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8 de janeiro de 2016

O passado intransitivo







Defender o nosso patrimônio histórico
e artístico é alfabetização.

––  Mário de Andrade (1893-1945).  
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O Brasil e a maioria de suas cidades cresceram em torno de igrejas católicas – tanto que, durante séculos, ser brasileiro era quase um sinônimo de ser católico. Neste terceiro Milênio, o Brasil continua sendo o maior país católico do mundo, mesmo que as estatísticas demonstrem uma crescente redução no número de fiéis ao longo das últimas décadas: no primeiro censo aqui realizado, em 1872, a religião católica era seguida por 99,7% da população; no último censo do IBGE, divulgado em 2012, há 123 milhões de católicos no Brasil, o que representa 64,6% da população.

Muito além das questões de fé ou do significado religioso, as antigas igrejas católicas são importantes marcos da construção do patrimônio histórico e cultural do Brasil, mas a maior parte delas não sobreviveu até nossos dias. Da maioria, não restaram sequer ruínas, mas em alguns casos as igrejas que já não existem tiveram sua imagem preservada em belos registros feitos pelos pioneiros da fotografia no século 19 e no começo do século 20. Estas imagens, relíquias produzidas em técnicas diversas, antes restritas apenas para um pequeno grupo de pesquisadores, estão agora disponíveis para acesso público pela Internet através do portal Brasiliana Fotográfica.

Resultado de uma parceria entre a Fundação Biblioteca Nacional e o Instituto Moreira Salles (IMS), o Brasiliana Fotográfica publicou nesta primeira semana de 2016 uma galeria de imagens das antigas igrejas nos primeiros tempos da fotografia. No total, 184 imagens já foram publicadas pelo portal em alta resolução – todas elas provenientes dos acervos das valiosas e raríssimas coleções fotográficas que estão atualmente preservadas e sob a guarda da Biblioteca Nacional e do IMS.




 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
no alto da página, a Igreja Matriz do Santíssimo
Sacramento, em Jequitibá, Minas Gerais,
fotografada em 1868 por Augusto Riedel.
Acima, a Igreja Catholica da Rua da
Telheira, em Joinville, Santa Catarina, em
fotografia de 1866 de Louis Niemeyer.

Também acima e abaixo, fotografias datadas
de 1865 de Georges Leuzinger na região do
Centro do Rio de Janeiro, a Igreja de Santa Luzia
(antes da formação dos aterros que afastaram o
mar) e a Rua Direita com a Capela Imperial










Alguns dos primeiros e mais importantes nomes da fotografia no Brasil estão na galeria de imagens raras e preciosas apresentada pela série da Brasiliana Fotográfica, com destaque para Marc Ferrez (1843-1923), Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), Augusto Malta (1864-1957) e Guilherme Antônio dos Santos (1871-1966), entre vários outros. Mas não são apenas os primeiros fotógrafos brasileiros que tiveram obras selecionadas. Na galeria do portal também estão pioneiros de outros países que instalaram seus ateliês de ofício de fotografia e serviços gráficos no Brasil ou que viajaram pelas regiões do litoral e do interior do país registrando em imagens fotográficas os cenários, os povos e os monumentos que encontraram.



Ilustres e desconhecidos



Entre os estrangeiros que registraram em fotografias as antigas igrejas do Brasil, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica, estão os alemães Revert Henrique Klumb (1830-1886), Augusto Riedel (1836-1877) e George Huebner (1862-1935); os franceses Jean-Victor Frond (1821-1881) e Theophile Auguste Stahl (1824-1877); os suíços George Leuzinger (1813-1892) e Guilherme Gaensly (1843-1928); o inglês Benjamin Robert Mulock (1829-1863), o português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903) e outros pioneiros célebres. Há também, no acervo publicado pelo portal, diversas fotografias muito bem preservadas mas que têm autoria anônima, porque a identificação do fotógrafo se perdeu com o tempo.








