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20 de fevereiro de 2016

Umberto Eco e Mafalda







A condição mínima para uma interpretação é substituir um 
signo por outro signo que, sob certo ponto de vista, possa ser 
julgado equivalente – sejam eles pertencentes a um mesmo 
sistema semiótico ou a sistemas semióticos diferentes. 

– Umberto Eco, “O Código do Mundo”      
(Il Codice del Mondo, 1987).        

 

O italiano Umberto Eco (1932-2016), mestre da Semiótica e um dos principais pensadores e escritores de nossa época, morreu na noite de ontem em sua casa em Milão, aos 84 anos. Eu e seus milhares de leitores e admiradores, talvez milhões, espalhados pelos continentes do planeta, sofremos com a notícia, como se perdêssemos alguém muito próximo, um parente, um professor querido. Agora pela manhã recebo o pedido para escrever um artigo sobre ele para um jornal de Belo Horizonte, com a pauta destacando que o artigo deve centrar o comentário em algum aspecto mais popular sobre a obra e não sobre a morte do autor, porque será publicado na edição de amanhã junto com obituários das agências de notícias. Também respondi há pouco a uma entrevista por telefone, para o jornal "Correio Braziliense", porque por coincidência o mesmo repórter Rodrigo Craveiro havia me entrevistado em 2015 depois que o mestre Umberto Eco passou a me seguir no Twitter e escreveu em exatos 140 caracteres um elogio para este meu blog Semióticas. Do jornal de Brasília também veio a encomenda de um artigo sobre algum aspecto específico da obra complexa e enciclopédica do mestre.
     
Pelos obituários e reportagens que encontro na Internet nos sites e portais da imprensa internacional, muitos artigos destacam a trajetória de Eco como professor, como teórico dos mais celebrados nos diversos campos do saber e sua obra literária, os sete romances que publicou e que bateram recordes de vendas em diversos países e línguas. Um aspecto prosaico da extensa trajetória do mestre, contudo, não foi destacado nas reportagens que consultei, motivo pelo qual foi o meu tema escolhido para redigir este breve artigo sob encomenda: Eco também teve papel pioneiro ao destacar o valor e a importância da Mafalda, a garotinha contestadora inventada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino. Com o crescente sucesso de público da pequena Mafalda em seu país de origem, desde 1964, as tirinhas não demoraram a ser reunidas em livros que logo cruzaram as fronteiras da Argentina e passaram a ser conhecidos no Brasil e em outros países da América Latina e também de outros continentes. Na Europa, Mafalda desembarcou primeiro na Itália, por influência direta de Umberto Eco.





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Na Italía, os direitos de publicação da Mafalda foram comprados pela Casa Editrice Valentino Bompiani, que também editava os livros de Eco desde 1962, quando foi publicado seu primeiro grande sucesso editoral, “A Obra Aberta” – o quarto livro que publicou, depois de “O Problema Estético em Santo Tomás de Aquino” (“Il Problema Estetico in San Tommaso”, Torino: Edizioni di Filosofia, 1956), “Filosofia na Liberdade” (“Filosofia in Libertà”, Torino: Edizioni Taylor, 1958) e “Arte e Beleza na Estética Medieval” (“Sviluppo dell'Estetica Medievale”, Milano: Edizioni Marzorati, 1959). Importante dizer que estes livros da trajetória inicial de Eco tornaram-se obras de referência desde a primeira edição, assim como aconteceria com dezenas de livros que ele publicou nas décadas seguintes.

Eco permaneceu publicando seus livros pela Bompiani até 2015, quando foi lançado seu sétimo e último romance, “Número Zero” – uma crítica feroz ao mau jornalismo e à manipulação de notícias apresentada através de um jornal fictício criado para mentir, distorcer, caluniar e chantagear autoridades e pessoas comuns. Na editora Bompiani, Eco publicou cerca de 50 livros de ensaios e estudos teóricos que são considerados obras de referência, três livros de literatura infanto-juvenil e seus sete romances. Contudo, depois da publicação de “Número Zero”, a Bompiani foi comprada pelo grupo Mondadori, controlado pela família Berlusconi. Em protesto, Eco e outros grandes nomes da literatura italiana tomaram a decisão de romper com a Bompiani e criaram uma nova editora, a La Nave di Teseo, batizada em homenagem ao mítico rei de Atenas na Antiguidade.

