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24 de agosto de 2022

Estratégias do Zé Carioca

 





O que faço é um trabalho de amor. Eu não entrei

neste negócio apenas para ganhar dinheiro.

Walt Disney (1901-1966).


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Criado por Walt Disney durante uma viagem ao Rio de Janeiro e, oficialmente, lançado em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca completa hoje seu aniversário. Trata-se de um caso exemplar das estratégias políticas que usam personagens de histórias infantis e, na perspectiva do Brasil, um capítulo importante da invasão cultural norte-americana, como já foi apontado por diversos estudos. São 80 anos de existência do único personagem brasileiro na The Walt Disney Company – uma data comemorada com homenagens e grandes negócios anunciados para os próximos meses. Entre as homenagens, novas histórias em quadrinhos, com o relançamento da revista do personagem e de uma edição especial do “Almanaque do Zé Carioca”, além do lançamento de três livroinéditos: “O essencial do Zé Carioca: celebrando os 80 anos de sua estreia”, pela editora Culturama, que desde 2020 assumiu a publicação das revistas Disney no Brasil; “Zé Carioca conta a história do Brasil”, um projeto do escritor Eduardo Bueno; e "Muito prazer, Zé Carioca", uma biografia do personagem escrita por Jorge Carvalho de Mello. 

Entre os negócios anunciados também estão relançamentos do personagem no canal Disney Plus, uma programação de eventos criada em parceria da Disney com o canal ESPN e conteúdos especiais nos sites e redes sociais da empresa, além de coleções temáticas do Zé Carioca licenciadas pela primeira vez para roupas, brinquedos, instrumentos musicais e acessórios que serão vendidos em parcerias com diversas marcas no Brasil e em outros países. Com as estratégias comerciais, a meta é reposicionar o personagem em destaque entre os produtos da Disney, depois do quase esquecimento nas últimas décadas, quando até suas revistas tiveram publicação cancelada no mercado brasileiro. Nos últimos anos, o Zé Carioca apareceu apenas ocasionalmente em pequenas histórias no “Almanaque Disney”.







Estratégias do Zé Carioca: no alto, a nova versão do
personagem, que chega ao 80 anos. Acima, Zé Carioca
na nova imagem para o reposicionamento comercial.

Abaixo, Walt Disney e sua equipe desembarcando
no Rio de Janeiro, em 1941, no programa de governo
nomeado como Política da Boa Vizinhança; e o cartaz
original da estreia de Zé Carioca no cinema, ao lado
do Pato Donald, no filme de 1942 "Alô Amigos"




             

A história do Zé Carioca teve início sob encomenda para um projeto político: assim que foi deflagrada a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney foi destacado pelo Departamento de Estado para a missão de criar peças de cinema e de histórias em quadrinhos para a aproximação dos Estados Unidos com os países da América Latina, dentro das estratégias da chamada Política da Boa Vizinhança, criada pelo governo Franklin Roosevelt na década de 1930, e que ganhou força para conquistar a simpatia dos governos e dos povos latino-americanos em tempos de guerra contra os nazistas. No vértice brasileiro da aproximação estão acordos comerciais com o governo de Getúlio Vargas e a importação pelos Estados Unidos de Carmen Miranda, na época a maior estrela da música, do rádio, do cinema e do teatro de revista no Brasil. Carmen embarcou para os EUA em 1939, alcançando em pouco tempo um sucesso estrondoso na Broadway e em Hollywood.


Malandro, alegre, hospitaleiro


Na sequência dos acordos comerciais e de geopolítica dos EUA com o governo Vargas, viriam dois grandes projetos de cultura e política a cargo de Orson Welles e de Walt Disney. O filme de Orson Welles no Brasil, “It’s All True”, jamais foi concluído pelo cineasta, que retornou aos EUA no final de 1942 depois de filmagens que foram uma sucessão de escândalos e de acidentes. Walt Disney, por sua vez, chegou com sua equipe ao Brasil em 1941 e, assim como Welles, ficou encantado com a cultura brasileira. Durante a viagem de Disney veio a inspiração para criar o Zé Carioca, um papagaio malandro, alegre e hospitaleiro, que vivia no morro da favela, enrolava seu próprio cigarro, gostava de feijoada, de cachaça e de futebol. Sua estreia aconteceu em 1942, no filme “Alô Amigos” ("Saludos Amigos" / "Hello Friends"). Com o sucesso comercial do filme, nos EUA, no Brasil e em outros países, Zé Carioca retornaria em uma série de histórias em quadrinhos e em outros dois filmes: “Você já foi à Bahia?” ("The Three Caballeros", 1944) e “Tempo de Melodia” ("Melody Times", 1948).








Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
bebe cachaça com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, o presidente Getúlio Vargas
(à esquerda) com Walt Disney (à direita) no
Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Abaixo,
um encontro do maestro Heitor Vila Lobos com
Walt Disney, também no Rio de Janeiro






Em “Alô Amigos”, sexto longa-metragem de animação de Walt Disney (os anteriores foram "Branca de Neve e os Sete Anões", "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi"), há quatro histórias, ou quatro segmentos, cada um representando um país, e todos estão interligados. No primeiro, "Lago Titicaca", o turista norte-americano Pato Donald visita o Peru; no segundo, "Pedro", um pequeno avião parte do Chile para buscar correspondência aérea na Argentina; no terceiro, "O Gaúcho", Pateta é o cowboy dos EUA que vai aos pampas argentinos; no quarto, "Aquarela do Brasil", Zé Carioca recebe o viajante dos EUA, o Pato Donald, e o acompanha em um passeio pelo Rio de Janeiro e por diferentes paisagens do Brasil, seguindo também pela América Latina. Donald, que havia estreado no cinema em 1934, em um episódio curto do filme “Sinfonias Tolas” (“Silly Simphony”), aparece em forma redesenhada e definitiva, com o uniforme azul e branco de marinheiro – na verdade um “mariner”, integrante do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, evidentemente destacado para um “esforço de guerra”.

No mesmo ano de 1942, Donald apareceria em outro filme de propaganda de guerra, o desenho anti-nazista “A Face do Fuehrer” (“Der Fuehrer’s Face”), que venceu em 1943 o Oscar de melhor curta-metragem de animação. Donald também é protagonista em “O Espírito de 1943” (“The Spirit of ‘43”), filme curto em que ele seráconvencido a doar parte de seu salário de trabalhador para as campanhas da guerra, e em outros dois filmes de animação em longa-metragem com Zé Carioca, os já citados “Você já foi à Bahia?” e “Tempo de Melodia”. “Alô Amigos” seria um grande sucesso comercial de Disney, apresentando na trilha sonora duas canções brasileiras que se tornariam populares no mundo inteiro: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu, que seriam gravadas em seguida por Carmen Miranda e por muitos artistas de diversos gêneros e nacionalidades, de Frank Sinatra e Ray Conniff a Paco de Lucia e Xavier Cugat, entre outros.






             






Estratégias do Zé Carioca: no alto, Pato Donald
dança o samba com Zé Carioca, em cena do filme
"Alô Amigos". Acima, Walt Disney (de bigode) e sua
equipe visitam a quadra da escola de samba Portela
na companhia de Paulo da Portela.

Abaixo, Carmen Miranda durante as filmagens
de "Uma Noite no Rio", em 1941, com
o músico Zezinho (de camisa listrada), que foi
um dos integrantes do grupo Bando da Lua e
o dublador de Zé Carioca em "Alô Amigos"
 









A gênese do papagaio carioca


O sucesso no cinema levou Zé Carioca para as páginas das histórias em quadrinhos. No final de 1942, ele surgiria em tirinhas publicadas por vários jornais nos EUA e, nos anos seguintes, chegaria ao Brasil e a outros países no formato de revista em quadrinhos que exploravam o exotismo das paisagens do Rio de Janeiro. Na biografia de Walt Disney publicada em 1994, “An American Original” (Disney Editions), o autor Bob Thomas descreve as circunstâncias que levaram Disney a criar o personagem em uma suíte do Hotel Copacabana Palace, que esteve temporariamente transformada em estúdio, enumerando referências que estão na gênese do filme "Alô Amigos" e do personagem do papagaio malandro. Tudo indica que na origem do Zé Carioca estão ideias originais de José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido como J. Carlos, cartunista que fazia sucesso na revista “O Tico-Tico”.