 




Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
a partir do alto, Igreja Catedral em Belém
do Pará, em fotografia de 1875 de
Felipe Augusto Fidanza; Igreja da
Piedade em Salvador, Bahia, em 1865,
fotografada por Camillo Vedani; e Igreja
de Madalena no Recife, Pernambuco, em
fotografia de 1880 de Moritz Lamberg.
Abaixo, relíquias do Aleijadinho registradas
em 1880 por Marc Ferrez nas antigas
cidades do Barroco em Minas Gerais:
a Igreja de São Francisco de Assis em
Ouro Preto e o Santuário do Senhor Bom
Jesus de Matosinhos com as capelas dos
Passos da Paixão de Cristo em Congonhas









 

Além das fotografias de autoria anônima, há também aquelas atribuídas a fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos – como Schleier J., que atuou em Salvador, Bahia, na década de 1870; Bernardo Scheidemantel, que atuou na região de Blumenau, Santa Catarina, na década de 1860; Louis Niemeyer, que atuou na região de Joinville, também em Santa Catarina na década de 1860; Camillo Vedani, que atuou no Rio de Janeiro e em Salvador, nas décadas de 1850 e 1860; e Reginald Gorham, identificado como autor de raridades como a vista panorâmica datada de 1927 que mostra a antiga igreja de Nossa Senhora da Conceição em Pedras de Maria da Cruz, Minas Gerais.

Entre os fotógrafos sobre os quais há mínimos registros biográficos, incluídos na série da Brasiliana Fotográfica sobre antigas igrejas, um caso singular é Augusto Flávio de Barros, conhecido tão somente porque realizou a primeira e única documentação em fotografia sobre a fase final da Guerra de Canudos. O fotógrafo esteve presente na quarta e última investida militar contra os seguidores do beato Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel), mas não se sabe ao certo se ele acompanhou as tropas como voluntário ou se foi convocado para o trabalho.












Imagens do portal Brasiliana Fotográfica:
relíquias registradas por Flávio de Barros
em ruínas, ao final da Guerra de Canudos,
no arraial de Antônio Conselheiro, sertão da
Bahia, em outubro de 1897 – a partir do alto,
a Igreja de Santo Antônio; o Flanco Esquerdo
da Igreja do Bom Jesus; e uma imagem frontal
dos escombros da Igreja do Bom Jesus.
Abaixo, Igreja da Boa Morte em Barbacena,
Minas Gerais, fotografada em 1924 por
Mário de Andrade durante a visita que
o grupo modernista fez a Minas





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Augusto Flávio de Barros foi o único fotógrafo a acompanhar a guerra, que terminou com a destruição completa e com cerca de 5 mil mortos no arraial de Canudos, no sertão da Bahia, entre o fim de setembro e o início de outubro de 1897. Na série divulgada pela Brasiliana Fotográfica estão cinco imagens de ruínas das igrejas de Canudos registradas, ao final da última batalha das tropas militares o contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, pela impressionante reportagem fotográfica de Augusto Flávio Barros, que no total é formada por 164 fotografias – sendo que 72 delas pertencem ao Museu da Republica, no Rio de Janeiro; 24 permanecem no acervo da Casa de Cultura Euclides da Cunha de São José do Rio Pardo, em São Paulo; e, infelizmente, 68 das fotografias de Barros desapareceram do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.



O fotógrafo Mário de Andrade



Na trajetória cronológica, as mais recentes fotografias de igrejas antigas na série publicada pela Brasiliana Fotográfica datam do final da década de 1920 – época em que Mário de Andrade, um dos principais expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, liderou o engajamento pela preservação do patrimônio histórico e artístico. É quase inevitável relacionar a preservação do patrimônio e da memória nacional com Mário de Andrade – o intelectual, escritor, poeta, crítico literário, jornalista, musicólogo, ensaísta, folclorista, fotógrafo e, sobretudo, produtor de ideias, sempre a procura de um germe novo que se abriga na tradição e que traz à tona um Brasil muitas vezes esquecido e submetido a processos de conquista e dominação.







Imagens do acervo do fotógrafo
Mário de Andrade: acima, as ruínas
da única igreja que Mário encontrou
em Porto Velho, Rondônia, na viagem
que fez em 1927. Abaixo, a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário na
localidade de Goiana, Pernambuco,
em 1929; e uma vista panorâmica do
antigo convento da cidade de Catolé
do Rocha, Paraíba, também em 1929






 







A relação de Mário de Andrade com as questões do resgate das tradições artísticas e da memória da cultura nacional vem de antes da Semana de Arte Moderna de 1922 e culmina com o anteprojeto que ele redigiu para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a pedido de Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1934 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas. Mário foi o primeiro secretário de cultura do Brasil, na época em que exerceu o cargo de diretor e fundador do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, e sempre esteve ligado às questões da preservação da memória e do patrimônio da cultura nacional, mas tudo indica que esta dedicação passou a ter para ele maior importância depois de sua primeira viagem a Minas Gerais, em 1919.