O primeiro livro da nova editora será também a primeira publicação póstuma de Eco:
Pape Satàn Aleppe”, que pode ser traduzido como o Papa é adversário de Satanás com o subtítulo Crônicas de uma sociedade líquida será lançado nos próximos dias, na Itália, reunindo uma coletânea de artigos que Eco publicou na revista semanal italiana L'Espresso. O enigmático título do novo livro retoma as palavras que abrem o primeiro verso do Canto VII do Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, poeta da Idade Média e forte referência para o autor de O Nome da Rosa”. Pape Satàn Aleppe” tem a maioria dos ensaios e crônicas no tema da política, questão que sempre esteve presente nos escritos de Eco. Um de seus ensaios mais conhecidos aborda o perigo do fascismo, O fascismo eterno”, publicado no Brasil no livro Cinco escritos morais”, lançado em 2002 pela Editora Record.  













Retratos do mestre Umberto Eco:
no alto, em sua casa em Milão, Itália, em
2013, fotografado por Andrea Frazzetta.
Acima, dois momentos com a trombeta que
aprendeu a tocar quando era menino, em
fotografias de 2015, por Oliver Zehner;
aos 22 anos, em 1954, quando defendeu
sua tese sobre Santo Tomás de Aquino
na Universidade de Turim; e na infância,
em Alexandria, Itália, sua cidade natal.

Abaixo, fotografado por Annie Leibovitz
na Universidade de Bologna, em 1980, na
época do lançamento de seu primeiro romance,
O Nome da Rosa; e em 1985, no antigo mosteiro
de Kloster Eberbach, na Alemanha, durante as
filmagens de "O Nome da Rosa", com os atores
F. Murray Abraham, Michael Lonsdale, Sean Connery
e o diretor Jean-Jacques Annaud.

Também abaixo, a capa do primeiro livro póstumo,
intitulado Pape Satàn Aleppe; uma versão traduzida
para o português do Brasil da ilustração produzida
pelo site espanhol Pictoline para as questões do
ensaio célebre de Eco O fascismo eterno; 
e Eco durante a última entrevista, em 19 de
dezembro de 2015, em sua casa, em Milão,
fotografado pelo jornalista português do
"Diário de Notícias", João Céu e Silva, e
pela fotojornalista italiana Giovanna Silva

 

















A primeira edição de Mafalda em livro, no continente europeu, foi publicada na Itália pela Bompiani em 1969 com uma tarja indicando que se tratava de “história em quadrinhos para adultos”. A edição também incluiu um texto de apresentação de Umberto Eco, “Mafalda ou a recusa”, que chamou imediatamente a atenção de pesquisadores acadêmicos para aquela personagem criada por Quino. Não demorou muito para Mafalda também conquistar França, Espanha, Portugal e outros países, ganhando a simpatia de leitores de todas as idades e dos intelectuais ligados aos movimentos sociais e aos partidos políticos de Esquerda. Detalhe da maior importância: nos Estados Unidos e na Inglaterra, terra natal dos Beatles, que Mafalda ama de paixão, ela continua ainda hoje inédita e desconhecida para o grande público.
 
Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara” – destaca Eco no breve ensaio publicado como apresentação às tirinhas reunidas no livro de 1969, “Mafalda, La Contestataria”, comparando Mafalda com o norte-americano Charlie Brown, criação de Charles Schulz (1922-2000), e com a geração de jovens contestadores que marcou a explosiva década de 1960. Mafalda voltaria à pauta de vários outros ensaios e artigos que Eco publicou em jornais, revistas e livros, como objeto direto de análise ou apenas como citação. Mas este primeiro ensaio que ele dedicou à personagem criada por Quino tem o mérito de ter sido uma carta de apresentação da garotinha zangada e inconformista para milhões de leitores – entre os quais eu também estou incluído.








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Estive uma única vez com o mestre Umberto Eco. Foi na década de 1990, durante uma rápida visita do professor da Universidade de Bologna ao Campus da UFMG, em Belo Horizonte. Deveria ter sido uma entrevista, conforme estava marcado previamente com o cerimonial, mas um atraso levou ao cancelamento de vários compromissos do mestre agendados para aquele dia. Restou apenas a alegria de um breve encontro e da conversa muito rápida e emocionada que tive com ele, interrompidos a cada minuto pela intérprete que o acompanhava e pelos assessores do cerimonial, enquanto caminhávamos de um prédio a outro, a caminho do auditório da reitoria, onde Eco apresentaria uma conferência.

