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25 de abril de 2013

O novo Jards






Arte não é só talento, mas sobretudo coragem.
A arte é tão difícil como o amor.

–– Glauber Rocha (1938-1981).    


“Só Morto”, o primeiro disco de um dos grandes nomes da MPB, está finalmente disponível em CD. O original foi lançado em formato de LP de vinil em 1970 e desde então se tornou uma relíquia conhecida apenas pelos colecionadores. Por coincidência, chega agora pela primeira vez ao formato CD como uma homenagem ao artista, que completou 70 anos no dia 3 de março. O nome que consta na certidão de nascimento, por sinal, é tão incomum quanto o nome artístico que ele adotou: Jards Anet da Silva. Desde o final dos explosivos anos de 1960, ele assina somente Jards Macalé.

Não sei de onde tiraram essa história de que Macalé era o nome do pior jogador do Botafogo. Sempre que vejo uma matéria sobre mim encontro essa mesma história, de que ele era o pior. É tudo mentira”, explica o próprio Jards na entrevista que fiz com ele por telefone para um jornal de Belo Horizonte. “Macalé não era o pior e também não era o melhor. Era um jogador que naquela época estava em evidência porque jogava no Botafogo e eu ganhei este apelido porque eu também jogava futebol, só que na praia, e achavam que ele era parecido comigo. Apelido é assim. Ou pega no ato ou não pega”.

Senso de humor apurado, cheio de ironia e afiado nas tiradas inteligentes, Jards Macalé concedeu esta entrevista no dia seguinte a seu retorno ao Rio de Janeiro, vindo de Nova York. A viagem foi um convite que ele nem pensou em recusar, porque era para acompanhar Eryk Rocha na estreia internacional do filme “Jards”, destaque do festival New Directors/New Films, promovido pelo MoMA, Museu de Arte Moderna. 








Jards Macalé aos 70: no alto, um
fotograma de Jards, filme de Erik Rocha.
Acima, Jards no palco do Nublu, em
Nova York. Abaixo, em 1967, na praia
de Copacabana com Maria Bethânia,
na época em que começou a carreira
profissional como violonista e diretor
musical dos primeiros espetáculos de
Bethânia; com Erik Rocha, no festival
de cinema promovido pelo MoMA, e a
capa do disco Só Morto, que agora
chega finalmente ao formato CD,
em lançamento do selo Discobertas








Em Nova York, Jards e Eryk Rocha, filho de Glauber, assistiram às exibições concorridas e participaram de debates no MoMA, no Lincoln Center e em programas de TV. O músico e o cineasta têm mesmo o que comemorar, já que o filme foi aplaudido de pé e muito bem recebido pela crítica, com elogios e reportagens de destaque nos principais veículos de imprensa.

Começamos a entrevista falando sobre o lançamento de “Só Morto” na versão CD, que vem recheada de faixas-bônus que permaneceram inéditas por décadas, mas no minuto seguinte o assunto vai para outras direções e chega à estreia do filme nos Estados Unidos. “Foi uma experiência tão fantástica que depois da estreia fomos celebrar no Nublu, um dos redutos do jazz em Nova York, e a comemoração acabou virando uma canja e o show seguiu com meu improviso no palco, pela madrugada adentro”, conta Jards, feliz com o filme e com a parceria com Eryk Rocha.








Parceiro de Glauber



Novato em cinema Jards não é – muito pelo contrário. Desde a década de 1960, participou como ator e compositor da trilha sonora em filmes marcantes, incluindo um dos lendários longas de Glauber, “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, além dos não menos importantes “Amuleto de Ogum” e “Tenda dos Milagres”, de Nelson Pereira dos Santos, “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos Fontoura, “Se segura, malandro!", de Hugo Carvana, e “Getúlio Vargas”, de Ana Carolina, entre vários outros.