Desta primeira viagem de Mário a Minas resultou a publicação de seu estudo sobre os monumentos e igrejas das cidades mineiras do Ciclo do Ouro, intitulado “Arte Religiosa em Minas Gerais”. Sua segunda e lendária viagem a Minas aconteceria em 1924, em companhia de um grupo de amigos modernistas que incluía Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta e escritor francês Blaise Cendrars. Naquela viagem o grupo redescobriria o encanto da Arte Barroca, sua arquitetura, sua pintura, sua religiosidade popular, como uma manifestação legítima das mais preciosas e autênticas raízes e matrizes da cultura brasileira, que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais importante intérprete.










Fotografias de Mário de Andrade:
no alto, a Igreja de São Bento em Olinda,
Pernambuco, fotografada por Mário na
viagem de 1929; acima, Igreja Matriz de
São Paulo e São Pedro, construída pelos
Jesuítas por volta de 1930 em Mamanguape,
Paraíba, também fotografada em 1929.

Abaixo, Mário e Luís da Câmara Cascudo
fotografados durante a viagem pelo Rio Grande
do Norte, em 1929; Mário proseando com
Cândido Portinari na rua, em São Paulo,
em março de 1940; e o casal Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral fotografado
por Mário em São João Del Rei, em 1924,
durante a viagem do grupo modernista
pelas antigas cidades de Minas Gerais.

Também abaixo, Mário de Andrade com
Tarsila do Amaral e amigos na praia do
Chapéu Virado, também conhecida por
praia do Mosqueiro, em Belém, no Pará, em
1927, durante a expedição comandada por
Mário pela Amazônia para documentar o
folclore nacional, depois transcrita
no livro "O Turista Aprendiz";
e os jangadeiros na Praia de Iracema,
em Fortaleza, Ceará, em fotografia de
agosto de 1927 de Mário de Andrade






















O Turista Aprendiz



Depois viriam outras viagens, outros livros e outros projetos da maior importância. Algumas destas viagens de Mário pelo Brasil foram registradas por ele no relato para o livro ilustrado com suas fotos “O Turista Aprendiz”, concluído em 1943, mas publicado pela primeira vez somente em 1976. O livro agora está sendo relançado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo), em edição organizada pelas professoras Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo.

A nova edição ilustrada, com 462 páginas, inclui um CD-Rom com os diários de Mário de Andrade fotógrafo, formado por imagens e legendas feitas por ele com muito bom humor e em tom de informalidade, narrando sua trajetória de viagens e suas descobertas pelo interior do Brasil. A edição também traz encartado um DVD com o documentário de autoria de Luiz Bargmann, “A Casa do Mário”, que através de imagens de arquivo, fotografias, peças de sua coleção de arte, livros e discos, reconstitui o cotidiano familiar e social do ilustre paulistano na casa em que morou entre 1921 e 1945, situada em um endereço que se tornou lendário para seus amigos e leitores, na Rua Lopes Chaves, n° 546, Barra Funda, em São Paulo.






Em “O Turista Aprendiz”, Mário de Andrade registra detalhes saborosos sobre as viagens de pesquisa que fez à região Norte, até as fronteiras com Peru e Bolívia, em 1927, e depois, em 1928, ao Nordeste, incluindo Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte. Vale lembrar que, além das imagens publicadas no livro, Mário também deixou cerca de 1600 fotografias em positivo e centenas em negativo que comprovam suas habilidades como exímio fotógrafo.

Todas as fotografias das viagens foram feitas com sua câmera Kodak tipo “caixão” (máquina Codaque, como ele mesmo escrevia), durante suas viagens e nas expedições folclóricas que coordenou. A maior parte do acervo de Mário, que inclui suas fotografias, seus rascunhos, cartas, gravações de áudio, objetos recolhidos durante o trajeto das viagens, manuscritos e anotações diversas, somando cerca de 30 mil peças, mais sua biblioteca (com 17.624 volumes) e sua coleção de artes plásticas e mobiliário (1.234 peças) está, atualmente, no arquivo do escritor sob a guarda do IEB-USP.