Lembro que fiquei até altas horas, na noite anterior, fazendo e refazendo o roteiro para a entrevista, folheando livros e ensaiando repetidas vezes a pronúncia de algumas frases com meu italiano mínimo e instrumental. A decepção pelo imprevisto do cancelamento da entrevista foi logo substituída pela expectativa da conversa informal na curta caminhada, com o mestre cordial e bem-humorado elogiando a música e a literatura do Brasil – especialmente os clássicos da Bossa Nova e, por recomendação de seus amigos brasileiros de longa data Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, os escritos de Oswald de Andrade, que naquela época ele estava descobrindo, “felicíssimo”, segundo comentou.

Ele também fez elogios ao português falado pelos brasileiros, em comparação ao de Portugal, e à força criativa da cultura popular que havia encontrado de norte a sul do Brasil, nas várias viagens que fez, a passeio, e nas cidades em que esteve para compromissos acadêmicos e palestras. Já estávamos no auditório da reitoria quando arrisquei uma última pergunta sobre as suas incursões nos rituais do Candomblé em Salvador, na Bahia, que o deixaram encantado nas visitas anteriores ao Brasil, mas não houve tempo para a resposta. Em homenagem a Umberto Eco, mestre dos mestres, transcrevo a seguir o ensaio que ele dedicou a Mafalda em 1969. Fiz a tradução a partir do original em italiano que foi publicado no livro “Mafalda, La Contestataria”. Eis, a seguir, a íntegra do ensaio de Eco sobre Mafalda. 
 

 


 

Mafalda ou a recusa



Mafalda não é apenas uma nova personagem dos quadrinhos: é a personagem dos anos 1960. Se para a definir se utilizou o adjetivo “contestadora” não foi para a alinhar a qualquer preço na moda do anti-conformismo. Mafalda é, de fato, zangada – e recusa o mundo tal como ele é.

Para compreender Mafalda é necessário estabelecer um paralelo com outro grande personagem: Charlie Brown. Ele é norte-americano, Mafalda é sul-americana (o seu autor, Quino, é argentino). Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta na qual procura desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade. Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, quer fazer dela integrada e feliz, coisa que Mafalda recusa, afastando todas as tentativas. 











 
Charlie Brown vive no seu universo infantil de onde, rigorosamente, os adultos estão excluídos (apesar de as crianças aspirarem a comportar-se como adultos), enquanto Mafalda vive em contínua contradição com o mundo adulto, que não estima nem respeita, antes pelo contrário, ridiculariza e rejeita, reivindicando o seu direito a permanecer uma menina que não quer assumir o mesmo universo adulto dos pais. Charlie Brown leu, evidentemente, os “revisionistas” de Freud e busca uma harmonia perdida. Mafalda leu, provavelmente, o Che Guevara.

Na verdade, Mafalda tem ideias confusas sobre política, não consegue perceber o que se passa na Guerra do Vietnã, não sabe por que existem pobres, desconfia dos governos, desconfia dos chineses. Mas de uma coisa ela tem certeza: não está satisfeita.








Ao redor de Mafalda, há um pequeno grupo de personagens mais “unidimensionais”: Manolito, o menino plenamente integrado num capitalismo de bairro, que tem a certeza absoluta de que, no mundo, o valor essencial é o dinheiro; Filipe, o sonhador tranquilo; Susaninha, a doente de amor maternal, perdida nos seus sonhos pequeno-burgueses. E, depois, os pais de Mafalda, resignados, que aceitaram a rotina diária (com o recurso ao paliativo farmacêutico de algum medicamento) e, além disso, vencidos pelo tremendo destino que fez deles os guardiões da Contestadora...

O universo de Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e evoluída; é também, de um modo geral e em muitos aspectos, um universo latino, e isso faz com que ela surja mais compreensível para nós do que muitos personagens dos quadrinhos norte-americanos. Enfim: Mafalda é, em todas as situações, “um herói do nosso tempo” – e isto não parece uma qualificação exagerada para a pequena personagem de papel e tinta que Quino propõe.