Entre outros personagens que o cartunista desenhava para “O Tico-Tico”, havia um papagaio sem nome que fumava charuto e aparecia ocasionalmente em charges e histórias de outros personagens. Ao tomar conhecimento dos projetos para o filme e para um novo personagem que seria criado, J. Carlos presenteou Disney, durante um jantar, com um desenho do tal papagaio que ele havia criado. No desenho, o papagaio abraçava o Pato Donald. Segundo o biógrafo Bob Thomas, o desenho de J. Carlos, associado a outras referências de pessoas do meio artístico que Disney conheceu no Brasil, levariam à concretização do personagem Zé Carioca. Entre as referências também estava o músico e humorista Zezinho (José do Patrocínio Oliveira), que tocava cavaquinho no grupo Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Não por acaso, Zezinho é o dono da voz que dubla o Zé Carioca em “Alô Amigos”.






Estratégias do Zé Carioca: acima, uma
reunião no hotel Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro, em 1941, com Jorge Guinle,
dono do hotel, Carmen Miranda e Walt Disney.
Abaixo, Walt Disney filmando nas areias da
praia de Copacabana e passeando de barco
na baia da Guanabara com a equipe de trabalho
















Outras influências para a criação do personagem Zé Carioca vêm do charuto que o compositor Heitor Vila Lobos sempre fumava e dos olhos azuis do compositor Herivelto Martins – duas das personalidades muito populares da época, no meio artístico do Rio de Janeiro, que tiveram vários encontros com Walt Disney, tanto em reuniões de trabalho como em jantares e passeios pelos mais conhecidos cenários cariocas. O biógrafo também cita os convites que foram feitos pessoalmente por Disney para o compositor Ary Barroso, para o maestro Vila Lobos e para o cartunista J. Carlos, para que eles fossem trabalhar sob contrato com a equipe Disney em Hollywood, mas todos eles recusaram as propostas.

Nos anos seguintes, Ary Barroso venderia os direitos de algumas canções para filmes da Disney e para outros estúdios de Hollywood. Vila Lobos, no final da década de 1950, seria contratado para criar a trilha sonora de "Green Mansions" (no Brasil, "A flor que não morreu"), superprodução da Metro Goldwyn Mayer com direção de Mel Ferrer e com Audrey Hepburn e Anthony Perkins no elenco. O maestro brasileiro compôs uma peça sinfônica belíssima, hoje conhecida como "Floresta do Amazonas", mas ficou extremamente insatisfeito com o uso que fizeram de suas partituras na trilha sonora da versão final do filme e nunca mais quis repetir a experiência.


Do cinema para os quadrinhos


Na temporada de Disney no Brasil há também a presença de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que acompanhou uma visita de Disney e sua equipe à quadra da escola de samba na Guanabara e deixou Disney impressionado por sua elegância, sua alegria e sua gentileza hospitaleira – as mesmas características que seriam levadas para o filme “Alô Amigos” e que ficaram visíveis na recepção que Zé Carioca faz para o Pato Donald no Rio de Janeiro. Bob Thomas também cita outro brasileiro como referência para a criação do papagaio: o advogado Manuel Vicente Alves, mais conhecido como Dr. Jacarandá, um tipo folclórico na época, na zona sul carioca, que também foi apresentado a Disney na visita da equipe à quadra da Portela. Tal como aconteceria com Zé Carioca, o Dr. Jacarandá sempre usava, sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, chapéu panamá de aba reta, paletó de alfaiataria, camisa social com gravata borboleta colorida e um inseparável guarda-chuva.









Estratégias do Zé Carioca: no alto, a capa
da primeira edição do livro "An American Original",
biografia de Walt Disney escrita por Bob Thomas.
Acima, o Zé Carioca em sua imagem clássica.