Jards comemora: “Já dizia meu grande amigo Hélio Oiticica que quanto melhor, melhor”. No Brasil, “Jards”, o filme, estreou em janeiro no Festival de Cinema de Tiradentes e segue na agenda de outros festivais, mas só deve chegar ao circuito comercial no segundo semestre de 2013. "Fazer este filme com o Eryk foi muito especial. Foram três semanas no estúdio com a equipe de filmagem, com três câmeras, e saiu um filme muito melhor do que a encomenda. É um filme diferente, mais experimental, que foi surgindo de tentativas, de repetições, de improvisos, e no final ficou mesmo muito parecido com a música que venho tentando fazer desde o primeiro disco”.







No cinema, a próxima parceria já está agendada: Jards Macalé volta a trabalhar com Nelson Pereira dos Santos, que depois do mergulho na obra de Tom Jobim com os recentes “A Música Segundo Tom Jobim” e “A Luz do Tom”, agora prepara um filme sobre o imperador Dom Pedro 2°. “Nelson sabe o que faz e faz um cinema de verdade, incomum. Tudo o que fiz na vida foi em busca desta verdade. E olhando para trás acho que acertei algumas vezes”, ele diz, recordando histórias engraçadas dos amigos e dos “erros e acertos” das muitas parcerias em quase 50 anos de carreira. Mais acertos do que erros, é bom destacar.

Arte é assim. Tem que sair do lugar de conforto, tem que procurar o novo, tem que criar. Foi assim que a arte e a cultura no Brasil produziram o que temos de melhor. Foi desse jeito com nossos grandes artistas, foi assim com as revoluções que o Tropicalismo inventou”, destaca, lembrando de novo o gênio de Hélio Oiticica. “Foi o Oiticica que deu o pontapé inicial para o que chamamos de Tropicalismo quando registrou em cartório a palavra Tropicália, lá em 1958. Hoje ninguém mais fala disso, mas temos que falar porque é importante”.













Memórias da MPB: no alto, Jards Macalé no
final da década de 1960. Acima, bastidores
do terceiro Festival da Record, em 21 de
outubro de 1967, noite da final do festival, com
uma reunião de tropicalistas com Edu Lobo 
(vencedor do festival, com “Ponteio”, parceria
com José Carlos Capinam). Na primeira foto,
em preto e branco, estão, entre outros,
Nara Leão, Sidney Miller, Rita Lee e os
irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista
(da formação original de Os Mutantes),
Zé Rodrix (de óculos, embaixo da escada),
Maurício Maestro (de óculos), Os Incríveis
(no alto da escada), Marilia Medalha, Gilberto Gil,
Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Nana Caymmi (sentada), Geraldo Vandré,
Roberto Carlos, Sergio Ricardo (sentado),
David Tygel, os integrantes do MPB4,
Capinam, Marcelo Frias (dos Beat Boys) e
Torquato Neto. Abaixo, Jards Macalé com
Wally Salomão; e o produtor musical
Guilherme Araújo (sentado), um dos
mentores da Tropicália, em fotografia de
1968 com Arnaldo Baptista, Rita Lee,
Caetano Veloso, Nana Caymmi, Sérgio
Dias Baptista, Jorge Ben,
Gal Costa e Gilberto Gil












É proibido proibir!



Jards Macalé começou a carreira profissional em 1965, como violonista e diretor musical dos primeiros espetáculos de Maria Bethânia no Rio de Janeiro, e estava no “olho do furacão”, como ele diz, no mesmo grupo que também tinha, entre outros, futuros medalhões das artes plásticas, da literatura, do cinema e da música, além do poeta e jornalista do Piauí Torquato Neto e dos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Bethânia, Gal Costa, José Carlos Capinam.

Lá estávamos todos nós no apartamento em que eu morava em Ipanema, até que um dia aconteceu o fogo que atravessou o Atlântico, vindo da revolta dos estudantes nas ruas do maio de 1968 francês. Lembro que foi o Guilherme Araújo que chegou de Paris muito impressionado, contando que nunca viu nada igual, que os estudantes tomaram as ruas da cidade, ficaram acampados, e por todo lado se via os grafites dizendo 'é proibido proibir'. Para nós, que buscávamos o novo, naquela ditadura militar que foi terrível, esta mensagem foi uma luz no fim do túnel: é proibido proibir”.