Ninguém nega que histórias em quadrinhos sejam (quando atingem um certo nível de qualidade) questionadoras de hábitos e de costumes – e Mafalda reflete as tendências de uma juventude inquieta que assumem, aqui, o aspecto de uma dissidência infantil, de um esquema psicológico de reação aos meios de comunicação de massa, de uma urticária moral provocada pela lógica dos blocos, de asma intelectual provocada pelo cogumelo atômico. Já que os nossos filhos se vão tornar – por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito que merece um personagem real. (Umberto Eco)



Traduzido e editado por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Umberto Eco e Mafalda. In: Blog Semióticas, 20 de fevereiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/02/umberto-eco-e-mafalda.html (acessado em .../.../…).
























Na biblioteca do Mestre dos Mestres: 
um passeio com Umberto Eco na biblioteca
de sua casa em Milão, Itália, em fotografias de
setembro de 2007 por Leonardo Cendamo






12 de novembro de 2015

Atualidades de Barthes






Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas
que eu vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber
que a escrita não compensa nada, que ela está precisamente ali
onde você não está –– é o começo da escrita.

 ––  Roland Barthes, "Fragmentos   
de um Discurso Amoroso" (1977).     
 
Mais de três décadas depois de sua morte, as homenagens ao centenário de nascimento de Roland Barthes, completado neste dia 12 de novembro de 2015, confirmam sua importância valiosa e inquestionável como um dos principais pensadores de nossa época e um dos nomes mais influentes de sua geração. Barthes – o professor com “p” maiúsculo que postulou uma “Ciência dos Signos” – sempre erudito, sedutor, instigante e inquietante, surge nas mais de 6 mil páginas de sua “Obra Completa” como um autor de difícil classificação e um “sujeito impuro”, na definição dele mesmo. Na falta de um rótulo melhor, ele ainda é, quase sempre, chamado de “crítico” – mas talvez mereça ser nomeado, de forma mais fulgurante, como um grande “escritor”: um escritor disfarçado de pensador.

O escritor Roland Barthes demonstrou que não busca a diferença entre verdade e aparência. Muito pelo contrário. Para ele, tudo no mundo é aparência, tudo é linguagem e superfície: tudo é texto, inclusive a variedade dos aspectos não verbais, o pictórico, o fotográfico, os gestos, os afetos, passíveis de interpretações plurais e complementares – como ele próprio argumentou, desde a década de 1950, em suas abordagens de intérprete original dos códigos da cultura de massa, das instituições literárias, das ideologias e dos diversos sistemas de signos codificados na vida cotidiana.

Se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência literária, lexicológica ou sociológica” – disse Barthes em sua magistral aula inaugural em 1977, no Collège de France, depois transformada em livro – "devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise". A teoria, sutil e original, que emerge dos ensaios de Barthes, com a permanência de sua presença e sua influência na atualidade, é destacada nas entrevistas que fiz, a convite da revista “Em Tese”, da UFMG, com três das professoras da universidade que têm importância fundamental como precursoras dos estudos sobre ele: Angela Senra, Eneida Maria de Souza e Vera Casa Nova (veja, no final deste artigo, os links para a íntegra das entrevistas e para o programa de TV da Rede Minas sobre o centenário de Barthes).




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Atualidades de Roland Barthes: no alto,
Barthes aos 35 anos, em 1950, quando
trabalhou como professor em Alexandria,
no Egito. Acima, Barthes em casa, em seu
escritório de trabalho, em Paris, fotografado em
dois momentos: em 1975, por Sophie Bassouls;
em 1978, por Jerry Bauer. Também acima,
um retrato do escritor em lápis sobre papel
feito por Alan Brooks em 2010 a partir
de uma fotografia de Barthes no escritório
feita por Julian Guindeau para a revista
L'Express na década de 1970 (abaixo).

Também abaixo, Barthes recebe a visita de
Umberto Eco em Paris: o mestre encontra
um dos seus discípulos, fotografados
por Macchi Polymnia em 1970









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Subversivo, sóbrio, elegante



A primeira pergunta que apresento, nas três entrevistas, é sobre o papel e o lugar de Roland Barthes na atualidade. Qual é a melhor definição para Barthes? Escritor, professor, pensador, sociológico, ensaísta, crítico da literatura, da linguagem, da moda, da mídia, da arte, teórico da Semiótica, da Semiologia, da Cultura? Existencialista, marxista, estruturalista, moderno, pós-moderno?

