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20 de janeiro de 2012

O mundo segundo Tom Jobim






 Música é o silêncio que existe entre 

as notas, como disse algum filósofo. 

A linguagem musical me basta. 


– Tom Jobim (1927-1994).   



Tem algo de estranho e de extremamente familiar em “A Música segundo Tom Jobim”. Não é um documentário no sentido tradicional, com entrevistas, narração em off, texto na tela. Na verdade, não há nenhum texto, nenhuma entrevista, nenhuma narração. Parece mais um show, ou antes um concerto: somente a beleza das canções de Tom com ele mesmo e com dezenas de grandes intérpretes do Brasil e de outros países. Um detalhe que faz toda a diferença para embalar as melhores lembranças dos admiradores de Tom e da boa música: os créditos identificando canções, intérpretes, datas e outras referências só aparecem no final do filme...

Encontrei o diretor Nelson Pereira dos Santos após a sessão especial para convidados em Belo Horizonte, no Diamond Mall. Foi uma breve entrevista, que por sorte continuou na manhã seguinte, pelo telefone, com o cineasta a caminho do aeroporto. Começo a conversa comentando sobre a estranheza do formato do documentário e pergunto qual foi o modelo, se há outro filme que segue esta mesma estrutura narrativa.

Não verdade não há outro filme assim. Acho que inventamos um novo modelo que não havia sido realizado antes”, ele diz, bem-humorado e feliz com a recepção emocionada da plateia de convidados que incluía imprensa, músicos e a família de Tom – sua irmã Helena, que mora há alguns anos em Belo Horizonte, e os netos, entre eles Dora Jobim, que dividiu com Nelson a direção do filme. “Mas não foi uma invenção premeditada”, alerta o cineasta, realizador de “Rio, 40 Graus” (1955), “Vidas Secas” (1963), “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1971), Memórias do Cárcere” (1984) e outros clássicos de primeira linha do cinema no Brasil. 






Durante nossas tentativas de encontrar uma linguagem original para apresentar este filme, nos trabalhos de produção e no processo de edição, este novo formato foi se impondo", explica o diretor. "Chegamos a produzir uma narração em off, depois descartamos e começamos a gravar depoimentos do Chico Buarque, que seriam uma forma de apresentar cada uma das cerca de 40 canções selecionadas. Mas também descartamos quando percebemos que cada canção falava por si só e tudo ficou mais espontâneo".

Nelson Pereira dos Santos recorda que foram muitas tentativas antes de encontrar o caminho para que o documentário apresentasse sua linguagem original. "Tentamos várias opções para a narração. Todas foram descartadas porque soavam repetitivas. Até que veio o formato definitivo, sem nenhuma narração e nenhuma legenda, com maior espaço para a música e as imagens em fusões e sobreposições. Funciona até como um aspecto lúdico, porque o público pode tentar descobrir quem canta, qual é a canção. Como você viu, somente ao final do filme temos a lista de créditos que identifica cada imagem de arquivo”, explica o diretor, que também anuncia para o próximo ano um outro documentário sobre Tom Jobim, agora no formato tradicional.

Nelson destaca que o segundo filme, na verdade, ficou pronto antes deste “A Música Segundo Tom Jobim”. “O título do outro filme sobre Tom Jobim é 'A Luz do Tom' e ele foi feito primeiro. É um projeto meu e do Marcos Altberg e tem como foco três mulheres da maior importância na vida e na música do Tom. O outro documentário reúne os depoimentos das três, cada uma em seu espaço. São elas a Helena Jobim, irmã do Tom e autora de uma biografia sobre ele, mais a Thereza de Otero Hermanny, primeira namorada do Tom, primeira esposa e mãe do Paulo Jobim. E também a última esposa, a Ana Lontra Jobim, que acompanhou o Tom nos discos e nas turnês com a Banda Nova. Este segundo projeto vai estrear no início do próximo ano, assim que conseguirmos lugar na agenda dos blockbusters que dominam a programação dos cinemas brasileiros”.










