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8 de abril de 2017

Arte segundo Duchamp





A arte é a única forma de atividade por
meio da qual o homem se manifesta como
verdadeiro indivíduo. Mas pode alguém
fazer obras que não sejam de arte?

–– Marcel Duchamp  



Há exatamente 100 anos, o sempre surpreendente Marcel Duchamp (1887-1968) apresentava, em um salão anual de artistas independentes de Nova York, uma peça que foi recusada pelos membros do júri, mas que a partir daquela data conquistaria um lugar invejável como uma das mais desconcertantes e mais marcantes de todos os tempos, símbolo do poder questionador da Grande Arte e referência pioneira do que ficaria conhecido desde aquela época como “ready-made”, “arte conceitual” e “instalação”. No começo, a peça de Duchamp tinha contornos de um caso apenas divertido, contado entre amigos, como se fosse uma anedota, mas foi ganhando peso e uma importância singular na História da Arte.

Nascido na França e radicado nos Estados Unidos, Duchamp foi um exímio pintor, escultor, fotógrafo, cineasta, poeta, mestre do jogo de xadrez e ator performático, especialmente quando surgia travestido com a identidade secreta em seu alter-ego Rrose Sélavy, que alcançou o status de celebridade na cena artística de Nova York e chegou a assinar a autoria de vários “ready-made” – numa época em que a palavra “performance” sequer era usada no sentido teatral e espetacular do termo. Duchamp ficaria consagrado como um dos artistas mais influentes do século 20, mas é importante lembrar que o acontecimento de 1917 não foi um caso isolado em sua trajetória. 

Duchamp vinha de experiências anteriores que investiam no limite das fronteiras da arte – entre elas sua célebre pintura de 1912 “Le nu descendant l'escalier n° 2” (Nu descendo escadas número 2), que sugere abstrações sobre uma figura humana em movimentos de linha descendente da esquerda para a direita; e a escultura “La jeune mariée mise à nue par ses célibataires, même” (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), uma sobreposição de objetos, cabides e tecidos aparentemente aleatórios, de formas geométricas, iniciada em 1915 e concluída somente em 1923. Muitas outras de suas experiências radicais de criação e ruptura vieram antes e viriam depois, nos anos e décadas seguintes, mas o que se passou em 1917 foi, por certo, um divisor de águas para o próprio Duchamp e para a História da Arte.











Arte segundo Duchamp: no alto, Marcel Duchamp
fotografado por Man Ray em casa, em Paris, em
fevereiro de 1968. Acima, Duchamp em cena com
o célebre experimentalismo de Five-Way Portrait,
atribuído por ele como Self-portrait, criação do ano
de 1917; e Duchamp vestido a caráter como
seu alter-ego mais famoso, Rrose Sélavy, em 1921,
fotografado por Man Ray. Abaixo, uma das réplicas
de Fountain no acervo do MoMA de Nova York







Sobre aquela manhã, no mês de abril de 1917, contam os biógrafos, e ele próprio confirmou em depoimentos e em diversas entrevistas tempos depois: Duchamp leu uma nota publicada no jornal sobre a seleção organizada pela Society of Independent Artists e teve imediatamente a inspiração mirabolante – a concretização de uma ideia que ele vinha ruminando por dias e dias depois de algumas conversas com dois amigos, Walter Arensberg e Joseph Stella, artistas e colecionadores de arte.


Inspiração performática




Segundo relata o próprio Duchamp, naquela manhã ele foi à loja JL Mott Iron Works, que comercializava louças sanitárias e artigos para encanadores, na 118 Fifth Avenue, em Nova York, e comprou um mictório da marca Bedforshire, modelo padrão masculino, de porcelana cor branca. Chegando em sua oficina, ele decidiu escrever na lateral da peça, usando um pincel e tinta preta, “R. Mutt 1917”, que seriam seu pseudônimo e a data da criação da obra. Depois fez um embrulho com papel e corda e despachou, sob o título “Fountain” (Fonte), para o endereço indicado pelo salão.









