suas fotografias, seus rascunhos, cartas, gravações de áudio, objetos recolhidos durante o trajeto das viagens, manuscritos e anotações diversas, somando cerca de 30 mil peças, mais sua biblioteca (com 17.624 volumes) e sua coleção de artes plásticas e mobiliário (1.234 peças) está, atualmente, no arquivo do escritor sob a guarda do IEB-USP.






Fotografias de Mário de Andrade: acima,

o barqueiro fotografado por Mário em 1927

durante o trajeto da viagem pelo rio, no Pará,

tendo ao fundo a cidade de Santarém. Abaixo,

Mário na Ilha do Mosqueiro, no Pará; no barco,

durante a travessia; e na floresta amazônica,

em fotografias feitas durante a viagem de 1927















Visão abrangente e contemporânea



Na viagem de 1927, Mário teve como acompanhantes sua amiga, aristocrata do café e mecenas dos modernistas, Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto. Outros amigos planejavam participar, entre eles o casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, mas terminaram adiando por conta de outros compromissos. Durante três meses, a partir de maio daquele ano, a comitiva de Mário seguiu do Rio de Janeiro a Iquitos, no Peru, navegando pelos rios Amazonas, Solimões e Madeira, incluindo uma temporada em Manaus.

Na segunda viagem, iniciada em novembro em 1928, Mário de Andrade partiu sozinho para o Nordeste, onde permaneceu até fevereiro do ano seguinte e foi recebido por outros célebres pesquisadores do folclore e da cultura popular, entre eles Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e Luís da Câmara Cascudo. O contato com a floresta e com o sertão, as cidades, vilarejos, seus habitantes e suas manifestações culturais, a religiosidade, os folguedos, as danças, as músicas, quase sempre impregnadas de muito sincretismo e superstição, causam em Mário um grande impacto, consolidando uma visão de nacionalidade muito mais abrangente, em oposição às concepções dominantes da época, copiadas principalmente dos ambientes das cidades da Europa. Entre a primeira e segunda viagem, Mário escreveu e publicou uma de suas obras-primas, o romance “Macunaíma”.










Mário no estúdio de trabalho na casa em
que morou entre 1921 e 1945, e em caricatura
feita em Iquitos, Peru, por Victor Morel, durante
a viagem do escritor ao norte do Brasil em 1927.
Abaixo, Mário com o casal Oneyda Alvarenga
e Sylvio Alvarenga (Oneyda foi responsável pela
organização do acervo de Mário e pela publicação
dos inéditos, após a morte do escritor) e Mário em
passeio pelas ruas de São Paulo em 1936, quando
dirigia o Departamento Municipal de Cultura
de São Paulo, em fotografia do álbum de família.

Também abaixo, uma fotografia do mesmo estúdio
de trabalho do escritor no ano da morte de Mário,
1945, onde se vê a escrivaninha e as pinturas
A família do Fuzileiro Naval, de Guignard
(junto à escrivaninha), e Colona, de Portinari,
à direita; e a fachada da casa, na Barra Funda,
em São Paulo, endereço que se tornou
referência lendária para seus amigos e leitores:
Rua Lopes Chaves, n° 546









  

Mais tarde, em 1936, Mário de Andrade aceita o convite do ministro Gustavo Capanema para redigir o anteprojeto para o futuro SPHAN (atualmente Iphan), que foi criado em 1937 e teve como primeiro diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade. Ainda hoje a proposta elaborada e redigida por Mário impressiona por conta de sua visão abrangente e contemporânea. Organizado em três capítulos, o anteprojeto estabelece as competências do Serviço do Patrimônio, as categorias dos bens culturais e os critérios de seleção para tombamento em quatro livros do tombo. A fundamental presença de Mário na criação e no apoio à gestão do SPHAN iria se estender de 1936 até a sua morte precoce, aos 52 anos, em 25 de fevereiro de 1945.

Desde então a obra literária de Mário de Andrade, sua atuação como mentor nas questões da cultura nacional e também sua correspondência com uma legião de discípulos (como Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Gustavo Capanema e muitos e muitos outros) assumem importância crescente e estabelecem a crônica e o cenário de uma época em que, após séculos de colonialismo, o Brasil forma sua imagem e identidade. Neste cenário, a preservação e a valorização do patrimônio nacional, em suas múltiplas interfaces, têm muito da presença ideológica de Mário de Andrade e a criação do SPHAN significa, por certo, sua certidão de nascimento.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O passado intransitivo. In: Blog Semióticas, 8 de janeiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/01/o-passado-intransitivo.html (acessado em .../.../...).






Para visitar o acervo da Brasiliana Fotográfica,  clique aqui.


Para visitar o acervo de Mário de Andrade no IEB-USP,  clique aqui.

 
Para assistir o documentário A Casa do Mário, de Luiz Bargmann,  clique aqui.



https://vimeo.com/73811716








Outras páginas de Semióticas