Abaixo, os encontros de Walt Disney com
o compositor Ary Barroso e com Alceu Penna,
ilustrador da revista O Cruzeiro, no hotel
Copacabana Palace em 1941










Nos estúdios Disney, Zé Carioca ganhou vida também sem a presença do Pato Donald. As tirinhas e histórias em quadrinhos do personagem, criadas a partir de 1942, tiveram roteiro de Hubie Karp e desenhos de Bob Grant e Paul Murry – os três integrantes da equipe Disney que também trabalharam no filme “Alô Amigos”. O personagem, batizado como Joe Carioca, estreou nas páginas de jornais e revistas dos EUA em outubro de 1942 e quatro meses depois chegava ao Brasil publicado em “O Globo Juvenil”, suplemento mensal que circulou entre 1937 e 1952, em formato tabloide de 16 páginas impressas em papel jornal, tendo como editor Nelson Rodrigues, que ganharia notoriedade como cronista e dramaturgo. As histórias do Zé Carioca também tiveram uma edição especial publicada pela Editora Melhoramentos em 1945: o personagem, fumando seu charuto, aparece na capa tendo ao fundo a baía da Guanabara.

Nas páginas de “O Globo Juvenil”, Zé Carioca faria sucesso com suas histórias e tirinhas intercaladas com quadrinhos que traziam heróis estrangeiros como Superman, Mandrake, O Fantasma, Flash Gordon, Brucutu e Ferdinando, entre outros. A primeira vez que Zé Carioca apareceu na capa de uma revista foi na primeira edição de “O Pato Donald”, que inaugurou a parceria comercial entre Disney e a Editora Abril, em julho de 1950, participando apenas de uma história. Depois desta primeira fase do personagem, Zé Carioca retornaria somente na década de 1960 às revistas dos personagens Disney. Em 1961, ele ganharia sua própria revista de publicação semanal com histórias inéditas, criadas no Brasil, e com adaptações de histórias de outros personagens da Disney, tendo na capa da primeira edição o título "O Pato Donald apresenta Zé Carioca". Em 2018, depois de 68 anos, a Editora Abril encerrou seu contrato de publicação das revistas Disney, que desde 2020 passaram a ser publicadas pela Editora Culturama, mas várias revistas permanecem canceladas.







Estratégias do Zé Carioca: acima, o papagaio
malandro criado por J. Carlos para as charges
da revista "O Tico-Tico", uma das fontes de
inspiração para Walt Disney criar o Zé Carioca.

Abaixo, uma sequência dos primeiros esboços
da equipe Disney para o personagem; e a capa
da primeira edição da revista "O Pato Donald"
no Brasil, em junho de 1950, que teve a presença
de Zé Carioca como convidado especial








As intenções políticas


O encontro de Zé Carioca com o Pato Donald em “Alô Amigos” também é um campo fértil para estudos políticos e de historiografia. No livro “The Hispanic Image on the Silver Screen” (“A imagem hispânica na tela de prata”, Editora Greenwood, 1992), o historiador Alfred Charles Richard Jr. apresenta uma constatação que se tornou célebre: segundo ele, o filme “Alô Amigos” conseguiu consolidar, para grande parte do público de países da América Latina, em poucos meses, mais simpatia pelos Estados Unidos do que as ofensivas do Departamento de Estado norte-americano conseguiram antes em mais de 50 anos de ocupações militares e de ações diplomáticas.

Em seu estudo, Richard Jr. avalia os efeitos que o cinema de Hollywood teve sobre o público na formação e na propagação de estereótipos, assim como as relações muito próximas entre o cinema norte-americano e a política de outros países da América, com filmes que, com muita frequência, justificavam e glorificavam a intervenção dos Estados Unidos nos assuntos das nações latino-americanas. No caso brasileiro, tais intervenções são especialmente visíveis em dois momentos de regimes ditatoriais: primeiro, na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, que coincide com a vigência da Política da Boa Vizinhança do governo Roosevelt; e posteriormente na ditadura militar que tomou o poder no período de 1964 até os anos 1980.










Estratégias do Zé Carioca: acima, Walt Disney
passeando na praia de Copacabana, em 1941;
e desenhando croquis e cenários para o filme
"Alô Amigos" com Mary Blair na varanda do hotel,
no Rio de Janeiro. Abaixo, Walt Disney passeando,
anônimo no meio da multidão na Avenida Rio Branco,
centro do Rio de Janeiro, fotografado para reportagem
da revista "Life" por Hart Preston; e o encontro
entre o presidente do EUA, Franklin Roosevelt,
e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, em
Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943.