Arte segundo Duchamp
: o artista surpreendente
em dois momentos –– em 1917, fotografado
em Nova York por Edward Steichen, e em
1967, no MoMA, ao lado de uma réplica de
sua lendária criação. Abaixo, uma relíquia do
álbum de família: os irmãos Marcel Duchamp
Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon
em fotografia de 1913. Assim como Marcel,
seus irmãos também tiveram destaque como
artistas: Jacques na pintura e na gravura, 
Raymond no desenho e na escultura






.




O júri, do qual Duchamp e Arensberg também faziam parte (uma vez que eram do grupo de fundadores e membros do Conselho de Administração da Sociedade), recebeu a peça e, depois do espanto inicial e de muito confabular, decidiu rejeitar a obra, sob o argumento da dúvida: não conseguiram chegar a um acordo para definir se era ou não uma obra de arte. Vencidos em sua argumentação a favor da aceitação da obra, Duchamp e Arensberg decidiram renunciar de imediato à presença no júri e ao Conselho de Administração, para surpresa dos demais integrantes, que na época não sabiam que o próprio Duchamp era o artista que assinava por pseudônimo.

Presente naquela sessão do júri e nos dias seguintes, no período de montagem da exposição, que seria aberta ao público no dia 10 de abril de 1917, o fotógrafo Alfred Stieglitz, a pedido de Duchamp, que era seu amigo, tentou e conseguiu fazer um registro da peça recusada. A fotografia de Stieglitz acabou sendo fundamental quando, semanas depois, Marcel Duchamp decidiu retomar a história inaugural de sua obra performática. A retomada aconteceu em grande estilo e ganhou repercussão ainda maior que o primeiro gesto iconoclasta que culminou na recusa da peça pelo júri.

Ao conseguir a fotografia de Stieglitz, o próprio Duchamp partiu para a mistificação: publicou a foto e um artigo anônimo, escrito por ele, com retórica entusiasmada, em defesa da obra ousada e verdadeiramente moderna do senhor Richard Mutt, no segundo número de “The Blind Man” (O homem cego), jornal produzido por Duchamp e seus amigos do círculo Dadaísta de Nova York, entre eles Henri-Pierre Roche, Beatrice Wood, Francis Picabia e Mina Loy. O artigo anônimo de Duchamp, metamorfoseado em ardoroso defensor do trabalho inovador de Richard Mutt, imortalizou a “Fonte” e conseguiu sacudir os alicerces da criação artística com um questionamento: o valor de uma obra estava realmente na criação original ou estava no contexto em que aquela determinada obra fosse inserida? Em outras palavras: Duchamp instituiu que, rigorosamente, tudo pode vir a ser arte.







Arte segundo Duchamp: a fotografia de
Alfred Stieglitz, única imagem conhecida
da obra original de Duchamp de 1917, em
fac-símile do artigo “anônimo” publicado
por Duchamp na revista The Blind Man















Iconoclastia inaugural



Hoje, um século depois, a iconoclastia inaugural de Marcel Duchamp ainda rende inúmeras controvérsias e polêmicas que vão de algumas dúvidas sobre a real paternidade da ideia original da “Fonte”, que teria sido apropriada por ele de outras iniciativas menos célebres de seus contemporâneos, às discussões historiográficas sobre a origem daquele objeto, que era raro na época e que, desde então, adquiriu uma aura mítica e mística. Há, inclusive, argumentações de pesquisadores que negam a veracidade da informação de que aquela peça industrial era comercializada em Nova York pela citada loja da 118 Fifth Avenue em 1917.

As polêmicas, variadas, vêm, enfim, perpetuar o esforço de mistificação para o qual o próprio Duchamp investiu, com apoio e cumplicidade de seu círculo de amigos na época e nas décadas seguintes, nos movimentos de vanguarda que estavam por vir. Por ironia do destino, com o passar do tempo a obra mais radical e mais provocativa de Duchamp seria totalmente e definitivamente assimilada como totem sagrado dos mais disputados pelos grandes museus. Entre outras informações intrigantes que ainda permanecem pairando sobre a obra iconoclasta de Duchamp, há também um mistério insolúvel: o destino que teve a peça original –– que nunca mais foi localizada depois da recusa pelo júri do salão de 1917 da Sociedade de Artistas Independentes de Nova York.













