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9 de fevereiro de 2013

Nadar com o Pierrô





 Os homens só se compreendem uns aos outros 
na medida em que os animam as mesmas paixões. 

––  Sthendal (1783-1842).   
 

Gaspard-Félix Tournachon (1820–1910) trabalhava em uma profissão que, antes dele, ainda não tinha sido inventada: era desenhista, caricaturista e ilustrador de jornais e revistas em tempo integral. Durante o inverno de 1854, aproveitando a popularidade que seu trabalho começava a adquirir em Paris, por conta de duas publicações que ele havia criado – a “Revue Comique” e o “Petit Journal pour Rire” – Tournachon deu um passo arriscado: decidiu abrir seu primeiro estúdio especializado em produzir fotografias. A fotografia era ainda uma grande novidade, inventada havia pouco mais de uma década, ainda restrita a poucos, pelas dificuldades técnicas e pelo alto custo do equipamento. Mas Tournachon tinha um projeto ambicioso para seu estúdio parisiense: registrar e publicar um Panthéon ilustrado reunindo uma coleção de retratos fotográficos das grandes personalidades de seu tempo. O projeto foi adiante.

Em 1854 ele abriu em Paris os salões luxuosos do Panthéon Nadar, preparados para receber em um estúdio com equipamento para produzir fotografias, à luz natural das janelas altas, muitas vezes refletida em espelhos e grandes painéis móveis. Depois do estúdio fotográfico, Gaspard-Félix Tournachon ficaria mais conhecido por seu nome artístico que primeiro foi um pseudônimo – Nadar – e seu trabalho como fotógrafo passaria à história, em lugar de destaque, entre os primeiros e maiores artistas no registro de imagens com lentes e câmeras.

Félix Nadar, como passaria a assinar seus trabalhos quando se instalou no luxuoso ateliê da Rue des Capucines, que tinha decoração luxuosa, amplas vitrines e salas de espera com fotografias emolduradas, não tornou-se somente o mais célebre retratista da história da fotografia, mas também um dos primeiros a registrar flagrantes das ruas de Paris, fotografias de imagens aéreas (feitas durante voos de balão) e fotografias dos esgotos subterrâneos e das catacumbas, além de realizar muitas outras experiências que ficariam associadas à prática profissional da fotografia, como o recurso à iluminação artificial e diversas manipulações técnicas em sua sala de revelação, por ele batizada de "laboratório". O Panthéon Nadar de Fotografias, por uma sugestão de Adrien, irmão de Gaspard-Felix, teria início com uma série, realizada no estúdio fotográfico da Rue des Capucines, retratando um personagem que vinha direto da Baixa Idade Média.









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Nadar com o Pierrô: no alto da página,
Pierrot Photographe, imagem que abre
a série sobre Pierrô realizada em 1854
por Félix Nadar (acima, em autorretrato
datado de 1954 e na célebre sequência
de autorretratos de 1865 criada para
ser exibida de forma a criar ilusões de
movimento, duas décadas antes dos
célebres estudos de movimentos em
fotografias de Eadweard Muybridges.

Abaixo, Nadar em autorretrato de 1865
imagens do ensaio sobre Pierrô.
série original e completa de fotografias
de Nadar sobre Pierrô atualmente
pertence ao acervo do Musée d'Orsay
(veja o link no final deste artigo)















A ideia original de Adrien, colocada em prática pelo irmão, era apresentar o salão fotográfico de Nadar à alta sociedade e a artistas e intelectuais através de fotos estampadas em cartões de visita. Adrien tinha assistido várias vezes a um espetáculo de variedades que foi sucesso durante muitos anos no Théatre des Funambules, apresentado pelo ator e mímico Jean-Gaspar Deburau, também conhecido por seu nome artístico Baptiste, e por seu filho Charles Deburau, que resgatava esquetes e personagens da Comedia dell'Arte. Impressionado com o espetáculo, Adrien sugeriu que Nadar fizesse um retrato de Pierrô (ou Pierrot, em francês, em variação para Pedrolino, o diminuitivo de Pedro em italiano). Nadar aprovou e Charles Deburau foi contratado em 1854, dando início à série destinada a promover o salão e também inaugurar o Panthéon Nadar de retratos fotográficos. Mas a “ajuda” do irmão acabaria custando muito caro a Nadar, como seria constatado a seguir.

