O
que leva à substituição do objeto pelo fetiche é
uma conexão
simbólica de pensamentos que, na
maioria das vezes,
não é consciente para a pessoa.
–– Sigmund
Freud, 1905.
A
história do erotismo talvez seja inseparável de um certo fetiche
para despir até a intimidade do corpo nu. Com suas regras fluidas e
cada vez mais instáveis com o passar do tempo, na intimidade ou em
público, a história e o jogo social do erotismo em vestir e despir,
a partir dos últimos três séculos, recebem agora uma retrospectiva
provocante que transfere as “roupas de baixo” à categoria de
obras de arte. Batizada de “Undressed: A Brief History of
Underwear” (Desvestidos: uma breve história da roupa íntima), uma
exposição em Londres, aberta no Victoria & Albert Museum,
resgata as relações entre o corpo, a moda e a roupa íntima desde
1750 até a atualidade.
Trata-se
de um acervo nunca antes reunido com mais de 250 objetos e imagens
que são puro fetiche (veja o
link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo)
– incluindo fotografias, cenas de filmes, pinturas e desenhos, embalagens e anúncios
publicitários que fizeram História.
Entre tantos apelos de sedução, o grande destaque são as peças
originais de roupas íntimas de várias épocas, tanto femininas
quanto masculinas, criadas para envolver órgãos genitais, seios,
cinturas, coxas, pernas, nádegas – peças que somente há poucas décadas
a publicidade passou a expor em público sem bloqueios de recatos e
pudores.
Diante
da variedade tão sugestiva da coleção de calcinhas, sutiãs,
cuecas, calções, espartilhos, corseletes, anáguas, meias
transparentes, cintas-liga, camisolas e pijamas apresentados na
exposição, em marcações cronológicas por vezes surpreendentes, o
observador pode ter o prazer de cruzar as fronteiras fluidas e
instáveis do erotismo e da sexualidade que a arte e a literatura
descobriram bem antes de 1750 – data inicial da trajetória que o
recorte temático da mostra reconstitui. São estas fronteiras de
regras fluidas e instáveis que tiveram nos escritos do século 19
do francês Charles Baudelaire sobre a Modernidade seu marco
inaugural como questão fundamental da vida em sociedade.
Fetiches
à mostra: no alto, espartilho
em
seda e metal fabricado em 1890
e
usado para reduzir a cintura, manter
o
tronco ereto e conferir mais elegância
ao
corpo – uma das raridades reunidas
na
exposição do Victoria & Albert
Museum.
Acima, dioramas de
1900 registram
damas da
nobreza
vestindo espartilhos
e
armações para saias e
vestidos.
Abaixo, desfile
da
primeira coleção de lingerie
de
luxo lançada em 1998, em
Paris,
pela estilista australiana
Collette
Dinnigan; e vitrine da
Corsetiere,
última loja especializada
em
corsetes, corseletes, espartilhos e
roupas
íntimas sob encomenda, no East
End
de Londres, que fechou as portas em
maio
de 1968, fotografada em 1961 por
John
Claridge. Todas as imagens
reproduzidas
nesta página estão no
catálogo
da exposição Undressed
“O
jogo social do erotismo gira hoje em torno da seguinte questão: até
onde pode ir uma mulher digna sem se perder?” – interrogava Walter
Benjamin, na década de 1930, em uma das passagens de “Jogo e
Prostituição”, um dos ensaios inspirados, instigantes, que o
pensador alemão dedicou aos escritos de Baudelaire. É verdade que
tanto Baudelaire quanto Benjamin tinham em mente as figuras femininas
das ruas e salões do Oitocentos, cenários das transformações
sociais que surgiram e se desenvolveram na Paris do Segundo Império,
mas suas reflexões cabem, como uma luva, também para as mitologias
de valor efêmero que a publicidade e a cultura pop disseminam em
nosso tempo presente.
Contraponto histórico
A
questão filosófica e sociológica, profundamente semiótica, que
Walter Benjamin apresenta, espelhado em Charles Baudelaire, poderia
constar em destaque, como epígrafe, na mostra do museu britânico,
indicando um sem número de aspectos
transdisciplinares que sobrepõem variáveis: das amarras da tradição
aos hábitos de higiene, das normas da elegância aos impedimentos do
poder econômico, dos hábitos cotidianos de consumo e comportamento
condicionados em segmentos de classes sociais.
