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21 de maio de 2021

Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado



 




Em Gaia, não existe poluição nem desequilíbrio. As regras  

do jogo determinam: qualquer espécie que produza algo  

nocivo ou que afete o meio ambiente está condenada.  

––  James Lovelock em “Gaia: Um novo olhar  

sobre a vida na Terra” (1979).  


Faz escuro mas eu canto  

porque a manhã vai chegar.  

––  Thiago de Mello em “Madrugada camponesa” (1965).  


   



O fotógrafo brasileiro aclamado como mestre do preto e branco continua seu metódico e sublime trabalho sobre as incomensuráveis belezas da natureza e as terríveis violências que os homens infligem a ela. Sebastião Salgado é, sempre, sinônimo de imagens de impacto: pode ser o formigueiro humano em Serra Pelada, na floresta amazônica do Brasil, ou os campos de petróleo no Kuwait que parecem saídos da ficção científica, os trabalhadores sem terra do Brasil em assembleias nos acampamentos do MST, as manadas de elefantes selvagens lutando contra a extinção nas savanas da África, milhares de pinguins amontoados nas paisagens de gelo da Antártida ou famílias nômades que sobrevivem isoladas em confins remotos da Ásia. Em todos os cenários, os enquadramentos poéticos e melancólicos de Sebastião Salgado impressionam.

Seu último grande projeto foi “Gênesis”, uma expedição que viajou durante anos pelos últimos recantos da natureza mais remotos e ainda preservados no planeta. O projeto gerou em 2013 um fotolivro que bateu recordes de vendas, mesmo sendo uma edição de luxo em capa dura, e uma exposição de fotografias que levou multidões aos grandes museus e aos principais espaços de cultura no Brasil e em vários países. “Amazônia”, a nova investida de Sebastião Salgado, parece tão colossal como foi “Gênesis”. O novo projeto surgiu como resultado de sete anos de expedições fotográficas pelo interior da maior floresta tropical do mundo, com Salgado e sua equipe indo ao encontro dos povos indígenas e do território que abriga aquele ecossistema extraordinário da imensidão verde com exuberante vegetação nativa.













Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: no alto,
o fotógrafo registrado na abertura da exposição
na Philharmonie de Paris por Patricia Moribe;
acima, também na abertura da exposição
em fotografias de Joel Saget. Abaixo, um
flagrante feito pelo próprio Sebastião Salgado
durante a montagem da exposição; o fotógrafo
em ação na floresta amazônica, em fotografia
de seu filho, Juliano Salgado; e a fotografia
escolhida para o cartaz da mostra, com uma vista
das margens do rio Jaú, no Estado do Amazonas.
Todas as imagens desta página, exceto os três
retratos acima identificados, fazem parte do catálogo
da mostra "Amazônia" de Sebastião Salgado
















.Em “Amazônia”, as mais de 200 fotografias selecionadas mostram retratos da diversidade grandiosa das paisagens com rios e montanhas, incluindo imagens áreas tiradas de aviões e helicópteros durante missões do Exército que o fotógrafo acompanhou, e cenas da vida cotidiana dos diferentes povos da floresta. O que Salgado registra tem uma beleza comovente, ainda mais quando se sabe que a grandiosidade da floresta está cada vez mais sob ataques implacáveis e criminosos, com recordes de desmatamento que vêm sendo sucessivamente batidos desde 2018, quando chegou a poder no Brasil a máfia liderada por Jair Bolsonaro, o presidente da República de posições ultradireitistas, assumidamente fascistas, de ódio e destruição, inimigo do meio ambiente, da justiça e da democracia, um político retrógrado que a maioria da imprensa estrangeira nomeia com os adjetivos “pária” e “genocida”.


Luz e sombras


Trabalhadas em variações de luz e sombras, as fotografias de “Amazônia”, assim como aconteceu com o projeto “Gênesis”, deram origem a um fotolivro em formato pôster de mais de 500 páginas, publicado pela editora Taschen, e ontem foram apresentadas, pela primeira vez, em uma grande exposição que reabriu para o público, depois de um ano de fechamento pela pandemia de covid-19, as luxuosas galerias do Parc de la Villette da Philharmonie de Paris (veja o link para uma visita virtual no final deste artigo). De acordo com o extenso dossiê sobre o projeto distribuído à imprensa, as imagens de “Amazônia” nasceram de uma intenção política de Sebastião Salgado, que procura celebrar o que ainda resta da imensa floresta tropical para conseguir protegê-la.