Jards no palco com Luiz Gonzaga,
registrado pela revista “Pop”, na edição
de outubro de 1976, e com o “malandro”
Moreira da Silva, seu parceiro no
samba de breque Tira os óculos
e recolhe o homem. Abaixo,
Jards com Vinicius de Moraes
no começo da década de 1970






 


A frase do grafite das revoltas estudantis do maio de 1968 francês foi transformada em canções que marcaram época e se fez a História, contada ao telefone por um dos principais protagonistas. “Para nós, que mergulhamos na Tropicália, naquele contexto de repressão, é muito triste, tristíssimo, descobrir que hoje os espaços da mídia no Brasil foram tomados por tanta estupidez, tanta bobagem repetida, tanto lixo importado. Não sou contra o produto importado. Nunca fui. Mas ao menos deveriam ter o cuidado de importar o luxo de outros países, e não somente o lixo”.

E a experiência de completar 70 anos? Muda alguma coisa ou não muda nada? – pergunto. “Muda tudo”, ele responde, disparando uma gargalhada. “Muda porque agora sou outra pessoa. Aquele Jards Macalé que veio até aqui tem seu valor, vou guardar com carinho as boas lembranças. Mas agora virei outro: nasceu o novo Jards”.



Obra em várias mídias



Planos e projetos encaminhados não faltam. O “novo Jards” segue na temporada de lançamento do filme com Eryk Rocha no Brasil e no exterior, está finalizando um CD com canções inéditas (que têm como parceiros Adriana Calcanhotto, Elton Medeiros, Luiz Melodia), organiza os registros de sua obra em várias mídias e está em negociações para a instalação do acervo em um instituto cultural, trabalha com Nelson Pereira dos Santos no novo filme e, para completar, também faz parte do elenco que vai acompanhar o Papa Francisco na Jornada Mundial da Juventude, programada para julho, no Rio de Janeiro. Ele comemora, bem-humorado: “Jards com o Papa Francisco, já pensou? Por essa ninguém esperava. Nem eu”.









O “novo Jards” também diz que está surpreso e satisfeito com as novas parcerias, mas quero ouvir sobre as histórias do passado e pergunto sobre os antigos parceiros do velho Jards, incluindo Glauber Rocha, Vinicius de Moraes, Egberto Gismonti, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Augusto Boal, Moreira da Silva, Paulinho da Viola, Jorge Mautner, Naná Vasconcelos, Torquato, Capinam, Rogério Duprat, Chico Buarque, Gal Costa, Bethânia, Clara Nunes, Nara Leão.

Todos parceiros da maior importância”, ele diz, lembrando de cada um deles com histórias saborosas que trazem à conversa outros nomes, outras artes, outras épocas. A conversa chega aos tempos sombrios da ditadura militar, tempos difíceis, e Jards recorda as tristezas e a repressão do período, mas também as alegrias e agitos da Swinging London, durante a temporada que passou com Gilberto Gil e Caetano Veloso, que estavam exilados na Inglaterra. Gil e Caetano foram presos pela ditadura militar em dezembro de 1968, acusados de subversão, e permaneceram presos durante meses, sem qualquer julgamento. Enquanto o mundo assistia ao pouso da espaçonave Apollo 11 na lua, em 21 de julho de 1969, Gil e Caetano eram obrigados a deixar o Brasil e seriam proibidos de retornar por mais três anos.






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Jards Macalé e Os Brasões em 1969,
durante o quarto Festival Internacional
da Canção, quando  Gothan City, canção
de Jards e Capinam, foi vaiada pela plateia
do Maracanãzinho. Acima, Caetano e Gil,
 amigos no exílio em Londres, por imposição
da ditadura militar; e Gal Costa em visita aos
amigos no exílio, em fotos de 1971 publicadas
pela revista Fatos & Fotos. Gil e Gal fizeram
um show histórico em 26 de novembro de 1971,
na London University, que só foi lançado em
CD no Brasil em 2014. Abaixo, Jards entre
amigos em visita a Caetano e Gil em Londres,
em 1971, na época da produção do álbum de
Caetano Transa; a partir da esquerda, em foto
de Antonio Guerreiroo engenheiro de som
Maurice Hughes, os músicos Aureo de Souza,
Jards Macalé, Caetano e Moacir Albuquerque.