Fetiches
à mostra: no alto, amostras
raras
das roupas íntimas usadas pela
nobreza
da Europa no século 18.
Acima,
espartilhos com cordas
e
metal usados no século 19.
Abaixo,
corsete em seda
e
algodão de 1890 com
detalhes
bordados em ouro;
uma
rara peça unissex: a cinta
usada
por homens e mulheres
no
Oitocentos para moldar a
cintura
e reduzir a barriga; e uma peça que fez história na década de 1990: o sutiã cônico em modelo corsete criado por Jean-Paul Gaultier para a turnê "Blonde Ambition" de Madonna
.
"Dos mestres de ofício dos séculos 18 e 19 aos
designers e estilistas mais famosos de nossa época, permanece o
apelo das relações fascinantes entre a roupa interior e a roupa
exterior, entre a roupa íntima e o corpo", destaca Edwina
Ehrman, diretora do acervo de moda e materiais têxteis do Victoria &
Albert Museum e curadora da mostra. No dossiê de imprensa sobre a
exposição, a curadora também destaca uma série de contrapontos
históricos que distinguem a trajetória das roupas íntimas feitas
para mulheres e para homens.
Um destes contrapontos: as roupas íntimas femininas
sempre tiveram como objetivo o apelo sexy, a sedução, que não raro
traziam junto o desconforto e até mesmo a exigência de um certo
grau de sacrifício. Por outro lado, a roupa íntima masculina tem
por princípios, desde outras épocas, o conforto e a simplicidade,
das antigas faixas de recortes de linho, que eram fáceis de lavar e serviam
para proteger os genitais do contato com as armaduras de metal e com os
ásperos tecidos dos uniformes militares, aos mais modernos modelos
contemporâneos feitos de tecidos sintéticos ou de algodão com costuras invisíveis.
Fetiches
à mostra – no alto, uma relíquia
original
e valiosa: uma cueca de algodão
produzida
na Inglaterra em 1890. Acima,
modelos anônimos fazem pose em 1915,
vestindo roupas íntimas longas, para um
catálogo de vendas das lojas Sears de Chicago;
a
caixa de cuecas de papel descartáveis
lançada
em Londres pela L.R. Industries
em
1970; um anúncio publicitário de calções
de banho
de 1955 da grife Catalina, uma das
mais
antigas fabricantes de roupas ainda
em
atividade, criada em 1907 na Califórnia;
Sean
Connery antes da fama, ao lado de
Chopper
Hawlett, em um concurso de
fisioculturismo
em 1953, usando um
ousado
modelo de sunga de algodão.
Também
acima, Clint Eastwood, outro
astro
do cinema antes da fama,
posando
de modelo fotográfico em 1955;
e
o anúncio de lançamento de cuecas no
novo
formato “sleep” que iria revolucionar o
mercado,
aposentar o formato da tradicional
das cueca
samba-canção e se tornar uma
peça
de escândalo pela ousadia nunca vista
em um
catálogo industrial, criação da grife
inglesa Dean
Rogers Menswear. Abaixo, os
Brixton
Boys fotografados para um anúncio
da Calvin
Klein, em 2001; o anúncio de 2012
com David
Beckham exibindo a coleção de
cuecas
da grife H&M; um anúncio de 2015
das
cuecas de seda da grife AussieBum;
e Claudia
Schiffer vestindo Chanel
nas
passarelas em 1993
A exposição, com sua meta de traçar um painel técnico
e comportamental sobre a evolução no design de roupas íntimas,
revela que o uso de materiais como metal, cordas e cordões vem, gradativamente, cedendo lugar a tecidos como linho, seda, algodão,
rendas, cada vez mais suaves e em cortes e formatos progressivamente
mais encurtados e simplificados nos adereços. A evolução das
primeiras peças, exclusivas e artesanais, chega aos processos
técnicos da fabricação em série, depois em escala industrial, mas
sempre moldando os ajustes das silhuetas às formas de um almejado
corpo ideal, seguindo os padrões de cada época e atendendo aos
apelos libertários em detrimento do recato e das vigilâncias da
moral.