Depois da temporada em Paris, onde permanecerá até 31 de outubro, a exposição já tem um roteiro itinerante programado até o final de 2022 para outros espaços nos cinco continentes, começando por Londres, depois Roma, incluindo também São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidadesAs primeiras reportagens com destaque na imprensa estrangeira apontam que “Amazônia” surge como o trabalho mais pessoal e mais reivindicativo de Sebastião Salgado, atualmente com 77 anos. O fotógrafo chegou a anunciar que convidaria, para a abertura da exposição em Paris, lideranças indígenas do Brasil, para fazer ouvir suas vozes contra a destruição da floresta e suas mensagens de alerta sobre as consequências que isso traz para o planeta. Por causa da pandemia, os convites foram descartados, mas a presença e as mensagens dos povos indígenas ressoam na exposição em fotografias magníficas e também em gravações de vídeo e no áudio de canções de seus rituais.
















Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
no alto, o fotógrafo e visitantes anônimos na
abertura da exposição em Paris, em fotografias
de Mario Garcia Sanchez. Acima, o catálogo da
exposição em formato pôster com 528 páginas
e capa dura, em edição de luxo da 
Taschen.

Abaixo, três jovens do povo Zuruahã,
no Estado do Amazonas, e uma amostra
dos registros selecionados de "Amazônia"




















Na cenografia da exposição “Amazônia” apresentada nas galerias da Philharmonie de Paris, o visitante é convidado a penetrar na penumbra e nas sombras para observar as imagens capturadas e ampliadas pelo fotógrafo. A viagem do visitante pelas galerias, seguindo os enquadramentos registrados por Sebastião Salgado, também é acompanhada por temas musicais criados para a exposição pelo francês Jean-Michel Jarre, um dos pioneiros da música eletrônica, que utilizou, para a criação e as mixagens de suas composições, os arquivos de sons da Amazônia que integram o acervo do Museu Etnográfico de Genebra, na Suíça.

Há, também, duas salas especiais anexadas à exposição que apresentam projeções em alta definição de mais de uma centena de fotos, com acompanhamento de gravações sinfônicas para “O Mito da Criação do Rio Amazonas”, composição de Heitor Villa-Lobos, e de melodias de acordes incidentais criados pelo músico Rodolfo Stroeter. Nas galerias e nas salas especiais, a natureza exuberante da imensidão verde surge em variações de preto e branco, nas grandes panorâmicas e nos detalhes do ecossistema que ocupa quase um terço do continente sul-americano, envolvendo o Brasil e mais oito países. “A Amazônia é a pré-história da Humanidade, o paraíso na Terra”, destaca Sebastião Salgado no breve texto sobre a mostra distribuído à imprensa.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado: acima,
a preparação para um ritual do povo Yawanawá.

Abaixo, imagem da aldeia Yawanawá no
território do Vale do Javari, a segunda maior
reserva indígena do Brasil; o arquipélago fluvial
de Mariuá, localizado no rio Negro; e uma
panorâmica do rio Ituí, no Vale do Javari









Agronegócio criminoso


A abertura da exposição em Paris acontece em um momento de urgência de ações políticas em defesa da região amazônica e do meio ambiente no Brasil. O Congresso Nacional está discutindo e votando um projeto de lei polêmico que altera de forma significativa o controle ambiental e dispensa licenciamento de diversos setores, entre eles as atividades agropecuárias ou obras de infraestrutura e de saneamento básico. Há também inúmeras ações irregulares do governo federal sob o comando das milícias de Bolsonaro, que têm cada vez mais posicionamento explícito pelo desmatamento da Amazônia, do Pantanal de Mato Grosso e de outras áreas de conservação, atuando para reduzir a fiscalização, para burlar as normas e para dar todo estímulo a atividades ilegais de exploração dos recursos naturais. Sebastião Salgado declarou que a ofensiva do desmonte das instituições ambientais é provisório e acabará com o fim do governo Bolsonaro, mas até as próximas eleições, em novembro de 1922, a destruição avança em larga escala.

