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20 de abril de 2016

Fetiches à mostra









O que leva à substituição do objeto pelo fetiche é
uma conexão simbólica de pensamentos que, na
maioria das vezes, não é consciente para a pessoa.

–– Sigmund Freud, 1905.   



A história do erotismo talvez seja inseparável de um certo fetiche para despir até a intimidade do corpo nu. Com suas regras fluidas e cada vez mais instáveis com o passar do tempo, na intimidade ou em público, a história e o jogo social do erotismo em vestir e despir, a partir dos últimos três séculos, recebem agora uma retrospectiva provocante que transfere as “roupas de baixo” à categoria de obras de arte. Batizada de “Undressed: A Brief History of Underwear” (Desvestidos: uma breve história da roupa íntima), uma exposição em Londres, aberta no Victoria & Albert Museum, resgata as relações entre o corpo, a moda e a roupa íntima desde 1750 até a atualidade.

Trata-se de um acervo nunca antes reunido com mais de 250 objetos e imagens que são puro fetiche (veja o link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo) – incluindo fotografias, cenas de filmes, pinturas e desenhos, embalagens e anúncios publicitários que fizeram História. Entre tantos apelos de sedução, o grande destaque são as peças originais de roupas íntimas de várias épocas, tanto femininas quanto masculinas, criadas para envolver órgãos genitais, seios, cinturas, coxas, pernas, nádegas – peças que somente há poucas décadas a publicidade passou a expor em público sem bloqueios de recatos e pudores.

Diante da variedade tão sugestiva da coleção de calcinhas, sutiãs, cuecas, calções, espartilhos, corseletes, anáguas, meias transparentes, cintas-liga, camisolas e pijamas apresentados na exposição, em marcações cronológicas por vezes surpreendentes, o observador pode ter o prazer de cruzar as fronteiras fluidas e instáveis do erotismo e da sexualidade que a arte e a literatura descobriram bem antes de 1750 – data inicial da trajetória que o recorte temático da mostra reconstitui. São estas fronteiras de regras fluidas e instáveis que tiveram nos escritos do século 19 do francês Charles Baudelaire sobre a Modernidade seu marco inaugural como questão fundamental da vida em sociedade.









Fetiches à mostra: no alto, espartilho
em seda e metal fabricado em 1890
e usado para reduzir a cintura, manter
o tronco ereto e conferir mais elegância
ao corpo – uma das raridades reunidas
na exposição do Victoria & Albert
Museum. Acima, dioramas de
1900 registram damas da
nobreza vestindo espartilhos
e armações para saias e
vestidos. Abaixo, desfile
da primeira coleção de lingerie
de luxo lançada em 1998, em
Paris, pela estilista australiana 
Collette Dinnigan; e vitrine da
Corsetiere, última loja especializada
em corsetes, corseletes, espartilhos e
roupas íntimas sob encomenda, no East
End de Londres, que fechou as portas em
maio de 1968, fotografada em 1961 por
John Claridge. Todas as imagens
reproduzidas nesta página estão no
catálogo da exposição Undressed










O jogo social do erotismo gira hoje em torno da seguinte questão: até onde pode ir uma mulher digna sem se perder?” – interrogava Walter Benjamin, na década de 1930, em uma das passagens de “Jogo e Prostituição”, um dos ensaios inspirados, instigantes, que o pensador alemão dedicou aos escritos de Baudelaire. É verdade que tanto Baudelaire quanto Benjamin tinham em mente as figuras femininas das ruas e salões do Oitocentos, cenários das transformações sociais que surgiram e se desenvolveram na Paris do Segundo Império, mas suas reflexões cabem, como uma luva, também para as mitologias de valor efêmero que a publicidade e a cultura pop disseminam em nosso tempo presente.



Contraponto histórico



A questão filosófica e sociológica, profundamente semiótica, que Walter Benjamin apresenta, espelhado em Charles Baudelaire, poderia constar em destaque, como epígrafe, na mostra do museu britânico, indicando um sem número de aspectos transdisciplinares que sobrepõem variáveis: das amarras da tradição aos hábitos de higiene, das normas da elegância aos impedimentos do poder econômico, dos hábitos cotidianos de consumo e comportamento condicionados em segmentos de classes sociais.