Também abaixo, a capa da edição brasileira
do livro de Ariel Dorfman e Armand Mattelart,
"Para ler o Pato Donald"; e uma seleção de
capas históricas do Zé Carioca no Brasil:

1) Zé Carioca, edição especial da Melhoramentos em
1945; 2) Zé Carioca na capa de "O Globo Juvenil" em
janeiro de 1944; e 3) Zé Carioca na primeira edição de
sua revista, em 1961, que traz na capa o título
"O Pato Donald apresenta Zé Carioca"







Tais associações entre ações políticas, cinema, literatura e estereótipos instrumentalizados na cultura brasileira são também abordadas em diversos estudos de crítica literária, de comunicação social, de sociologia e de antropologia, entre eles “Dialética da Malandragem” (Revista de Estudos Brasileiros da USP, 1970), de Antonio Candido; “Carnavais, Malandros e Heróis” (Editora Rocco, 1979), de Roberto da Matta; e "A Invasão Cultural Norte-Americana" (Editora Moderna, 1988), de Júlia Falivene Alves. Uma abordagem mais específica sobre o tema, feita a partir da análise de personagens de Walt Disney e de sua influência na América Latina, foi publicada em 1971, no Chile, por Ariel Dorfman e Armand Mattelart, e se tornaria um clássico incontornável: “Para ler o Pato Donald – Comunicação de massa e colonialismo”, que teve primeira edição no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra, em tradução do historiador de quadrinhos Álvaro de Moya.

Dorfman, nascido na Argentina, e Mattelart, nascido na Bélgica, ambos militantes de esquerda na luta pelos Direitos Humanos, propõem, em suas próprias palavras, um “manual de descolonização” a partir de uma leitura dos quadrinhos por um viés marxista. Uma definição reveladora sobre o estudo é apresentada de forma resumida, pelos próprios autores, na abertura do terceiro capítulo do livro: “Os povos subdesenvolvidos são para Disney, então, como as crianças; devem ser tratados como tais, e se não aceitam essa definição de seu ser, é preciso descer suas calças e lhes dar uma boa surra. Para que aprendam!” Observadas com um intervalo histórico de mais de 50 anos, pode-se perceber com muita clareza o quanto as análises radicais e ideológicas de Dorfman e Mattelart removeram as máscaras de inocência e de ingenuidade que, por muito tempo, conseguiram disfarçar o aparato violento de dominação cultural e os mecanismos agressivos de propaganda política, manipulados, desde sempre, para favorecer e fortalecer os interesses do império norte-americano.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Estratégias do Zé Carioca. In: Blog Semióticas, 24 de agosto de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/08/estrategias-do-ze-carioca.html (acessado em .../.../…).

















1 de fevereiro de 2022

Arte negra nas Américas






A história da escravidão africana na América é um abismo

brutal de degradação e miséria que não se pode sondar....

–– Joaquim Nabuco (1849-1910).  
   


Resumindo: é um evento que não tem a pretensão de constituir um inventário completo sobre a abrangência do assunto nem de propor uma história da arte revisada com foco na obra de afro-americanos. Mas é uma novidade em sintonia com os novos tempos. Trata-se de uma exposição inédita apresentada na Universidade Pepperdine em Malibu, na Califórnia, reunindo obras e documentos que narram conquistas e contribuições de artistas afro-americanos nos últimos seis séculos – tanto nos Estados Unidos como em alguns países de América Latina. A exposição “The Cultivators: Highlights from the Kinsey African American Art & History Collection” (Os cultivadores: destaques da coleção de arte e história afro-americana de Kinsey), com curadoria de Khalil Kinsey e Larry Earl, está aberta no espaço mais nobre da universidade, o Frederick R. Weisman Museum of Art, e prossegue até 27 de março, quando terá agenda itinerante por instituições nos Estados Unidos e outros países.

