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26 de outubro de 2013

Darcy Guarani Kaiowá







A história política brasileira não cabe nas ficções do
realismo mágico porque é por demais inacreditável.
(...) O povo brasileiro pagou, historicamente, um
preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas
de que se tem registro na história, sem conseguir
sair, através delas, da situação de dependência
e opressão em que vive e peleja.

–– Darcy Ribeiro, “O povo brasileiro” (1995). 

      


Polêmico por sua defesa intransigente do foco em relação aos direitos dos índios e à prioridade para a educação no Brasil, antropólogo, sociólogo, educador, político, Darcy Ribeiro (1922–1997) foi atuante em projetos que marcaram época como a criação do Parque Nacional do Xingu e do Museu do Índio, além de ser um dos criadores e primeiro reitor da Universidade de Brasília e também autor de livros importantes, incluindo romances e estudos sobre os povos indígenas.

Em livros e projetos, Darcy Ribeiro continua correndo mundo, décadas depois de sua morte, aos 75 anos, em fevereiro de 1997. Recebeu muitas homenagens, concedeu entrevistas que marcaram época, defendeu causas que antes dele permaneciam no anonimato. Tive a sorte de participar de um breve encontro em 1994 com Darcy Ribeiro. A entrevista, publicada por um jornal de Belo Horizonte, foi um reencontro do então senador com jornalistas e fotógrafos em sua casa, em Brasília, depois de um longo período de tratamento médico.

Sempre engajado nas questões políticas, presença em momentos definitivos da História como ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, no último governo democrático antes do golpe e da ditadura militar que tomou o poder em 1964, foi obrigado ao exílio, como muitos intelectuais brasileiros. Foi para o Uruguai. Em 1969, faria seu primeiro retorno ao Brasil, graças a um habeas corpus, mas com o AI-5, teve seus direitos novamente suspensos, acabou conduzido à prisão e depois ao exílio forçado, desta vez na Venezuela, no Chile e no Peru. No Chile, entre outras atividades, assessorou o presidente Salvador Allende, de quem se tornou grande admirador. 






               
   






Darcy Ribeiro: a partir do alto, em
fotografia de 1994 de Bob Wolfenson.
Acima e abaixo, Darcy nas décadas de
1940 e 1950 com os povos indígenas
Kadiwéu, Urubu-Kaapor, Ofayé-Xavante
e outros grupos estudados por ele,
em imagens selecionadas para a mostra
realizada em 2010 pelo Ministério da Cultura
e pela Funai, com curadoria do fotógrafo
Milton Guran, intitulada
O olhar precioso de Darcy Ribeiro, que
apresentou fotografias de 1946 a 1956.

Também abaixo, mulheres Kadiwéu e
Berta Ribeiro, esposa de Darcy e também
antropóloga, fotografadas por ele na tribo
dos Kadiwéu em Mato Grosso, em
1948. Berta e Darcy viveram durante
anos com os povos indígenas, estudaram
seus costumes, sua cultura, e publicaram
livros e artigos científicos sobre o tema












 
Saudades do Brasil



O retorno ao Brasil, com a redemocratização, o levaria de volta à militância política e Darcy se elegeu vice-governador do Rio de Janeiro, de 1983 a 1987. Na gestão da agenda social do governo de Leonel Brizola, Darcy criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), um projeto pedagógico visionário e revolucionário no Brasil de assistência em tempo integral a crianças, incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal, em 500 unidades instaladas no estado do Rio de Janeiro para atendimento integral aos alunos da rede estadual, incluindo ações complementares de apoio didático, atendimento médico e odontológico.

Depois da experiência como vice-governador viriam outros cargos e gestões, até a eleição como senador, também pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte. Naquela entrevista, em 1994, como éramos mineiros, em maioria, Minas Gerais acabou sendo o tema principal. “Saí de Montes Claros, Minas Gerais, para estudar, e minha carreira me lançou aos índios, ao Rio de Janeiro, a Brasília, a São Paulo, ao exterior. A vida da gente são caminhos que se bifurcam”.