Fetiches à mostra: no alto, amostras
raras das roupas íntimas usadas pela
nobreza da Europa no século 18.
Acima, espartilhos com cordas
e metal usados no século 19.
Abaixo, corsete em seda
e algodão de 1890 com
detalhes bordados em ouro;
uma rara peça unissex: a cinta
usada por homens e mulheres
no Oitocentos para moldar a
cintura e reduzir a barriga; e uma
peça que fez história na década de
1990: o sutiã cônico em modelo corsete
criado por Jean-Paul Gaultier para a
turnê "Blonde Ambition"
de Madonna


 








.









"Dos mestres de ofício dos séculos 18 e 19 aos designers e estilistas mais famosos de nossa época, permanece o apelo das relações fascinantes entre a roupa interior e a roupa exterior, entre a roupa íntima e o corpo", destaca Edwina Ehrman, diretora do acervo de moda e materiais têxteis do Victoria & Albert Museum e curadora da mostra. No dossiê de imprensa sobre a exposição, a curadora também destaca uma série de contrapontos históricos que distinguem a trajetória das roupas íntimas feitas para mulheres e para homens.

Um destes contrapontos: as roupas íntimas femininas sempre tiveram como objetivo o apelo sexy, a sedução, que não raro traziam junto o desconforto e até mesmo a exigência de um certo grau de sacrifício. Por outro lado, a roupa íntima masculina tem por princípios, desde outras épocas, o conforto e a simplicidade, das antigas faixas de recortes de linho, que eram fáceis de lavar e serviam para proteger os genitais do contato com as armaduras de metal e com os ásperos tecidos dos uniformes militares, aos mais modernos modelos contemporâneos feitos de tecidos sintéticos ou de algodão com costuras invisíveis.











 










                                     




Fetiches à mostra – no alto, uma relíquia

original e valiosa: uma cueca de algodão

produzida na Inglaterra em 1890. Acima,

modelos anônimos fazem pose em 1915,

vestindo roupas íntimas longas, para um

catálogo de vendas das lojas Sears de Chicago;

a caixa de cuecas de papel descartáveis

lançada em Londres pela L.R. Industries

em 1970; um anúncio publicitário de calções

de banho de 1955 da grife Catalina, uma das

mais antigas fabricantes de roupas ainda

em atividade, criada em 1907 na Califórnia;

Sean Connery antes da fama, ao lado de

Chopper Hawlett, em um concurso de

fisioculturismo em 1953, usando um

ousado modelo de sunga de algodão.

Também acima, Clint Eastwood, outro

astro do cinema antes da fama,

posando de modelo fotográfico em 1955;

e o anúncio de lançamento de cuecas no

novo formato “sleep” que iria revolucionar o

mercado, aposentar o formato da tradicional

das cueca samba-canção e se tornar uma

peça de escândalo pela ousadia nunca vista

em um catálogo industrial, criação da grife

inglesa Dean Rogers Menswear. Abaixo, os

Brixton Boys fotografados para um anúncio

da Calvin Klein, em 2001; o anúncio de 2012

com David Beckham exibindo a coleção de

cuecas da grife H&M; um anúncio de 2015

das cuecas de seda da grife AussieBum;

Claudia Schiffer vestindo Chanel 

nas passarelas em 1993

















A exposição, com sua meta de traçar um painel técnico e comportamental sobre a evolução no design de roupas íntimas, revela que o uso de materiais como metal, cordas e cordões vem, gradativamente, cedendo lugar a tecidos como linho, seda, algodão, rendas, cada vez mais suaves e em cortes e formatos progressivamente mais encurtados e simplificados nos adereços. A evolução das primeiras peças, exclusivas e artesanais, chega aos processos técnicos da fabricação em série, depois em escala industrial, mas sempre moldando os ajustes das silhuetas às formas de um almejado corpo ideal, seguindo os padrões de cada época e atendendo aos apelos libertários em detrimento do recato e das vigilâncias da moral.



O jogo: exibir e esconder



No jogo social do erotismo, o equilíbrio entre exibir e esconder vem, quase sempre, pontuado por determinados paradoxos e contradições: para mulheres da burguesia, desde o final do século 19, era comum mostrar parcialmente, em público, um ou outro detalhe das novas formas de lingerie como indicativo de poder e riqueza; para os homens, as novidades são menos numerosas e quase sempre restritas a mudanças mínimas na modelagem de ceroulas e calções.