Um ano depois do lançamento, os cartões de visita de Nadar com as fotografias do Pierrô eram sucesso em Paris, os negócios do salão fotográfico prosperavam e o Pantheón Nadar colecionava os primeiros retratos de grandes celebridades de seu tempo – incluindo políticos, atores, escritores, pintores, músicos, artistas em geral e homens de ciências. Charles Baudelaire, Gustav Flaubert, Eugène Delacroix, Sarah Bernhardt, Stéphane Mallarmé, Jules Verne, Alexandre Dumas, Claude Monet, Delacroix, Liszt, Rossini e muitos outros, entre eles o imperador do Brasil, Dom Pedro II, foram fotografados por Nadar, que rapidamente diversificou os negócios e a partir de 1860 também passou a fornecer nos bastidores, a seus melhores clientes, os nobres e distintos cavalheiros da época, a novidade de um fetiche dos mais lucrativos: cartões com fotografias de cenas eróticas e de nudez, uma variação dos "cartões de visita fotográficos" patenteados em 1854 por outro pioneiro da fotografia, André-Adolphe-Eugène Disdéri (1809-1894).










Foi quando um problema dos mais imprevistos surpreendeu Nadar: seu irmão Adrien inscreveu, sem que ele soubesse, a série de fotografias sobre Pierrô na Exposição Universal de 1855. A série acabou recebendo o grande prêmio da exposição, mas o premiado foi Adrien e não Nadar. Foi o início de um processo tumultuado que marcou época, com muitas idas e vindas e reviravoltas na Justiça, até que Nadar conseguiu finalmente ganhar a causa em 1857. Adrien, que chegou a abrir em 1856 um estúdio concorrente com o nome do irmão, seria proibido de usar o nome Nadar. Um escândalo. Mas um escândalo que ajudou a promover o trabalho de Nadar e a popularizar cada vez mais seus negócios com a fotografia.



Commedia dell'Arte



Pierrô, Arlequim e Colombina vêm de antes do século 16, com origem em Veneza e outras cidades de países da Europa banhados pelo Mediterrâneo. As origens se perdem no tempo, mas o registro documental mais remoto desta história vem do ano de 1513, nas cidades da Itália, quando os três personagens ganharam destaque em esquetes de criação coletiva de grupos de teatro populares, apresentados pelas ruas e praças públicas. Com o passar do tempo se tornaria um estilo, conhecido como Commedia dell'Arte, também identificada por algumas fontes como Commedia all'Improviso ou Commedia a Soggetto (comédia por assunto), com seus tipos fixos e improvisos de humor escrachado, burlesco, com os comediantes interagindo livremente com a plateia, em oposição à Commedia Erudita, mais recatada e apresentada em latim, já naquela época uma língua inacessível à maioria.











Há séculos, Pierrô e sua trupe levavam gargalhadas às multidões reunidas nas praças e nos circos populares, enquanto as tramas da Commedia Erudita, com pompa e circunstância, eram encenadas nos palcos de teatro e palácios para as seletas plateias da nobreza e da aristocracia. Não é por acaso que na origem, na Baixa Idade Média, Pierrô, Colombina e Arlequim fossem serviçais envolvidos em sátiras e quiproquós de humor sobre a vida dos patrões. Colombina era invariavelmente empregada de alguma dama da Corte, enquanto Arlequim era o empregado esperto, ágil e malandro, que movimentava as ações e a intriga do espetáculo, e Pierrô encarnava o simplório, o bobo que fazia a plateia rir com suas brincadeiras atrapalhadas.

Pierrô, ingênuo e sonhador, vítima preferida das piadas do cínico e astuto Arlequim e de todos os outros personagens em cena, descobre que está perdidamente apaixonado por Colombina, a moça muito bela e simples, muito prendada, que sabe cantar e dançar, inteligente e sempre irônica, mas assim como Pierrô, Colombina também ingênua e sonhadora. O drama começa quando Pierrô decide se declarar à sua musa Colombina, mas logo vem a decepção porque ela também está apaixonada: pelo espertalhão Arlequim. Na tradição do folclore francês, Pierrô é o protagonista da canção "Au Clair de la Lune".