No ano de 1964, depois de recusar muitas propostas, Duchamp concordou em assinar uma autorização para que o historiador de arte Arturo Schwarz produzisse, com uma equipe de designers de Milão, algumas réplicas para serem apresentadas em Nova York quando houvesse a efeméride dos 50 anos do caso “Fountain”. As réplicas trouxeram à tona novamente a polêmica e, passada a efeméride, foram adquiridas por valores milionários, mantidos em sigilo, por grandes museus –– o MoMA de San Francisco, o Tate Modern de Londres e o Centro Pompidou de Paris. Uma das obras mais iconoclastas da história da arte, acusada durante anos de ter insultado instituições da arte, foi absolvida e absorvida com suas réplicas pelo sistema e com o consentimento do próprio Duchamp. 


Castelo da Pureza



Nas entrevistas que concedeu mais tarde, Duchamp apresentou suas versões para as estratégias de 1917 e sobre outras experiências de antes e depois da “Fonte”, sobre as relações com a família, com os amigos e com os parceiros de criação, sobre os casamentos e os casos de amor que teve – um deles, talvez o mais intenso, mais controverso e duradouro, com a brasileira Maria Martins, uma personalidade à frente de seu tempo, com talentos diversos bem ao estilo múltiplo e radical de Duchamp, com quem colaborou em diversas ocasiões e dividiu a autoria de trabalhos importantes que em sua época provocaram escândalo. Ainda hoje pouco conhecida no Brasil, Maria Martins desenvolveu grande parte de sua carreira no exterior, acompanhando o marido (o embaixador Carlos Martins) e angariando prestígio entre artistas, críticos e pesquisadores da história da arte como escultora, gravurista, pintora, desenhista, escritora, musicista e única mulher presente e atuante no círculo fechado dos Dadaístas e dos Surrealistas na França e nos Estados Unidos.

A aproximação intelectual e as relações amorosas entre os dois é tema do livro “Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos”, de Raul Antelo, publicado pela Editora UFMG. O autor parte da permanência de Duchamp em Buenos Aires, entre 1918 e 1919, para traçar o percurso da aproximação de Maria com Marcel naquele ano e nos anos e décadas seguintes, além de questionar a presença e a importância dos avatares latino-americanos na trajetória de Duchamp e em suas aproximações, oposições e diferenças com as noções de arte e política em relação a seus contemporâneos surrealistas André Breton e Georges Bataille. Algumas das célebres entrevistas com Duchamp são dados preciosos na argumentação de Raul Antelo, da mesma forma que elas também deram origem a outros livros que se tornaram obras de referência, como no caso das entrevistas que concedeu em 1955 para o diretor do Guggenhein Museum de Nova York, James Johnson Sweeney, publicadas em 1958 no emblemático livro “Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day” (W.W. Norton Editors), organizado por James Nelson.









Arte segundo Duchamp: o artista fotografado
na intimidade e entre amigos – no alto, com
Francis Picabia e Béatrice Wood , seus
parceiros em Nova York, em 1917. Acima,
com Lydie Sarazin-Levassor, com quem
Duchamp se casou em 1927.

Abaixo, em raras imagens com a
brasileira Maria Martins, sua musa, caso
amoroso e parceira em diversos trabalhos,
em 1947 (a partir da esquerda, Yves Tanguy,
Kay Sage, Duchamp, Maria Martins, Frederick
Kiesler, Enrico Donati) e em 1948 (a partir da
esquerda, Kay Sage, Duchamp, Maria Martins,
Arshile Gorky, Frederick Kiesler). Também
abaixo, Maria Martins em 1941, com uma de
suas esculturas, fotografada por Herbert Gehr,
e Maria em 1944, homenageada em
fotografia e intervenção com
sobreposições de John Rawlings


    


 










Outra série memorável de entrevistas de Duchamp foi concedida para Richard Hamilton, a convite da BBC de Londres, em 1961, somente publicadas em livro em 2009, com o título “Le Grand Dechiffreur: Richard Hamilton on Marcel Duchamp” (editora JRP Ringier). Hamilton, também artista plástico, autor da célebre colagem de 1956 “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” (O que é mesmo que faz as casas de hoje em dia serem tão diferentes, tão atraentes?), que rendeu a ele o codinome “pai da Pop Art”, também reconstruiu em parceria com Duchamp, nos anos 1960, obras-primas como “La Boîte verte” (de 1934) e “La jeune mariée...”, que estavam com paradeiro desconhecido, depois de décadas, assim como a “Fonte”, e apenas permaneciam registradas em fotografias.