Também abaixo, Gil e Caetano diante da
torre do Big Ben e passeando na Trafalgar
Square, em 1969, durante o exílio em Londres;
Caetano, Jards e Moacir Albuquerque durante
os ensaios para as gravações do álbum Transa,
em fotografias de Pedro Paulo Koellreutter;
Jards com João Ubaldo, Alberto Cavalcanti
e Glauber Rocha em 1979 (fotografados por
Paula Maria Gaitán); Jards em 2003 com
Jorge Mautnere Jards em 2013, em
autorretrato com Jorge Ben Jor
































Da temporada em Londres saíram duas obras-primas com participação intensa de Jards Macalé: a primeira foi o filme “O Demiurgo”, de Jorge Mautner, que além de Jards também teve no elenco Mautner, Caetano, Gil, Norma Bengell, Péricles Cavalcanti, Roberto Aguilar, Leilah Assunção, Gal Costa e Dedé Gadelha, esposa de Caetano – um filme experimental como poucos, mistura de drama, comédia, poesia, música e filosofia. Glauber dizia que “O Demiurgo” é o melhor filme do exílio e sobre o exílio, enquanto Jorge Mautner define o filme como uma fábula musical e uma chanchada filosófica que retrata a saudade do Brasil.

A segunda obra-prima desta temporada com os amigos no exílio em Londres permanece em destaque entre os melhores discos brasileiros de todos os tempos, “Transa”, de Caetano Veloso, álbum lançado em 1971, resultado de mais de oito meses de ensaios com produção e arranjos por conta de Jards, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza. “Ensaiávamos num parque de Londres, todos os dias. Parecíamos aqueles malucos do 'Blow Up' (filme de Michelangelo Antonioni). Quem nos visse ali, sempre daquele jeito, pensaria que estávamos num eterno piquenique”, recorda.



Vapor barato



As histórias de Londres trazem à tona as principais referências de Jards, seus ídolos da Velha Guarda e os cantores e cantoras da Era do Rádio, Carmen Miranda, Orlando Silva, Marlene e Emilinha Borba, o primeiro encontro com Nélson Cavaquinho e Ciro Monteiro numa mesa de botequim, a descoberta dos gigantes do jazz e o impacto que foi ouvir pela primeira vez Erik Satie, compositor e pianista, precursor das vanguardas minimalistas. Na trajetória da formação de Jards também houve as aulas de música e os mestres que teve a sorte de encontrar pelo caminho, Guerra Peixe, Turibio Santos, Dauelsberg, Jodacil Damasceno, Ester Scliar.












Entre tantas histórias e personagens célebres que vão surgindo na entrevista, comento sobre a relação afetiva de muitos da minha geração com as belas canções de Jards Macalé, muitas delas com lugar cativo entre os grandes clássicos da MPB, “Mal Secreto”, “Gothan City”, “Movimento dos Barcos”, “Rua Real Grandeza”, “Poema da Rosa”, “ Anjo Exterminado”, “Alteza”, "The Archaic Lonely Star Blues", "Love, Try and Die" e, especialmente, “Vapor Barato”, sua parceria com o poeta Wally Salomão que teve aquela mítica e longa versão ao vivo de Gal Costa em “Fa-Tal / Gal a Todo Vapor”, em 1971, tido com um dos shows mais importantes da música brasileira.

Sim, você tem razão, porque Vapor Barato é um hino. É uma história que entrou na vida de muita gente lá nos anos 1970 com a interpretação 'Fa-Tal' da Gal e é uma canção que volta sempre. Vapor Barato está sempre voltando. Voltou nos anos 1990, no filme do Walter Salles ('Terra Estrangeira'), depois voltou na gravação do Rappa, depois com o Zeca Baleiro. Engraçado que toda hora tem alguém fazendo contato comigo por causa de Vapor Barato, querendo Vapor Barato na trilha sonora disso e daquilo. O que é muito bom. Só posso comemorar, porque também sempre gostei muito de Vapor Barato”.