O jogo: exibir e esconder
No jogo social do erotismo, o equilíbrio entre exibir e
esconder vem, quase sempre, pontuado por determinados paradoxos e
contradições: para mulheres da burguesia, desde o final do século
19, era comum mostrar parcialmente, em público, um ou outro detalhe
das novas formas de lingerie como indicativo de poder e riqueza; para
os homens, as novidades são menos numerosas e quase sempre restritas
a mudanças mínimas na modelagem de ceroulas e calções.
Fetiches
à mostra: no alto e acima,
peças
da coleção de lingerie de 2015
da
grife Stella McCartney; e a coleção
de
calcinhas da Cheekfrills, criação
de
Lily Fortescue e Katie Canvin.
Abaixo,
dois anúncios da
coleção
“pornô-chic”
batizada
de Tamila, lançamento
de
2015 da grife Agent Provocateur,
fotografados
por Sebastian Faena;
e o
espartilho com cristais e pérolas
criado
em 2011 por Mr. Pearl
para
a atriz Dita
Von Teese
Nas
roupas íntimas masculinas, uma das poucas mudanças perceptíveis
nas últimas décadas talvez sejam as calças mais folgadas na
cintura, para deixar à vista as barras superiores de sungas e
cuecas. A tendência, que primeiro causava um certo estranhamento,
desde os célebres e pioneiros anúncios publicitários das grifes
Calvin Klein e Empório Armani, nas décadas de 1980 e 1990, acabaria
se tornando comportamento coletivo. A exposição também confirma
que a roupa íntima, como a própria sexualidade e a intimidade de
famosos e de anônimos, provoca muito interesse, debate e, quase
sempre, controvérsias – mais pelas peças de escândalo do que
pelas preciosidades resgatadas de outras épocas.
As
peças mais valiosas, no acervo reunido pelo Victoria & Albert
Museum, são também as mais antigas – da segunda metade do século
18 e do começo do século 19. Entre outras raridades de exotismo que
sobreviveram por séculos até nossos dias, há as “roupas de
baixo” e as calçolas majestosas com rendas, armações de metal e
madeira e adornos infinitos criados sob encomenda da realeza e da
nobreza. E há as formas de ampulheta distorcida em espartilhos,
corpetes e corseletes de barbatanas em ouro e pedrarias, com dezenas
de fios e hastes metálicas reforçando a amarração – peças
usadas pela maioria das mulheres da nobreza e de posição social
destacada até as duas primeiras décadas do século 20, quando foram
enfim inventados os sutiãs – oficialmente patenteados nos EUA, em
1914, pela costureira Mary Phelps Jacob.
Fetiches
à mostra: no alto, meia-calça
transparente
com cinta-liga, criação de
artesãos
franceses na década de 1870
que
voltou à moda com o sucesso de
Marlene
Dietrich no filme alemão de
Joseph
von Sternberg O Anjo Azul
(Der
Blaue Engel, 1930). Acima,
duas
criações de Christian Dior:
colete
em corsete com cinta-liga,
em
releitura de 1950 para
as
peças tradicionais do
século
19, e a camisola com
robe
de chambre em fotografia
de
1953 de Irving Penn para
a
revista Vanity Fair. Abaixo,
a
camisola de luxo com saia curta,
criação
de Cristobal Balenciaga de
1958;
o corpete de nylon, novidade
da
década de 1960 em criação de
Mary
Quant; o vestido com espartilho
aparente
criado por Antonio Berardi
em
2008 para a atriz Gwyneth Paltrow;
e Kate
Moss, com Naomi Campbell em
uma
festa da Elite Models em 1993,
em
Nova York, com um vestido de
seda
transparente que deixava
à
mostra a calcinha e
os
seios nus
Contudo,
não são estas peças raras de outros séculos, das eras vitoriana e
eduardiana, que mobilizam a atenção da grande maioria do público,
e sim as peças de roupas íntimas que ganharam fama graças a
celebridades do mundo fashion e da cultura pop às quais elas estão
por algum motivo associadas. Nesta seção da mostra estão também
os modelos de trajes transparentes de 1911 de Paul Poiret, as
criações das décadas de 1920, 1930 e 1940 de Coco Chanel, as peças
históricas de Dior, Givenchy, Balenciaga e Mary Quant dos anos 1950
e 1960 e, entre vários outros, sucessos recentes das passarelas e
das linhas de lingeries de luxo de Vivianne Westwood, Gianni Versace, Jean Paul Gaultier, Alexander
McQueen, John Galliano, Dolce & Gabbanae
Stella McCartney.