O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), expoente da Semiótica, das Ciências Sociais e da Teoria da Literatura, em seus estudos sobre a cultura popular e o realismo grotesco na Idade Média e no Renascimento, situa as tramas de Pierrô e demais personagens da Commedia dell'Arte na origem de uma cultura ancestral e universal de humor popular. Em "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais" (Editora Hucitec, 2008), Bakhtin destaca que provavelmente tudo teve origem na presença determinante do elemento cômico em festas e apresentações em praça pública, em oposição ao tom sério e oficial dos rituais e das cerimônias da Igreja e do Estado, na antiga Grécia, na Turquia e nos reinos da Ásia Menor na Antiguidade, passando depois à Roma de César e aos mais distantes povoados nos feudos na Idade Média.

O drama de Pierrô sobreviveu e permaneceu em variações de sucessos populares nos vilarejos da Itália e em outros países da Europa durante séculos, em pantomimas itinerantes com atores ou em teatro de marionetes, mas estava mais próximo da tradição folclórica quando foi resgatado, estilizado e levado aos palcos de Paris em montagens produzidas e encenadas por Baptiste, na verdade Jean-Gaspar Deburau (1796-1846), artista que se tornaria referência na história da mímica, da pantomima e das artes cênicas, pai do também ator Charles Deburau, que aparece como Pierrô nas fotografias do estúdio de Nadar.










 Da Europa para o carnaval tropical



O espetáculo dos Deburau, pai e filho, terminou por firmar algumas tradições na caracterização dos personagens saídos da Comedia dell'Arte: Pierrô com roupas largas e brancas, porque é feita de sacos de farinha, rosto pintado de branco e marcações em preto destacando olhos e boca. A Colombina (do italiano "colombina", "pombinha") ressurge cantando e dançando com forte maquiagem nos olhos, nas bochechas e na boca vermelha, com roupa em preto e branco, pivô da intriga amorosa que tem de um lado o Arlequim, apresentado como um espertalhão preguiçoso, bufão e piadista, com roupa feita de losangos coloridos e fundo preto, feliz e sorridente, em contraponto ao tímido e apaixonado Pierrô, que traz uma lágrima desenhada abaixo dos olhos e raramente sorri.

Dos palcos de Paris para os quatro cantos do planeta: depois do sucesso do espetáculo dos Deburau e dos cartões de visita do estúdio fotográfico de Nadar, fantasias de Pierrô, assim como de Arlequim e Colombina, voltaram à moda nas festas populares e nos bailes de carnaval em Paris e outras capitais no século 19. Em pouco tempo, cruzaram o Atlântico e chegaram no final do século aos salões da Corte Imperial no Rio de Janeiro. A partir daí, nas primeiras décadas do século 20, fantasias de Pierrô, Colombina e Arlequim começam a marcar presença nos desfiles populares pelas ruas e nos bailes carnavalescos da alta sociedade, como destacam Eneida de Moraes no clássico "História do Carnaval Carioca" (Editora Civilização Brasileira, 1958) e estudos mais recentes publicados por Hiram Araújo ("Carnaval: seis milênios de história", Editora Gryphus, 2003) e por Felipe Ferreira em "Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século 19 e outras questões carnavalescas" (Editora UFRJ, 2005).










No alto, Sarah Bernhardt caracterizada
como Pierrô em fotografia de 1883 de Nadar.
Acima e abaixo, baile de carnaval em 1905
com pierrôs e colombinas em Paris, em duas
fotografias de Joseph Byron em exposição
permanente no acervo do Musée d'Orsay.