É por demais notória a importância de Roland Barthes para a crítica literária e cultural”, explica Eneida Maria de Souza. “Sua atuação em vários campos do saber, indo da crítica literária às artes plásticas, não cessa de ser reatualizada pelos novos estudiosos nas academias e em pesquisas desvinculadas dos saberes institucionalizados. Com a publicação de textos inéditos, como diários e aulas ministradas no Collège de France, temos uma leitura renovada de seu legado.”


















Atualidades de Roland Barthes: imagens 
do escritor em 1977, durante entrevistas às
TVs francesas, falando sobre o lançamento
de uma de suas obras-primas, o livro 
Fragmentos de um Discurso Amoroso.
 
Abaixo, Barthes em Paris, em fotografia
de 1970 de Macchi Polymnia; e em três
momentos no ano de 1979: fotografado
por Marion Kalter e, a seguir, por
Ulf Andersen e por David Herali





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Para Vera Casa Nova, não há definições que possam enquadrar a presença e a importância de Roland Barthes. “Ele é plural por excelência. Sua função foi e será o questionamento, a desconstrução dos saberes e seus textos. Esse é o papel de Roland Barthes, ontem, hoje e sempre, sem modismos teóricos. Com certeza ele não gostaria de ser de alguma forma rotulado, pois com todas essa funções que você enumerou, ele só poderia ser esse sujeito plural a que me referi anteriormente. Cito ele mesmo – Eu sou eu mesmo meu próprio símbolo. Eu sou a história que me acontece: uma roda livre na linguagem... Je n’ai rien à quoi me comparer... inumeráveis são as narrativas do mundo...”

"Barthes é o intelectual subversivo, o professor formador de outros intelectuais, situando os imaginários da relação didática", completa Angela Senra. "Fui aluna de Barthes na Escola Prática dos Altos Estudos, em Paris, em 1971 e 1972. Descobrimos, com Barthes, um processo permanente de invenção. Assim como faz em seus textos, o Barthes em sala de aula reinventava citações, chegava ao inter-texto. Aos deslocamentos. Barthes é uma lição permanente: ele é o intelectual e professor 'desconfiado'. Aquele que questiona os mecanismos do poder, subverte as diferentes linguagens. E era um homem sóbrio, elegante. Cortês. Polidez nas palavras, nos gestos. Voz baixa. Tranquilidade na fala. Continuei e continuo lendo Barthes".

















O pensamento libertário



Eneida Maria de Souza também recorda a elegância e o estilo incomparável de Roland Barthes em sala de aula. “Assisti às aulas de Barthes quando fui para Paris para o Doutorado, em 1978. A partir daí, o contato com sua obra foi mais intenso, com as publicações de 'A Câmara Clara', de artigos escritos no 'Nouvel Observateur' e na sua atenção mais centrada nas disciplinas afins da literatura, como o cinema e a fotografia. Assisti a várias aulas no Collège de France ministradas por ele, as quais me fizeram conviver com sua maneira magistral de proferir conferências. No segundo tempo do curso havia sempre um convidado a falar, entre eles Gilles Deleuze, Octave Manonni, entre outros. Era um espetáculo, assistido pelos estudantes franceses e estrangeiros, entre eles quem passava por Paris por tempo curto”.

Vera Casa Nova, que teve os primeiros contatos com a obra de Barthes em 1968, em um curso ministrado pela professora Dirce Cortes Riedel no Rio de Janeiro, na antiga UEG (hoje UERJ), destaca que Barthes continua atual e importante para compreender as questões não só da literatura, mas também da arte contemporânea e da comunicação de massa. “O olhar de Barthes persegue os sentidos (e os não-sentidos) em qualquer arte, sobretudo em suas abordagens críticas sobre a comunicação de massa. No evento em comemoração ao centenário, 'Roland Barthes Plural', realizado em junho na Casa das Rosas, em São Paulo, vi isso claramente. Quem lê Barthes ama-o e essa afetividade, como ele queria que fosse nossa maior potência, deixa-nos impregnados. Ao citar suas ideias e textos, os atualizamos”.