Pergunto por qual motivo “A Música Segundo Tom Jobim” foi lançado antes, se foi feito depois de “A Luz do Tom”. Nelson explica que preferiu lançar o filme musical primeiro. “O musical tem mais apelo de público, porque todo mundo no mundo inteiro conhece as músicas do Tom e não tem como não se encantar. Este primeiro documentário, com as canções maravilhosas do Tom, vai funcionar também como uma espécie de campanha de divulgação para o segundo filme”, ele diz.

Pergunto também sobre a ausência mais sensível neste “A Música Segundo Tom Jobim”: João Gilberto, o principal nome da Bossa Nova e para muitos o intérprete mais importante de todos para as canções de Tom. “Isso foi um problema. Mas, na verdade, João Gilberto aparece logo nas primeiras cenas do filme, quando apresentamos os primeiros passos da Bossa Nova. João aparece em segundo plano, tocando violão enquanto Elizeth Cardoso canta. Também aparece na imagem da capa do disco 'Chega de Saudade' e em uma fotografia de um texto do próprio Tom sobre ele".

Segundo Nelson, o impedimento de uso das imagens de João Gilberto foi devido a uma questão de direitos autorais. "Todo o material disponível com imagens do João Gilberto interpretando canções do Tom Jobim está comprometido com outro filme, também um documentário, que o próprio João está produzindo e que também deve ser lançado em breve. Queria muito ter incluído as imagens do João Gilberto cantando algum dos clássicos que fizeram a história da Bossa Nova, mas infelizmente não foi possível”, confessa o cineasta.












O mundo segundo Tom Jobim: no alto,
Tom Jobim e Vinicius de Morais
em 1960, em visita a Brasília, no córrego
que inspirou a canção "Água de beber".
Acima, João Gilberto e Tom Jobim, amigos
desde o final da década de 1950; e o encontro
de um sexteto invejável nos primórdios da
Bossa Novafotografado em Nova York,
em 1962, na época do célebre concerto no
Carnegie Hall: Stan Getz, Milton Banana,
Tom Jobim, Creed Taylor e o casal
João Gilberto e Astrud Gilberto.

Abaixo, Astrud e Tom no estúdio, em 1964,
em Nova York, nas gravações de um álbum
célebre, Getz/Gilberto, que reuniu Stan Getz,
João Gilberto, Astrud e Tom, para muitos o
álbum que popularizou a Bossa Nova no mundo;
o reencontro entre João Gilberto e Tom Jobim,
depois de muitos anos de desentendimentos, no
palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
em um show histórico realizado em
dezembro de 1992. Também abaixo,
Tom com Sérgio Mendes em passeio
pelas ruas de Nova York, também em 1962;
Tom com Dorival Caymmi fotografados
no Rio de Janeiro, em 1964. Algumas das
fotografias desta postagem aparecem na
abertura e nos créditos finais do filme de
Nelson Pereira dos Santos














 



Depois da justificativa do diretor sobre João Gilberto, pergunto sobre a outra ausência também marcante do documentário: a falta de Astrud Gilberto. Por que não há nenhuma sequência no filme com a interpretação suave e marcante de Astrud, a primeira esposa de João Gilberto e primeira intérprete das canções de Tom Jobim nas versões em inglês, no mercado internacional, ainda no começo da década de 1960?

Ah, Astrud, Astrud... Foi outro grande problema, porque há muito pouco material disponível com imagens dela cantando e a negociação dos direitos autorais acabou não acontecendo a tempo. Não foi possível, ao contrário de todos os outros que aparecem no filme, com as negociações dos direitos que foram muito mais tranquilas, incluindo Elis Regina e todos os brasileiros e aqueles grandes nomes do jazz e da música internacional, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn, Errol Garner, Oscar Petterson, Judy Garland, Henri Salvador, Sammy Davis Jr. e todos os outros", explica. Segundo Nelson, todos os herdeiros cederam os direitos das imagens, sem fazer nenhuma grande exigência.













































A partir do alto, algumas das imagens que
surgem intercaladas às canções em cenas
do documentário A Música Segundo
Tom Jobim: Tom em Ipanema, na
década de 1970, e em encontros com
Chico BuarqueMilton Nascimento,
Vinicius de Moraes, Elis Regina,
Frank Sinatra. Acima, Dora Jobim,
neta de Tom, e Nelson Pereira dos Santos
no lançamento do filme no Rio de Janeiro.