Fetiches à mostra: no alto e acima,
peças da coleção de lingerie de 2015
da grife Stella McCartney; e a coleção
de calcinhas da Cheekfrills, criação
de Lily Fortescue e Katie Canvin.
Abaixo, dois anúncios da
coleção “pornô-chic”
batizada de Tamila, lançamento
de 2015 da grife Agent Provocateur,
fotografados por Sebastian Faena;
e o espartilho com cristais e pérolas
criado em 2011 por Mr. Pearl
para a atriz Dita Von Teese











Nas roupas íntimas masculinas, uma das poucas mudanças perceptíveis nas últimas décadas talvez sejam as calças mais folgadas na cintura, para deixar à vista as barras superiores de sungas e cuecas. A tendência, que primeiro causava um certo estranhamento, desde os célebres e pioneiros anúncios publicitários das grifes Calvin Klein e Empório Armani, nas décadas de 1980 e 1990, acabaria se tornando comportamento coletivo. A exposição também confirma que a roupa íntima, como a própria sexualidade e a intimidade de famosos e de anônimos, provoca muito interesse, debate e, quase sempre, controvérsias – mais pelas peças de escândalo do que pelas preciosidades resgatadas de outras épocas.

As peças mais valiosas, no acervo reunido pelo Victoria & Albert Museum, são também as mais antigas – da segunda metade do século 18 e do começo do século 19. Entre outras raridades de exotismo que sobreviveram por séculos até nossos dias, há as “roupas de baixo” e as calçolas majestosas com rendas, armações de metal e madeira e adornos infinitos criados sob encomenda da realeza e da nobreza. E há as formas de ampulheta distorcida em espartilhos, corpetes e corseletes de barbatanas em ouro e pedrarias, com dezenas de fios e hastes metálicas reforçando a amarração – peças usadas pela maioria das mulheres da nobreza e de posição social destacada até as duas primeiras décadas do século 20, quando foram enfim inventados os sutiãs – oficialmente patenteados nos EUA, em 1914, pela costureira Mary Phelps Jacob.















Fetiches à mostra: no alto, meia-calça
transparente com cinta-liga, criação de
artesãos franceses na década de 1870
que voltou à moda com o sucesso de
Marlene Dietrich no filme alemão de
Joseph von Sternberg O Anjo Azul
(Der Blaue Engel, 1930). Acima,
duas criações de Christian Dior:
colete em corsete com cinta-liga,
em releitura de 1950 para
as peças tradicionais do
século 19, e a camisola com
robe de chambre em fotografia
de 1953 de Irving Penn para
a revista Vanity Fair. Abaixo,
a camisola de luxo com saia curta,
criação de Cristobal Balenciaga de
1958; o corpete de nylon, novidade
da década de 1960 em criação de
Mary Quant; o vestido com espartilho
aparente criado por Antonio Berardi
em 2008 para a atriz Gwyneth Paltrow;
Kate Moss, com Naomi Campbell em
uma festa da Elite Models em 1993,
em Nova York, com um vestido de
seda transparente que deixava
à mostra a calcinha e
os seios nus













 
Contudo, não são estas peças raras de outros séculos, das eras vitoriana e eduardiana, que mobilizam a atenção da grande maioria do público, e sim as peças de roupas íntimas que ganharam fama graças a celebridades do mundo fashion e da cultura pop às quais elas estão por algum motivo associadas. Nesta seção da mostra estão também os modelos de trajes transparentes de 1911 de Paul Poiret, as criações das décadas de 1920, 1930 e 1940 de Coco Chanel, as peças históricas de Dior, Givenchy, Balenciaga e Mary Quant dos anos 1950 e 1960 e, entre vários outros, sucessos recentes das passarelas e das linhas de lingeries de luxo de Vivianne Westwood, Gianni Versace, Jean Paul Gaultier, Alexander McQueen, John Galliano, Dolce & Gabbana e Stella McCartney.

A retrospectiva equivale a uma boa aula de História – em suas interfaces com a moda, a sexualidade, a moralidade e a tecnologia industrial. Porém, para além do sucesso de público, dos holofotes e das referências a celebridades muitas vezes tão instantâneas quanto efêmeras, o sentido de uma mostra dedicada a roupas íntimas, em um museu conceituado, por certo permite muitas leituras e polêmicas. Também permite críticas negativas argumentando sobre a falência da alta cultura, sobre os sintomas da obra de arte inexistente na pós-modernidade, do culto à futilidade, à submissão feminina, ao fetichismo da mercadoria. Ou, talvez, exposições como esta do Victoria & Albert Museum sejam apenas sinais bem característicos do tempo enigmático em que vivemos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Fetiches à mostra. In: _____. Blog Semióticas, 20 de abril de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/04/fetiches-mostra.html (acessado em .../.../...).