Fotografias de Mário de Andrade: acima,

o barqueiro fotografado por Mário em 1927

durante o trajeto da viagem pelo rio, no Pará,

tendo ao fundo a cidade de Santarém. Abaixo,

Mário na Ilha do Mosqueiro, no Pará; no barco,

durante a travessia; e na floresta amazônica,

em fotografias feitas durante a viagem de 1927















Visão abrangente e contemporânea



Na viagem de 1927, Mário teve como acompanhantes sua amiga, aristocrata do café e mecenas dos modernistas, Olívia Guedes Penteado, sua sobrinha Margarida Guedes Penteado e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto. Outros amigos planejavam participar, entre eles o casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, mas terminaram adiando por conta de outros compromissos. Durante três meses, a partir de maio daquele ano, a comitiva de Mário seguiu do Rio de Janeiro a Iquitos, no Peru, navegando pelos rios Amazonas, Solimões e Madeira, incluindo uma temporada em Manaus.

Na segunda viagem, iniciada em novembro em 1928, Mário de Andrade partiu sozinho para o Nordeste, onde permaneceu até fevereiro do ano seguinte e foi recebido por outros célebres pesquisadores do folclore e da cultura popular, entre eles Ascenso Ferreira, Jorge de Lima, Cícero Dias e Luís da Câmara Cascudo. O contato com a floresta e com o sertão, as cidades, vilarejos, seus habitantes e suas manifestações culturais, a religiosidade, os folguedos, as danças, as músicas, quase sempre impregnadas de muito sincretismo e superstição, causam em Mário um grande impacto, consolidando uma visão de nacionalidade muito mais abrangente, em oposição às concepções dominantes da época, copiadas principalmente dos ambientes das cidades da Europa. Entre a primeira e segunda viagem, Mário escreveu e publicou uma de suas obras-primas, o romance “Macunaíma”.










Mário no estúdio de trabalho na casa em
que morou entre 1921 e 1945, e em caricatura
feita em Iquitos, Peru, por Victor Morel, durante
a viagem do escritor ao norte do Brasil em 1927.
Abaixo, Mário com o casal Oneyda Alvarenga
e Sylvio Alvarenga (Oneyda foi responsável pela
organização do acervo de Mário e pela publicação
dos inéditos, após a morte do escritor) e Mário em
passeio pelas ruas de São Paulo em 1936, quando
dirigia o Departamento Municipal de Cultura
de São Paulo, em fotografia do álbum de família.

Também abaixo, uma fotografia do mesmo estúdio
de trabalho do escritor no ano da morte de Mário,
1945, onde se vê a escrivaninha e as pinturas
A família do Fuzileiro Naval, de Guignard
(junto à escrivaninha), e Colona, de Portinari,
à direita; e a fachada da casa, na Barra Funda,
em São Paulo, endereço que se tornou
referência lendária para seus amigos e leitores:
Rua Lopes Chaves, n° 546









  

Mais tarde, em 1936, Mário de Andrade aceita o convite do ministro Gustavo Capanema para redigir o anteprojeto para o futuro SPHAN (atualmente Iphan), que foi criado em 1937 e teve como primeiro diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade. Ainda hoje a proposta elaborada e redigida por Mário impressiona por conta de sua visão abrangente e contemporânea. Organizado em três capítulos, o anteprojeto estabelece as competências do Serviço do Patrimônio, as categorias dos bens culturais e os critérios de seleção para tombamento em quatro livros do tombo. A fundamental presença de Mário na criação e no apoio à gestão do SPHAN iria se estender de 1936 até a sua morte precoce, aos 52 anos, em 25 de fevereiro de 1945.

Desde então a obra literária de Mário de Andrade, sua atuação como mentor nas questões da cultura nacional e também sua correspondência com uma legião de discípulos (como Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Gustavo Capanema e muitos e muitos outros) assumem importância crescente e estabelecem a crônica e o cenário de uma época em que, após séculos de colonialismo, o Brasil forma sua imagem e identidade. Neste cenário, a preservação e a valorização do patrimônio nacional, em suas múltiplas interfaces, têm muito da presença ideológica de Mário de Andrade e a criação do SPHAN significa, por certo, sua certidão de nascimento.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O passado intransitivo. In: Blog Semióticas, 8 de janeiro de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/01/o-passado-intransitivo.html (acessado em .../.../...).