Para encerrar a entrevista, voltamos ao primeiro disco, “Só Morto”, lançamento recente do Selo Discobertas. “Este CD foi outra grande surpresa. Mas olha o que falei no começo da nossa conversa: aí já é o novo Jards (risos). Foi um presente da melhor qualidade para o novo Jards, uma homenagem bacana que recebi de presente de aniversário de 70 anos do Marcelo Fróes, que é um cara muito especial, um pesquisador e produtor como poucos, pouquíssimos”.

O disco de 1970 tinha quatro músicas: “Soluços”, dele próprio, e “O Crime”, parceria com Capinam, no Lado A. No Lado B, “Só Morto / Burning Night” e “Sem Essa”, duas parcerias de Jards e Duda (Carlos Eduardo Machado). “O Marcelo Fróes me procurou e disse que tinha encontrado as outras gravações, todas elas inéditas em CD. Fiquei animado com o projeto e, depois, quando recebi o CD pronto, tão bem cuidado, tão profissional, foi só felicidade”.







Só Morto” saiu com as quatro faixas como compacto duplo em 1970. Agora, tem como acréscimo 10 canções que foram gravadas ao vivo em shows realizados entre 1970 e 1973, com Jards Macalé acompanhado do Grupo Soma, um dos mais conceituados do “rock brasilis” na década de 1970. As quatro canções do primeiro Jards não ganharam sucesso popular, mas a importância daquele compacto duplo é sempre destacada pelos fãs e pelos pesquisadores da música brasileira, ainda que o disco permanecesse uma raridade, conhecido apenas por uns poucos colecionadores.

Jards, no comando dos arranjos, no violão e nos vocais, é sempre uma surpresa: tom personalíssimo, grave, experimental e crítico, por vezes gritado, por vezes irônico, festivo, ritmado. Na primeira metade da década de 1970, Jards contava com o auxílio luxuoso do Soma, formado por Ricardo Peixoto (guitarra), Jaime Shields (guitarra), Bruno Henry (baixo) e Alírio Lima (bateria), além da presença muito especial de Zé Rodrix no piano e no órgão.



Música com atitude



Completam a trilha de “Só Morto”, além das quatro canções originais, uma lista de pérolas da MPB que inclui versões para “Gothan City” (de Jards e Capinam), “Só Morto / Burning Night” (Jards e Duda), “Let's Play That” (Jards e Torquato Neto), “Poema da Rosa” (Jards e Augusto Boal), “Orora Analfabeta” (Belizário Gomes e Waldeck Macedo) e mais três parcerias da dupla de “Vapor Barato”, Jards e Wally Salomão, em “Revendo Amigos”, “Anjo Exterminado” e “Rua Real Grandeza”.

 



O novo Jards, tanto quanto o antigo, é falante, provocador, imprevisível. Faz reverência aos amigos e às parcerias, em especial a Wally Salomão, morto aos 60 anos, em 2003. “Wally é uma pessoa importantíssima para mim e para o Brasil. Grande poeta, grande pensador, grande na música e na atitude. Faz muita falta sua inspiração, sua conversa franca”. Antes de concluir a entrevista, arrisco um desafio: muitos se referem a você como “maldito da MPB”, ou “marginal”, ou “pós-tropicalista”, mas qual é a melhor definição para a música de Jards Macalé?

Ele faz uma pausa e diz que para responder terá que recorrer a duas figuras geniais, segundo ele duas das personalidades mais brilhantes com as quais teve a sorte do convívio: Hélio Oiticica e João Gilberto. “Veja bem... (risos). Vou responder sua pergunta, José, com frases famosas dos mestres Oiticica e João Gilberto. Oiticica dizia: minha arte é música, a arte que faço é música. E o João Gilberto, quando faziam perguntas difíceis sobre a Bossa Nova, respondia: Bossa Nova não existe, o que existe é samba. Então, agora eu digo a você: minha vida é música, mas o que eu faço é samba”. Só quando concluímos a entrevista é que percebo que falamos durante quase duas horas. Agora, enquanto termino a redação da matéria, penso na sábia definição do artista por ele mesmo e acrescento: sim, é samba. Da melhor qualidade.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O novo Jards. In: Blog Semióticas, 25 de abril de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/04/o-novo-jards_8633.html (acessado em .../.../...).