Para uma visita à exposição do Victoria & Albert Museum,  clique aqui.














Fetiches à mostra: Sophia Loren na capa
da revista Life em setembro de 1966,
fotografada por Alfred Eisenstaedt
durante as filmagens de
Matrimonio all'Italiana, filme
de Vittorio De Sica, e vestindo peças
de lingerie criadas exclusivamente para ela
por Pierre Balmain em Les Millionaires,
comédia com direção de Anthony Asquith e com
Petter SellersVittorio De Sica no elenco, um dos
maiores sucessos de bilheteria de 1960. A canção tema
do filme, Goodness Gracious Me” (Zoo Be Zoo Be Zoo)
que permaneceu mais de um ano como Top 5 na Inglaterra,
nos Estados Unidos e em outros países, foi o primeiro grande
sucesso de George Martin, que depois seria o produtor musical
dos Beatles. Também acima, pôster publicitário criado por
Hans Schleger para Charnaux Patent Corset Co. Ltd
em 1936. Abaixo, uma seleção das galerias da exposição
no Victoria & Albert Museum em Londres













6 de maio de 2013

Hendrix 3000






Eu morava em um quarto cheio de espelhos. 
I used to live in a room full of mirrors. 
–– Jimi Hendrix, “Room full of mirrors”.  


Sempre lembradas como momento inaugural de reflexão sobre os meios de comunicação e suas intervenções permanentes na vida cotidiana, pesquisas e teses da década de 1930 da Escola de Frankfurt têm sua atualidade cada vez mais centrada nos escritos e na influência de Walter Benjamin (1892–1940). Pioneiro e incompreendido por seus poucos amigos na Alemanha da década de 1930, que assistia à expansão e ao triunfo de Hitler e do nazifascismo, Benjamin seguia em fuga, marginal, pela via de mão única, aliando à reflexão crítica uma confluência improvável, mas visionária, entre magia e técnica, arte e política.

Dogmas religiosos e revoluções provocadas por poetas e pensadores como Baudelaire, Kafka, Marx, Freud, convivem e fulguram nos (breves) ensaios de Benjamin. Tal e qual nos versículos divinatórios da Cabala que ele conhecia como ninguém, cada fragmento do autor de “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” mantém com o passar dos anos sua estranha capacidade de abrir e desvendar analogias para novas leituras. “As dificuldades que inibem a compreensão”, dizia Benjamin, no texto dedicado à arte épica de Brecht – no volume 1 de suas obras completas, em tradução de Sergio Paulo Rouanet (Editora Brasiliense) – “não são outras que as resultantes de sua aderência imediata à vida, enquanto a teoria definha num exílio babilônico de uma prática que nada tem a ver com nossa existência”.

Essa sensibilidade para perceber os dilemas de seu tempo, que em Benjamin tem uma ressonância cada vez mais atual, não se aplica à imensa maioria dos “pensadores” em evidência nos anos 1930, e definitivamente reluz cada vez mais escassa entre as teses principais de seus conterrâneos e contemporâneos na Escola de Frankfurt, que já percebiam com resistência e muita prevenção novidades como o cinema falado, o rádio, a música gravada e o jazz. Benjamin, enquanto isso, não só se dedicava a compreender a tecnologia que avançava sobre os domínios da vida cotidiana, mas também lançava sobre ela as grandes questões do futuro que estava por vir.



















 


Cenas da Era do Rock: no alto, Jimi Hendrix,
Noel Redding (baixo) e Mitch Mitchell (bateria,
percussão e backing vocals), trio da primeira
formação do The Jimi Hendrix Experience,
posam para fotos promocionais em 1967 no
Hyde Park, em Londres, cenário do filme
Blow Up, de Michelangelo Antonioni. Acima,
Hendrix e integrantes de novas bandas de rock
em Londres, posam no Royal Albert Hall, em
fevereiro de 1969, incluindo, entre vários outros,
astros e futuros astros do Pink Floyd, The Who,
Yardbyrds, Led Zeppelin, Black Sabbath, 
seguidos de uma raridade de colecionador: capa
e contracapa do LP (bootleg) com a íntegra dos
concertos de Hendrix no Royal Albert Hall;
a performance solo de Hendrix no Madison
Square Garden, Nova York, em 18 de maio
de 1969, em fotografia de Walter Looss;
e Hendrix na foto para documento
de identidade nos EUA, em 1969.