Abaixo, Pixinguinha ao piano e Tom Jobim
na flauta, fotografados na visita que Pixinguinha
fez a Tom em 1971, na casa da Rua Codajás,
no Leblon, Rio de Janeiro; Tom no telhado da
casa da Rua Codajás, estudando flauta, em
1970, fotografado por Alexandre Cavalcanti;
e Tom com o maestro e compositor argentino
Astor Piazzolla, com Chico Buarque e
Caetano Veloso em 1976, nos bastidores do
Teatro Fênix, durante as gravações do
programa de TV Chico & Caetano
















Para concluir a entrevista, pergunto qual é o filme brasileiro preferido na agenda do cineasta. "Muitos", foi a resposta, entre sorrisos, depois de uma pequena pausa. Também pergunto sobre sua preferida entre todas as canções que têm a marca de Tom Jobim. Ele esboça uma gargalhada, faz uma breve pausa e diz que são todas. “Todas são lindas, cada uma mais que a outra. Mas na verdade o que acontece comigo acho que acontece com todo mundo, pois cada dia tenho uma preferida. Ou melhor, depende do dia, depende da hora, depende do estado de espírito. Mas são todas lindas. Não há motivo para escolher apenas uma delas”.

Sobre seus próximos projetos no cinema, depois de ter dedicado os últimos anos ao mergulho em profundidade na música e na Bossa Nova, através dos dois documentários sobre Tom Jobim, Nelson diz que já está trabalhando há algum tempo em um roteiro sobre outro brasileiro por certo fundamental: seu próximo filme será dedicado ao imperador Dom Pedro 2°.

Para este próximo projeto estamos ainda naquela fase tortuosa da captação de recursos", explica o diretor. "Mas está certo que será um filme sobre Dom Pedro 2°. O que pretendo é que também seja um filme diferente, que possa investir em questões de linguagem e acrescentar algo à memória que o brasileiro tem sobre nosso último imperador. O que já decidi é que será um filme que vai misturar o formato de documentário com a recriação de uma ou outra cena com atores, reconstituindo alguns aspectos daquela época, na segunda metade do século 19".












O mundo segundo Tom Jobim: no alto,

Nelson Pereira dos Santos no Rio de

Janeiro, durante as filmagens do segundo

documentário que realiza sobre Tom Jobim,

A Luz do Tom; acima, Tom Jobim em 1987,

na floresta da Tijuca, Rio de Janeiro,

fotografado para o encarte de Passarim,

seu penúltimo álbum de estúdio; e

Oscar NiemeyerVinicius de Moraes e sua

esposa Lila Bôscoli com Tom Jobimem 1956,

nos bastidores da estreia do espetáculo teatral

Orfeu da Conceiçãodepois adaptado para o cinema

como Orfeu Negro (também chamado de

Orfeu do Carnaval), filme de 1959 do

cineasta francês Marcel Camus.


Abaixo, Tom Jobim com Miúcha, que

dividiu com Nelson Pereira dos Santos

a autoria do roteiro do documentário,

fotografados no palco do Canecão, no

Rio de Janeiro, em 1977. Também

abaixo, mais sete imagens de Tom:

1) com Gal Costa na sala de concertos

Avery Fisher Hall, em Nova York, em 1987;

2) ao piano, no Rio de Janeiro, 1956;

3) com Elis Regina na sessão de

gravação de Águas de Março, em

1972; 4) o cartaz original do filme;

 5) Tom ao piano na Pedra do Arpoador,

Praia de Ipanema, Rio de Janeiro,

fotografado em 1984 por Orlando Brito;

6) uma das últimas imagens de Tom Jobim,

na mesa de um bar na Cobal do Leblon,

em 18 de novembro de 1994, em fotografia

de Leo Aversa (no dia seguinte, Tom

viajou para Nova York, onde morreria

poucos dias depois, em 8 de dezembro

de 1994); e 7) Tom no palco, no

Rio de Janeiro, durante seu

último show, em 1994








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"Posso dizer que este próximo trabalho será um filme com muito de ficção, mas baseado no trabalho de um historiador importante, o mineiro José Murilo de Carvalho, que em 2007 publicou uma biografia maravilhosa do imperador", explica o diretor. "É um projeto para os próximos meses ou para o próximo ano, porque por enquanto ainda estou com as atenções voltadas para o Tom Jobim e para o lançamento aqui e no exterior dos dois documentários. Quero acompanhar os filmes e a recepção que eles vão alcançar”, completa.