Entre outros capítulos fundamentais para a compreensão da obra e do pensamento de Duchamp também estão a primeira publicação em livro de seus textos teóricos, “Marchand du Sel: Écrits de Marcel Duchamp”, em edição organizada em 1959 por Michel Snouillet; e “Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza”, livro de 1968 de Octavio Paz, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva. Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata do México, Prêmio Nobel de 1990, Octavio Paz conviveu nos anos 1940 em Paris com os principais artistas e mentores dos movimentos de vanguarda, como o surrealista André Breton, além de Pablo Picasso e do próprio Duchamp.










Arte segundo Duchamp: a escultura/instalação
Étant Donnés (Sendo dada), de 1946, que teve
Maria Martins como modelo, atualmente no acervo
do Philadelphia Museum of Art. Abaixo, performance
entre amigos: a partir da esquerda, uma manequim,
André Breton, Marcel Duchamp, Max Ernst e
Leonora Carrington com "Nude at the window",
pintura de 1941 de Morris Hirshfield, fotografados
em 1942 em Nova York por Hermann Landshoff.
Também abaixo, a obra criada entre 1915-1923,
La jeune mariée mise à nue par ses
célibataires, même, reconstruída por Duchamp
em parceria com Richard Hamilton em 1965











Na década de 1960, Octavio Paz retomou os contatos e a amizade com Duchamp, realizando uma série de entrevistas que se tornariam antológicas e que, depois de transformadas em belos ensaios sobre forma e linguagem, deram origem ao livro de 1968. Identificando a cronologia e o contexto da sucessão de rupturas que Duchamp provocou desde o começo do século 20, Paz apresenta nos ensaios índices para comparações entre as criações de Duchamp e obras de Picasso e outros mestres da Arte Moderna. 

Segundo a análise comparativa de Paz, os quadros de Picasso são imagens, enquanto os de Duchamp são uma reflexão sobre a imagem. A intenção de Duchamp, na interpretação conceitual e poética de Paz, procura substituir a pintura-pintura pela pintura-ideia, por isso aplica “elementos estranhos” em suas obras. Duchamp, em cada peça, alerta Paz, pretende construir tão somente auto-questionamentos. “Na arte o único valor que conta é a forma. Ou mais exatamente: as formas são as emissoras de significados. A forma projeta sentido, é um aparelho de significar”, completa. Diante da constatação sobre a supremacia da forma, Duchamp assume, desde a primeira década do século 20, o papel de pioneiro que vem instalar o “ready-made”, a neutralidade, a significação que surge exatamente da não-significação.









Arte segundo Duchamp: no alto, outra peça
de escândalo com a reprodução adulterada
de 1919 da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci,
com detalhes masculinos e o título L.H.O.O.Q.
que é um trocadilho infame para a expressão
“Elle a chaud au cul” (Ela tem fogo no rabo).
Acima, Nu descendant un escalier n° 2,
pintura em óleo sobre tela d1912.

Abaixo, o estudo fotográfico de 1887 de
Eadweard Muybridge, Woman walking
downstairscitado como inspiração
por Duchamp, e também Duchamp
descendant un escalierfotografia de
1952 de Eliot Elisofon com efeitos de
sobreposição realizada em homenagem
à célebre pintura de Duchamp de 1912.
Também abaixo, na sequência,
Marcel Duchamp e Man Ray
na disputa em uma partida de Xadrez,
em cena de Entre’Acte, filme de 1924
de René Claire Duchamp fotografado
para a capa do livro Marchand du Sel:
Ecrits de Marcel Duchamp (Mercador
de sal: escritos de Marcel Duchamp),
publicado pela primeira vez em 1959


















Engenheiro do Tempo Perdido


Outras entrevistas célebres de Marcel Duchamp, concedidas a Pierre Cabanne, foram publicadas na imprensa e em revistas acadêmicas da França e de outros países, na década de 1960, e depois editadas em livro, também lançado no Brasil pela Editora Perspectiva com o título “Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido”. Décadas depois do acontecimento que foi a “Fonte”, Duchamp revela alguns motivos que o levaram às criações de vanguarda e a manter em segredo, por muitos anos, sua autoria sobre a obra surpreendente e polêmica de 1917.