No dia 19 de maio, véspera da abertura da exposição em Paris, enquanto Sebastião Salgado e sua esposa Lélia Wanick, parceira de todos os projetos, participavam de entrevistas coletivas na França, chegava do Brasil mais uma notícia grave sobre o desmonte premeditado das políticas de proteção ambiental e o envolvimento da gestão Bolsonaro em ações criminosas: uma grande operação foi deflagrada pela Polícia Federal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, servidores como o presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, e empresários do setor madeireiro, todos envolvidos com esquemas fraudulentos de exportação ilegal de madeira e contrabando de produtos florestais.








Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, o Monte Roraima, em formato de
mesa, localizado na tríplice fronteira entre
Brasil, Venezuela e Guiana. Abaixo, os xamãs
yanomami preparam o ritual para a subida do
Pico da Neblina (visto ao fundo), no norte do
Estado do Amazonas, fronteira com a Venezuela,
o ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros
de altitude, constantemente encoberto pelas
nuvens. Também abaixo, imagem aérea da
chuva que desaba sobre a Serra do Divisor,
extensa área no Estado do Acre
 

















As entidades e uma parte do aparato de fiscalização e proteção do meio ambiente no Brasil estão temporariamente paralisadas trabalhando para o lado mau da nação”, denunciou Sebastião Salgado, que também se diz confiante de que, em breve, as entidades e o aparato de proteção ambiental voltarão a ser o que sempre foram, cumprindo suas funções dentro da lei e não atuando em cumplicidade com ações criminosas. “Vejam por exemplo a Funai, Fundação Nacional do Índio, que sempre foi uma instituição de proteção à população indígena e era dirigida por antropólogos e sociólogos da maior seriedade. Hoje a Funai protege o agronegócio destruidor e é comandada por um policial sem nenhuma qualificação para o cargo”, alertou Salgado, acrescentando que o mesmo ocorre com o Ibama, uma entidade que sempre teve um papel fundamental nas questões ambientais e que no cenário catastrófico provocado pelo atual governo “não tem mais nenhuma capacidade de pressão e controle”.


Governo predador


Questionado pelos jornalistas, Sebastião Salgado classificou o atual governo brasileiro como “predador”. “O governo Bolsonaro é mau. As propostas dele são todas ruins, seja contra negros, mulheres, indígenas ou ainda a proposta absurda de armar o povo brasileiro. São todas propostas profundamente violentas. Espero que esse mal seja curado nas próximas eleições”, ressaltou o fotógrafo, alertando que a destruição das florestas brasileiras acontece por causa dos hábitos da sociedade de consumo. Segundo Salgado, grande parte da destruição da Amazônia acontece para produzir carne para o mercado externo e também para o cultivo da soja, que é exportada por grandes empresários do agronegócio para alimentar vacas e porcos “franceses, chineses e russos”. “Nós precisamos do apoio do planeta, da pressão política de todos os países, da pressão econômica sobre o governo Bolsonaro para proteger a Amazônia”, completou, convocando as autoridades internacionais a se posicionarem contra a gestão criminosa do governo Bolsonaro.










Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, imagem das instalações na exposição
na Philharmonie de Paris e Sebastião Salgado
em entrevista coletiva durante a exposição
fotografado por Shun Kambe.

Abaixo, Manda Yawanawá, menina da
da aldeia de Escondido, no território de
Rio Gregório, Estado do Acre; e uma família
do povo Korubo, que habita a região oeste do
Estado do Amazonas; e uma família do povo
Ashaninka, que vive no Estado do Acre





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Sebastião Salgado, que iniciou em 2013 suas expedições para o projeto “Amazônia”, também reconheceu que a mostra atual pode ser considerada uma continuidade do trabalho que ele desenvolveu e apresentou em “Gênesis”, que também mostrava áreas do planeta ainda não afetadas pela civilização e que já incluía imagens da floresta amazônica e dos povos indígenas. Sob o olhar estético personalíssimo de Salgado, o visitante da nova exposição é conduzido pelas belezas do ecossistema tropical que permanece, em grande parte, em sua forma original. Os primeiros painéis que o visitante encontra, nas galerias da Philharmonie de Paris, trazem mapas em grande escala e imagens de satélites que destacam as áreas de reservas indígenas, as terras da União, as unidades de conservação e as zonas atualmente desmatadas e degradadas, que já representam cerca de 20% do território total que recebe o nome de Amazônia.