Na interseção da arte e da história, a exposição cobre a vida, a produção cultural e as realizações de um grupo representativo de afro-americanos desde o século 16 até os tempos recentes, incluindo obras e ações relacionadas à Proclamação da Emancipação dos cidadãos mantidos em escravidão, assinada em 1862 pelo presidente Abraham Lincoln (a escravidão tornou-se ilegal nos Estados Unidos através da aprovação da 13ª Emenda Constitucional em 1865); às mobilizações contra o racismo e contra o linchamento de negros no decorrer do século 20; às mobilizações pela igualdade com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960; e aos recentíssimos eventos do Black Lives Matter (Vidas negras importam) iniciados nos Estados Unidos desde 2013 com multidões em protestos contra a violência direcionada às pessoas negras. Em uma iniciativa que permanecia inédita no circuito de museus e galerias de arte, a exposição na Universidade Pepperdine celebra somente artistas afro-americanos, oferecendo uma contra-narrativa crucial ao colocá-los no centro, e não nas margens, da história norte-americana.












Arte negra nas Américas: no alto, Untitled, pintura
em óleo sobre tela de 1951 de Hughie Lee-Smith.
Acima, fotografia de Earnest Whiters de 1968 faz
um registro histórico da marcha em homenagem ao
pastor batista Martin Luther King Jr., liderança política
e ativista dos Direitos Civis que foi assassinado em abril
de 1968 em Memphis, Tennessee. Também acima,
"Primeiro voto", aquarela em policromia de
Gayle Hubbard na primeira página do jornal
"Harper's Weekly", de Nova York, na edição histórica
de 16 de novembro de 1867, que registrou a primeira
eleição nos EUA com pessoas negras na condição
de eleitores; e uma fotografia de Bernard Kinsey
em seu escritório de trabalho.

Abaixo, a família Kinsey: Bernard, Shirley e o filho do
casal, Khalil, atual curador e diretor da Fundação Kinsey;
e The Cultivators, pintura em óleo sobre tela de 2000
de Samuel Dunson que faz homenagem ao trabalho
dos Kinsey e que dá título à exposição aberta na
Universidade Pepperdine. Todas as imagens desta
postagem fazem parte do catálogo da exposição









A história da arte negra na América do Norte, assim como em toda a América Latina, e também em outros continentes, surge como uma história de resistência contra a violência, contra a opressão e contra o sofrimento das populações capturadas e negociadas no continente africano e levadas à força para o trabalho escravo do outro lado do oceano Atlântico. No informe sobre a exposição, a curadoria destaca a expressão “mito da ausência”, usada pelo historiador Lerone Bennett Jr. (1928-2018), que se dedicou a pesquisas sobre as relações raciais nos Estados Unidos, para se referir aos capítulos da história que tiveram afro-americanos como protagonistas e que foram por muito tempo ignorados.

A expressão "mito da ausência" é aplicada cada vez com mais frequência nos estudos acadêmicos, na educação e nas ciências sociais, como referência ao mascaramento do preconceito racial, pois tal mascaramento também configura uma prática racista de exclusão pelo "apagamento". O mito da ausência tornou invisível a trajetória de muitas gerações de artistas – que permaneceram anônimos em sua época e surgem agora, anos depois, ou décadas e séculos, em muitos casos, com obras que provocam impacto e impressionam. Pode-se reconhecer que foram silenciados, perdidos, roubados, humilhados, ignorados, deixados para trás, mas não esquecidos. Entre os artistas selecionados estão, entre outros, Ernie Barnes, John Biggers, Bisa Butler, Elizabeth Catlett, Robert Duncanson, Sam Gilliam, Jacob Lawrence, Norman Lewis, Augusta Savage, Laura Wheeler Waring, Lois Mailou Jones, Henry Ossawa Tanner, Alma Thomas, Hughie Lee-Smith, Romare Bearden e Charles White.