Assinando seu trabalho radical com o anonimato do pseudônimo “R. Mutt”, explicou Duchamp, ele poderia testar a abertura dos seus pares da Sociedade dos Artistas Independentes de Nova York, poderia confirmar ou não o senso de liberdade e de modernidade que os orientava e poderia observar a recepção a uma obra realmente inovadora, porque não se ajustava a padrões estéticos e morais convencionados na época. Para não comprometer o resultado, por conta de suas relações pessoais com os membros do conselho, precisava omitir que era um trabalho de sua autoria. E por qual motivo escolheu assinar como “R. Mutt”? Foi um trocadilho sobre a palavra alemã “armut”, que tem o significado irônico de “pobreza”, conforme foi cogitado por alguns historiadores e críticos de arte?

Não, não foi intencional esse trocadilho, segundo Duchamp. “Mutt” vem de Mott Works, marca registrada daquela loja de um grande fabricante de equipamentos sanitários no começo do século 20. Para não ficar muito evidente a relação com o nome da loja, Duchamp alterou a grafia de Mott para Mutt, também porque lembrou, naquela manhã de abril de 1917, dos personagens da história em quadrinhos de humor que fazia sucesso na época, nos jornais e revistas, “Mutt and Jeff”, criação de Bud Fisher, acrescentando o prenome “Richard”, que soava como uma gíria francesa para quem tinha o hábito de guardar “sacos de dinheiro”. E assim surgiu o estranho e lendário caso da arte de “R. Mutt”.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte segundo Duchamp. In: Blog Semióticas, 8 de abril de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/04/arte-segundo-ducamp.html (acessado em .../.../...). 



Alguns livros sobre Marcel Duchamp:


Para comprar Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido,  clique aqui.


Para comprar Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza,  clique aqui.


Para comprar Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos,  clique aqui.


Para comprar Duchamp: Uma biografia,  clique aqui.


Para acessar a entrevista de Duchamp publicada no livro Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day, clique aqui. 


Para acessar o catálogo da exposição da National Gallery sobre as parcerias entre Duchamp e Richard Hamilton, clique aqui.








Arte segundo Duchampacima, o artista
em 1967 fotografado por Richard Hamilton.
Abaixo, Duchamp e Man Ray em 1968,
no apartamento de Duchamp, em Paris,
em fotografia de Henri Cartier-Bresson








17 de maio de 2014

Lygia Clark no MoMA






O erótico vivido como profano e a arte vivida
como sagrada se fundem numa experiência
única. Trata-se de misturar arte com vida.

–– Lygia Clark (1920-1988).   




Lygia Clark ganhou destaque internacional com uma grande retrospectiva de sua obra no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova York, aberta ao público de 10 de maio a 24 de agosto de 2014. Maior exposição já dedicada a uma brasileira em um museu dos EUA, “Lygia Clark: The Abandonment of Art, 1948-1988” (Lygia Clark: O Abandono da Arte, 1948-1988) aborda, pela primeira vez, todas as fases da carreira da artista que se autointitulava “não artista e que se tornou uma referência, na segunda metade do século 20, na busca dos limites das formas não convencionais de arte.

Com um acervo de 300 obras nunca reunidas em uma única exposição, tomadas de empréstimo, depois de longas negociações, em coleções públicas e privadas no Brasil e outros países, a mostra apresenta desenhos, pinturas, fotografias, filmes, esculturas, objetos, instalações e obras participativas criadas nas quatro décadas de produção artística de Lygia Clark. O acervo, organizado de forma cronológica, foi reunido pela curadoria do MoMA a partir de três grandes temas: Abstração, Neoconcretismo e Abandono da Arte.