No mapeamento das reservas dos povos indígenas, Sebastião Salgado apresenta os dez grupos com os quais conviveu durante sua jornada de sete anos, além de outras viagens pontuais que fez à região, a última em fevereiro deste ano. Durante as temporadas com cada tribo, incluindo yanonamis, marúbos, yawanawás, o fotógrafo aguardou autorização para cada contato e repetiu um mesmo ritual entre as árvores: pendurava um lençol branco e abria um largo tapete de plástico no chão, pronto para ser enrolado quando chegasse a chuva que cai quase diariamente em toda a região amazônica. Os povos indígenas com os quais Salgado conviveu durante as expedições, incluindo suas principais lideranças, estão registrados nas imagens em exposição, em fotografias para as quais se prepararam pintando o corpo e enfeitando-se com o cocar das cerimônias.







Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tananeloanpikit Vakwë e sua companheira
Tsamavo, da tribo que vive na região do rio Itaquaí,
acima da foz do rio Branco, e tiveram seu primeiro
contato com alguém de fora da tribo em 2015.
Abaixo, crianças do grupo de Vakwë 








Hipótese de Gaia


Amazônia”, a exposição, tem sido classificada como uma experiência mística pela imprensa estrangeira e pelos visitantes. Observando as imagens, a impressão que se tem é que Sebastião Salgado realmente conseguiu registrar e traduzir a beleza e os mistérios da última grande floresta tropical do planeta Terra. A experiência transcendental que emana de suas fotografias tem implicações filosóficas e até teológicas, mas trata-se de um acervo documental de importância política e estética em uma magnitude que ainda não havia sido realizada sobre a imensidão do ecossistema amazônico. E talvez seja, também, um dos melhores exemplos da ecologia profunda – aquele conceito que surgiu desde a década de 1970, a partir da teoria científica conhecida como “hipótese de Gaia”, proposta pelo ambientalista britânico James Lovelock e nomeada em referência ao ser da mitologia grega, Gaia, uma divindade que personificava a Mãe-Terra em suas potencialidades primordiais.






Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado:
acima, Tupa e Tumi Muxavo, filhos de um
casal da tribo que teve seu primeiro contato com
não indígenas em 1996. Abaixo, Kulutxia, que
teve seu primeiro contato fora da tribo em 2015
e Sebastião Salgado em frente à ampliação de
sua fotografia Xamãs do Xingu, fotografado
por Ueslei Marcelino (Agência Reuters) 









Lovelock, que desde a década de 1960 trabalhava nos comitês científicos da NASA que analisam os parâmetros e possibilidades de vida fora do nosso planeta, passou a desenvolver e defender a teoria segundo a qual a Terra, sua biosfera e seus componentes físicos (atmosfera, criosfera, hidrosfera, litosfera), fazem parte de um complexo e monumental organismo vivo, integrado, planetário e interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas para garantir de forma cooperativa a sobrevivência de todos os seres, incluindo todo o reino vegetal, todo o reino animal e nossa espécie humana. Segundo Lovelock, essa “entidade viva” que é a Terra, que o senso comum também chama de “natureza”, representa nosso mundo físico como uma metáfora para todos os processos biológicos atuantes no planeta.

A teoria de Lovelock foi descrita por ele em suas célebres conferências, em diversos artigos científicos e no livro “Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra”, publicado em 1979 e, desde então, considerado um dos marcos principais do movimento ecológico que surgia naquela época. Segundo os estudos de Lovelock e de seus colaboradores, todos especialistas em diversas áreas do conhecimento, também os componentes inorgânicos do nosso planeta Terra, como as águas e a atmosfera, devem ser considerados parte da biosfera porque são fundamentais e definitivamente integrados, atuando em equilíbrio e tornando possíveis os processos evolutivos que nos habituamos a chamar de “vida”. A conclusão, como alerta Sebastião Salgado, com urgência e gravidade, é inevitável: a destruição de um ecossistema da magnitude da Amazônia, em última instância, provocará o rompimento desse equilíbrio cooperativo que garante a sobrevivência de todos os seres que habitam nosso planeta. Inclusive dos seres humanos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Gaia: Amazônia por Sebastião Salgado. In: Blog Semióticas, 20 de maio de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/05/gaia-amazonia-por-sebastiao-salgado.html (acessado em .../.../…).



Para uma visita virtual à exposição na Philharmonie de Paris,  clique aqui.





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23 de dezembro de 2019

A noite do Natal de Banksy




Natal nos traz de volta às ilusões da infância, recorda 
aos mais velhos os prazeres da juventude e transporta 
os viajantes de volta à lareira e à tranquilidade do lar. 