Comprometido com o mandato de senador em Brasília e travando sua batalha existencial contra a doença, Darcy dizia que não via a hora de retornar a Minas sem agenda, sem hora para voltar. “O fato concreto é que sou um mineiro isolado e, por isso, às vezes passa pela minha cabeça fazer uma coisa em Minas ou participar da vida mineira. Minas está ficando careca, de Belo Horizonte a Montes Claros. E me dói ver como a canalha está acabando com a vegetação. Pequi, então, estão derrubando tudo para fazer carvão. Acabando com o cerrado, aquela beleza prodigiosa”.



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Darcy ainda reclamou e ironizou os efeitos dos medicamentos, fez graça com os resultados da quimioterapia, da radioterapia. Depois brincou com os fotógrafos, dizendo que estavam proibidos os closes e os enquadramentos com planos fechados no rosto. “Só plano à distância. Close-up está proibido. Não tenho mais cabelos, não tenho sobrancelhas. Respeitem o velhinho. Está proibido!”, declarou, logo no começo da entrevista, encontrando piada para fazer rir seus entrevistadores e para comentar as mudanças que o tratamento prolongado contra o câncer provocava. Também quis saber o nome completo e a cidade de cada jornalista, cada fotógrafo.



Memórias da Mantiqueira



Minas exporta minérios e exporta mineiros. Mas a gente que é exportado, que vai para a Diáspora, continua com Minas no coração”, ele reconheceu, enquanto explicava que tinha pressa e falava sem parar, esticando o assunto com a história de vida de cada repórter. Quando chegou a minha vez, perguntei sobre as andanças e expedições de Darcy e comentei sobre minhas origens na Serra da Mantiqueira, dos meus antepassados migrantes nas fazendas Catauá e Cabangu desde o século 19, italianos, turcos, holandeses. Ele ficou animado com a conversa e fez muitas perguntas, até que o assunto chegou nos irmãos Villas Boas e Darcy Ribeiro foi longe, provando por A mais B que conhecia muito mais detalhes sobre aquela região e sobre a história de meus antepassados do que eu jamais poderia supor.












O assunto Mantiqueira levaria Darcy Ribeiro aos comentários saborosos sobre a língua dos povos Tupi Guarani e daí a “Maíra”, seu romance autobiográfico de 1976, que relata passagens com os irmãos Villas Boas e seu próprio envolvimento com a causa indígena. Também falou dos outros romances, escritos durante as temporadas no exílio, mas reconheceu que são as páginas de “Maíra” que trazem o encantamento que também o levou às pesquisas de campo.

Em 1946, Darcy formou-se em Antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal Matogrossense, do Brasil Central e da Amazônia (1946-1956). Quando Darcy deixou Montes Claros e chegou a São Paulo para estudar, vinha de outra experiência marcante, depois de desistir do curso de Medicina em Belo Horizonte.














Temporadas entre povos indígenas



Saí de Minas com sentimento forte de missão. Na época eu recebi uma bolsa do sociólogo norte-americano Donald Pierson, fui ver no que dava o curso e acabei cumprindo o bacharelado em Ciências Políticas e Sociais”, ela recordou, com memória prodigiosa para datas, nomes, números, acontecimentos da História. Em 1947, foi contratado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão indigenista criado no início do século pelo marechal Cândido Rondon, uma das figuras a inspirar Darcy no trabalho de assistência às populações indígenas.

No SPI, Darcy realizou pesquisas etnológicas, a maior parte durante períodos prolongados junto aos índios. Em mais de uma década de convívio em longas temporadas visitando os povos do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia, ele escreveria uma série de estudos e teses de referência em Antropologia e Etnologia, entre eles “Religião e Mitologia Kadiwéu” (1950), livro com o qual ganhou o importante prêmio Fábio Prado e, com ele, certa notoriedade. 











Em todas as obras e artigos que escreveu e publicou neste período, Darcy destaca a parceria fundamental da esposa, a antropóloga Berta Gleiser Ribeiro, que o acompanhava em viagens e pesquisas de campo, além de aparecer como co-autora em várias obras. Berta retorna à conversa e à história de Darcy várias vezes, assim como as lembranças de Minas e sua fala apaixonada pela causa indígena, que o levaram a participar de projetos como a criação do Museu do Índio e do Parque Indígena do Xingu.