Arte negra nas Américas: no alto, Mulher vestindo
lenço laranja
, pintura 
em óleo sobre tela de 1940
de Laura Wheeler Waring. Acima, Duas mulheres
africanas
, desenho em técnica mista sobre pergaminho de
1942 de autoria de Eldzier Corter. Abaixo, Gamin Gamin,
escultura em bronze de 1930 de Augusta Savage;
e um retrato do escritor James Baldwin desenhado
por Romare Bearden em Paris, por volta de 1950,
quando Bearden foi um dos primeiros negros dos
Estados Unidos a frequentar como aluno os ateliers
de mestres como Brancusi, Giacometti e Matisse










Arte e resistência


A maioria dos artistas reunidos no acervo em exposição têm, pela primeira vez, destaque por sua produção artística, e poucos estão registrados nos livros didáticos de história e nos compêndios de história da arte. Vale lembrar que somente na década de 1980 um primeiro negro conquistou pleno reconhecimento nas artes plásticas nos Estados Unidos – ele foi Jean-Michel Basquiat (1960-1988), nascido em Nova York com ascendência porto-riquenha por parte de mãe e haitiana por parte de pai. Quatro décadas depois da revelação que foi Basquiat, o acervo de peças originais agora reunido, com pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, estamparias e obras em suportes variados de madeira, papel, tecido e pedrarias, é celebrado e contextualizado por meio de documentos históricos, cartas e manuscritos garimpados em diversas instituições, livros raros e fotografias que contam a história das lutas, da resistência e da perseverança afro-americanas.

A extensa e variada seleção de obras de arte negra, na verdade, é uma monumental coleção particular: a coleção de arte da família Kinsey, iniciada na década de 1960, e que só agora ganha sua primeira grande retrospectiva. Todo o acervo também está reunido em um catálogo ilustrado da coleção e da exposição na Universidade Pepperdine. Quando o empresário Bernard Kinsey e Shirley Kinsey se casaram em 1967, depois de se conhecerem como estudantes na Universidade da Flórida, o casal estabeleceu a meta de visitar 100 países diferentes durante sua vida juntos. Enquanto viajavam e exploravam outros países e culturas, começaram a colecionar arte, documentos e artefatos de história da América como lembranças preciosas das experiências de viagem. À medida que a coleção crescia, eles perceberam que havia tantos aspectos sobre sua própria herança cultural que nem eles nem outros pesquisadores conheciam e que as peças reunidas tinham um grande valor não apenas como raridades, mas também como uma expressão legítima da presença e da importância dos afro-americanos na arte e na cultura.











Arte negra nas Américas: acima, Charleston,
South Carolina, aquarela
 datada de 1936 de
Ellis Wilson; e Brincadeira de criança,
aquarela com data de 1950 de Aaron Douglass.

Abaixo, Mt. Tacoma from Lake Washington,
pintura em óleo sobre tela com data de 1885 de
Grafton Tyler Brown; e uma gravura publicada
em 1863 pelo Harper's Weekly com o título
"Os efeitos da proclamação: negros libertos
entrando em nossa jurisdição em
Newbern, North Carolina"


 
 


           


            



Conquistas históricas


A paixão do casal Kinsey pela história, pela cultura e pelos até então desconhecidos artistas negros das Américas os levaria a criar a Bernard and Shirley Kinsey Foundation for Arts and Education, com foco em iniciativas para o desenvolvimento da história e da cultura afro-americana, incluindo arquivos, programas de pesquisa, bolsas de estudo, edição de livros, eventos e apoio a várias instituições, entre elas a Rosa Parks Foundation. A valiosa e incomparável coleção de arte e história afro-americana do casal Kinsey, agora gerenciada por seu filho Khalil Kinsey, curador da fundação e da exposição, celebra as conquistas e contribuições dos negros americanos desde antes da formação dos Estados Unidos até os tempos atuais.

Se você quer mudar uma pessoa”, anuncia uma frase do patriarca Bernard Kinsey destacada no informe sobre a exposição, “a primeira coisa que você deve fazer é mudar sua consciência de si mesma, começa com sua consciência. A Coleção Kinsey se esforça para dar voz, nome e personalidade aos nossos ancestrais, permitindo que o espectador entenda os desafios, obstáculos, triunfos e sacrifícios extraordinários dos afro-americanos.” Khalil Kinsey acrescenta: “Esta é uma história de família, ilustrando o que uma família fez para contar sua história. Mas também é sobre a América. Porque a maioria das pessoas só conhece metade da história.”