Além das obras e instalações permanentes em exposição, completam a programação do MoMA o lançamento de um catálogo com a obra completa de Lygia Clark, que inclui fac-símiles de projetos e escritos inéditos da artista, e uma série de eventos paralelos, entre oficinas, palestras e exibição de documentários com participação de Lygia – entre eles "O Mundo de Lygia Clark" (1983), de Eduardo Clark; "Memória do Corpo" (1973), de Mario Carneiro; e cinco curtas-metragens sobre a obra de Lygia realizados entre 1974 e 1979 por Anna Maria Maiolino. Também está na programação uma mostra de filmes experimentais brasileiros dos anos 1960 e 1970, com produções de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Neville D'Almeida, Ivan Cardoso, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica e Lygia Pape, entre outros (veja link para o catálogo e para uma visita virtual no final deste artigo).







  




No alto, cenas da abertura da exposição
Lygia Clark: The Abandonment of Art,
1948-1988” no MoMA, Museum of Modern Art,
em Nova York. Acima, Lygia Clark sua
Máscara Abismo com tapa-olhos em 1968.

Abaixo, Lygia Clark em uma experiência
de "arte relacional" no Rio de Janeiro,
na década de 1970; e fotografada em
Paris, em 1970, por Alécio de Andrade.
Também abaixo: 1) Lygia na primeira
Exposição Neoconcretaem 1959;
2) Lygia em frente às suas obras
Unidades, de 1958; e 3) a capa do
catálogo com a obra completa editado
pelo MoMA para a exposição











Na edição do catálogo, os organizadores da exposição apresentam de forma linear a trajetória da artista, nascida em 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte, Minas Gerais, e morta aos 67 anos em decorrência de um ataque cardíaco em 25 de abril de 1988, para colocar em relevo sua prática inovadora, desde seus primeiros trabalhos com tendências abstratas, literalmente abertos à participação ativa do espectador. Mais abrangente publicação já lançada sobre a arte de Lygia Clark, o catálogo reúne todo o acervo da exposição e outros trabalhos em belíssima seleção de imagens, com estudo biográfico, textos inéditos da artista e ensaios de Cornelia Butler, Luis Pérez-Oramas, Sergio Bessa, Eleonora Fabião, Briony Fer, Geaninne Gutiérrez Guimarães, André Lepecki, Zeuler Lima, Christine Maciel e Frederico de Oliveira Coelho.




Arte de vanguarda e prática terapêutica



No dossiê para a imprensa, os curadores da mostra e também organizadores do catálogo, Cornelia Butler e Luis Pérez-Oramas, destacam a importância e a atualidade de Lygia Clark e apontam que a exposição pretende valorizar sua produção inovadora e reinscrevê-la em discursos atuais da arte em diversas perspectivas, especialmente nos questionamentos e pesquisas sobre abstração, na participação interativa do público em diversos suportes e nas práticas terapêuticas.





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Ao reunir todas as partes da sua produção tão radical e tão pioneira é possível observar que ela sempre esteve na vanguarda”, aponta Luis Pérez-Oramas, reconhecendo que o pioneirismo de Lygia Clark se dá em várias frentes – seja na participação ativa dos espectadores através da composição permanente de suas obras de arte não convencionais, seja em suas práticas com arte sensorial que a levaram a pesquisas com terapia psicanalítica e a desenvolver uma série impressionante de novas proposições terapêuticas fundamentadas na arte.

A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte, tanto que ela autointitulava-se "não artista". Pintora, escultora, escritora, “performer”, terapeuta, professora: em 1972, morando em Paris desde 1968, foi convidada a ministrar um curso sobre comunicação gestual na Sorbonne e, segundo os biógrafos, suas aulas eram verdadeiras experiências coletivas apoiadas na manipulação dos sentidos e das sensações. 













São dessa época algumas das proposições impressionantes da artista, tais como “Arquiteturas biológicas, 1969", “Rede de elástico, 1973", “Baba antropofágica, 1973" e “Relaxação, 1974". Em 1976, há uma alteração marcante na trajetória, quando Lygia Clark retorna para o Rio de Janeiro para se dedicar às práticas terapêuticas com experiências individuais e coletivas em arte sensorial através dos seus "objetos relacionais". 