Tempo da Utopia, o futuro




Os projetos da causa indígena, os rumos da educação pública e momentos importantes como a criação da Universidade de Brasília estavam no centro de atenção, durante a entrevista com Darcy, que enumerava projetos, possibilidades no futuro, o tempo da Utopia. “Dediquei a vida aos índios, à minha paixão por eles e também à escola pública. Minha vida é feita de projetos impessoais para passar o Brasil a limpo, porque o Brasil é máquina de gastar gente. Gastou seis milhões de índios e o equivalente de negros. Para eles? Não! Para adoçar a boca do europeu com açúcar, para enriquecer uns poucos. O povo foi gasto como carvão neste país bruto”.




 



Ele disse que eram ideias para um livro que estava finalizando, que reuniria algumas de suas confissões. “Mas não serão confissões sobre a culpa, à moda de Santo Agostinho. Será um acerto de contas com projetos e histórias que ficaram interrompidos no passado, será um inventário de lembranças importantes, para mim e para o Brasil. Vou falar até de Montes Claros, para que alguém se lembre daquele tal de Darcy Ribeiro que nasceu lá na terra do cerrado”, explica, trazendo de novo a ironia por causa dos efeitos do tratamento de quimioterapia e radioterapia.

Agora não posso aparecer por lá, em Montes Claros, porque vão fugir de mim. A doença me derrubou, derrubou meus cabelos. Estou vivendo períodos em que nem eu me reconheço. Olho no espelho e não vejo a minha cara. Eu tinha cabelos de poeta, adorava aquele cabelão. Até meus adversários admiravam e elogiavam meus cabelos e minhas sobrancelhas longas, desgrenhadas”, disse, entre a graça e o lamento sincero.



Visão de mundo



Prosador veterano, sábio, invariavelmente polêmico, Darcy fala com propriedade da visão de mundo dos índios e das grandes personalidades com as quais conviveu – as vezes em que encontrou Getúlio Vargas, o humor à flor da pele de Juscelino Kubitschek, a época de João Goulart, os capítulos de sua biografia que mais parecem um cronograma de História do Brasil: em 1955, foi encarregado por JK de comandar um programa nacional de alfabetização; em 1961, tornou-se o primeiro reitor da Universidade de Brasília; em 1963, assume o gabinete civil do presidente João Goulart. Depois veio a ditadura militar, a prisão, a vida no exílio.





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A sinceridade de Darcy Ribeiro nunca evitou as críticas nem aos amigos mais próximos nem aos adversários. Ele citava de memória denúncias e dossiês sobre massacres e acusava seus pares da Antropologia de terem rompido seu compromisso com os povos que estudavam, em especial com os indígenas. Segundo Darcy, os antropólogos, em sua maioria, estavam transformados em “cavalos de santo” – aqueles que nos cultos de origem africana são tomados por entidades que vêm falar por meio deles. “Só que, no caso brasileiro, os antropólogos estão tomados por entidades do ‘primeiro mundo’, limitando-se a repetir em suas teses o que falavam os grandes intelectuais lá de fora”.

A conversa com Darcy Ribeiro tem a duração de pouco mais de uma hora, mas cada ponto da pauta rende do entrevistado revelações saborosas sobre a História e a Política, em Minas e em Brasília, no Brasil, sobre quem estava no poder e sobre os que já estiveram. Ele também envolve na prosa os grandes escritores mineiros do século 20, Drummond, Nava, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, vai às referências do barroco, rende reverências ao gênio e às lendas sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Minas é uma terra engraçada de gente engraçada que aceita a ideia de que um dos maiores escultores do mundo andava arrastando a bunda num pedaço de couro”, gracejou Darcy, rindo da própria piada até quase perder o fôlego. “O Aleijadinho é a prova concreta, cravada na pedra, de que Minas datou e atou o Brasil”, conclui Darcy. “Foi o espírito do barroco mineiro que garantiu a construção da alma brasileira. Tenho muito sentimento por isso e também o sentimento de que Minas tem pouco: é pouco dada, por exemplo, ao Aleijadinho”.