No final da página, dois desfiles do Corso
durante o Carnaval carioca: o primeiro em
fotografia anônima, datada de 1910; o segundo
em fotografia de 1919 Augusto Malta; uma
gravação que resgata a marchinha de carnaval
Pierrot Apaixonado, composição de 1935 de
Noel Rosa e Heitor dos Prazeres; e outras
cinco obras-primas da História da Arte:

1) Gilles, pintura em óleo sobre tela de 1719

de Antoine Watteau, que foi rebatizada
como Pierrot quando foi incorporada, em
1869, ao acervo do Museu do Louvre;
2) Le baiser, com o beijo de amor impossível
de Pierrô e Colombina em pintura em óleo
sobre tela de 1870 de Auguste Toulmouche;
3) Pierrot Blanc, pintura em óleo sobre tela
de 1901 de Pierre-Auguste Renoir;
4) Pierrot, pintura em óleo sobre tela de 1918
de Pablo Picasso; e 5) Carnaval de Arlequino,
pintura de 1925 da fase dadaísta de Joan Miró








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Depois de desembarcar em terras brasileiras no final do Oitocentos, Pierrô, Colombina e Arlequim não demoram a encontrar o mundo do samba e das marchinhas do Carnaval. Entre composições de Chiquinha Gonzaga, Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e outros que marcaram época e ganharam o imaginário popular brasileiro com personagens da Commedia dell'Arte, também está o grande sucesso do carnaval de 1936, ainda hoje celebrado pelos foliões no Reinado de Momo: “Pierrot Apaixonado”, uma marchinha de Noel Rosa, composição em parceria com Heitor dos Prazeres.

Da remota Antiguidade para os festejos populares da Baixa Idade Média e daí aos palcos parisienses do Théatre des Funambules no século 19, até encontrar registro definitivo nas lentes e câmeras do Panthéon ilustrado de Félix Nadar. O triângulo amoroso mais conhecido da Commedia dell'Arte também constrói pela figura de Pierrô um daqueles paradoxos da tradição e dos rituais que a cultura representa: um personagem tão nostálgico e tão melancólico, solitário, sendo transformado em símbolo para celebrar, há tanto tempo, no mundo inteiro, a festa e a alegria do Carnaval.


por José Antônio Orlando. 



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Nadar com o Pierrô. In: Blog Semióticas, 9 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/nadar-com-o-pierro.html (acessado em .../.../...). 



Para visitar a série Pierrot, de Nadar, no Musée d'Orsay,  clique aqui. 



Para comprar o livro Uma História do Samba,  clique aqui.












'Pierrô Apaixonado'


Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...

A Colombina entrou num butiquim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: Pierrô, cacete, vai
Tomar sorvete com o Arlequim...

Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute com amendoim...

Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...


(Pierrô Apaixonado, composição de 1935
de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres) 









Imagem














18 de agosto de 2012

Unanimidade para Nelson Rodrigues





O aprofundamento da intuição leva naturalmente o indivíduo um 
grande afastamento da realidade palpável, de modo a tornar-se 
completo enigma até para as pessoas mais chegadas. Se for 
artista, apresentará na sua arte coisas extraordinárias, estranhas 
ao mundo, reluzentes em todas as cores, ao mesmo tempo 
importantes e banais, belas e grotescas, sublimes e ridículas. 

–– Carl Gustav Jung, “Tipos psicológicos” (1921).  


Autor de clássicos absolutos de nossa dramaturgia como "Vestido de Noiva", "O Beijo no Asfalto" e "Toda Nudez Será Castigada", Nelson Rodrigues (1912-1980), aniversariante do dia 23 de agosto, é uma unanimidade como maior nome do teatro moderno brasileiro e maior cronista brasileiro, seja na crônica de costumes, literária, ou na crônica esportiva, além de ter passado à história como referência em sua atuação como escritor, jornalista, romancista, contista e um dos maiores polemistas do Brasil do século 20. Um destaque que, por certo, desmente ou, no mínimo, abre exceções para um dos muitos bordões consagrados pelo próprio Nelson, que gostava de repetir: “Não sou um escritor unânime, porque toda unanimidade é burrice”.

Além de seu lugar de destaque no panteão da dramaturgia e como cronista, foi também consagrado como autor de frases que ganharam o imaginário nacional e como ficcionista, especialmente com suas histórias populares publicadas primeiro na imprensa, a exemplo das centenas de contos e crônicas reunidos sob os títulos "Confissões" e "A Vida como Ela É", ou em romances como "Asfalto Selvagem", “Meu Destino é Pecar” e "O Casamento", alguns deles publicados sob os pseudônimos femininos Suzana Flag e Myrna. Sobre a trajetória de Nelson Rodrigues, também jornalista nascido em uma família de jornalistas, muito já foi escrito – em especial por Ruy Castro, autor da polêmica biografia "O Anjo Pornográfico", um livro recordista de vendas, publicado em 1992 pela Companhia das Letras. 