–– Charles Dickens, The Pickwick Papers (1836). 


O artista mais polêmico, mais político, mais surpreendente e mais misterioso de nossa época, do qual ninguém sabe realmente a verdadeira identidade, no melhor estilo lendário dos super-heróis que mantêm a identidade em segredo para salvar o mundo, registrou em dose dupla, em latitudes bem distantes no mapa do Hemisfério Norte, suas mensagens polêmicas e políticas para o Natal de 2019. As novas obras com a assinatura provocadora de Banksy surgiram às vésperas do Natal na cidade de Birmingham, na Inglaterra, e na cidade palestina de Belém (Bethlehem), na Cisjordânia – terra natal do mítico Rei Davi nos relatos da Bíblia Sagrada e também, segundo a tradição do Cristianismo, o verdadeiro local do nascimento de Jesus Cristo.

A autenticação das novas obras de Banksy com mensagens sobre o Natal foi feita pelo próprio artista na Internet, em seu site oficial e na conta que ele mantém no Instagram. A obra que surgiu em Birmingham é uma declaração poderosa do artista e militante político de esquerda sobre os relatórios oficiais que confirmam o aumento da pobreza e da falta de moradia no Reino Unido: Banksy grafitou em um muro, ao lado de um banco público onde com frequência dormem moradores de rua, a imagem de duas renas de Papai Noel, figuras típicas dos enfeites mais apreciados nas festas natalinas. Na cidade palestina de Belém, o artista montou a instalação de um pequeno presépio tradicional, com as figuras de Maria, José, o menino Jesus recém-nascido na manjedoura do estábulo e alguns animais, próximo a um muro perfurado por tiros da artilharia pesada dos soldados do Estado de Israel.




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A noite do Natal de Banksy: no alto, as renas
de Papai Noel grafitadas junto a um banco
de rua na cidade de Birmingham, Inglaterra.
Acima, as renas fotografadas à luz do dia e
a multidão que se formou ao saber da notícia
do novo trabalho do misterioso grafiteiro.
Abaixo, o vídeo postado por Banksy em
sua página oficial no Instagram para
confirmar a autoria de sua nova obra


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Mantendo sua condição décadas como um dos grandes mistérios do mundo da arte, Banksy também publicou em sua página no Instagram um pequeno vídeo sobre a nova obra na Vyse Street, uma área de joalherias e lojas de grifes luxuosas em Birmingham. Em poucos minutos, o enquadramento em câmera fixa mostra no grafite as duas renas prestes a voar arrastando o banco que substitui o trenó do Papai Noel. Na trilha-sonora, a canção “I'll Be Home for Christmas” (Eu estarei em casa no Natal) – um clássico nostálgico que todo final de ano retorna em filmes, programas de TV e anúncios de publicidade, desde que foi lançada em 1943, por Bing Crosby, para homenagear os soldados que passariam o Natal nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial, e que foi regravada, entre muitos outros, por Ella Fitzgerald, Nat King Cole, Frank Sinatra, Elvis Presley e The Carpenters. No vídeo de Banksy, um morador de rua, identificado na legenda como “Ryan”, se prepara para passar a noite deitado no banco, na calçada da rua, sob as estrelas, enquanto passam pessoas e carros. “Deus abençoe Birmingham”, diz a legenda.



A cicatriz de Belém



Na cidade palestina de Belém ocupada por tropas militares do Estado de Israel, a mensagem de Banksy para o Natal de 2019 não é nem menos polêmica nem menos política que as duas renas mágicas de Papai Noel arrastando, no lugar do trenó, o banco de rua usado como cama pelos sem-teto de Birmingham. O pequeno presépio, batizado pelo artista como “Scar of Bethlehem” (A cicatriz de Belém), foi instalado na rua, em frente ao muro construído por Israel para impedir o acesso do povo palestino, bem na entrada do The Walled-Off Hotel (Hotel cercado) – uma peça de resistência que o próprio Banksy inaugurou em 2017 com o slogan provocador de “o pior hotel do mundo” e que mistura, aos aposentos para hospedagem de turistas, as funções como museu para abrigar seu acervo de arte de contestação e como manifesto político e ideológico em protesto pela violência dos israelenses contra os palestinos na região.







A noite do Natal de Banksy: no alto e acima,
o presépio instalado na rua, em Belém, na
Cisjordânia, em frente ao muro construído pelo
Estado de Israel contra o povo da Palestina.

