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20 de agosto de 2011

Das Arábias






Você pode queimar o papel,
mas o que está escrito nele, você não pode.
Está bem guardado no meu peito.

Aonde quer que eu vá, ele me acompanha.
Queimará quando eu queimar e irá
comigo para o túmulo, quando eu morrer.

––  Ibn Hazm (994-1064).   


Por que a imensa maioria dos cidadãos do Oriente Médio e do mundo islâmico – e também de outras latitudes do planeta – vê os Estados Unidos da América como principal responsável por seus maiores problemas? O jornalista e escritor paquistanês Tariq Ali, meses antes da morte de Osama bin Laden (1957-2011), ousou escrever uma resposta que tornou-se um best-seller: o polêmico livro-reportagem "Duelo - O Paquistão na Rota de Voo do Poder Americano".

No livro, lançado no Brasil pela editora Record, Tariq Ali mira, na primeira pessoa e em tom confessional, porém estritamente jornalístico, o panorama político da sua terra-natal e dos levantes das populações árabes contra as invasões norte-americanas, contra o terrorismo do Estado de Israel e contra as monarquias e regimes autoritários. "Duelo" não é primeiro best-seller explosivo de Tariq Ali, que periodicamente também publica reportagens investigativas e ensaios analíticos em jornais e revistas de vários países, entre eles dois dos mais prestigiados veículos de imprensa do Reino Unido: o jornal "The Guardian" e a revista "New Left Review".

No Brasil, além de "Duelo", também estão publicados vários livros de Tariq Ali, entre eles "Piratas do Caribe" (relato que vai contra a visão distorcida e muitas vezes criminosa que a velha imprensa tenta construir no Brasil sobre a trajetória do venezuelano Hugo Chávez e a ascensão da esquerda democrática na América Latina), "Confrontos do Fundamentalismo" (sobre os atentados de 11 de setembro de 2001 e as origens da "guerra ao terror") e "Bush na Babilônia", que apresenta a guerra no Iraque no contexto da história de resistência do povo persa contra novos e antigos impérios.










Das Arábias: acima, visão interna da cúpula
do mausoléu de Mumtaz Mahal, o Taj Mahal,
em Agra, Índia, pináculo da arquitetura mongol,
em fotografia extraída do catálogo Thinkstock
Taschen. Também acima, o jornalista e escritor
Tariq Ali fotografado em 2003 no Imperial College,
em Londres. No alto da página e na sequência
abaixo, imagens de protestos contra os EUA
e da chamada Primavera Árabesérie de
revoltas e protestos violentos patrocinada
pelos EUA, com flagrantes registrados pelas
agências de notícias internacionais Reuters,
Associated Press, AFP (France-Presse)
e BBC sobre as manifestações e combates
nas ruas contra os governos locais.

Os protestos de multidões nas ruas, que foram
caracterizados como guerra civil em alguns
países, tiveram propaganda pelas redes sociais
da Internet, principalmente pelo Facebook, e
em pouco tempo se espalharam pela Líbia,
Egito, Paquistão, Índia, Síria, Tunísia,
Iraque, Argélia, Iémen, Líbano e outros
países islâmicos do norte da África,
do Oriente Médio e da Ásia a partir
de dezembro de 2010













A coragem e as denúncias explosivas dos relatos de Tariq Ali, contudo, custaram o exílio do jornalista, atualmente refugiado em Londres. Em "Duelo", livro que combina uma estrutura narrativa que lembra os roteiros de filmes de ação e suspense aliada a reflexões sobre a história política do Oriente Médio e a uma extensa pesquisa de fontes que incluem entrevistas, noticiários e convívio in-loco com outros jornalistas e correspondentes de guerra, Tariq Ali também antecipa a recentíssima crise em vários países da Liga Árabe – a maior parte deles às voltas com protestos populares inéditos, violentos e sangrentos, apoiados de forma ostensiva pelos Estados Unidos e difundidos de forma maciça pelas redes sociais da internet. Detalhe da maior importância: os países em questão estão entre os grandes produtores de petróleo do planeta.

Por conta das denúncias e análises de "Duelo" e de seus outros livros, principalmente os que apontam em minúcias os prós e contras para o império norte-americano ao interromper ou intensificar os combates no Oriente Médio, Tariq Ali foi acusado de apoiar o terrorismo e de ser um agente contra a democracia. Em outras palavras: a máquina da propaganda de guerra dos EUA, como acontece com muita frequência, foi acionada para tentar calar uma voz que ousa ser dissonante em relação aos interesses bélicos e econômicos do império do Tio Sam.