Ao relatar a vida do jornalista e escritor – que nasceu em Recife, em 1912, quinto de 14 irmãos, e mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1916 – Ruy Castro revela algumas das célebres tragédias que pontuaram a trajetória de Nelson e uma sucessão espantosa de ocorrências dramáticas, com muito mais risos e lágrimas do que qualquer uma das conhecidas histórias burlescas do autor, todas recheadas com as mais variadas obsessões e compulsões sobre sexo e morte. Nelson Rodrigues teve uma biografia que é, no mínimo, incomum. Nasceu em uma família de jornalistas e seu pai, Mário Rodrigues, fundou na década de 1920 o jornal carioca "A Manhã". Seu irmão, Mário Filho, também celebrado como um dos principais cronistas esportivos do Brasil, foi homenageado com a criação do estádio do Maracanã.

















Desde a infância o futuro cronista e dramaturgo, como ele mesmo disse, certa vez, viu o mundo pelo "buraco da fechadura". Sua infância e adolescência foram marcadas por episódios bizarros: entre eles, a morte de um dos irmãos, Roberto, assassinado na redação do jornal. Com a Revolução de 1930, o jornal da família é embargado. Nos anos seguintes, o jovem Nelson passa a escrever crônicas policiais e sobre futebol, depois investe na criação de peças teatrais. Tudo, segundo ele mesmo, tão somente para "pagar o leite das crianças".

O próprio Nelson Rodrigues demorou anos para percebeu o valor real de suas crônicas e peças. Seu centenário, em 23 de agosto, o traz de volta à mídia e à cena cultural em comemorações em pompa e circunstância, com séries de programas na TV, novas montagens de sua obra nos palcos do eixo Rio-São Paulo e um programa da Funarte para tradução e edição da íntegra de suas 17 peças para o espanhol e o inglês. Há também uma nova versão nos cinemas de “Bonitinha, Mas Ordinária”, com direção de Moacyr Góes e com Leandra Leal e João Miguel no elenco, uma grande exposição itinerante sobre a carreira do dramaturgo nas sedes do Instituto Itaú Cultural e a reformulação do site oficial (clique aqui para visitar), que passará a ter em destaque o tópico “Nelson por Ele Mesmo”, com trechos de entrevistas e crônicas, a maioria ainda inédita em livro.

No cenário literário, entretanto, há controvérsias. Sônia Rodrigues, filha do escritor e gestora do site oficial, prepara o lançamento da autobiografia póstuma “Nelson Rodrigues por Ele Mesmo” (Nova Fronteira). No livro, a voz do escritor surge em trechos de entrevistas e relatos pessoais em que Nelson cada uma de suas peças e apresenta suas ideias personalíssimas sobre o Brasil e os brasileiros, enquanto investe contra o divórcio, contra a imoralidade e o que mais o incomodava na sociedade.










Nelson Rodrigues Filho: livro sobre a relação
com o pai nos tempos da ditadura militar.
Abaixo, Luís Augusto Fischer, autor de
Inteligência com dor, livro que aborda
as crônicas e a vertente ensaística na
extensa produção de Nelson Rodrigues








Nelsinho, outro filho, também prepara um livro: "Nelson Rodrigues – Pai e filho", sobre a relação entre eles, em especial durante a ditadura militar, quando o pai conservador viveu agoniado com o filho esquerdista mantido na prisão pelos militares por quase oito anos. Outros lançamentos e relançamentos, entretanto, ainda não foram confirmados, por conta principalmente de desentendimentos entre os herdeiros e a editora Nova Fronteira, que atualmente detém os direitos de publicação.  

 

Nelson, o Pensador



Nelson Rodrigues teve seis filhos: Joffre (morto em 2010) e Nelsinho, de seu casamento com Elza Bretanha; Maria Lúcia, Sonia e Paulo César, do casamento com Yolanda; e Daniela, com Lúcia. Hoje, os herdeiros, que já viveram uma trajetória de muitos impasses decorrentes de brigas sérias, até conseguem se reunir, mas há divergências sobre a cessão de direitos autorais para novas montagens, reedições ou publicação dos textos inéditos. Mais de mil crônicas de Nelson ainda não foram publicadas em livro. 
 