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16 de fevereiro de 2013

Poeta Leminski







saber não basta, carece corromper   
comprometer e ameaçar o que existe   

acordei bemol   
tudo estava sustenido   

sol fazia   
só não fazia sentido   

 ––  Paulo Leminski.     


Tido entre os grandes poetas brasileiros das últimas décadas, parceiro de Caetano Veloso, Haroldo de Campos, Moraes Moreira, Wally Salomão, Itamar Assumpção, entre outros, autor de um sem número de canções, mentor de atividades e produções culturais das mais diversas, hippie, ensaísta, professor, jornalista, publicitário, contista, tradutor, autor de literatura infanto-juvenil, romancista, Paulo Leminski (1944–1989) foi descoberto em agosto de 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda realizada em Belo Horizonte, que reuniu alguns dos importantes intelectuais do Brasil naquele momento, entre poetas, críticos, professores e tradutores.

Naquela época, Leminski era um judoca faixa-preta de 19 anos que escrevia versos e que tinha viajado de Curitiba a BH para participar do evento. Impressionou a todos os poetas veteranos e cabeças pensantes presentes, incluindo o organizador da Semana, Affonso Ávila (1928–2012), sua esposa, a também escritora e poeta Laís Corrêa de Araújo (1928–2006), os expoentes da Poesia Concreta, Augusto de Campos, Haroldo de Campos (1929–2003) e Décio Pignatari (1927–2012), e mais, entre outros, Luiz Costa Lima, Benedito Nunes, Roberto Pontual, Frederico Moraes.

Na memória de todos, o jovem Leminski causou a melhor impressão, cheio de novas ideias e ao mesmo tempo em total sintonia com os veteranos. Tive a sorte de entrevistar algumas vezes Affonso Ávila (veja mais em Semióticas: Máximo no mínimo), Haroldo de Campos e Décio Pignatari – e todos sempre foram unânimes em destacar aquela primeira impressão que Leminski conseguiu imprimir em todos, em 1963, e o valor que sua literatura adquiriu, com seus textos híbridos, personalíssimos, seus haikais e trocadilhos. Para Haroldo de Campos, Leminski foi o melhor poeta de sua geração – a mesma geração que tem, entre outros, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.











Paulo Leminski: no alto, em 1986, fotografado
por Jonas Banhos. Acima, com Alice Ruiz
em 1981, no Rio de Janeiro, fotografado por
Julio Covello). Abaixo, aos 18, em duas fotos de
1963, fotografado por Julie Bozon de Campos
com Haroldo de Campos e com Pedro Xisto; e
na Serra do Rola Moça, Região Metropolitana
de Belo Horizonte, quando o jovem Leminski
viajou de Curitiba a BH para participar da
Semana de Poesia de Vanguarda.

Também abaixo, em três retratos feitos por
Jonas Banhos em 1984; e em quatro fotografias
de 1978: 1) em Curitiba, em foto de Nani Góis
com Caetano Veloso e Alice Ruiz;
2) no Rio de Janeirocom Caetano e
Moraes Moreira3) com Gilberto Gil,
também no Rio de Janeiro; e 4) com
Alice Ruiz e Rita Lee, fotografados
por Orlando Azevedo no quarto do hotel
Iguaçu Campestre, em Curitiba, no início
dos anos 1980, à espera do show que
Rita Lee apresentaria no Teatro Guaíra

































Exatos 13 anos depois daquele primeiro encontro em BH, o primeiro livro de Leminski seria lançado: “Quarenta Clics em Curitiba” (1976). Sete anos depois, no sexto livro que publicou, Caprichos & Relaxos” (1983), seu primeiro lançamento por uma grande editora, a Brasiliense, Haroldo de Campos escreveu na apresentação: Foi em 1963, na Semana de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, que Leminski nos apareceu, 18 ou 19 anos, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o Senhor Bananeira”. Agora, 50 anos depois da estreia que provocou a melhor impressão nos veteranos, Leminski ganha, finalmente, um tributo de peso. Chegou às livrarias “Toda Poesia”, edição da Companhia das Letras que reúne mais de 600 poemas de sua obra escrita e publicada.