Abaixo, detalhe das figuras do presépio
e a pintura de 2005 em que Banksy retrata o
muro de Israel como uma barreira que impede a
entrada de José e Maria na cidade de Belém







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No presépio de Banksy, as figuras tradicionais da sagrada família estão posicionadas diante de um pedaço do muro que foi perfurado por um tiro, disparado por artilharia de guerra, cujo formato em quatro pontas acima de José, de Maria e do menino Jesus, rodeados por uma vaca e um burro, faz lembrar a estrela de Natal. No pedaço do muro atrás do presépio é possível ler em grafites meio apagados as palavras rabiscadas em inglês e francês: amor e paz. O árabe Wissam Salsaa, um dos funcionários contratados por Banksy para administrar o Hotel Walled-Off, declarou às agências de notícias que a instalação do presépio na rua, pelo artista e militante político, simboliza uma “cicatriz da vergonha” pela violência que o muro representa e, também, um protesto contra todos que apoiam a ocupação ilegal dos territórios palestinos pelas tropas militares e pelos assentamentos de colonos financiados pelo Estado de Israel.

O muro começou a ser construído por Israel na Cisjordânia em 2002, como barreira contra o povo da Palestina, com extensas fileiras de blocos de concreto maciço de mais de oito metros de altura. Em 2004, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia, principal órgão judiciário da ONU, declarou que a construção do muro era ilegal e determinou que ele deveria ser removido, mas o Estado de Israel não cumpriu a determinação do parecer e continuou com a construção da barreira e com novas ocupações forçadas em territórios palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Símbolo das ocupações, a barreira de concreto construída por Israel tem sido uma fonte de inspiração para a arte subversiva de Banksy, que fez várias pinturas no muro e criou um novo modelo de resistência com sua mistura de arte e política, amplificando para o mundo a voz de protesto dos palestinos e transformando o espaço, que representa violência e segregação racial, em uma atração turística.








A noite do Natal de Banksy: no alto,
a pomba branca da paz, que no território
palestino ocupado pelas tropas militares do
Estado de Israel usa colete à prova de balas.

Acima e abaixo, a fachada do The Walled-Off Hotel
instalado por Banksy na fronteira da Cisjordânia,
em frente ao muro de Israel. Também abaixo,
detalhes do hotel e do muro; o saguão do
hotel; uma hóspede em um dos quartos;
e a janela do quarto com luneta e vista
para o "muro da vergonha"



.














Criações subversivas



Com o passar dos anos a popularidade e a surpreendente criatividade de Banksy só vêm aumentando, com grafites e murais de arte e política pintados por ele clandestinamente em Bristol, na Inglaterra, que se supõe ser sua terra natal, em Londres e em outras cidades de vários países pelo mundo afora – o que faz muitos questionarem se as obras personalíssimas de Banksy são criações subversivas de um só artista ou resultado de um trabalho coletivo que mobiliza apoiadores e co-autores espalhados em outras latitudes, distantes das fronteiras da Inglaterra. Além da cena do presépio e do Hotel Walled-Off instalados na Cisjordânia, no muro de Israel contra os palestinos estão diversos trabalhos de Banksy pintados por ele sob disfarce nos últimos anos, alguns destacados entre suas obras mais populares. Lá estão, entre outros, a menina de vestido rosa revistando o soldado israelense fortemente armado e de mãos para cima, assim como a imagem de uma escada que convida o observador a subir e pular o muro ou o ativista em preto e branco com máscara prestes a atirar, no gesto de protesto, um buquê de flores coloridas.

Outras imagens de Banksy no “muro da vergonha” incluem a garotinha levada ao céu por balões coloridos, uma janela que rompe o concreto e abre para uma pacífica paisagem de montanhas – e também a pomba branca que traz no bico um ramo de oliveira, símbolo da paz desde o Antigo Testamento da Bíblia. No grafite de Banksy, porém, a pomba branca da paz, nos territórios palestinos ocupados pelas tropas de Israel, veste um colete à prova de balas e tem o coração marcado à distância na mira de uma arma. Outra obra muito conhecida de Banksy que aborda uma cena tradicional de Natal é uma pintura feita por ele em 2005 mostrando a passagem bíblica da Natividade descrita nos evangelhos: na versão de Banksy, José e Maria, antes do nascimento do menino Jesus, são impedidos de chegar a Belém pela barreira do muro construído na Cisjordânia pelos israelenses.