 
Entre tantas homenagens, há também as novas facetas que vêm reforçar o mito do dramaturgo e cronista de primeira grandeza. Uma delas foi proposta e defendida por um especialista: segundo o escritor e jornalista Luís Augusto Fischer, professor de literatura na UFRGS e doutor em Nelson Rodrigues, as crônicas do autor de "Vestido de Noiva" provam que ele foi, além de tudo, um dos grandes pensadores do Brasil.

Em seu mais recente livro, "Inteligência com Dor - Nelson Rodrigues Ensaísta", lançamento da editora gaúcha Arquipélago, Fischer analisa as crônicas do autor reunidas sob o título "Confissões" (publicadas em livros como "O Óbvio Ululante", "A Cabra Vadia", "O Reacionário", "A Menina Sem Estrela" e "O Remador de Ben-Hur", entre outros) para defender a tese: Nelson Rodrigues não era apenas cronista, mas também um pensador e ensaísta de primeira grandeza.

Para Fischer, o autor de “Toda Nudez Será Castigada” marcou época no Brasil do século 20 como uma espécie de Michel de Montaigne (1533-1592), em referência ao escritor francês considerado o fundador do gênero ensaio e filósofo das instituições e dos costumes sociais. Autor da antologia em tom de ironia "Dicionário de Porto-Alegrês", dos ensaios "Literatura Brasileira – Modos de Usar" e "Machado e Borges", além da premiada novela "Quatro Negros", Fischer se debruçou sobre as crônicas de Nelson Rodrigues com a intenção de estudá-las dentro da tradição do ensaio. Sua tese, controversa para alguns, foi defendida no doutorado da UFRGS e agora ganhou nova versão para o formato livro.







Montaigne do Brasil



O pai da ideia do estudo, revela Fischer, foi o jornalista, roteirista e professor de cinema Aníbal Damasceno Ferreira. "Ele sempre dizia que Nelson é o Montaigne do Brasil e também escreveu um artigo importante defendendo esta proposição. O artigo foi publicado em 1986 aí em Belo Horizonte, no Suplemento Literário do Minas Gerais", destaca. Fischer investe a fundo na ideia – e localiza nos textos em questão características marcantes dos melhores ensaístas, além de "acertar os relógios da crítica" diante de qualidades das crônicas-ensaios de Nelson Rodrigues como a intencionalidade quase profética de convicções e a incorporação da linguagem mais coloquial à literatura brasileira.

Luís Augusto Fischer argumenta que os textos de Nelson Rodrigues, lidos hoje, têm sua permanência assegurada por sua agudeza, densidade, coragem e maestria no trato com a linguagem. A tese de Fischer é corajosa, criativa e fundamentada em expressivo aparato teórico. Mas não há como negar que ela também soa contraditória no seu argumento principal – basta lembrar que as crônicas de Nelson, revalorizadas depois que Ruy Castro organizou os textos em vários volumes, constituem a face menos celebrada do autor.












Foi através das crônicas, por exemplo, que Nelson Rodrigues escreveu ironias contra a organização das minorias pelos direitos civis e contra os movimentos de esquerda, em plena Ditadura Militar. Por essas e outras, acabou ficando marcado pelo título de reacionário. Ainda assim, mesmo que a personalidade de Nelson sempre se destaque pela polêmica e cercada pelas muitas contradições, é difícil ficar indiferente diante do estudo que Fischer apresenta.

Para o autor de “Inteligência com Dor”, que teve primeira edição em 2009, o ensaio de Nelson Rodrigues, como também o ensaio em geral, pode ser compreendido como um canto de cisne: majestoso, altivo e desesperado. "Ele foi sim um reacionário, por vezes obtuso, medonho ou até risível, mas também era rigoroso e cruel consigo mesmo", argumenta Fischer, destacando que Nelson, um escritor realista em plena vigência do modernismo, encerra um projeto construtivista moderno na literatura brasileira.