Abaixo: Jimi Hendrix no Hyde Park de
Londres, em abril de 1967, fotografado por
Fiona Adamstambém em 1967, Hendrix no
Central Park de Nova York, em foto de
Linda McCartney com um grupo de crianças
na estátua para Alice no País das Maravilhas,
junto com Noel Redding (à esquerda) e
Mitch Mitchell (à direita). Também abaixo,
uma foto histórica de um protesto em 1969
da geração Woodstock, em Nova York, contra a
Guerra do Vietnã. A fotografia foi incluída como
ilustração em uma questão do ENEM 2012













Muitas das visões sobre o futuro, cifradas nos versículos de Benjamin, tiveram e têm influência fundamental para as análises de enigmas como a vanguarda do surrealismo, à qual ele atribuiu, num artigo de 1929, a missão de captar a força do inebriamento (“Rausch”) para a causa da revolução dos direitos humanos e dos movimentos sociais.

Penso nas teses de Benjamin por conta de certas notícias infames, entre elas as que destacam no Brasil as tristes campanhas nazifascistas de nomes do quinto escalão que se dizem “roqueiros” – título usurpado por muitos em circunstâncias das mais suspeitas. Penso em Benjamin como contraponto – e especialmente em Jimi Hendrix, herói da era do rock, que fornece a reflexão para uma questão do mais recente ENEM, que transcrevo abaixo.



Questão


“When the power of love overcomes the love of POWER, the world will know peace.”  (Jimi Hendrix)

Aproveitando-se de seu status social e da possível influência sobre seus fãs, o famoso músico Jimi Hendrix associa, em seu texto, os termos “love”, “power” e “peace” para justificar sua opinião de que:

A. a paz tem o poder de aumentar o amor entre os homens.

B. o amor pelo poder deve ser menor do que o poder do amor.

C. o poder deve ser compartilhado entre aqueles que se amam.

D. o amor pelo poder é capaz de desunir cada vez mais as pessoas.

E. a paz será alcançada quando a busca pelo poder deixar de existir.






Cinebiografia


Observador atento, libertário, Benjamin não teve tempo para assistir à derrota do nazifascismo e nem às revoluções das décadas seguintes na arte, na progressão da tecnologia e no comportamento individual e coletivo. A seu pensamento visionário, contudo, não escapavam nem as novidades possíveis nem as impossíveis, que ele tão bem condensou numa de suas belas e comoventes alegorias, a “locomotiva da história”. Não por acaso, o pensamento de Benjamin encontra sintonia no “power of love” de Hendrix: como possibilidade de interrupção do curso catastrófico por onde caminha a Civilização Contemporânea.

Nos acordes e bandeiras da tecnologia e da era do rock – como na sensibilidade para perceber a “locomotiva da história”, no alerta em que Benjamin sinaliza – encontro a atualidade de Hendrix, permanente e a toda prova, enquanto recebo por uma incrível coincidência, por e-mail, as primeiras imagens de Andre Benjamin, mais conhecido como Andre 3000, líder da banda OutKast, no papel de protagonista da cinebiografia do mentor de “Are You Experienced?”









Andre 3000, líder da banda OutKast,
é Jimi Hendrix no filme Jimi: All Is by My Side.
Abaixo, o cartaz promocional e Hayley Atwell
com Andre 3000 nas primeiras imagens do
filme com roteiro e direção de John Ridley











Jimi Hendrix, surrealista desde sempre, lisérgico, psicodélico, já está incorporado em Andre 3000, pelo que se vê nas imagens do novo filme. “Jimi: All Is by My Side" tem também Hayley Atwell (no papel de Kathy Etchingham, namorada de Hendrix) e Imogen Poots (como Linda, namorada de Keith Richards) no elenco, além de Oliver Bennett e Tom Dunlea nos papeis do baixista Noel Redding e do percussionista Mitch Mitchell, que formariam com Hendrix a banda The Jimi Hendrix Experience, e Ashley Charles como Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones. Richards tem papel importante na trajetória do biografado: foi Linda, sua namorada, que descobriu Hendrix e ficou encantada por ele depois de assistir sua apresentação num bar em Nova York. Linda levou Hendrix para conhecer Andrew Loog Oldham e Seymour Stein, o empresário e o produtor dos Rolling Stones, mas os dois não acreditaram no futuro de Jimi Hendrix tarefa que coube a Chas Chandler, baixista da banda The Animals, além de produtor e empresário, que lançaria o primeiro disco com composições autorais de Hendrix, “Are You Experienced?”