Confissões e sorrisos



O livro “Confissões” realmente foi publicado. Sairia em 1997 pela Companhia das Letras, com ilustrações de Oscar Niemeyer. Retornei à pauta daquela entrevista com Darcy Ribeiro no lançamento do livro e tempos depois, no final de 2010, quando foi aberta na Caixa Cultural Rio uma exposição inédita com 50 fotografias produzidas por Darcy Ribeiro nas temporadas que ele viveu com as tribos Kadiwéu, Urubu-Kaapor e Ofayé-Xavante.

Denominada “O Olhar Precioso de Darcy Ribeiro”, a mostra selecionou imagens que pertencem ao acervo do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), incorporado desde 2008 ao Registro Nacional do Programa Memória do Mundo, da Unesco. Nas fotografias de trabalho de Darcy, cenas do cotidiano das aldeias, tatuagens faciais de personagens diversos, rituais e anotações visuais acompanhadas de pequenos textos-legenda, para maiores explicações.

“O Olhar Precioso de Darcy Ribeiro” também incluiu a projeção do clássico filme de autoria de Hans Foerthmann “Um dia de uma tribo na floresta tropical”, recentemente restaurado e digitalizado, que conta a história dos índios Urubu-Kaapor, contactados por Darcy na década de 1940. Milton Guran, organizador da mostra, destacou no texto de apresentação distribuído à imprensa que as séries de fotografias de Darcy são realmente especiais porque ele, ao fotografar, misturava os ânimos da descoberta científica e da experiência humana que os encontros interculturais possibilitam. 
















Darcy Guarani Kaiowá: a partir do alto,
1) Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do
governo João Goulart, é expulso de Brasília
para o exílio no Uruguai, em 1964, quando
é deflagrado o golpe militar; 2) Darcy Ribeiro,
de volta do exílio, no final dos anos 1970, tem
encontro com intelectuais e presos políticos,
ainda durante a ditadura militar: a partir da
esquerda, Jorge Raymundo, Manoel Henrique
Ferreira, Perly Cipriano, Darcy, Antonio Houaiss
e Oscar Niemeyer; 3) acima, Darcy com
Brizola e Niemeyer no apartamento em que
Darcy morava em Copacabana, no Rio de
Janeiro, em 1995, na época do lançamento
da Fundação Darcy Ribeiro.

Abaixo: 1) DarcyLuiz Inácio Lula da Silva,
então dirigente sindical, em 1984, no
Congresso da Internacional Socialista
no Rio de Janeiro; 2) em visita a uma das
salas de aula dos CIEPs (Centro Integrado de
Educação Pública) que instalou no Rio de Janeiro,
depois de se eleger como vice do governador
Leonel Brizola, em 1992; e 3) um encontro de
Darcy e Paulo Freire em 1991, no Rio de Janeiro,
em um seminário que teve como tema os CIEPS;
4) Darcy beija Brizola, governador do Rio;
5) um encontro de Darcy em Brasília, em 1995,
com lideranças dos povos do Parque
Nacional do XinguTambém abaixo,
Darcy na praia de Copacabana, em 1976,
quando retornou ao Brasil depois do exílio
imposto em 1964 pela ditadura militar.
No final da página, Darcy com os índios
Kadiwéu na década de 1940 



















"Ele fotografava para entrar em contato e produzia uma memória desse encontro. Sua fotografia superou o registro descritivo e adentrou pelo mundo da imaginação. Em suas imagens, a impressão que temos é que Darcy se deu ao luxo de agir como um flâneur, como se fora um turista acidental a cultivar relações e recolher lembranças”, explica Milton Guran, enumerando algumas das reflexões originais que o pensamento teórico e as imagens documentais de Darcy Ribeiro representam.

O resultado da exposição, que segue em agenda itinerante pelas capitais, é um rico painel sobre as diferenças e a visão de mundo dos povos indígenas – que recebem de Darcy um registro fraternal e respeitoso, ainda que profundamente melancólico, mesmo quando um raro sorriso aberto do pesquisador abraçado aos índios Kadiweu no Mato Grosso do Sul, em 1947, é enquadrado pela câmera de Berta Ribeiro, sua esposa e companheira de missão.