Nelsinho Filho e Nelson Rodrigues, o filho
de esquerda e o pai que chegou a apoiar a
ditadura militar. Abaixo, três amigos cronistas
em fotografia da década de 1950: Vinicius de
Moraes, Nelson Rodrigues e Otto Lara Rezende






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"Ele vem completar algo que teve início com os parnasianos, que prosseguiu com João do Rio, que alcançou os modernistas e que teve seu desfecho com os tropicalistas, contemporâneos das melhores crônicas de Nelson. O mais importante mesmo é reconhecer, diante do conjunto expressivo de suas crônicas, a obra maiúscula que Nelson produziu", conclui Fischer. "Ele definitivamente introduziu um patamar novo do ensaio no Brasil, e também fora daqui, por certo, quando sua obra for traduzida. É o trabalho de um mestre, um escritor de absoluto primeiro plano nas letras de língua portuguesa, ao lado dos maiores", completa.




Sapiência em cena



Enquanto Luís Augusto Fischer localiza em Nelson Rodrigues o pensador e ensaísta, o veterano Jacó Guinsburg, mestre do teatro no Brasil, também destaca que a obra de Nelson é singular, especialmente suas tragédias cariocas, elevando o autor, no último século, à condição de maior contribuição brasileira ao teatro universal. “Nelson é singular e construiu um lugar personalíssimo na dramaturgia que se faz no Brasil”, aponta em entrevista por telefone o crítico, ensaísta e mentor da Editora Perspectiva. 

















 Vida e obra: no alto, o casal de noivos
Nelson Rodrigues e Elza Bretanha
 em 1940, e cenas da primeira montagem
de "Vestido de Noiva", apresentada em
1943, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, com o grupo Os Comediantes
contando com cenografia e figurinos
de Tomás Santa Rosa, sob direção de
Zbigniew Ziembinski (abaixo, em foto
em 1966, durante os ensaios da peça
"O Santo Inquérito", de Dias Gomes), 
diretor, ator e comediante polonês que
fugiu da Segunda Guerra na Europa e
veio em 1941 para o Brasil, onde provocou
revoluções no teatro, no cinema e na TV.

Também abaixo, Nelson Rodrigues com
Fernanda Montenegro em 1961; e
Jacó Guinsburg, nascido na Bessarábia,
atual Moldávia, e naturalizado brasileiro
desde 1924, quando chegou ao Brasil
com os pais imigrantes, aos 3 anos de idade.
Guinsburg se consagrou como referência por
seu trabalho como tradutor, jornalista,
professor, crítico de teatro e fundador
da Editora Perspectiva













Extremamente lúcido e bem-humorado, aos 92 anos, Jacó Guinsburg, que foi homenageado na última edição do Prêmio Shell, pela contribuição ao pensamento crítico do teatro no Brasil, esteve recentemente em Belo Horizonte como convidado especial de um evento que reuniu profissionais e pesquisadores de teatro de vários países, o Ecum – Encontro do Centro Internacional de Pesquisa sobre a Formação em Artes Cênicas. Além do elogio à permanência de Nelson Rodrigues em cena, Guinsburg também destacou alguns dos requisitos que considera essenciais para a qualidade e a atualidade do teatro.

"O primeiro requisito para qualquer dedicação ao teatro tem que ser, em primeiro lugar, gostar de teatro", adverte. "Teatro é ação e reação. É a menos permanente das artes e a mais intensa, porque depende da relação presencial. O teatro é a arte do aqui e do agora, representado a partir do corpo do ator", completa o sábio veterano que nasceu na Bessarábia (hoje território da Moldávia, no Leste Europeu) e emigrou para o Brasil com os pais em 1924, aos 3 anos de idade.

Nas décadas seguintes, Guinsburg ganharia destaque como o principal teórico do teatro brasileiro, além de tradutor e editor de mais de uma centena de tratados de teoria e história das artes e do teatro em particular. Autor de dezenas de grandes clássicos sobre as artes cênicas, como "Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou", "Semiologia do Teatro", "Dicionário do Teatro Brasileiro" e obras sobre Diderot, Lessing e Nietzsche, entre outros, Guinsburg também é sempre destacado como fundador e editor da Perspectiva, uma das mais respeitadas editoras do Brasil, voltada para obras de vanguarda e teoria. 