Depois da entrevista, ainda em estado de graça pela beleza do filme e das canções e pela sabedoria do cinema de Nelson Pereira dos Santos, fico pensando nas imagens e na música que, a partir do Rio de Janeiro, Tom Jobim compôs para o mundo. Uma frase muito conhecida do próprio Tom, que encerra o documentário – na verdade, a única frase, escrita ou falada, que o filme apresenta – é emblemática: “A linguagem musical me basta”.

Frase exemplar, precisa, resumo do existido, poética e extremamente familiar, que traduz à perfeição um documentário inspirado e inspirador, “inventado” a partir dos encadeamentos da seleção de canções do maestro da Bossa Nova. O filme e a frase final me fazem lembrar de outras frases célebres de Tom Jobim, quase sempre irônicas e zombeteiras, bem no espírito que o compositor fazia transparecer nas entrevistas que os programas de TV sempre reprisam. Escolho apenas duas, para concluir.

A primeira é aquela de quando lhe perguntaram o que ele tinha a dizer sobre o fato de “Garota de Ipanema” ser a segunda canção mais gravada do mundo, só perdendo para “Yesterday”, dos Beatles, e Tom respondeu: “Ah, aí não vale. Eles eram quatro e já compunham direto em inglês”. A segunda tem maior complexidade, e eleva a ironia a uma interface mais amarga, em parentesco talvez com algo de trágico ou de profundamente melancólico, quando se observa uma linha do tempo da trajetória acidentada do Brasil e dos brasileiros: Tom declarou, certa vez, que o Brasil, definitivamente, não é para principiantes



por José Antônio Orlando. 



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O mundo segundo Tom Jobim. In: Blog Semióticas, 20 de janeiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/musica-segundo-tom-jobim.html (acessado em .../.../…).


Para comprar o DVD com "A Música Segundo Tom Jobim"






















12 de agosto de 2011

Canto para o mundo






As gravações de João Gilberto com Astrud Gilberto,
com ou sem o Stan Getz, fazem a gente pensar que
a música é o silêncio que existe entre as notas.

Tom Jobim.   




Quase cinco décadas separam as trajetórias de Céu e de Astrud Gilberto, duas cantoras e compositoras brasileiras que têm semelhanças no estilo e voz suave. Céu, desde o início de carreira, lançou canções e álbuns que conquistaram fãs no Brasil e no exterior, enquanto o prestígio de Astrud Gilberto no exterior é indiscutível, há mais de meio século, desde o começo da década de 1960. Astrud é presença obrigatória em todas as listas das grandes cantoras do Jazz, mas no Brasil, por incrível que pareça, ela continua restrita a públicos específicos, cultuada principalmente pelos ouvintes de repertório mais sofisticado, apreciadores da Bossa Nova. 

Afastada dos palcos e da mídia desde o final da década de 1990, Astrud Gilberto foi homenageada com uma raridade: o primeiro DVD da cantora e compositora chegou às lojas no Brasil e em outros países com décadas de atraso. "Astrud Gilberto Ao Vivo no Lugano Festival Jazz" foi gravado em 1985 no célebre festival da Suíça, que atrai todo ano, no mês de julho, uma multidão à centenária Piazza della Riforma para ouvir, ao ar livre, grandes nomes da música internacional e celebrar o verão.