Abstração geométrica



Na apresentação ao evento no MoMA, Pérez-Oramas destaca no primeiro módulo da exposição, dedicado à abstração, a presença de predecessores fundamentais na obra de Lygia Clark, desde o diálogo de suas obras iniciais com mestres da arte brasileira e com grandes nomes das vanguardas, Duchamp, Calder, incluindo seus contemporâneos na abstração geométrica, Paul Klee, Fernand Léger (de quem foi aluna), Piet Mondrian, Vladimir Tatlin, Max Bill, Georges Vantongerloo.










A arte de Lygia Clark: no alto e acima,
desenhos e pinturas da primeira fase
questionam os limites entre obra e moldura 
a partir do alto, “Sem título” (1954),
Superfície Modulada nº 9” (1957) e
Superfície Modulada n° 4” (1957).

Abaixo, "Estudo" (1957) e "Composição"
(1953), formas geométricas e cores em
diálogo com as célebres experiência de
Mondrian e de Escher. Também abaixo,
painel montado em mosaico de pastilhas
no edifício Mira Mar, na Avenida Atlântica,
Rio de Janeiro, criado em 1951.
Exceto quando indicado, todas as
imagens fazem parte do acervo da
Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark”
e foram extraídas do catálogo do MoMA
Lygia Clark: The Abandonment of Art















 


Mas o grande apelo para o público está no segundo e terceiro núcleos da mostra, com os objetos relacionais da artista e suas proposições sensoriais que questionam o suporte material da obra de arte – alguns eram aplicados diretamente no corpo dos participantes, como mostram vídeos da época. Além da exibição dos originais, os visitantes contam com ajuda de monitores treinados para reproduzir com réplicas as experiências sensoriais propostas por Lygia Clark.

Como característica marcante dos desenhos e pinturas iniciais da artista, nas décadas de 1940 e 1950, já estava a complexidade das superfícies e o questionamento sobre o suporte material, com a exploração dos limites entre obra e moldura. “O que eu quero é compor um espaço e não compor dentro dele”, escreveu Lygia Clark certa vez, reconhecendo que a linha construtivista da arte brasileira – no concretismo, no neoconcretismo e seus desdobramentos – a levou a investigações para a arte além dos limites do tradicional e das formas convencionais. Nessa época, surgem os “Bichos”.










A arte de Lygia Clark: amostras das,
metamorfoses permanentes na série
“Bichos” e outras séries de Lygia Clark:
a partir do alto, Relógio de Sol”, de 1960,
e “O Dentro é o Fora”, de 1963.

Abaixo, uma série de "Bichos" na
instalação do MoMA; a escultura
Trepante, Versão 1”, de 1965, 
e “Óculos” (Goggles), de 1968





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Além do limite convencional



Por volta de 1960, Lygia Clark encontrou uma maneira de desdobrar as investigações sobre arquitetura e topologia de sua fase neoconcreta para um repertório tridimensional. O resultado foi a série de esculturas conhecida como “Bichos”, obras interativas que Lygia Clark concebeu para serem inteiramente e infinitamente remoldadas por seus manuseadores.

Em cada um dos “Bichos”, as linhas orgânicas se tornam dobradiças entre painéis, permitindo que a escultura seja transformada de um achatamento esquemático para uma variedade de configurações tridimensionais inesperadas. Algumas destas obras carregam enorme semelhança com seres vivos específicos, como o “Caranguejo” (1960), enquanto outros evocam temas da investigação artística de Lygia, como “Relógio de Sol” (1960). 




 

 

O segundo núcleo inclui, além dos “Bichos”, as séries “O Dentro é o Fora” (1963) e “O Antes é o Depois” (1963), que apresentam tripas de metal entrelaçadas, sem dobradiças. Completam o núcleo obras da série “Trepantes” (1965), estruturas de metal compostas por aço inoxidável retorcido em linhas líricas e formas circulares, e “Caminhando”, que a artista criou em 1963, retorcendo uma tira de papel em 180 graus para colar suas pontas e gerar um Anel de Moebius – uma forma circular que aparenta ter dois lados, mas na verdade tem apenas um, recortado longitudinalmente até o seu limite. 