A
retrospectiva equivale a uma boa aula de História – em suas
interfaces com a moda, a sexualidade, a moralidade e a tecnologia
industrial. Porém, para além do sucesso de público, dos holofotes
e das referências a celebridades muitas vezes tão instantâneas
quanto efêmeras, o sentido de uma mostra dedicada a roupas íntimas,
em um museu conceituado, por certo permite muitas leituras e
polêmicas. Também permite críticas negativas argumentando sobre a
falência da alta cultura, sobre os sintomas da obra de arte
inexistente na pós-modernidade, do culto à futilidade, à submissão
feminina, ao fetichismo da mercadoria. Ou, talvez, exposições como
esta do Victoria & Albert Museum sejam apenas sinais bem
característicos do tempo enigmático em que vivemos.
Sempre lembradas como momento inaugural de reflexão
sobre os meios de comunicação e suas intervenções permanentes na
vida cotidiana, pesquisas e teses da década de 1930 da Escola de Frankfurt têm sua
atualidade cada vez mais centrada nos escritos e na influência de
Walter Benjamin (1892–1940). Pioneiro e incompreendido por seus
poucos amigos na Alemanha da década de 1930, que assistia à
expansão e ao triunfo de Hitler e do nazifascismo, Benjamin seguia em fuga, marginal, pela via de mão única, aliando à reflexão crítica
uma confluência improvável, mas visionária, entre magia e técnica,
arte e política.
Dogmas religiosos e revoluções provocadas por poetas e
pensadores como Baudelaire, Kafka, Marx, Freud, convivem e fulguram
nos (breves) ensaios de Benjamin. Tal e qual nos versículos
divinatórios da Cabala que ele conhecia como ninguém, cada
fragmento do autor de “A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica” mantém com o passar dos anos sua
estranha capacidade de abrir e desvendar analogias para novas
leituras. “As dificuldades que inibem a compreensão”, dizia
Benjamin, no texto dedicado à arte épica de Brecht – no volume 1
de suas obras completas, em tradução de Sergio Paulo Rouanet
(Editora Brasiliense) – “não são outras que as resultantes de
sua aderência imediata à vida, enquanto a teoria definha num exílio
babilônico de uma prática que nada tem a ver com nossa existência”.
Essa sensibilidade para perceber os dilemas de seu
tempo, que em Benjamin tem uma ressonância cada vez mais atual, não
se aplica à imensa maioria dos “pensadores” em evidência nos
anos 1930, e definitivamente reluz cada vez mais escassa entre as
teses principais de seus conterrâneos e contemporâneos na Escola de
Frankfurt, que já percebiam com resistência e muita prevenção
novidades como o cinema falado, o rádio, a música gravada e o jazz.
Benjamin, enquanto isso, não só se dedicava a compreender a
tecnologia que avançava sobre os domínios da vida cotidiana, mas
também lançava sobre ela as grandes questões do futuro que estava
por vir.
Cenas
da Era do Rock: no alto, Jimi Hendrix,
Noel
Redding (baixo) e Mitch Mitchell (bateria,
percussão
e backing vocals), trio da primeira
formação
do The Jimi Hendrix Experience,
posam
para fotos promocionais em 1967 no
Hyde
Park, em Londres, cenário do filme
Blow
Up, de Michelangelo Antonioni. Acima,
Hendrix
e integrantes de novas bandas de rock
em
Londres, posam no Royal Albert Hall, em
fevereiro
de 1969, incluindo, entre vários outros,
astros
e futuros astros do Pink Floyd, The Who,
Yardbyrds,
Led Zeppelin, Black Sabbath,
seguidos
de uma raridade de colecionador: capa
e
contracapa do LP (bootleg) com a íntegra dos
concertos
de Hendrix no Royal Albert Hall;
a
performance solo de Hendrix no Madison
Square
Garden, Nova York, em 18 de maio
de 1969,
em fotografia de Walter Looss;
e
Hendrix na foto para documento
de identidade nos EUA, em
1969.