Os fãs de Astrud Gilberto vão por certo ter uma grata surpresa com as imagens da musa em cena, sempre elegante e meio tímida, fazendo mudanças sutis no fraseado de canções conhecidas, subtraindo compassos, acelerando ou desacelerando o andamento da música, com a harmonia de seu tom inconfundível. Para a grande maioria do público, será a primeira vez que se vê Astrud cantando em um show na íntegra. As imagens de suas performances ao vivo são raríssimas, mesmo no YouTube e em outras plataformas da Internet. No Brasil, ela se apresentou uma única vez, em 1965, em São Paulo. Desde então, nunca mais se viu nem se ouviu ao vivo, por aqui, seu jeito suave de cantar, um estilo que sempre lembra o canto que João Gilberto consagrou e que virou marca registrada da Bossa Nova.

No show em Lugano, Astrud Gilberto e banda apresentam clássicos que ela própria lançou, desde a década de 1960, mas também algumas surpresas. Gravado pela TV da Suíça, o show acontece à noite, com a praça completamente lotada. Astrud entra em cena com uma versão personalíssima de "Águas de Março", com afinação impecável e fraseado bastante diferente da versão gravada por Tom Jobim e Elis Regina em 1970. Ela agradece os aplausos falando em italiano e em português e emenda com duas inéditas, "Kumbia" e "Milky Way", composições do então estreante Paulo Jobim, filho de Tom.









Na sequência vem "Dindi", comovente e nostálgica. Astrud tropeça na letra, faz uma pausa e retoma os versos perfeitos de Tom Jobim, sempre elegante. "A Rã", de Caetano Veloso, ganha versão instrumental com "scratches" cheios de "borogodó, berém, berenguedém..." que parecem vir direto do repertório de Carmen Miranda. "Canto de Ossanha" (Vinicius de Moraes) tem uma versão mais contida, com trechos em inglês e versos sussurrados ("pergunte ao seu seu orixá, o amor só é bom se doer...").



Parceria Getz & Gilberto



"Telefone" (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), do cancioneiro de Nara Leão, é apresentada em inglês no show em Lugano, seguida de "Girl From Ipanema", clássico dos clássicos de Tom Jobim e Vinicius, que levou Astrud para as paradas de sucesso do mundo inteiro em 1964 - ano do antológico disco "Getz/Gilberto", no qual ela e o então marido João Gilberto dividiram os vocais em parceria com o saxofonista Stan Getz. O repertório de "Getz/Gilberto" também foi a base para o célebre show de João Gilberto, Astrud, Tom Jobim, Milton Banana e companhia no ano de 1962 no Carnegie Hall, em Nova York, evento que consagrou a Bossa Nova fora do Brasil.









Além da presença mítica de Astrud Gilberto no palco, comandando o show, a banda tem belos momentos e performance solo dos músicos que levam a muitos aplausos do público. Acompanham os vocais impecáveis de Astrud um time de bambas: David Saks no trombone, Steve Harrick ao piano, bateria de Duduca Fonseca e, no contrabaixo, a presença rara de Marcelo Gilberto, filho de João Gilberto e Astrud.

O show em Lugano termina com uma versão acelerada para outro clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, composição feita para o espetáculo "Orfeu da Conceição", que estreou no teatro em 1956 e que no ano seguinte ganharia uma versão nos cinemas, como "Orfeu Negro": "A Felicidade" ("tristeza não tem fim, felicidade sim..."). Na sequência, uma versão alto astral de Aloysio de Oliveira para "In the Mood", clássico de Glenn Miller na era das "big bands", na década de 1940 - que na versão Bossa Nova virou "Edmundo" e havia sido gravada originalmente por Elza Soares em 1967.






       






Astrud Evangelina Weinert, que nasceu
em Salvador, em 1940, adotou o nome
Astrud Gilberto em 1959, depois do
casamento com João Gilberto. No alto,
Astrud com João Gilberto na praia, no
Rio de Janeiro, em 1960, em fotografia para 
o álbum de João O amor, o sorriso e a flor.