Arte negra nas Américas: acima, gravura em
litografia de 1863 retrata um regimento voluntário

de soldados negros em Camp William Penn, na
Pensilvânia, em treinamento para combater as
tropas de confederados dos estados escravagistas
do sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil
ou Guerra de Secessão. Abaixo, litografia de 1872
registra os integrantes da primeira bancada de políticos
de ascendência afro-americana no Congresso dos
Estados Unidos, todos eles nascidos na escravidão.
Também abaixo, Hiram Rhoades Revels, o primeiro
cidadão negro a ser eleito para o Senado dos EUA,
em fotografia de 1870 feita por Mathew Brady;
e uma família de mulheres afro-americanas em
um daguerreótipo anônimo datado de 1855




      


 





Quebrando estereótipos


Além dos artistas que surgem com suas obras-primas na condição de obras inéditas para a maioria dos estudiosos e do público, contribuindo para dissipar mitos e quebrar preconceitos e estereótipos, há também na exposição documentos que registram momentos emblemáticos da história. Os destaques incluem documentos bizarros para os padrões atuais, como notas de venda, anúncios, cartas e certidões em manuscritos para o comércio de escravos. Há também raridades que são marcos da história da literatura e da imprensa, como livros e revistas originais com letras coloridas à mão da época da Guerra Civil; exemplares poucos conhecidos da arte, da música e da literatura do Harlem Renaissance, quando o bairro ao norte de Manhattan teve seu apogeu para a cultura negra (do começo do século 20 até o final da década de 1930); e itens que destacam personalidades e momentos-chave no Movimento dos Direitos Civis, a partir da década de 1960, incluindo panfletos originais, documentos e muitas fotografias que permaneciam inéditas.













     
   


Arte negra nas Américas: no alto, Quatro vacas
no campo, pintura em óleo sobre tela de 1893 de
Edward Mitchell Bannister. Acima, uma Paisagem
em pintura em óleo sobre tela de 1865 de
Robert S. Duncanson; e Porto, pintura de 1940 de
Allan Randall Freelon. Abaixo, litografia em base de
madeira de 1953 de Charles White com o título de
Cantor popular (Folk singer). Também abaixo,
Faces do meu povo, xilogravura de 1990 de
Marlon Burrows, seguida de Mãos do campo,
pintura em óleo de 1988 de Johnathan Green;
e Corredor na praia, pintura em tinta acrílica
de 1997 de Ernie Barnes






Além da beleza comovente de pinturas, gravuras, esculturas e desenhos de autores que estavam, em sua maioria, há muito tempo no anonimato, entre as raridades da coleção Kinsey, apresentadas no extenso acervo em exposição, também estão cartas e manuscritos pela primeira vez divulgados de lideranças políticas e personalidades como Martin Luther King Jr., James Baldwin, Malcolm X e Alex Haley, entre outros. Há ainda os registros cartoriais mais antigos de que se tem notícia sobre a presença e a atuação de afro-americanos nos Estados Unidos, incluindo uma certidão de batismo de uma criança negra e uma certidão de casamento civil de um casal negro, ambas do século 18.

Entre as raridades sobre literatura estão documentos em suas versões originais, com destaque para um exemplar recentemente descoberto da primeira edição de 1773 de poemas de Phillis Wheatley, primeira pessoa afro-americana a ter um livro publicado; e a primeira edição de 1853, completa e encadernada, de “12 Anos de Escravidão”, do autor Solomon Northrup, livro que em 2013 foi transformado no filme de mesmo título. Northrup, nascido livre em Nova York, em 1808, vivia com sua esposa e filhos quando foi sequestrado e acorrentado em 1841 por mercadores de escravos e vendido para fazendeiros da Louisiana, onde ficou cativo para trabalhos forçados em fazendas de cultivo de algodão e cana de açúcar. Em 1853, quando finalmente foi libertado, Solomon Northrup retornou para a família em Nova York e publicou seu relato dramático em livro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte negra nas Américas. In: Blog Semióticas, 1º de fevereiro de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/02/arte-negra-nas-americas.html (acessado em .../.../…).


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