O verso sofisticado



A seleção e organização de “Toda Poesia”, a cargo de Alice Ruiz, viúva de Leminski, também poeta e sua parceira em muitos trabalhos, inclui os primeiros versos publicados por ele em sua terra natal, ainda em edição artesanal, assim como os poemas publicados em "Quarenta Clics em Curitiba" e em seus livros, que estavam fora de catálogo há décadas, e os póstumos, como “Winterverno" (2001), além de ensaios assinados por Caetano Veloso, Haroldo de Campos, Wilson Bueno, José Miguel Wisnik, Leyla Perrone-Moisés e Alice Ruiz.





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Morto em 7 de junho de 1989, em decorrência do agravamento de uma cirrose hepática, poucos meses antes de completar 45 anos, Leminski sempre preferiu escrever poemas breves, especializando-se no haicai, forma poética das mais concisas, surgida no século 16 – ligada ao Taoismo e à filosofia espiritualista dos mestres zen-budistas – e forte referência para grande parte das publicações artesanais de seus contemporâneos no final da década de 1960 e anos seguintes.

Cabe (quase) tudo nos versos sofisticados de Leminski, do mais prosaico, pessoal, cotidiano, ao erudito e o pop: seu jeito muito pessoal de composição criava mosaicos poéticos muito autênticos com brincadeiras, bom humor e ironias, trocadilhos, ditados populares, gírias e palavrões, tudo combinado de uma forma sempre surpreendente e instigante. Nos ensaios que acompanham “Toda Poesia”, Leminski é reconhecido como voz poderosa na poesia brasileira contemporânea – apontado na linhagem dos poetas-inventores, aqueles que criam novos processos ou novas formas de diálogo com a tradição.

A transição entre o erudito e o pop, passando pelo mais coloquial e pela dedicação amorosa ao haikai, com sua brevidade que oscila da reflexão filosófica à anedota, observados a posteriori aproximam Leminski dos chamados “poetas marginais” que nos anos 1970 formaram a "geração mimeógrafo", entre eles Ana Cristina César (1952–1983), Cacaso (pseudônimo de Antônio Carlos de Brito, 1944–1987), Francisco Alvim e Chacal (Ricardo Carvalho Duarte), que estiveram à margem das publicações das grandes editoras e que foram reunidos pelo célebre estudo "26 Poetas Hoje", que Heloísa Buarque de Hollanda publicou pela Editora Brasilense em 1976.

























Poeta Leminski: a partir do alto, outros


encontros com poetas de sua geração.


Com Gilberto Gil; com Wally Salomão; em

performance de capoeira com Jorge Mautner

em uma temporada no Rio de Janeiro em 1980;

e fotografado em sua casa em Curitiba, também

em 1980. Abaixo, Pàulo Leminski nas célebres

fotografias de Dico Kremer em que posou nu









 


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Tal aproximação tem provocado alguns equívocos, já que a historiografia com frequência associa a literatura – e especialmente a poesia – de Leminski à produção dos poetas marginais, à “geração mimeógrafo” dos anos 1970, apesar dele nunca ter mantido nenhum contato ou relação com o grupo que, na maioria, tinha atuação centrada no Rio de Janeiro, com sua produção artesanal de livros e folhetos impressos principalmente em mimeógrafos, sem qualquer tipo de vínculo com as editoras tradicionais, e vendidos em poucas cópias para um público restrito em shows, exposições e bares ligados ao ambiente da contracultura.



A diversidade imprevisível



Há semelhanças sim com a poesia da geração mimeógrafo e com muitos nomes de sua geração, mas as referências de Leminski são outras, de Petrônio (“Satyricon”) ao James Joyce de “Finnegans Wake”, dos beatniks norte-americanos à tríade concretista Pignatari-Haroldo-Augusto de Campos, do simbolista francês Rimbaud e do experimentalismo de Stéphane Mallarmé ao sindicalista polonês Lech Walesa (cujos vastos bigodes, à moda de Nietzsche, foram adotados por Leminski), mais Descartes, Leon Trotski, Samuel Beckett, Yukio Mishima, Matsuo Bashô, o lendário criador de haikais, Cruz e Sousa e vários outros nomes de uma galeria tão diversa quanto imprevisível. 