Atualidades de Roland Barthes presentes
na Cultura de Massa –– em 2011, Barthes e
outros filósofos visitaram um dos episódios
de The Simpsons: a partir da esquerda,
Immanuel KantSocratesWittgenstein,
Karl MarxBarthes, Jean-Paul Sartre,
Frederich Nietzsche e Michel Foucault.
Em 1967, na caricatura de Maurice Henry
publicada na revista La Quinzaine Littéraire
(a partir da esquerda, Michel Foucault,
Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e
Barthes). Também acima, encontro da equipe da
revista Tel Quel em 1974 no Café Le Bonaparte,
Paris. A partir da esquerda, Philippe Sollers,
Marcelin Pleynet, Josephine Fellier, Julia Kristeva,
Barthes, François Wahl e Severo Sarduy,
fotografados por Mario Dondero.

Abaixo, grafite no Collège de France em
homenagem ao centenário de Barthes;
e Barthes como ator, interpretando o
o escritor britânico do século 19
William Makepeace Thackeray em
As irmãs Brontë (Les soeurs Brontë),
filme de 1979 de André Téchiné que
também tem no elenco, no papel das
três irmãs escritoras, as atrizes
Marie-France Pisier (Charlotte),
Isabele Adjani (Emily) e
Isabelle Huppert (Anne)











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O olhar atento de Roland Barthes sobre diferentes textos e linguagens diversas, sua postura crítica, também são ressaltados por Angela Senra, que aponta a importância das primeiras experiências sobre a recepção de Barthes no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura militar. "Na década de 1960 e mesmo nos primeiros anos de 1970, Barthes ainda 'não cabia' no Brasil. O ambiente intelectual era bastante conservador. O golpe militar de 1964 intensificou a linha pétrea de pensamento. Havia alguns intelectuais 'à esquerda' mas, eles também, eram dogmáticos. Barthes foi chegando devagar, com outros pensadores que participaram da efervescência cultural francesa de 1968, 1970... Foucault, Deleuze, Guattari, Lacan, Derrida, Blanchot. Barthes e todos esses intelectuais deram importante contribuição para a cultura brasileira moderna".



Fragmentos para uma Fotobiografia



Os escritos e os ensinamentos de Roland Barthes percorrem um dos caminhos mais originais da crítica contemporânea e da Teoria da Cultura. Em sua trajetória biográfica e teórica, um dos textos que considero mais importantes, por motivos diversos, talvez seja “A Câmara Clara” (La Chambre Claire, 1980), o último livro que publicou em vida. Em sua mistura incomparável de pesquisa acadêmica, diário confessional e tese sobre a Semiótica da Fotografia, “A Câmara Clara” representa, de uma só vez, um momento de síntese e de ruptura – no que se refere às principais questões e conceitos desenvolvidos pelo autor em busca de uma teoria sobre a linguagem específica dos signos não-verbais.









Fragmentos para uma Fotobiografia: acima,
Barthes com sua mãe, Henriette, em 1923,
e no Liceu Montaigne, em 1930.

Abaixo, Barthes aos 27 anos, em 1942,
durante a Segunda Guerra, no período
em esteve internado no sanatório
estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet
para tratamento de tuberculose







Considerado por muitos como o mais autobiográfico de todos os livros que Barthes publicou – e, talvez, também o mais filosófico – “A Câmara Clara” apresenta um discurso fragmentado, francamente subjetivo e não linear, a meio-fio entre o ensaio e o romance. Relato afetivo, pontuado de metalinguagem sobre a pesquisa e o método, mas longe de estabelecer uma metodologia reconfortante, este último livro de Barthes, mais do que todos os outros que ele publicou, merece por certo o adjetivo “inquietante”.

São as questões e conceitos elaborados por Barthes, especialmente em “A Câmara Clara”, que fundamentam esta seleção de imagens biográficas sobre sua trajetória, aqui reproduzida ––  e que também apresentei em uma conferência intitulada "Fragmentos para uma Fotobiografia", na abertura da Jornada Barthes, na UFMG, realizada em homenagem ao seu centenário de nascimento.