Herói da guitarra



Segundo reportagem do jornal inglês “The Guardian”, o filme sobre Hendrix teve cenas gravadas em Nova York e em Wicklow e Dublin, na Irlanda. Com roteiro e direção de John Ridley, o filme conta a história de Hendrix desde o início da carreira, passando pelo período que ele morou na Inglaterra, entre 1966 e 1967, quando compôs seu álbum de estreia. Mas ninguém sabe muito sobre o projeto a cargo de John Ridley, exceto que vieram à tona os impedimentos de sempre por conta de direitos autorais e das legiões de advogados contratados pelos herdeiros para extrair o quanto possível do espólio.


 







Controvérsias não faltam, muito antes da estreia. A “Rolling Stone” dos EUA informa que o filme de John Ridleyt também está impedido pela Experience Hendrix LLC (que tem no conselhor diretor Janie Hendrix, irmã do guitarrista) de apresentar qualquer música que seja da discografia de Hendrix, tanto em sua forma original com em “releitura”, mas não confirma nada sobre a trilha sonora que vai embalar as cenas em que Andre 3000 incorpora o mais célebre e cultuado herói da guitarra. 

Fontes ligadas ao filme de John Ridley também informaram ao “The Guardian” que clássicos do blues e do rock como "Hound Dog" (de Jerry Leiber e Mike Stoller, gravada por Elvis Presley, entre outros) , "Wild Thing" (de Chip Taylor) e "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles, estão entre as versões regravadas por Andre 3000 para o filme, assim como "Mannish Boy", de Muddy Waters, e "Bleeding Heart", de Elmore James. Todas as canções da lista eram interpretadas por Hendrix em bares e clubes de Nova York e depois em Londres, antes de começar a compor sua obra autoral e antes de gravar seu primeiro disco.





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The Guardian” e “Rolling Stone” reproduzem o mesmo release distribuído à imprensa, anunciando que o filme de Ridley irá traçar as origens de Hendrix e seu trajeto a partir do ponto em que ele foi descoberto em Nova York, incluindo o polêmico e obscuro contrato com Chas Chandler, que o lançou como guitarrista. Os mesmos impedimentos sobre direitos autorais, aliás, levaram ao cancelamento de outros filmes anunciados sobre Hendrix e com Hendrix entre os protagonistas.

Entre os projetos mais conhecidos que foram impedidos por Janie Hendrix, a herdeira, estão o longa dirigido por Leon Ichaso, com Wood Harris no papel do guitarrista, que chegou a ser concluído no final dos anos 1990, mas foi proibido pela Justiça e teve seu lançamento embargado desde então. Outro projeto embargado foi a ambiciosa produção iniciada há alguns anos por Paul Greengrass, que foi arquivada depois que os advogados vigilantes a serviço de Janie Hendrix e dos demais guardiões do espólio de Jimi Hendrix se recusaram a licenciar suas músicas.



O ar assobia no paraquedas



James Marshall Hendrix era descendente de negros escravos e desde a infância muito próximo à sua avó materna, que se orgulhava de ter vindo das tribos Cherokee. Jimi nasceu em Seattle (EUA) e sempre contava sobre uma lembrança da infância: o dia em que encontrou um ukelele com apenas uma corda. Em fevereiro de 1962, alistou-se no Exército, em Fort Campbell, Tennessee, e foi convocado para uma brigada de paraquedistas.


 













No Exército, Jimi Hendrix teve a sorte de descobrir seu talento com a música, mas receberia dispensa médica menos de um ano depois do início do treinamento, após fraturar o tornozelo em um salto. Mais tarde, nas entrevistas nos bastidores do Festival de Woodstock, incluídas no DVD “Live at Woodstock”, Hendrix iria confessar que a lembrança do som do ar assobiando forte no paraquedas sempre foi uma das fontes de inspiração para seus solos na guitarra.