Acima, Astrud em uma apresentação na
TV da Alemanha, em 1970; em fotografia no
estúdio em Amsterdam, Holanda, em 1966;
na capa do álbum lançado em 1964
The Girl from Bossa Nova (The Astrud
Gilberto Album); e com Tom Jobim em
Nova York, em dois momentos: em 1964
e em 1984. Abaixo, o casal recém-casado
Astrud Gilberto e João Gilberto no
Rio de Janeiro, no apartamento em que
moravam; no palco, em 1960; e em
fotografia no estúdio em 1963





















Geração de seguidores



Presente sofisticado para os mais exigentes, o DVD de Astrud Gilberto ao vivo em Lugano tem apenas uma ressalva: a pobreza franciscana do lançamento, que não tem encarte, nem ficha técnica, nem identificação dos músicos da banda ou dos compositores das 11 canções. Pela raridade que representa, merecia melhor acabamento, mas ainda assim é imperdível.

A importância histórica do canto de Astrud Gilberto não tem comparação, mas é impossível não associá-la ao marido João Gilberto, apesar do casamento ter durado poucos anos e das trajetórias de Astrud e de João terem seguido por caminhos diferentes. No mundo inteiro ela é a voz feminina da Bossa Nova, porque foi a primeira cantora do novo estilo musical e sua referência desde o início. Entre os marcos históricos de Astrud está seu lugar como primeira mulher a ganhar um prestigiado prêmio Grammy como melhor gravação do ano, em 1965, pela primeira gravação de "Garota de Ipanema" (do álbum "Getz/Gilberto"), concorrendo com Beatles e Barbra Streisand. Não é pouco. 


Sempre presente nas listas das grandes cantoras de jazz de todos os tempos - ao lado de divas do Olimpo como Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Nina Simone - as gravações de Astrud Gilberto mantêm seu impacto e formaram gerações de seguidores, como destacam em Belo Horizonte especialistas e entusiastas da Bossa Nova como Bob Tostes e Pacífico Mascarenhas.






Acima, Astrud Gilberto e o saxofonista
Stan Getz em 1964. Abaixo, Astrud com
João Gilberto e Marcelo Gilberto, filho
do casal. Após o divórcio, João voltou
para o Brasil e depois seguiu em turnês
internacionais, enquanto Astrud continuou
morando em Nova York com o filho e 
conduzindo a carreira em novas gravações 
e apresentações nos EUA e em países da
Europa. João Gilberto se casaria com a
cantora Miúcha, irmã de Chico Buarque,
com quem teve a filha Bebel Gilberto.

Também abaixo, João Gilberto e Miúcha
em Nova York, em meados dos anos 1960;
João Gilberto com os filhos Bebel e Marcelo;
e Astrud Gilberto em dois momentos: em 1970,
passeando pelas ruas de Nova York; e em
1985, no palco do Festival de Lugano





.








"Ela é inigualável, simplesmente inigualável", aponta o músico e radialista Bob Tostes, pesquisador da música brasileira e da Bossa Nova em particular. "Astrud Gilberto criou um estilo e causou impacto nas cantoras de sua geração e em muitas das jovens cantoras que vieram depois. São muitas as grandes cantoras que buscam a suavidade e a interpretação frágil e contida que Astrud trouxe para o jazz e para a música brasileira e para a música internacional. E muitas cantoras e cantores que fazem sucesso no mundo inteiro reconhecem em Astrud a principal musa inspiradora", completa.

Para o compositor Pacífico Mascarenhas, Astrud Gilberto é um nome tão essencial para a Bossa Nova como o próprio João Gilberto. "Astrud viveu um certo tempo em BH, no final dos anos 1950, na casa de uma tia dela que morava no Bairro Santo Antônio. Eu apresentei um ao outro e foi aqui em BH que ela e João Gilberto começaram a namorar. Como ela tinha fluência no inglês, foi quem ajudou a treinar a pronúncia do João e sem dúvida nenhuma ajudou muito a abrir as portas para a Bossa Nova no exterior", recorda Pacífico, autor da canção "Pouca Duração", que foi gravada por Astrud na década de 1960. "Concordo com o Bob Tostes. Inigualável é a melhor palavra para descrever a presença e o estilo de Astrud Gilberto", conclui.