Para visitar o acervo da Brasiliana Fotográfica,  clique aqui.


Para visitar o acervo de Mário de Andrade no IEB-USP,  clique aqui.

 
Para assistir o documentário A Casa do Mário, de Luiz Bargmann,  clique aqui.



https://vimeo.com/73811716








11 de abril de 2015

Olhar estrangeiro no Candomblé







O que me interessa é o papel que tem o Candomblé ao conferir
dignidade aos descendentes dos escravos. Aqui eles chegaram a
ser gente mesmo, gente respeitada por suas próprias tradições.

––  Pierre Verger (1902-1996).   


Um acervo surpreendente com cerca de 200 fotografias inéditas que registram o Candomblé da Bahia nas décadas de 1930 e 1940 foi localizado esta semana em Pernambuco. O valor da descoberta impressiona ainda mais depois da revelação da identidade do autor das fotografias – o alemão Thomás Kockmeyer, que era frei da Ordem dos Franciscanos da Igreja Católica e foi ordenado em 1938 no Brasil, onde viveu durante cinco décadas. 

Kockmeyer, entusiasta da fotografia, driblou a intolerância racial e religiosa da época e registrou as belas imagens de comunidades negras e seus rituais de Candomblé no Recôncavo Baiano. Fotografias, objetos e outros documentos foram encontrados no Recife, em Pernambuco, pela equipe do Arquivo Provincial Franciscano que desde 2014 trabalha no projeto Resgate Documental da Província Franciscana de Santo Antônio do Nordeste do Brasil.

As 200 fotografias no formato 5 x 7 cm, ao que tudo indica, estavam guardadas há décadas no Recife, no Convento de Santo Antônio, em uma pequena caixa de madeira com os dizeres “Candomblé – Fotografias de Frei Thomás Kockmeyer”. São imagens de grande valor documental que registram os moradores de comunidades negras da região do Recôncavo Baiano, alimentos, indumentárias e rituais religiosos de matriz africana. O projeto Resgate Documental, que tem patrocínio da Petrobras, pretende recuperar arquivos históricos de documentos e objetos relacionados aos quatro séculos da história da Ordem Franciscana da Igreja Católica no Brasil.










Olhar estrangeiro no Candomblé da Bahia:
no alto, uma das fotografias registradas na
década de 1930, no Recôncavo Baiano,
pelo frei franciscano Thomás Kockmeyer
(acima, no retrato publicado no necrológio
da Revista de Santo Antônio, e em
fotografia de 1958 na região de Santarém,
na floresta amazônica, durante uma temporada
de sete meses com Protásio Frikel, um
ex-franciscano que viveu muitos anos
com as tribos Tiriyó). Abaixo, Convento
de Santo Antônio, no Recife, onde foram
descobertas as fotografias de frei Kockmeyer










O trabalho da equipe do projeto Resgate Documental teve início em 2014 por iniciativa do coordenador de Patrimônio da Província Franciscana, frei Roberto Soares. O objetivo do projeto é reunir os acervos de raridades históricas que incluem imagens, manuscritos, cartas, certidões, livros, fotografias, fitas cassetes, discos em vinil, partituras e filmes que retratam a vivência religiosa, social, cultural e administrativa dos franciscanos no Brasil. 



Cenas e personagens anônimos



A pesquisa e coleta do material, que resultou na descoberta das fotografias feitas pelo frei Kockmeyer, acontece em mais de 40 localidades que, desde o início do século 16, abrigam ou abrigaram conventos e igrejas da Ordem Franciscana nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia e Pará. A previsão é que nos próximos meses o acervo esteja restaurado, organizado e aberto ao público para consulta no Recife, no Arquivo Provincial Franciscano, e também através da Internet.
 









Olhar estrangeiro no Candomblé: acima
e abaixo, fotografias surpreendentes feitas
pelo frei franciscano Thomás Kockmeyer
nas décadas de 1930 e 1940 na
região do Recôncavo Baiano







.