Das Arábias: bandeiras da Inglaterra e dos
Estados Unidos queimam em protestos nas
ruas do Irã e do Iraque. Abaixo, três colagens
do fotógrafo turco Ugur Gallenkus, que reúne
imagens recortadas de revistas de moda e da
cultura pop às suas fotografias de crianças e
refugiados em regiões de guerra e violência
na África e em países do Oriente Médio












Menestrel do mundo árabe


 

A impressão que o leitor tem, na primeira leitura das reflexões e descrições de Tariq Ali é que ele aprendeu o melhor de dois mundos. Nascido de tradicional família política Punjabi, Tariq Ali é formado no Ocidente pela Universidade de Oxford e autor de roteiros para cinema, biografias e obras sobre história e política internacional. Há muito ele é reconhecido como um dos principais comentaristas das questões sobre o mundo árabe e, por conta de seu tom personalíssimo e sua desenvoltura frente a questões diversas e polêmicas, revistas e programas de TV em vários países da Europa costumam se referir a Ali como "o menestrel das arábias".

Crítico ferrenho do fundamentalismo islâmico – que aponta como responsável pela propagação de atos terroristas – também não poupa os governos autoritários que nos últimos anos e décadas agiram sob o jugo norte-americano, casos de Egito, Jordânia e Síria. Para Ali, o direito dos povos oprimidos da região à resistência é sagrado, até porque quando se fala do mundo islâmico o que está em questão é um número quase incontável de histórias, povos, línguas, tradições, experiências e culturas.







"Quando comecei a escrever este livro um amigo de Londres perguntou: Não é imprudente começar um livro quando os dados ainda estão no ar? Se eu esperasse os dados caírem, nunca teria escrito nada", anuncia Tariq Ali, alertando o leitor para a possibilidade permanente e urgente de lances que dia sim dia não explodem nos noticiários.

A invasão do Afeganistão e do Iraque, a situação do Paquistão, os governos colaboradores, a frequência das revoltas populares e a complexa situação entre Palestina e Israel são os temas que perpassam em "Duelo". O escritor, que visitou o Brasil duas vezes – na Flip de 2006, em Paraty, e em Salvador, em 2010, convidado especial do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual – relata notícias recentes, mas também recorre à história árabe no último século, assim como busca paralelos na milenar história do Islã e seus contatos com a cultura cristã e judaica.







"A história oficial é composta sobretudo de meias verdades e mentiras sinceras, nas quais tudo é atribuído a governantes nobres, a sentimentos devotos", escreve Tariq Ali na conclusão de "Duelo". O capítulo, pontuado pelas memórias afetivas do autor sobre acontecimentos que têm versões radicalmente divergentes divulgadas pelas agências de notícia internacionais, recebe o título sintomático de "Poderia o Paquistão ser reciclado?" 



A outra história



"Os que escrevem a história oficial são adoradores de fatos realizados e estão ao lado dos vitoriosos", registra Tariq Ali, retomando teses emblemáticas de filósofos e historiadores capitais do século 20, como Walter Benjamin e Hannah Arendt. "Algumas vezes generais, outras políticos. O êxito justifica tudo. Mas existe outra história que se recusa a ser reprimida", alerta. É em direção a esta "outra história" que ele investe em “Duelo”, em análises contundentes, porém equilibradas, coerentes, demonstração do melhor jornalismo, tão em falta nos dias que correm.








Reunindo muitas de suas análises apresentadas como colaborador habitual de telejornais, revistas e jornais europeus, o paquistanês Tariq Ali demonstra no livro, na prática, as regras da apuração e os problemas da informação confidencial. Contudo, não há heróis em "Duelo". Nem aos mártires anônimos é reservada esta honra. Mas há esperança como nos versos do poeta Fakhar Zaman que encerram o relato de Tariq Ali:


Sem olhos, nós pintamos
Sem mãos, esculpimos estátuas
Sem ouvir, compusemos músicas
Desprovidos de língua, cantamos
Com as mãos atadas, escrevemos poesias
Com as pernas presas a grilhões, dançamos
E a fragrância das flores penetrou
nossas bocas e narinas tapadas.













Sherazade no mundo masculino


 

Enquanto em “Duelo” o jornalista Tariq Ali antecipa e analisa a crise árabe mais recente, a questão da mulher no Oriente é o centro do relato de primeira qualidade de uma mulher árabe, por coincidência jornalista. Lançada à ordem do dia com a proibição do uso em público, na França e em outros países da Europa, da burca e do véu integral muçulmano, a situação da mulher no mundo árabe é o tema de Joumana Haddad em "Eu Matei Sherazade – Confissões de uma Árabe Enfurecida", também lançado pela Editora Record.