Ao concluir este artigo sobre aquela entrevista de 1994 e sobre as fotografias de Darcy Ribeiro com os índios, recordo algumas de suas frases que fizeram história. Muitas delas, especialmente, são reveladoras sobre seu pensamento, sobre o acervo que ele deixou e sobre sua militância política. Palavras de Darcy, lançadas em "O Brasil como problema", livro que ele publicou em 1995 pela Editora Francisco Alves e que retornariam depois com o livro "Confissões", publicado em 1997 pela Companhia das Letras:

"Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil se desenvolver de forma autônoma e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu". E, nas páginas seguintes, uma citação que também poderia ser tomada como conclusão e como lição de vida: "Coragem! Mas vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada".


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Darcy Guarani Kaiowá. In: Blog Semióticas, 26 de outubro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/10/darcy-guarani-kaiowa.html (acessado em .../.../...).









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7 de junho de 2012

Relíquias de Marc Ferrez







Depois da existência da fotografia e do cinema, 

a reprodução desenhada ou pintada da verdade 

não interessa nem vai interessar a mais ninguém. 

–– Giacomo Balla (1871–1958).    



Boas e más notícias trouxeram de volta à mídia o nome de Marc Ferrez (1843-1923), um dos mais importantes fotógrafos brasileiros de todos os tempos. As boas notícias: uma parte considerável da obra completa de Ferrez foi adquirida pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que lançou no Brasil e na França um catálogo impecável reunindo ensaios escritos por especialistas e uma coleção de 160 imagens primorosas do final do século 19 e do começo do século 20.

Além das fotografias reunidas na edição, há também um acervo de mais de 300 imagens originais de Ferrez, a maioria belas panorâmicas em negativos de grande formato (40cm X 110cm), que permanece em exposição itinerante nas sedes do IMS e em outros espaços no Brasil e no exterior. Parte do acervo também está aberta ao público no site que o IMS mantém na internet. Tanto o catálogo impresso como a mostra itinerante e as imagens disponíveis no site revelam a arte grandiosa de Ferrez, que criou no Brasil, antes de qualquer outro pioneiro da fotografia, uma linguagem que se tornaria universal e quase obrigatória em livros e reportagens de turismo e no formato de cartões postais.

Também há más notícias: o nome de Marc Ferrez frequentou as páginas policiais por conta de um grande roubo no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, registrado em 2005, quando desapareceram cerca de 150 de suas fotografias mais raras e celebradas. Um crime perfeito, que não deixou pistas, aparentemente realizado sob orientação de especialistas: além das séries valiosas de Ferrez, também furtaram fotografias e negativos originais de importantes e pioneiros fotógrafos do século 19, entre eles August Stahl (1828-1877), Guilherme Liebenau (1838-1900) e Benjamin Mulock (1829-1863).











Imagens de Marc Ferrez: o fotógrafo em
autorretrato datado de 1876, aos 33 anos.
No alto, registro da primeira locomotiva
(Trem de Ferro) e o grupo de engenheiros
responsáveis pelas obras da Estrada de
Ferro Rio-Minas, fotografados por Ferrez
no alto da Serra da Mantiqueira, no ano
de 1882. Acima, Ferrez registra a imperatriz
Teresa Cristina e Dom Pedro 2°  com a
princesa Isabel e a família reunida no
Paço Imperial do Rio de Janeiro, em 1887.
Abaixo, entrada da Baía de Guanabara no
Rio de Janeiro, vista de Niterói, em
fotografia de 1890 de Marc Ferrez






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As boas e as más notícias colocaram em evidência o gênio de Marc Ferrez, nome fundamental da fotografia e do cinema brasileiro que, em seus 80 anos de vida, registrou todo o Brasil em belas panorâmicas e em retratos impressionantes, entre ilustres personalidades e anônimos que encontrou em cada região do país. Filho de um casal de escultores e gravadores franceses que vieram para o Brasil em 1816, com a Missão Artística Francesa, Ferrez foi comparado aos grandes pintores pelos intelectuais do Império e da primeira República, o que era a mais nobre das distinções, numa época em que o trabalho de fotografar estava longe de ser considerado uma arte. 