As cenas e personagens anônimos fotografados pelo frei Thomás Kockmeyer, além de despertar interesse por seu ineditismo e pela identidade inusitada do fotógrafo, revelam detalhes importantes sobre a religião e os hábitos cotidianos de comunidades negras da Bahia, suas festas, vestimentas, objetos sagrados e movimentação nos rituais. Além dos registros sobre o Candomblé, durante os quase 50 anos em que esteve no Brasil o frei franciscano também se dedicou a pesquisas sobre história e sobre os povos indígenas.

De acordo com o informe publicado pela coordenação do projeto Resgate Documental, também foram localizados no Recife documentos diversos e outras fotografias relacionados aos estudos de frei Kockmeyer, incluindo registros de duas expedições de pesquisa de campo que o religioso realizou, em 1950 e em 1958 – quando ele passou uma temporada de sete meses com os índios Tiriyó, no estado do Pará. Frei Thomás Kockmeyer morreu em 1978, aos 65 anos, em um acidente de carro, e foi enterrado em Rio Formoso, cidade do interior de Pernambuco onde ele exercia as funções de vigário.

















América Negra



Antes desta descoberta do acervo no Recife, as únicas referências sobre as pesquisas etnográficas e as fotografias do frei Thomás Kockmeyer estavam nos livros publicados pelo sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), que a partir de 1938 fez parte da missão de professores europeus na então recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Roger Bastide morou durante 20 anos no Brasil, atuando na USP, em substituição ao professor Claude Lévi-Strauss, e também morou no Rio de Janeiro e em estados do Norte e do Nordeste.

Dedicado a estudos sobre religiosidade e misticismo, Bastide é reconhecido como um dos principais pesquisadores sobre as religiões afro-brasileiras e chegou a se tornar um iniciado no Candomblé. Na década de 1940, conheceu na Bahia o trabalho do frei Kockmeyer sobre o Candomblé e os rituais religiosos de matriz africana, que posteriormente seria descrito e citado como referência na tese de doutorado de Bastide na Universidade de Paris-Sorbonne, “O Candomblé da Bahia – Transe e Possessão no Ritual do Candomblé” (1957), e também em “Brasil, Terra dos Contrastes” (1957), “As Religiões Africanas no Brasil” (1958) e “As Américas Negras” (1967), entre outros livros publicados pelo sociólogo.

Outro cidadão francês que ficou impressionado com os rituais religiosos de origem africana no Brasil foi o escritor Albert Camus, Prêmio Nobel de 1957. Em visita ao Brasil, em 1949, tendo por companhia dos escritores Oswald de Andrade e Murilo Mendes, Camus assistiu as festas em louvor ao Senhor Bom Jesus em Iguape, no litoral de São Paulo, e também visitou o Rio de Janeiro, a Bahia e o Ceará. O escritor ficou especialmente interessado nas questões religiosas: acompanhou procissões católicas e participou de rituais de umbanda e candomblé, nos quais encontrou semelhanças com sua terra natal, a Argélia, país também habitado por europeus e africanos. As lembranças do Brasil são citadas com frequência na obra de Camus, com destaque em "Diário de Viagem" e em "A pedra que cresce", do livro "O Exílio e o Reino", com a história de um engenheiro europeu que viaja ao Brasil para construir uma represa em Iguape.


























Olhar estrangeiro no Candomblé da Bahia:
a partir do alto, o sociólogo francês Roger Bastide
em visitas Salvador, fotografado na década
de 1950; também acima o escritor Albert Camus
em visita à festa religiosa em Iguape, no
litoral de São Paulo, tendo ao fundo as torres
da Basílica do Bom Jesus, fotografado por
Oswald de Andrade
e a festa consagrada
ao Senhor do Bonfim em Salvador,
em 1947, em fotografia de Pierre Verger.

Abaixo, Zélia Gattai e Jorge Amado em
Salvador, com Mãe Senhora e os franceses
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre,
em 1960; Jorge Amado com o português
José Saramago nas ruas de Salvador,
em 1996; e dois encontros em Salvador
de Caetano Veloso e Jorge Amado com
José Saramago também em 1996









        








O babalaô “Fatumbi”



Além de Roger Bastide e Albert Camus, outro cidadão francês que conheceu em meados do século 20 as pesquisas e fotografias de frei Thomás Kockmeyer foi Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e antropólogo francês que adotou Salvador como residência a partir da década de 1940. Verger dizia em entrevistas que se apaixonou pela Bahia ao ler “Jubiabá”, romance de Jorge Amado publicado em 1935. Jorge Amado e o artista plástico Carybé, anos depois, fariam parte do grupo dos grandes amigos de Verger em terras brasileiras.