Durante quatro décadas, do início dos anos 1960 até o final dos anos 1990, Astrud Gilberto fez turnês por vários países e se apresentou nos principais festivais de Jazz. Uma de suas últimas gravações em estúdio foi em 1996, ao lado de George Michael, como contribuição para o Red Hot + Rio, do projeto beneficente Red Hot AIDS, que teve o produtor brasileiro Béco Dranoff entre os organizadores. Com George Michael, que na época estava no auge do sucesso e da popularidade, Astrud gravou a clássica "Desafinado". Desde então, recebeu prêmios e homenagens em vários países, mas não no Brasil. Também esteve na trilha sonora de muitos filmes e muitas séries de sucesso, além de canções como tema de novelas na TV do Brasil, e teve várias de suas gravações revisitadas pela música eletrônica, em remixes feitos pelos DJs mais celebrados. 









Acima e abaixo, Astrud Gilberto com Stan Getz
em cena do filme Get yourself a college girl,
comédia musical dirigida por Sidney Miller e
lançada nos cinemas em 1964. Também acima,
uma das faixas da coletânea "Verve Remixed",
que reuniu grandes sucessos de cantoras de
Jazz do acervo da gravadora Verve em
versões remixadas por convidados;
a gravação original de Astrud de 1965 para
"Who Needs Forever" teve remix do
Thievery Corporation em 2002.

Abaixo, Astrud Gilberto com Stan Getz e
Astrud no estúdio em Amsterdam, Holanda,
em 1966, em fotografia de Nico van der Stam;
e com Stan Getz na capa do álbum de 1969
Astrud Gilberto golden japanese album,
coletânea de gravações ao vivo lançada
somente no mercado japonês pela MGM 











Depois de Astrud, Céu



A lista de cantoras brasileiras que ganharam o mundo não é tão extensa. Começa com Carmen Miranda, no final da década de 1930, passa por Astrud Gilberto a partir da década de 1960, inclui o sucesso de Elis Regina no Festival de Montreux e algumas outras que investiram no filão do jazz e da Bossa Nova, principalmente no mercado da Europa e do Japão. Agora a lista ganhou mais um destaque: Céu, nome artístico de Maria do Céu Whitaker Poças, que despontou como jovem promessa da MPB em 2002, aos 22 anos, depois de começar na música aos 15 anos, quando chegou a gravar vocais para jingles publicitários.

Seu disco de estreia, batizado de "Céu", lançado em 2005, foi uma aposta dos selos Urban Jungle e Ambulante Discos (do produtor Beto Villares) que teve a sorte de conseguir distribuição no exterior pela Warner Music. Bem recebido pela crítica lá fora, que num primeiro momento comparou Céu a Marisa Monte e a Bebel Gilberto, brasileiras que também têm público fiel em vários países, o CD de estreia transformou a cantora e compositora Céu em um surpreendente fenômeno de vendas também fora do Brasil.










Nos Estados Unidos, o disco de estreia da cantora e compositora alcançou a marca invejável de 30 mil discos vendidos em duas semanas, chegando à primeira posição nos rankings de "world music" - a mais alta posição conquistada por uma cantora brasileira no mercado norte-americano desde a gravação original de "Garota de Ipanema" por Astrud Gilberto, em 1963. O disco de estreia ainda vendeu mais de 25 mil cópias em países como França e Holanda e garantiu a Céu uma indicação ao Grammy Latino, em 2006, na categoria de artista revelação. Naquele ano, o prêmio foi para a banda Calle 13, de Porto Rico.

O segundo disco, "Vagarosa", lançado em 2009, cinco anos após o álbum de estreia, segue a mesma trilha do sucesso que aproxima Céu de artistas contemporâneos difíceis de classificar pelos gêneros e categorias tradicionais. Na trilha de nomes como o francês Manu Chao, de quem ela se diz fã e reconhece como uma das suas fontes de influência, Céu vem investindo radicalmente na pesquisa de novas possibilidades e sonoridades, com influências generosas de eletrônica, mas também de samba, frevo, tango, salsa, jazz, blues, folk, hip hop, afrobeat, ska, dance hall e, especialmente, reggae.