Arauto da Modernidade



O livro, na verdade um belo catálogo fotográfico intitulado “O Brasil de Marc Ferrez”, traz detalhada biografia, cronologia de seus principais trabalhos e ensaios de Françoise Reynaud, curadora do Museu Carnavalet, em Paris, e dos pesquisadores Maria Inez Turazzi, Pedro Karp Vasquez, Laurent Gervereau, Frank Stephan Kohl, Sérgio Burgi e Antônio Fernando De Franceschi, superintendente do IMS. Com a publicação e a exposição itinerante do acervo, foi a primeira vez que a obra de Marc Ferrez chegou ao público de forma abrangente.
 







Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
visita do imperador Pedro 2°, no ano
de 1882, à inauguração do Túnel da
Mantiqueira, na primeira Estrada de Ferro
que interligava Rio de Janeiro e Minas
Gerais. Acima, a princesa Isabel
Cristina de Bragança em 1887.
Abaixo, vista da construção da
Estrada de Ferro Santos Jundiaí
pela São Paulo Railway em 1880






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Nas fotografias de Marc Ferrez, o que mais surpreende, junto com sua demonstração de domínio da luz, é sua precisão na escolha do ponto de vista para ressaltar no enquadramento a qualidade estética das cenas registradas. São imagens comoventes, mesmo depois de todos os avanços tecnológicos da maquinaria fotográfica. Como destaca De Fraceschi em um dos ensaios do livro, abordando as singularidades da obra de Ferrez e sua influência sobre pintores célebres que se dedicaram às paisagens do Brasil:

O que interessa, cada vez mais, é compreender as relações passadas e presentes entre a fotografia e a pintura, sobretudo agora, quando as vanguardas contemporâneas parecem ter se desinteressado do mundo objetivo, deixando para a fotografia a inteira responsabilidade de se ocupar do real. Diante da obra monumental de Marc Ferrez, fica mais fácil compreender porque se atribui às suas belas imagens, produzidas na segunda metade do Oitocentos e nas primeiras décadas do século 20, os primeiros registros sobre a entrada do Brasil na Modernidade”.







          



No alto, Igreja de São Francisco de Assis 
em Ouro Preto, Minas Gerais, uma das obras-
primas do Barroco Mineiro e do mestre
Aleijadinho, retratada por Marc Ferrez
em 1880. Acima, Paul Ferrand fotografado
por Marc Ferrez na Serra do Itacolomy,
em Ouro Preto, no ano de 1886. Abaixo,
vista do Porto de Santos em 1880



         



Além do privilégio da nomeação como primeiro (e único) Fotógrafo da Marinha Imperial, Ferrez pôde percorrer o país como um dos principais nomes da Comissão Geológica do Império, a partir de 1875, fotografando atividades econômicas, a construção das principais estradas de ferro, as construções seculares da arquitetura barroca, as minas de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, as belas paisagens e os cenários desconhecidos das cidades, das florestas e das fazendas, seus costumes e personagens dos salões, das ruas, dos grotões.

Funcionário dos mais destacados nos quadros do Segundo Império, primeiro entre seus pares a visitar os confins do território nacional e registrá-los em fotografias e documentos cartoriais, Marc Ferrez também desenvolveu equipamentos próprios e introduziu experiências técnicas como as fotografias coloridas, por ele batizadas de autocromo, em aperfeiçoamento à invenção dos irmãos Lumière. Observar a evolução temporal de sua arte equivale a uma leitura da história do Brasil e da trajetória da fotografia, dos processos químicos mais primitivos aos avanços da tecnologia das câmeras, lentes e processos de revelação e reprodução.