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Flagrantes de Paulo Leminski: a partir
do alto, 1) na praia, em 1978, em foto de
Dico Kremer; 2) em 1980, em Curitiba,
fotografado por Monica Vendramini;
3) no Festival Art Curitiba, também em
1978; 4) na Universidade Estadual de
Londrina, no início da década de 1980.

Abaixo, em 1984, no Rio de Janeiro,
com Ana Maria Magalhães, durante as
filmagens de Assaltaram a Gramática,
curta-metragem de Ana Maria Magalhães;
com Itamar Assumpção em 1988; na foto de
1986 de Jonas Banhosna caricatura que
foi inspirada na mesma foto, desenhada por
Fernando Carvall; e com sua companheira
Alice Ruiz em fotografias de Dico Kremer



 

 
 

    .



             




            




 
Entre as influências, assim como é influência para todos os “marginais” da geração de Leminski, há também o tropicalista Torquato Neto (1944–1972), além do investimento com a poesia nos mais diversos suportes e formatos, levada às ruas, praças e bares como alternativa de publicação e de resistência à censura imposta pela ditadura militar. Para Leminski e para muitos “marginais” daquele período histórico, tudo passou a ser considerado suporte para a expressão e a impressão da poesia, fosse um folheto, um guardanapo de papel, um cartão, uma camiseta, cópias em xerox, apresentações teatrais em calçadas e pontos de ônibus.

Leminski não viveu para ver a Internet e as redes sociais povoando nosso dia a dia, mas é impressionante como ele é uma personalidade presente nos domínios da World Wide Web em uma extensa variedade da produção extratextual tanto dele como sobre ele. Tem de tudo: textos, poemas, vídeos, fotos, entrevistas, músicas, performances, sem contar que Leminski é o pretenso protagonista de nada menos que seis perfis “oficiais” no Twitter e outros tantos no Facebook e no Instagram. O poeta de Curitiba também aparece em canais de vídeos no Youtube e é homenageado em centenas de sites e blogs de fãs e mais fãs. Nada mal para alguém que não conviveu com o computador e que se dizia apaixonado, perdidamente apaixonado, por uma antiga máquina de escrever.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Poeta Leminski. In: Blog Semióticas, 16 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/poeta-leminski.html (acessado em .../.../...).











Para visitar a lista de parcerias musicais de Leminski,  clique aqui.
















Imagens de Leminski: no alto, com
Alice Ruiz. Abaixo, em São Paulo, em
1983, fotografado por Ovidio Vieira;
em Curitiba, fotografado em casa
e no estúdio; e um verso do poeta
em grafite num muro de Curitiba



Abaixo, uma pequena amostra das pérolas de Paulo Leminski que foram reunidas na edição de Toda Poesia: 



                                                      Aqui jaz um grande poeta.

                                                     Nada deixou escrito.

                                                     Este silêncio, acredito,

                                                     são suas obras completas 

 



tão
alta
a
torre
até
seu
tombo
virou
lenda


* * *


vão é tudo
que não for prazer
repartido prazer
entre parceiros


vãs
todas as coisas que vão






eu vi o sol ao quadrado
o sol de olho saltado
multiplicado pelo sol


* * *


no campo
em casa
no palácio
está nas últimas
a última flor do lácio
cretino
beócio
palhaço
dê o último adeus
à última flor do lácio
a fogo
a laço
ninguém segura
a queda da última flor do lácio






sim
eu quis a prosa
essa deusa
só diz besteiras
fala das coisas
como se novas
não quis a prosa
apenas a ideia
uma ideia de prosa
em esperma de trova
um gozo
uma gosma
uma poesia porosa

(em “caprichos & relaxos”)


* * *


aviso aos náufragos
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

(em “distraídos venceremos”)





um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra

(em “la vie en close”)


* * *

a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma
uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você
(em “o ex-estranho”) 







 


* * *



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