Abaixo: Jimi Hendrix no Hyde Park de
Londres, em abril de 1967, fotografado por
Fiona Adams; também
em 1967, Hendrix no
Central Park de
Nova York, em foto de
Linda
McCartney com um grupo de crianças
na estátua para Alice
no País das Maravilhas,
junto com Noel Redding (à
esquerda) e
Mitch Mitchell (à direita). Também abaixo,
uma foto histórica de um protesto em 1969
da geração Woodstock,
em Nova York, contra a
Guerra do
Vietnã. A fotografia foi incluída como
ilustração
em uma questão do ENEM 2012
Muitas
das visões sobre o futuro, cifradas nos versículos de Benjamin,
tiveram e têm influência fundamental para as análises de enigmas
como a vanguarda do surrealismo, à qual ele atribuiu, num artigo de
1929, a missão de captar a força do inebriamento (“Rausch”)
para a causa da revolução dos direitos humanos e dos movimentos
sociais.
Penso nas teses de Benjamin por conta de certas notícias
infames, entre elas as que destacam no Brasil as tristes campanhas
nazifascistas de nomes do quinto escalão que se dizem “roqueiros”
– título usurpado por muitos em circunstâncias das mais
suspeitas. Penso em Benjamin como contraponto – e especialmente em
Jimi Hendrix, herói da era do rock, que fornece a reflexão
para uma questão do mais recente ENEM, que transcrevo abaixo.
Questão
“When
the power of love overcomes the love of POWER, the world will know
peace.” (Jimi Hendrix)
Aproveitando-se de seu status
social e da possível influência sobre seus fãs, o famoso músico
Jimi Hendrix associa, em seu texto, os termos “love”, “power”
e “peace” para justificar sua opinião de que:
A. a paz
tem o poder de aumentar o amor entre os homens.
B. o amor pelo
poder deve ser menor do que o poder do amor.
C. o poder deve
ser compartilhado entre aqueles que se amam.
D. o amor pelo
poder é capaz de desunir cada vez mais as pessoas.
E. a paz
será alcançada quando a busca pelo poder deixar de existir.
Cinebiografia
Observador
atento, libertário, Benjamin não teve tempo para assistir à
derrota do nazifascismo e nem às revoluções das décadas
seguintes na arte, na progressão da tecnologia e no comportamento
individual e coletivo. A seu pensamento visionário, contudo, não
escapavam nem as novidades possíveis nem as impossíveis, que ele
tão bem condensou numa de suas belas e comoventes alegorias, a
“locomotiva da história”. Não por acaso, o pensamento de
Benjamin encontra sintonia no “power of love” de Hendrix: como
possibilidade de interrupção do curso catastrófico por onde
caminha a Civilização Contemporânea.
Nos
acordes e bandeiras da tecnologia e da era do rock – como na
sensibilidade para perceber a “locomotiva da história”, no
alerta em que Benjamin sinaliza – encontro a atualidade
de Hendrix, permanente e a toda prova, enquanto recebo por uma
incrível coincidência, por e-mail, as primeiras imagens de Andre
Benjamin, mais conhecido como Andre 3000, líder da banda OutKast, no
papel de protagonista da cinebiografia do mentor de “Are You
Experienced?”
Andre 3000, líder da banda OutKast, é Jimi Hendrix no filme Jimi: All Is by My Side.
Abaixo, o cartaz promocional e Hayley Atwell com Andre 3000 nas primeiras imagens do filme com roteiro e direção de John Ridley
Jimi Hendrix, surrealista desde sempre, lisérgico,
psicodélico, já está incorporado em Andre 3000, pelo que se vê
nas imagens do novo filme. “Jimi: All Is by My Side" tem também Hayley
Atwell (no papel de Kathy Etchingham, namorada de Hendrix) e Imogen Poots (como Linda, namorada de Keith Richards) no elenco, além de Oliver Bennett e Tom Dunlea nos papeis do baixista Noel Redding e do percussionista Mitch Mitchell, que formariam com Hendrix a banda The Jimi Hendrix Experience, e Ashley Charles como Keith
Richards, guitarrista dos Rolling Stones. Richards tem papel
importante na trajetória do biografado: foi Linda, sua namorada, que descobriu Hendrix e ficou encantada por ele depois de assistir sua apresentação
num bar em Nova York. Linda levou Hendrix para conhecer Andrew Loog
Oldham e Seymour Stein, o empresário e o produtor dos Rolling
Stones, mas os dois não acreditaram no futuro de Jimi Hendrix – tarefa que
coube a Chas Chandler, baixista da banda The Animals, além de produtor e empresário, que lançaria o
primeiro disco com composições autorais de Hendrix, “Are You Experienced?”