A aproximação com Roger Bastide e Pierre Verger também levaria os amigos Jorge Amado e Carybé a receberem como convidados, em Salvador, outros importantes escritores, artistas e filósofos de outros países – entre eles os franceses Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Jorge Semprún; os argentinos Julio Cortázar e Ernesto Sabato; os italianos Umberto Eco e Alberto Morávia; e pelo menos três vencedores do Prêmio Nobel de Literatura: o colombiano Gabriel García Márquez, o chileno Pablo Neruda e o português José Saramago – todos de passagem pelo Brasil e interessados em conhecer a Bahia, o Candomblé e os cultos de matriz africana dedicados à fé nos orixás.   

Quando passa a morar em Salvador, em 1946, Pierre Verger inicia suas pesquisas sobre a religião e a cultura negra da África e do Brasil, o que o levaria aos primeiros contatos com o trabalho do frei Kockmeyer. Verger, que se tornaria um dos grandes estudiosos dos cultos aos Orixás, recebeu em 1953 o nome ritualístico “Fatumbi” e foi iniciado como babalaô, um adivinho através do jogo de búzios do Ifá, com acesso às sagradas tradições orais da cultura Iorubá.













Três amigos em Salvador, Bahia, fotografados
em meados da década de 1970: Pierre 'Fatumbi'
Verger, Jorge Amado e Carybé – nome artístico
do argentino naturalizado brasileiro Hector Julio
Páride Bernabó (1911-1997), pintor, desenhista,
escultor e historiador que trocou seu país pelo
Brasil em 1949, ao conhecer a Bahia, e que
dedicou-se durante décadas a registros sobre
o Candomblé, entre eles belos desenhos e
aquarelas como Cerimônia para Oxalufã
(reprodução acima).

Abaixo, Carybé com Mãe Senhora
no terreiro de Candomblé Ilê Axé Apô Afonjá
em Salvador; um encontro de Gilberto Gil
no palco com Pierre Verger e Carybé, em
fotografia de Arlete Soares; os três amigos
Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé;
Carybé junto com o chileno Pablo Neruda
e com Jorge Amado em Salvador, no
começo da década de 1970; Jorge Amado
fotografado por Zélia Gattai com Gabriel García
Márquez em 1974 e com José Saramago em 1985;
com Mãe Menininha do Gantois; um encontro de
Jorge Amado, Dorival CaymmiMãe Menininha
do Gantois em 1980, fotografados por Gildo Lima;
e os dois "estrangeiros" Carybé e Pierre Verger.
Também abaixo, uma seleção de fotografias de
Pierre Verger na Bahia: 1) o fotógrafo em
autorretrato no ano de 1952; 2) fotografia
de um ritual do Candomblé em 1946;
3) Festa de Iemanjá no Rio Vermelho
em Salvador, 1947; 4) Mãe Senhora, como
era conhecida a Iyalorixá Dona Maria Bibiana
do Espírito Santo, mãe do Terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá, em 1948; e 5) duas imagens que
registram ritual do Candomblé
no ano de 1957 em Salvador













































Em 1988, o próprio Pierre Verger transformou a casa em que morava, na Ladeira da Vila América, em Salvador, na sede da Fundação Pierre Verger, que passou a abrigar uma preciosa biblioteca sobre as religiões africanas no Brasil, um acervo com obras de arte e mais de 60 mil fotos de sua produção, em grande parte dedicada ao Candomblé. Não por acaso, o antropólogo Raul Lody, atual curador da Fundação Pierre Verger, também faz parte da equipe de pesquisa do Arquivo Provincial Franciscano que localizou, no Convento de Santo Antônio, no Recife, o acervo de documentos e fotografias sobre o Candomblé registrados pelo frei Thomás Kockmeyer.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Olhar estrangeiro no Candomblé. In: Blog Semióticas, 11 de abril de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/04/olhar-estrangeiro-no-candomble.html (acessado em .../.../...).



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