A noite do Natal de Banksy: no alto,
a gravura Garota com balão e a cena
espetacular da destruição da obra
durante o leilão na Sotheby's de Londres.

Acima, a tela com chimpanzés no lugar dos
parlamentares do Reino Unido, que bateu
recorde em leilão recente também na
Sotheby's. Abaixo, detalhes da tela
com a atuação dos chimpanzés









Além das obras com mensagens para o Natal em Birmingham e na Cisjordânia, Banksy tem sido notícia com grande destaque internacional em diversas ocasiões nos últimos meses. Em outubro de 2018, houve a destruição espetacular de sua obra em um disputado leilão na Sotheby’s, em Londres. Após ser vendida pelo preço recorde de um milhão de libras (mais de R$ 6 milhões), a gravura “Garota com balão” foi destruída por um triturador de papel que estava escondido na moldura e foi misteriosamente acionado por controle remoto, diante do espanto da equipe de leilões e da plateia com imprensa e compradores. A obra havia sido grafitada em um mural em Londres, em 2002, mas foi destruída por vândalos, o que levou Banksy a fazer cópias em papel, sendo uma delas a que foi triturada no leilão da Sotheby’s.



Cotações em alta e crise global



Também na Sotheby’s, um ano depois da destruição espetacular de “Garota com balão”, Banksy bateu um novo recorde: em 3 de outubro de 2019, sua irônica e monumental pintura em óleo sobre tela, chamada de “Devolved Parliament” (Parlamento devolvido ou parlamento “involuído”), que mostra chimpanzés no lugar de deputados no Parlamento Britânico, atingiu um valor muito acima das expectativas e foi vendida a um comprador anônimo por 12 milhões de dólares, equivalente a 9,8 milhões de libras ou mais de R$ 50 milhões. O quadro, medindo 4,46 metros por 2,67 metros – a maior tela conhecida do artista – foi pintado em 2009 e havia sido doado por Banksy para uma exposição no Museu de Bristol. Os recordes de preços elevaram ainda mais as cotações para obras do artista e outros leilões já estão anunciados para os próximos meses, à revelia de Banksy, colocando à venda obras que foram retiradas de espaços públicos e das ruas contra sua vontade.







A noite do Natal de Banksy: no alto
e acima, a obra apresentada por Banksy
no Natal de 2018 em um terreno baldio
em Port Talbot, no País de Gales.

Abaixo, a criança migrante pede socorro
grafitada nas ruínas do canal na
cidade de Veneza, na Itália





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Banksy também ganhou destaque no Natal de 2018 com um mural sobre o tema da pobreza e dos moradores de rua, além de marcar presença em 2019 durante um dos principais eventos mundiais do mundo das artes, a Bienal de Veneza, na Itália, que aconteceu em maio. Às vésperas do Natal do ano passado, um outro surpreendente mural de Banksy surgiu em Port Talbot, cidade ao sul do País de Gales, no Reino Unido. A obra, pintada em paredes de um terreno baldio, mostrava uma criança com os braços abertos apreciando as cinzas de uma fogueira que caíam como neve. A imagem da fogueira, queimando em uma caixa, lembra o fogo aceso pelos sem-teto nas ruas e por pessoas que tentam evitar o frio em abrigos para imigrantes.

Em Veneza, Banksy marcou presença com uma obra grafitada em um dos canais por onde trafegam as gôndolas tradicionais e com uma performance não autorizada em uma praça da cidade durante a Bienal. A obra grafitada surgiu no canal do distrito de Dorsoduro, chamando atenção para o drama mundial dos refugiados – um tema cada vez mais frequente na arte de Banksy. O mural mostra uma criança migrante grafitada em uma antiga construção em ruínas que fica submersa quando sobem as marés. A criança, com expressão de tristeza no rosto, veste um colete salva-vidas e segura com o braço erguido um sinaleiro que está aceso com chama e fumaça na cor rosa-choque, do tipo usado pelas embarcações nos mares e nos rios para indicar à distância algum perigo ou acidente e para pedir por socorro.







A noite do Natal de Banksy: no alto
e acima, a performance na praça durante
Bienal de Veneza e vídeo publicado
por Banksy no Instagram para registrar
sua autoria e a reação da plateia.