Na mesma seção de entrevistas em Woodstock, o mais lendário dos guitarristas fala sobre a infância e sobre sua avó materna, descendente de índios Cherokee, que incutiu no jovem Jimi um forte sentido de orgulho por seus ancestrais. Também recorda que descobriu a música aos 16 anos, quando ganhou de presente um ukelele, e fala sobre a breve experiência no Exército, que foi a mais importante em sua vida, porque foi lá que descobriu a guitarra.

Jimi morreu em Londres, aos cabalísticos 27 anos, exatamente como outros grandes poetas, escritores e astros de rock. Desde sua morte, no dia 18 de setembro de 1970, em circunstâncias que nunca foram completamente explicadas, o prestígio e a fortuna arrecadada com o acervo do guitarrista só cresceram em progressão geométrica. O “pacote” da obra comercializada de Hendrix é surpreendente: a cada ano que passa, cresce em volume e em cifras milionárias, fortalecido por um baú quase infinito de imagens e gravações inéditas.










Jimi Hendrix no Exército, em 1962,
descobre seu talento com a guitarra
e estreia como guitarrista na banda do
veterano Little Richard, no palco do
Fillmore Auditorium, em San Francisco,
Califórnia, em fevereiro de 1965. Naquele
ano, Hendrix iria tentar a sorte como
músico profissional em Nova York e,
no ano seguinte, seguiria para tocar em
bares e clubes de Londres, antes da
gravação do LP Are You Experienced?

Abaixo, Hendrix homenageado pelo artista
francês Jean Giraud, mais conhecido como
Moebius, que lançou em 1998 o álbum
Émotions Électriques, com uma série de
ilustrações sobre o mais lendário dos
guitarristas, em parceria com o fotógrafo
Jean-Noël Coghe, que acompanhou Hendrix
em sua temporada na Europa, em 1967.
Também abaixo, Hendrix e sua guitarra
Fender Stratocaster em chamas no palco
do Monterey Internacional Pop Music
Festival, na noite de 18 de junho de 1967,
fotografado por DA Pennabaker; e Hendrix
sorridente, em uma fantasia de
Papai Noel no Natal de 1967, fotografado
por Dezo Hoffmann. A foto foi uma ideia de
Hendrix para promover Axis: Bold of Love,
segundo álbum de estúdio de sua banda
The Jimi Hendrix Experience.

Também abaixo, uma sequência de fotos de
Hendrix no palco, em fevereiro de 1969, no
célebre concerto no The Royal Albert Hall














Para enumerar só alguns dos lançamentos desde 2010, quando a indústria celebrou os 40 anos de morte de Hendrix: 1) o box “West Coast Seattle Boy: The Jimi Hendrix”, com quatro CDs somente de gravações inéditas e takes alternativos dos grandes sucessos; 2) a coletânea de raridades em CD, DVD e Blu-Ray “Valleys of Neptune”; 3) o documentário “Jimi Hendrix Voodoo Child”, narrado por Bootsy Collins; 4) o documentário “Hendrix at London's Royal Albert Hall”, com a íntegra dos concertos em Londres; 5) três edições Deluxe com muitos bônus para “Jimi Hendrix Experience: BBC Sessions”, “Jimi Hendrix: Blues” e “Merry Christmas & Happy New Year”; e 6) nova versão, na íntegra, de “Jimi Hendrix Live at Woodstock” – para muitos, sua melhor e mais importante apresentação.

O volume que vem do baú de inéditas, até este anos de 2013, impressiona, pois desde 1970, com a morte de Hendrix, centenas de gravações inéditas começaram a surgir. A primeira surpresa veio do produtor Alan Douglas, que causou controvérsia quando supervisionou no início dos anos 1970 a mixagem, remasterização e lançamento de dois álbuns de material que Hendrix deixara para trás em diferentes estados de finalização: os LPs "Crash Landing" e "Midnight Lightning", que estudiosos e fãs de Hendrix consideram de qualidade abaixo do padrão. Exigente como era, é certo que Jimi não teria aprovado para lançamento o conteúdo dos dois LPs, se estivesse vivo.









Locomotiva da história



No começo da década de 1990, com a chegada do formato CD, foi a vez da Polygram ignorar todos os laudos técnicos e lançar uma caixa com as todas as faixas de estúdio em quatro CDs, incluindo duas coletâneas, uma de inéditas e uma de apresentações ao vivo. Na mesma época, todos os empresários que tiveram contrato com Hendrix também dispararam a lançar em CD tudo o que estivesse disponível, inclusive as várias gravações que Hendrix rejeitou por conta da baixa qualidade dos registros, caso da caixa com outros quatro CDs de apresentações ao vivo, lançada pela Reprise.