 

Exílio e abandono da arte



O terceiro núcleo da exposição aborda o período a partir do final da década de 1960, quando ela passou a se dedicar exclusivamente a obras que incluíam a participação ativa do público, que poderia transcender o papel de mero espectador, acabando com a distinção entre artista e plateia – com trabalhos muito polêmicos em sua época, uma vez que Lygia Clark nunca os considerou nem como “performance” nem como “happenings”. 







Lygia Clark no ateliê: acima, em seu
estúdio no Rio de Janeiro, na década de
1950. Abaixo, "Escada", pintura em
óleo sobre tela de 1951.

Também abaixo, Lygia em Paris,
em 1969, trabalhando na instalação
"Arquitetura Biológica II”, em fotografias
de Alécio de Andrade; e amostras das
célebres performances coletivas sob
o comando de Lygia também registradas
em fotografias de Alécio de Andrade:
A casa é o corpo”, apresentada na
Bienal Internacional de Veneza, em 1968;
"Arquiteturas biológicas", em Paris, 1969;
"Rede de Elástico" (Paris, 1973)






 
Pelo contrário: estas investigações de sua última fase terminaram por levá-la a questionar profundamente o status e utilidade de trabalhos convencionais como meios de expressão. Entre 1966 e 1988, um período que coincidiu com uma crise pessoal e uma subsequente longa temporada de exílio na Europa, Lygia retomou de forma radical conceitos e práticas que havia confrontado em trabalhos anteriores. Fez objetos muito simples a partir de coisas como luvas, sacos de plástico, pedras, conchas, água, elásticos e tecidos.

Estes “objetos sensoriais”, segundo Pérez-Oramas, foram criados para tornar possível uma consciência diferente de nossos corpos, nossas capacidades perceptuais e as nossas restrições físicas e mentais. Os “objetos sensoriais” da artista tinham o propósito de serem ativados em contato e coordenação com as nossa s funções corporais e orgânicas.

Ao combinar nossos gestos com esses simples objetos, ela pretendia projetar uma dimensão orgânica sobre os materiais inertes e industriais”, explica Pérez-Oramas. Nessa época, Lygia parou de se definir como artista e passou a se concentrar no desenvolvimento de experiências sensoriais de uso terapêutico.










A casa é o corpo



Além dos três núcleos em exposição no sexto andar do MoMA, o quarto andar é dedicado exclusivamente a uma única instalação: "A casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão". Criada em 1968 por Lygia Clark para a Bienal de Veneza, a instalação simula em minúcias o aparelho reprodutor feminino e permite ao público uma experiência de imersão corpórea ao percorrer o seu interior.

Obra de fundamental importância para a história da arte brasileira – como destaca Maria Alice Milliet no ensaio biográfico “Lygia Clark: obra-trajeto”, publicado em 1992 pela EDUSP – “A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético”.















 
Ao entrar (“penetração”) no primeiro dos três compartimentos da instalação, o espectador encontra um quarto escuro de piso macio; depois, segue para a “ovulação”, um espaço repleto de materiais esféricos (balões, bolas de borracha e de isopor); em seguida, entra em uma bolha transparente no formato de uma lágrima (“germinação”) e, ao final do percurso, atravessa uma cortina de fios de “cabelo” para se deparar com um espelho deformado onde vê o próprio reflexo.

Passados quase 50 anos, as imagens de “A casa é o corpo” ajudam a explicar o impacto e o estranhamento que a obra sensorial e as ideias de Lygia Clark provocaram no Brasil e naquela Bienal de Veneza, com sua influência posterior em conceitos como “suporte”, “instalação”, “arte conceitual”, “arte-terapia”. A atual celebração de sua obra pelo MoMA e a recepção unânime e surpreendente de público e crítica a trazem de volta ao futuro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Lygia Clark no MoMA. In: Blog Semióticas, 17 de maio de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/05/lygia-clark-no-moma.html (acessado em .../.../...).



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A arte de Lygia Clark: no alto,
uma amostra e um coletivo da série
"Bicho" (1963). Acima, "Sem título" (1957).

Abaixo, registro da Vernissage da mostra
de Lygia Clark apresentada no MoMA 



 






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