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Grandes momentos de Nelson Rodrigues
no cinema: acima, cenas de A Falecida,
filme de 1965 de Leon Hirszman com
Fernanda Montenegro 
e Paulo Gracindo
no elenco, com roteiro assinado por
Leon Hirszman e Eduardo Coutinho.

Abaixo, o cartaz original e cenas de
Toda Nudez 
Será Castigada, filme
de 1973 com 
Darlene Glória e
Paulo Porto à frente do elenco, com

roteiro e direção de Arnaldo Jabor
















Recordes de adaptações



Jacó Guinsburg recorda na entrevista que sua maior aproximação com a arte dramática e seu ensino começou em 1964, na Escola de Arte Dramática (EAD), onde ministrou a cadeira de crítica teatral e, posteriormente, em 1967, no então recém-criado Departamento de Teatro, mais tarde de Artes Cênicas, da Escola de Comunicações e Artes da USP. Sob este novo prisma, passou a concentrar seus estudos em teoria e estética teatral e nos grandes clássicos do teatro russo, judeu e iídiche, além da dedicação ao chamado teatro do absurdo.

"Fico extremamente honrado e feliz com a homenagem do Ecum, que apresentou uma curadoria impecável sobre o panorama do teatro russo", destaca Guinsburg, que reconhece qualidades no "caminho trôpego" que o teatro brasileiro cultiva desde tempos remotos. "A grande contribuição do teatro do Brasil para o mundo são alguns momentos que refletiram genialidade e ousadia e que têm alguns registros importantes de reconhecimento no exterior”, explica.
















Nelson Rodrigues no cinema: acima,
o escritor com Yara Amaral, Sonia Braga e
Neville de Almeida, durante as filmagens de
A Dama do Lotação (1978), e Nelson com
Neville e Sonia Braga na primeira entrevista
coletiva para o lançamento do filme. Adaptação
de uma crônica de Nelson Rodrigues, com
roteiro e direção de Neville de Almeida
e com Sonia Braga como protagonista,
o filme tornou-se um dos campeões
de bilheteria do cinema brasileiro.

Abaixo, Nelson flagrado em um passeio
no calçadão da praia de Copacabana,
em 1979; na ativa, com sua inseparável
máquina de datilografia na década de 1970;
e o túmulo do escritor no Cemitério São
João Batista, no Rio de Janeiro












A extensa obra de Nelson Rodrigues também conta com um número recorde de adaptações para o cinema e a TV, algumas com sucesso raro e imbatível de público e crítica. Em um levantamento que fiz nos arquivos da Embrafilme, verifiquei que há registros de 22 filmes que são adaptações de obras de Nelson Rodrigues, realizados no período de 1950 a 2009. Mas é na cena do teatro que o universo de Nelson se revela como uma revolução na crônica de costumes e na série inédita de avanços que incorpora à carpintaria das artes cênicas, conforme destaca Guinsburg. Entre os grandes momentos de ousadia do teatro brasileiro, ele enumera diversos aspectos que percorrem a obra completa de Nelson Rodrigues, seguindo os mesmos critérios do crítico Sábato Magaldi, que agrupou as 17 peças do autor em três categorias: peças psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas.

Não há como negar, reconhece Guinsburg, que Nelson Rodrigues mudou radicalmente a trajetória do teatro no Brasil e criou referências que ganharam destaque também no plano internacional, como no caso da montagem ímpar e revolucionária para “Vestido de Noiva”, com direção de Zibgniew Ziembinski (1908–1978), cenários e figurinos originais de Tomás Santa Rosa (1909–1956) e elenco do grupo Os Comediantes, que estreou entre aplausos e vaias em 28 de dezembro de 1943 e inaugurou em grande estilo o teatro moderno brasileiro. “Nelson Rodrigues é um caso muito especial”, completa Guinsburg. “Mas o teatro é sempre singular e nem sempre a melhor qualidade tem a repercussão que merece. Igual a tudo na vida, afinal de contas..."


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Unanimidade para Nelson Rodrigues. In: Blog Semióticas, 18 de agosto de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/unanimidade-para-nelson-rodrigues.html acessado em .../.../…).
















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