Ainda nos anos 1990, pouco antes das comemorações dos 30 anos do Festival de Woodstock, Al Hendrix, pai de Jimi, conseguiu na Justiça os direitos e os "royalties" das gravações do filho. Al, em seguida, errou ao transferir todos os direitos a um advogado que considerava seu amigo. O advogado, que teria enganado o pai de Jimi, conseguiu uma manobra jurídica para “comprar” todos os direitos com uma empresa pertencente a ele próprio. A história só ficou mais complicada: Al voltou aos labirintos de processos, desta vez financiado pelo cofundador da Microsoft, Paul Allen, fã devoto de Hendrix de longa data. Resultado: Al Hendrix finalmente recuperou o controle sobre as gravações do filho, em seguida iniciou a remasterização das fitas originais e, de novo, relançou todos os discos de Hendrix.












Cenas de Jimi Hendrix: acima, fotografado por
seu amigo Raymundo de Larrain, em Nova York,
em 1967 e 1969; e em um tríptico de fotos em seu
célebre casaco de general na sessão de 1967 no
estúdio de Gered Mankowitz em Londres. As 72
fotos de Hendrix por Mankowitz, feitas em preto e
branco, permaneceram inéditas até 1992, quando
foram colorizadas pelo fotógrafo e apresentadas
em uma exposição em Londres e em um livro.

Abaixo, Hendriz com a fotógrafa Linda Eastman
(antes dela se casar com o Beatle Paul McCartney)
e no palco do polêmico Miami Pop Festival, em
1968. Também abaixo, Hendrix e sua guitarra
Stratocaster em sua última performance, em
6 de setembro de 1970, no palco ao ar livre do
Festival Love and Peace na ilha de Fehman, na
costa ao norte da Alemanha. Hendrix morreria
poucos dias depois, em 18 de setembro de 1970.

No final da página, Hendrix em Londres, em 1967,
com Noel Redding e Mitch Mitchell, da primeira
formação da banda The Jimi Hendrix Experience;
com suas guitarras, em outubro de 1969, na
sala de espelhos de um parque de diversões em
Nova York, fotografado por Raymundo de Larrain 
para uma reportagem de capa da revista "Life";
e no cartaz promocional a partir de fotografia
de David Redfern para o lançamento em 1966
de The Jimi Hendrix Experience, com Hendrix
acompanhado pelo baixista Noel Redding
e pelo baterista Mitch Mitchell 




 









Al Hendrix morreria em 2002, aos 82 anos, e desde então o controle dos bens e da companhia Experience Hendrix, que fora montada para administrar o legado de Hendrix, passou então à meia-irmã de Jimi, Janie. Em 2004, Janie Hendrix também foi processada por seu meio-irmão, Leon Hendrix, irmão mais novo de Jimi, que foi deixado de fora do testamento de seu pai, registrado em 1997. Leon insistiu e conseguiu na justiça sua participação no espólio.

Na última década, à frente da Experience Hendrix, Janie contratou o engenheiro original de Jimi, Eddie Kramer, e a empresa iniciou um extenso programa de relançamentos, incluindo edições totalmente remasterizadas dos álbuns de estúdio e CDs de compilações de faixas remixadas e remasterizadas, entre eles os “pacotes” surpreendentes que têm surgido em novos lançamentos desde 2010.

Nenhum projeto de cinema, entretanto, foi autorizado a abordar a figura de Hendrix. No máximo, uma ou outra canção foi negociada para fazer parte de trilhas sonoras. Agora, resta saber a qualidade do que está por vir de música com “Jimi: All Is by My Side", o filme de John Ridley com Andre 3000 no lugar de Hendrix. E também que surpresas o futuro reserva para os fãs das performances inspiradas e explosivas de mister Hendrix, artista raro, daqueles que marcaram época e que mantêm acesa, décadas depois de sua morte, a mesma sedução de corações e mentes, enquanto segue sem freios, nos trilhos da história, a locomotiva da alegoria libertária traçada por Walter Benjamin.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Hendrix 3000. In: ___. Blog Semióticas, 6 de maio de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/05/hendrix-3000.html (acessado em .../.../...).


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Veja mais sobre Jimi Hendrix em:  Semióticas: A viagem de Woodstock


Veja mais sobre Walter Benjamin em:  Semióticas: Pandora 

 
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