Menina Rosa



"Vagarosa" reúne um total de 12 surpreendentes composições próprias, inéditas, e uma única releitura - um rearranjo psicodélico para "Menina Rosa", clássico de Jorge Ben Jor que soa irreconhecível na nova versão. Produzido pela própria Céu em parcerias inspiradas com Beto Vilares, Gustavo Lenza e Gui Amabis, "Vagarosa" é um disco corajoso. Não faz concessões, na contracorrente dos repertórios "versáteis" e pretensamente moldados sob medida para o sucesso tão fácil como efêmero. Definitivamente, é daqueles discos para ouvir com atenção e gostar muito ou não gostar.

Destaque para o auxílio luxuoso de convidados especiais do porte de Luiz Melodia (no autêntico samba recriado por Céu em "Vira-Lata"), além dos vocais sussurrantes e impecáveis de Thalma de Freitas e Anelis Assumpção - que fazem lembrar Rita Marley e outras vocalistas dos mestres da Jamaica em "Bubuia". Marcelo Jeneci também marca presença em "Sonâmbulo", assim como BNegão e Curumin no reggae "Cordão da Insônia", uma das melhores surpresas de um disco que merece destaque entre os principais lançamentos da última temporada.







"Vagarosa" começa com uma pequena porém emblemática vinheta - o prelúdio em samba "Sobre o Amor e Seu Trabalho Silencioso", com seu belo fraseado que remete aos bambas da velha guarda do samba, mas tem letra e música originais de Céu. Tocada apenas ao cavaquinho (por Rodrigo Campos), tira partido da poesia do primeiro verso - "vai pegar feito bocejo/ o que só o sentido vê". É a primeira de uma série de metáforas que reforçam o clima lento, sossegado e sofisticado do CD.

Na sequência, a irresistível "Cangote" ("Fiz minha casa no teu cangote/ não há neste mundo quem me bote/ pra sair daqui...) instaura os ares modernos que as faixas seguintes vão estender até extremos da harmonia. "Cangote" traz o veterano baterista Gigante Brasil em seu show particular e Beto Vilares na guitarra, baixo e "scratches".







Inflexível e hipnótica



Por "Vagarosa" ainda desfilam, entre muitos outros, o talento de Fernando Catatau (em "Espaçonave", que inclui sons da floresta amazônica gravados por Guilherme Ayrosa), Los Sebozos Postiços (formados por Lucio Maia, Pupilo, Dengue, Bactéria, Gustavo da Lua e Jorge du Peixe, egressos do Mundo Livre S/A). Outra presença importante é Chiquinho, mentor da banda Mombojó, em faixas como "Comadi", "Espaçonave" e "Cordão da Insônia".

Eleito entre os melhores discos do ano de seu lançamento (2009) pela maior parte dos críticos musicais da imprensa brasileira, "Vagarosa" também uma recepção incomum e elogios de veículos influentes da imprensa estrangeira, incluindo o norte-americano The New York Times e os ingleses BBC, The Guardian e The Independent. Pela BBC, Colin Irwin definiu Céu como "uma cantora sublime", destacando para o público do Reino Unido que era impossível falar de Céu ou ouvir suas canções sem invocar as semelhanças e aproximações dela com Astrud Gilberto.








Entre tantos convidados ilustres, Céu consegue se impor como o melhor destaque. Com sua voz pequena e sussurrada, que por vezes lembra a jovem Gal dos anos 1960, por vezes soando inflexível e hipnótica, por outras sedutora e caliente, a jovem cantora e compositor equilibra timbres e músicos com raro talento e carisma.

Ao pegar carona na eletrônica e na nova onda de "scratches" e remixes, características de suas investidas desde o disco de estreia, Céu em "Vagarosa" deixa para trás os clichês surrados de medalhões da MPB tradicional e renova as possibilidades do samba e da Bossa Nova entre outros gêneros e categorias. E acerta em cheio, alcançando sonoridades que retratam os novos tempos e acrescentam novidade, sem retomar aquela fórmula de tantos outros que apenas repetem referências para oferecer mais do mesmo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Canto para o mundo. In: Blog Semióticas, 12 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/canto-para-o-mundo.html (acessado em .../.../...).



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