Herói da guitarra
Segundo reportagem do jornal inglês “The Guardian”, o
filme sobre Hendrix teve cenas gravadas em Nova York e em Wicklow e Dublin, na Irlanda. Com roteiro e direção de John
Ridley, o filme conta a história de Hendrix desde o início da
carreira, passando pelo período que ele morou na Inglaterra, entre
1966 e 1967, quando compôs seu álbum de estreia. Mas ninguém sabe muito sobre o projeto a cargo de John
Ridley, exceto que vieram à tona os impedimentos de sempre por conta
de direitos autorais e das legiões de advogados contratados pelos
herdeiros para extrair o quanto possível do espólio.
Controvérsias não faltam, muito antes da estreia. A
“Rolling Stone” dos EUA informa que o filme de John Ridleyt também está impedido pela
Experience Hendrix LLC (que tem no conselhor diretor Janie Hendrix,
irmã do guitarrista) de apresentar qualquer música que seja da
discografia de Hendrix, tanto em sua forma original com em
“releitura”, mas não confirma nada sobre a trilha sonora que vai
embalar as cenas em que Andre 3000 incorpora o mais célebre e
cultuado herói da guitarra.
Fontes
ligadas ao filme de John Ridley também informaram ao “The
Guardian” que clássicos do blues e do rock como "Hound Dog"
(de Jerry Leiber e Mike Stoller, gravada por Elvis Presley, entre
outros), "Wild
Thing" (de Chip Taylor) e "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club
Band", dos Beatles, estão entre as versões regravadas por Andre
3000 para o filme, assim como "Mannish Boy", de Muddy
Waters, e "Bleeding Heart", de Elmore James. Todas as
canções da lista eram interpretadas por Hendrix em bares e clubes
de Nova York e depois em Londres, antes de começar a compor sua obra
autoral e antes de gravar seu primeiro disco.
.
“The Guardian” e “Rolling
Stone” reproduzem o mesmo release distribuído à imprensa, anunciando que o filme de Ridley
irá traçar as origens de Hendrix e seu trajeto a partir do ponto em
que ele foi descoberto em Nova York, incluindo o polêmico e obscuro
contrato com Chas Chandler, que o lançou como guitarrista. Os mesmos
impedimentos sobre direitos autorais, aliás, levaram ao cancelamento
de outros filmes anunciados sobre Hendrix e com Hendrix entre
os protagonistas.
Entre os projetos mais conhecidos que foram impedidos por Janie Hendrix, a herdeira, estão o longa dirigido por Leon Ichaso, com Wood Harris no papel do guitarrista,
que chegou a ser concluído no final dos anos 1990, mas foi proibido pela
Justiça e teve seu lançamento embargado desde então. Outro projeto embargado foi a ambiciosa produção iniciada há
alguns anos por Paul Greengrass, que foi arquivada depois que os
advogados vigilantes a serviço de Janie Hendrix e dos demais guardiões do espólio de Jimi Hendrix se recusaram a licenciar suas
músicas.
O ar assobia no paraquedas
James Marshall Hendrix era
descendente de negros escravos e desde a infância muito próximo à
sua avó materna, que se orgulhava de ter vindo das tribos Cherokee.
Jimi nasceu em Seattle (EUA) e sempre contava sobre uma lembrança da
infância: o dia em que encontrou um ukelele com apenas uma corda. Em
fevereiro de 1962, alistou-se no Exército, em Fort Campbell,
Tennessee, e foi convocado para uma brigada de paraquedistas.
No
Exército, Jimi Hendrix teve a sorte de descobrir seu talento com a
música, mas receberia dispensa médica menos de um ano depois do
início do treinamento, após fraturar o tornozelo em um salto. Mais
tarde, nas entrevistas nos bastidores do Festival de Woodstock,
incluídas no DVD “Live at Woodstock”, Hendrix iria confessar que
a lembrança do som do ar assobiando forte no paraquedas sempre foi
uma das fontes de inspiração para seus solos na guitarra.
Na
mesma seção de entrevistas em Woodstock, o mais lendário dos guitarristas fala
sobre a infância e sobre sua avó materna, descendente de índios
Cherokee, que incutiu no jovem Jimi um forte sentido de orgulho por
seus ancestrais. Também recorda que descobriu a música aos 16 anos,
quando ganhou de presente um ukelele, e fala sobre a breve
experiência no Exército, que foi a mais importante em sua vida,
porque foi lá que descobriu a guitarra.