Abaixo, a fachada principal e uma
das vitrines da loja criada por Banksy
em uma esquina de Londres




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Identidade secreta e direitos autorais



Também em Veneza, Banksy instalou sem autorização na praça principal uma barraca exibindo uma montagem com uma série de pinturas a óleo. Vistas no conjunto, as obras emolduradas formavam a figura de um enorme e luxuoso navio de cruzeiros em um largo canal, cercado por pequenos barcos de gôndolas. Pelo Instagram, Banksy confirmou sua autoria para a imagem grafitada e para a instalação na praça. Ele também postou um vídeo de um minuto mostrando sua enigmática instalação e a pequena multidão que se formou ao redor, com pessoas questionando a mensagem política da montagem, até a chegada da polícia local para pedir que a exposição fosse desmontada. “Apesar de ser o maior e mais prestigiado evento de arte do mundo”, escreveu ele com ironia no Instagram, “por algum motivo, nunca fui convidado”. Ele não confirmou, mas é possível que o protagonista do vídeo, que usa chapéu e não mostra o rosto, seja o próprio Banksy.

As questões sobre a verdadeira identidade e sobre direitos autorais são também as notícias mais recentes sobre Banksy. Em outubro, ele mais uma vez surpreendeu a todos a abriu uma loja em Londres, em Croydon, um espaço na esquina com amplas vitrines que antes abrigavam uma tradicional loja de tapetes. Para não fugir à regra das atitudes incomuns do artista, não se trata de uma loja convencional, porque nada pode ser comprado ali e as portas não serão abertas ao público. Trata-se de uma estratégia para garantir direitos legais e registrar a marca “Banksy”, já que uma editora de cartões e agendas da Inglaterra iniciou a comercialização sem autorização de produtos que trazem impresso o nome Banksy. Por orientação de advogados, o próprio Banksy vai comercializar réplicas de suas obras e artigos que trazem seu nome para garantir seus direitos como marca registrada. A loja em Croydon, chamada Gross Domestic Products (Produto interno bruto), na verdade é uma vitrine, já que as vendas serão feitas exclusivamente pela Internet.







A noite do Natal de Banksy: no alto,
e também acima e abaixo, uma amostra
das imagens inéditas de Banksy em ação,
bem de perto, fotografado por seu antigo
parceiro Steve Lazarides e apresentadas
como divulgação para o livro autobiográfico
recém-lançado pelo próprio Lazarides,
"Banksy Captured". No final da página,
Banksy posando para a foto de Lazarides
e um registro do grafite original de 2002
Garota com balão 
em uma rua de Londres 





Há também um livro de memórias e de fotografias que está sendo lançado neste final de ano por Steve Lazarides, fotógrafo, artista plástico, curador de galerias, antigo colaborador de Banksy e, tal como ele, também nascido na cidade de Bristol. O livro ilustrado de Lazarides, chamado “Banksy Captured”, traz em 256 páginas muitas fotografias que registram o próprio Banksy em ação, visto bem de perto, mas devidamente de costas, ou com o rosto encoberto por sombras, por um chapéu ou pelo capuz de um moletom, além de uma ou outra tarja impressa para evitar a identificação, em relatos de aventuras anárquicas e fascinantes sobre a criação de algumas obras e sobre os 11 anos da parceria iniciada na década de 1990. Detalhe importante: Banksy e Lazarides romperam relações e não se falam há anos, nem por e-mail.

Mesmo com as revelações anunciadas pelo novo livro, Banksy e seus tantos mistérios continuam a gerar dúvidas e especulações. Em nossa era de extrema vigilância de câmeras e de infinitos aparatos de segurança, de reconhecimento facial automático e de milhões de dispositivos eletrônicos conectados às mídias sociais, é impressionante como Banksy consegue há décadas manter sua identidade em anonimato. Como ele faz isso? Steve Lazarides responde na primeira página de seu livro. “Banksy é muito bom em escolher as pessoas em quem ele confia. O círculo interno é muito leal, ninguém nunca se voltou contra ele”, escreve o antigo parceiro. Diante da complexidade criativa de sua arte que questiona e reflete uma compaixão genuína pelas causas sociais, o que nos resta senão desejar que toda lealdade sobreviva para garantir sorte e vida longa ao talentoso Banksy?



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. A noite do Natal de Banksy. In: Blog Semióticas, 23 de dezembro de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/12/a-noite-do-natal-de-banksy.html (acessado em .../.../...).














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