Cartões postais de Marc Ferrez: no alto,
escravos no garimpo de ouro na região de
Diamantina, no interior de Minas Gerais,
em 1888. Acima, paisagem surpreendente
às margens do Rio São Francisco no
Nordeste do Brasil no ano de 1875. Abaixo,
a praia de Ipanema, Rio de Janeiro, 1895









Expedições do Império



Filho mais jovem do francês Zéphyrin Ferrez, contando com mais quatro irmãs e um irmão, ficou órfão de pai e mãe no Rio de Janeiro aos sete anos. Mandado para a França, onde estudou até a adolescência, retornou ao Brasil em 1859 e passou a trabalhar na Casa Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha começado a trabalhar com uma seção dedicada à fotografia. Na Casa Leuzinger, Ferrez aprenderia as técnicas da arte de fotografar com o alemão Franz Keller (1835-1890). Aos 21 anos, em 1865, investiu tudo que tinha para abrir a firma Marc Ferrez & Cia., um estúdio fotográfico que o colocou entre os principais profissionais da corte.

Em 1875, a trajetória de Ferrez mudou radicalmente quando ele recebeu convite para integrar, como fotógrafo, a expedição chefiada pelo geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878) e financiada pela Comissão Geológica do Império. Hartt faria história como autor da primeira obra rigorosamente científica sobre a geografia do Brasil – “Geology and Physical Geography of Brazil” (1870). A Expedição Hartt percorreu várias regiões do país e acendeu em Ferrez o gosto pela aventura de desbravar e registrar os confins de norte a sul do território nacional.













Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
menino índio, fotografia de 1880, e
índia e seu filho fotografados no sul
da Bahia, em 1875, e índios botocudos
no interior de Mato Grosso (1876).
Acima, a primeira fotografia no interior
de uma mina de ouro, em Ouro Preto,
Minas Gerais, no ano de 1888. Abaixo,
fotografia da série de 1876 dedicada
aos índios botocudos; um grupo de
índios Bororo em fotografia de 1880;
e duas fotografias que registram aspectos
da vida indígena feitos na década de 1870
e apresentados no Museu Nacional em 1882
na Exposição Antropológica Brasileira




             



              












Depois da experiência com a Expedição Hartt, Ferrez passa a investir esforços nos estudos sobre geologia e geografia e, no ano de 1880, decide encomendar na Europa a confecção de uma máquina fotográfica por ele idealizada, para a execução de imagens panorâmicas em grandes dimensões. Daí aos cargos oficiais de maior importância no Império de Dom Pedro 2°, também entusiasta da fotografia, foi um passo.

O destaque como funcionário a serviço da nação continuaria nos primeiros tempos da República. Reconhecido no Brasil e no exterior como fotógrafo de paisagens, de obras públicas, de cartões postais e de retratos de políticos e personalidades que se tornariam célebres, entre eles os escritores Machado de Assis e Rui Barbosa, Ferrez realizaria a partir de 1903 uma de suas séries mais reproduzidas até a atualidade: a documentação completa das obras no Rio de Janeiro de instalação da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, dos antigos edifícios às construções que foram erguidas no começo do século 20.





Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
mata de Araucárias, no interior do Paraná,
em fotografia datada de 1884. Abaixo, grupo
de escravos e seus filhos reunidos em uma
fazenda de café na Serra da Mantiqueira,
Sul de Minas Gerais, no ano de 1885;
e escravos na colheita do café em uma
fazendo do Vale do Paraíba,
no Rio de Janeiro, em 1882





Qualidade estética e documento histórico



Marc Ferrez obteve em sua época as mais importantes condecorações pela excelência de seu trabalho fotográfico, tanto no Brasil como em outros países, em diversas instituições internacionais, entre elas os primeiros grandes prêmios em exposições nos EUA (Philadelfia, 1876) e na França (Paris, 1878), além de ter suas fotografias exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Várias de suas séries e álbuns também foram incorporadas desde o final do século 19 aos acervos da Société Géographique, sediada na França.

Como se não bastasse, o nome de Marc Ferrez ainda está ligado ao nascimento do cinema no Brasil: foi ele quem patrocinou a produção dos primeiros filmes nacionais e instalou em 1907, no Rio de Janeiro, o Cine Pathé, primeira sala de exibição permanente de espetáculos cinematográficos. Ainda nesse ano, a Casa Marc Ferrez & Filhos tomaria para si a distribuição da grande maioria dos filmes exibidos nas diversas salas de cinema que surgiram no Rio de Janeiro. 