Jimi
morreu em Londres, aos cabalísticos 27 anos, exatamente como outros
grandes poetas, escritores e astros de rock. Desde sua morte, no dia
18 de setembro de 1970, em circunstâncias que nunca foram
completamente explicadas, o prestígio e a fortuna arrecadada com o
acervo do guitarrista só cresceram em progressão geométrica. O
“pacote” da obra comercializada de Hendrix é surpreendente: a
cada ano que passa, cresce em volume e em cifras milionárias,
fortalecido por um baú quase infinito de imagens e gravações
inéditas.
Jimi
Hendrix no Exército, em 1962,
descobre seu
talento com a guitarra
e
estreia como guitarrista na banda do
veterano Little
Richard, no palco do
Fillmore
Auditorium, em San Francisco,
Califórnia,
em fevereiro de 1965. Naquele
ano,
Hendrix iria tentar a sorte como
músico
profissional em Nova York e,
no
ano seguinte, seguiria para tocar em
bares
e clubes de Londres, antes da
gravação
do LP Are You Experienced?
Abaixo,
Hendrix homenageado pelo artista
francês Jean
Giraud, mais conhecido como
Moebius,
que lançou em 1998 o álbum
Émotions
Électriques, com uma série de
ilustrações
sobre o mais lendário dos
guitarristas, em parceria
com o fotógrafo
Jean-Noël
Coghe, que acompanhou Hendrix
em
sua temporada na Europa, em 1967.
Também
abaixo, Hendrix e sua guitarra
Fender Stratocaster em chamas no palco
do Monterey Internacional Pop Music
Festival, na noite de 18 de junho de 1967,
fotografado por DA Pennabaker; e Hendrix
sorridente, em uma fantasia de
Papai
Noel no Natal de 1967, fotografado
por Dezo
Hoffmann. A foto foi uma ideia de
Hendrix para promover Axis: Bold of Love,
segundo
álbum de estúdio de sua banda
The
Jimi Hendrix Experience.
Também
abaixo, uma sequência de fotos de
Hendrix
no palco, em fevereiro de 1969, no
célebre
concerto no The Royal Albert Hall
Para enumerar só alguns dos lançamentos desde 2010, quando a
indústria celebrou os 40 anos de morte de Hendrix: 1) o box “West
Coast Seattle Boy: The Jimi Hendrix”, com quatro CDs somente de
gravações inéditas e takes alternativos dos grandes sucessos; 2) a
coletânea de raridades em CD, DVD e Blu-Ray “Valleys of Neptune”;
3) o documentário “Jimi Hendrix Voodoo Child”, narrado por
Bootsy Collins; 4) o documentário “Hendrix at London's Royal
Albert Hall”, com a íntegra dos concertos em Londres; 5) três
edições Deluxe com muitos bônus para “Jimi Hendrix Experience:
BBC Sessions”, “Jimi Hendrix: Blues” e “Merry Christmas &
Happy New Year”; e 6) nova versão, na íntegra, de “Jimi Hendrix
Live at Woodstock” – para muitos, sua melhor e mais importante
apresentação.
O
volume que vem do baú de inéditas, até este anos de 2013, impressiona, pois desde 1970, com
a morte de Hendrix, centenas de gravações inéditas começaram a
surgir. A primeira surpresa veio do produtor Alan Douglas, que causou
controvérsia quando supervisionou no início dos anos 1970 a
mixagem, remasterização e lançamento de dois álbuns de material
que Hendrix deixara para trás em diferentes estados de finalização:
os LPs "Crash Landing" e "Midnight Lightning",
que estudiosos e fãs de Hendrix consideram de qualidade abaixo do
padrão. Exigente como era, é certo que Jimi não teria aprovado
para lançamento o conteúdo dos dois LPs, se estivesse vivo.
Locomotiva da história
No
começo da década de 1990, com a chegada do formato CD, foi a vez da
Polygram ignorar todos os laudos técnicos e lançar uma caixa com as
todas as faixas de estúdio em quatro CDs, incluindo duas coletâneas,
uma de inéditas e uma de apresentações ao vivo. Na mesma época,
todos os empresários que tiveram contrato com Hendrix também
dispararam a lançar em CD tudo o que estivesse disponível,
inclusive as várias gravações que Hendrix rejeitou por conta da
baixa qualidade dos registros, caso da caixa com outros quatro CDs de
apresentações ao vivo, lançada pela Reprise.