1. Álbum de Família

Roland Barthes aos 8 anos, em 1923, no colo de sua mãe, Henriette Barthes, fotografados em frente à casa da família em Cherbourg-Octeville, região Norte da França.


2. Liceu Montaigne

Barthes aos 15 anos, em 1930, quando era estudante do Liceu Montaigne, em Paris. É no Liceu que Barthes descobre o gosto pelos dicionários e pela etimologia. 


3. Sanatório de Saint-Hilaire-du-Touvet

Barthes aos 27 anos, em 1942, quando esteve internado no sanatório estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet para tratamento de tuberculose. Foi na revista “Existences”, editada pelos alunos e professores do sanatório, que Barthes publicou seus primeiros textos. 







4. Alexandria, Egito

Acima, Barthes aos 35 anos, em 1950, durante a temporada em que trabalhou como professor em Alexandria, no Egito, onde também concluiu as pesquisas e rascunhos do que seria seu primeiro livro publicado, “O Grau Zero da Escritura” (Le Degré Zéro de L'Écriture, 1953).


5. Barthes por Cartier-Bresson

Abaixo, Barthes fotografado por Henri Cartier-Bresson em sua casa, em Paris, em 1963 – ano em que publica um de seus livros que geraram grandes polêmicas, “Sobre Racine” (Sur Racine). 







6. Barthes no Marrocos

Barthes fotografado no Marrocos, em 1969, quando passou uma temporada naquele país como professor da Faculdade de Letras de Rabat. As anotações de Barthes sobre a temporada no Marrocos dariam origem ao livro “Incidentes” (Incidents, 1987).


7. Na China com Kristeva

Barthes com Julia Kristeva durante a viagem de uma delegação francesa à China, em 1974. Da delegação, além de Barthes e Kristeva, também participaram Philippe Sollers, Marcelin Pleynet e François Wahl. As anotações de Barthes sobre a viagem foram publicadas no livro “Cadernos da Viagem à China” (Carnet du Voyage em Chine, 2009).








Fragmentos para uma Fotobiografia: acima,
Barthes no Marrocos, em 1969, quando trabalhou
como professor da Faculdade de Letras de Rabat.
Abaixo, com Julia Kristeva durante a viagem
da delegação francesa à China, em 1974












8. Um escritor ao piano

Barthes tocando piano em casa, fotografado em 1975 por Sophie Bassouls. O pesquisador dos signos e dos textos literários e não-verbais praticava música desde a infância, tanto no piano como no canto. Barthes sabia ler partituras como um mestre e durante as décadas de 1930 e 1940 chegou a escrever partituras para piano, voz, flauta e violoncelo. Durante sua trajetória, publicou diversos artigos dedicados à análise musical. Schumann era seu compositor favorito. 


9. Aula no Collège de France

Barthes fotografado na tarde do dia 7 de janeiro de 1977, durante sua aula inaugural para a cátedra de “Semiologia Literária” no Collège de France. A apresentação de Barthes, considerada magistral pelos alunos e pela banca de avaliação, posteriormente foi publicada no livro “Aula” (Leçon, 1978). 


10. A última fotografia

Barthes em sua última fotografia, em 25 de fevereiro de 1980. Barthes enviou os originais para a publicação de “A Câmara Clara” e seguiu a caminho do apartamento de Philippe Serre, na rua des Blancs-Manteaux, no Marais, em Paris, onde participaria de um almoço junto com outros intelectuais e o futuro presidente da França, François Miterrand. Depois do almoço, quando retornava para sua casa, Barthes foi atropelado ao atravessar a rua des Écoles. Foi hospitalizado, mas morreria de complicações decorrentes do acidente, exatamente um mês depois, em 26 de março. Estava com 64 anos.



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Atualidades de Barthes. In: Blog Semióticas, 12 de novembro de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/11/atualidades-de-barthes.html (acessado em .../.../…).


Para acessar o Dossiê Barthes publicado na revista "Em Tese"
da UFMG, clique na imagem abaixo:





Assista o programa de TV produzido pela Rede Minas
em homenagem ao centenário de Roland Barthes:






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Fragmentos para uma Fotobiografia:
no alto, Roland Barthes em 1977, durante
sua aula inaugural da cátedra de “Semiologia
Literária”, ministrada no Collège de France.
Acima, a última foto, em 25 de fevereiro de 1980


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