O Rio Antigo segundo Marc Ferrez:
no alto, panorâmica da Ilha Fiscal na
Baía da Guanabara, em 1885. Acima, a
Avenida Central no Rio de Janeiro de 1910.
Abaixo, a estação da estrada de ferro da
Central do Brasil, Rio de Janeiro, 1899







 
A extraordinária qualidade estética, formal e documental da obra de Marc Ferrez na produção de retratos de personalidades, além das panorâmicas, tanto as urbanas quanto a paisagem natural que emoldura e envolve seus enquadramentos, foi preservada intacta por seus familiares no último século. Depois da morte do fotógrafo patriarca, o guardião de sua obra completa foi Gilberto Ferrez (1908-2000), neto de Marc e um dos mais destacados historiadores da iconografia brasileira e da obra dos viajantes estrangeiros no decorrer da história do Brasil.

Desde a morte de Gilberto, a guarda e a preservação dos arquivos dos Ferrez estão a cargo de sua filha, Helena Ferrez, que mantém há décadas a catalogação dos documentos da família. Os catálogos preservados contam com um extenso patrimônio em suportes variados, no qual estão incluídos desde as relíquias de Zéphyrin, pai de Marc e tataravô de Helena, às clássicas séries de ensaios em panorâmicas registradas em daguerreótipos e fotografias por Marc Ferrez.











Relíquias de Marc Ferrez: no alto,
amostra da experiência de Marc Ferrez
com o autocromo em cores, realizada em
1915 na Quinta da Boa Vista, no Rio de
Janeiro, seguida de duas imagens do Rio no
ano de 1875: o Pão de Açúcar, visto a partir
do bairro do Flamengo, e uma panorâmica da
entrada da Baía da Guanabara. Abaixo, o Largo
do Paço e a Rua Primeiro de Marco, no 
Rio de Janeiro, em 1890. No final da
página, mais duas imagens de Marc Ferrez em
1875: orla do Rio de Janeiro, com vista para o
Cais Pharoux e adjacências, e panorâmica que
registra os arrecifes e o porto do Recife, feita
por Ferrez no alto do Farol da Barra, tendo
em primeiro plano o Forte do Picão, que foi
construído em 1614 e batizado desde então
pelos holandeses como Castelo do Mar








Aos cuidados de Helena Ferrez também estão os acervos reunidos durante décadas por Gilberto Ferrez e todos os arquivos e filmes em negativo do filho de Marc e pai de Gilberto, Júlio Ferrez (1881-1945) – pioneiro que trouxe os primeiros equipamentos de cinema para o Brasil e realizou as primeiras filmagens em território brasileiro. Os catálogos dos Ferrez contam ainda com séries de correspondências, muitos álbuns da intimidade da família, cadernos de anotações das várias gerações, peças de artes plásticas e impressos em geral.

A maior parte deste imenso acervo, entretanto, não faz parte do material reunido no livro e na mostra “O Brasil de Marc Ferrez”. As imagens que constam do livro e da mostra foram selecionadas da coleção adquirida pelo IMS em 1998 – uma coleção que totaliza cerca de 5.500 fotografias diferentes, produzidas no século 19 e começo do século 20, incluindo mais de 4 mil negativos originais em superfícies de vidro.

Importante como resgate da importância capital do trabalho de Marc Ferrez, o livro, assim como a mostra e a manutenção do acervo pelo IMS, também consolidam e estendem para além do círculo de especialistas um trabalho que é um dos mais importantes legados visuais do Segundo Império e da República Velha. Compreendida no período que vai de 1865 a 1918, a perícia técnica e a grande arte de Marc Ferrez se mantêm, até os dias de hoje, como um dos registros fundamentais da fotografia no Brasil e no mundo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Relíquias de Marc Ferrez. In: Blog Semióticas, 7 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/reliquias-de-marc-ferrez.html (acessado em .../.../...).



 







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