Ainda
nos anos 1990, pouco antes das comemorações dos 30 anos do
Festival de Woodstock, Al Hendrix, pai de Jimi, conseguiu na Justiça
os direitos e os "royalties" das gravações do filho. Al,
em seguida, errou ao transferir todos os direitos a um advogado que
considerava seu amigo. O advogado, que teria enganado o pai de Jimi,
conseguiu uma manobra jurídica para “comprar” todos os direitos
com uma empresa pertencente a ele próprio. A história só ficou
mais complicada: Al voltou aos labirintos de processos, desta vez
financiado pelo cofundador da Microsoft, Paul Allen, fã devoto de
Hendrix de longa data. Resultado: Al Hendrix finalmente recuperou o
controle sobre as gravações do filho, em seguida iniciou a
remasterização das fitas originais e, de novo, relançou todos os
discos de Hendrix.
Cenas
de Jimi Hendrix: acima, fotografado por
seu
amigo Raymundo de Larrain, em Nova York,
em
1967 e 1969; e em um tríptico de fotos em seu
célebre
casaco de general na sessão de 1967 no
estúdio
de Gered Mankowitz em Londres. As 72
fotos
de Hendrix por Mankowitz, feitas em preto e
branco,
permaneceram inéditas até 1992, quando
foram
colorizadas pelo fotógrafo e apresentadas
em
uma exposição em Londres e em um livro.
Abaixo,
Hendriz com a fotógrafa Linda Eastman
(antes
dela se casar com o Beatle Paul McCartney)
e
no palco do polêmico Miami Pop Festival, em
1968.
Também abaixo, Hendrix e sua guitarra
Stratocaster em
sua última performance, em
6
de setembro de 1970, no palco ao ar livre do
Festival
Love and Peace na ilha de Fehman, na
costa
ao norte da Alemanha. Hendrix morreria
poucos
dias depois, em 18 de setembro de 1970.
No
final da página, Hendrix em Londres, em 1967,
com Noel
Redding e Mitch Mitchell, da primeira
formação
da banda The Jimi Hendrix Experience;
com suas guitarras, em outubro de 1969, na
sala de espelhos de
um parque de diversões em
Nova York, fotografado por Raymundo de Larrain
para uma reportagem de capa da revista "Life";
e no cartaz promocional a partir de fotografia
de David Redfern para o lançamento em 1966
de The Jimi Hendrix Experience, com Hendrix
acompanhado pelo baixista Noel Redding
e pelo baterista Mitch Mitchell
Al
Hendrix morreria em 2002, aos 82 anos, e desde então o controle dos
bens e da companhia Experience
Hendrix, que fora montada para administrar o legado de
Hendrix, passou então à meia-irmã de Jimi, Janie. Em 2004, Janie
Hendrix também foi processada por seu meio-irmão, Leon Hendrix,
irmão mais novo de Jimi, que foi deixado de fora do testamento de
seu pai, registrado em 1997. Leon insistiu e conseguiu na justiça
sua participação no espólio.
Na
última década, à frente da Experience Hendrix, Janie contratou o
engenheiro original de Jimi, Eddie Kramer, e a empresa iniciou um
extenso programa de relançamentos, incluindo edições totalmente
remasterizadas dos álbuns de estúdio e CDs de compilações de
faixas remixadas e remasterizadas, entre eles os “pacotes”
surpreendentes que têm surgido em novos lançamentos desde 2010.
Nenhum
projeto de cinema, entretanto, foi autorizado a abordar a figura de
Hendrix. No máximo, uma ou outra canção foi negociada para fazer
parte de trilhas sonoras. Agora, resta saber a qualidade do que está
por vir de música com “Jimi: All Is by My Side",
o filme de John Ridley com Andre 3000 no lugar de Hendrix. E
também que surpresas o futuro reserva para os fãs das performances
inspiradas e explosivas de mister Hendrix, artista raro, daqueles que
marcaram época e que mantêm acesa, décadas depois de sua morte, a
mesma sedução de corações e mentes, enquanto segue sem freios,
nos trilhos da história, a locomotiva da alegoria libertária
traçada por Walter Benjamin.