Assim como “Duelo” também um best-seller internacional, o relato de Joumana Haddad, jornalista, editora, tradutora, poeta, romancista e ativista dos direitos humanos em sua terra-natal, Beirute, no Líbano, é escrito na primeira pessoa. Mas enquanto Tariq Ali expõe e elabora quase como metalinguagem seu livro-reportagem, a prosa de Joumana Haddad (foto abaixo) exalta com ironia e erotismo o poder libertador da literatura.

O relato de Joumana Haddad convida também, nos limites da metalinguagem, o leitor a compartilhar, a cada página, a trajetória de descobertas na passagem de Joumana de estudante adolescente para o mundo adulto predominantemente masculino. "Em vez de se render imediatamente a uma determinada imagem que foi criada por outra pessoa em seu nome, tente perguntar: afinal de contas, o que é uma mulher árabe?", desafia Joumana, logo nas primeiras páginas. Mas por quê, o leitor se perguntaria, matar Sherazade?








Joumana Haddad, no seu relato jornalístico e ao mesmo tempo confessional, argumenta sobre sua tese literária com implicações sociológicas, antropológicas e políticas: é preciso matar Sherazade porque ela, a narradora aprisionada do clássico "As Mil e Uma Noites", que interrompe ao fim de cada noite sua história mirabolante para sobreviver diante da tara assassina de seu algoz nobre e todo poderoso, a mesma Sherazade tida como uma das personagens mais emblemáticas da literatura universal – e símbolo particular da mulher e da cultura do Islamismo – em suas milhares de histórias inventadas (Ali-Babá, Simbá, Aladim, o Gênio da lâmpada, o gigantesco pássaro Roca, o tapete voador etc...) para evitar a morte, não seria jamais um bom exemplo de resistência. 



Metáfora da submissão



Para Joumana Haddad, que fundou em 2009 a "Jasad", revista trimestral publicada em língua árabe e especializada em arte, em erotismo e em literatura dos povos árabes, Sherazade é, sim, uma metáfora pessimista sobre a concessão e da submissão. Na argumentação da jornalista, Sherazade não representa um valor a ser cultivado. Pelo contrário: é uma referências extremamente nociva para o imaginário árabe porque faz alusões à negociação de direitos que não deveriam estar em jogo porque são direitos básicos para todos a humanidade – ou que, pelo menos, deveriam ser. 













"Este livro dedicado à figura mítica de Sherazade é uma tentativa singela de refletir sobre esse tema. Ele não pretende dar respostas às questões apresentadas, nem soluções aos problemas expostos, nem lições ou receitas para viver bem. Sua maior aspiração é divulgar um depoimento e uma reflexão" – com esta premissa Joumana Haddad vai tecendo um relato sedutor – tal e qual nas estratégias de sua antagonista Sherazade no clássico das “Mil e Uma Noites”.

O relato que Joumana Haddad apresenta em "Eu Matei Sherazade" soa breve e franco, por vezes político e explosivo, sobre o que significa ser mulher e ser mulher no mundo árabe. Com humor incomum, destrói preconceitos, diverte, faz pensar e condena a postura de quem assume o papel de vítima. Nascida em 1970, a jornalista é reconhecida atualmente como uma das mais engajadas representantes da luta pela liberdade feminina no Oriente Médio.







Joumana Haddad tem no currículo um trabalho extenso que é reconhecido também no exterior: além da revista "Jasad" e dos livros que publica, e da vida normal de todo dia, como ela destaca na apresentação de Eu Matei Sherazade”, ainda trabalha como editora do principal jornal do Líbano, o "An-Nahar", e também administra o Arab Booker, principal prêmio internacional da literatura de ficção em língua árabe.



Desafio aos tabus



Eu Matei Sherazade” defende a emancipação da mulher e aborda os tabus do sexo, da poligamia, da virgindade, do prazer, do casamento forçado, dos projetos autobiográficos dos quais se esquece e dos que abraça com paixão para contar como ela própria se impôs e venceu num opressivo mundo masculino. 

"Não entendia por que algumas coisas não eram permitidas a mim, por ser mulher. Então, tive a ideia de fazer uma revista que desafiasse todos esses tabus, falando sobre corpo, sexualidade e erotismo", esclarece a jornalista, comentando sobre as estratégias que adotou, logo nas primeiras páginas do livro.




Das Arábias: acima, Joumana Haddad e

reproduções da revista "Jasad" (a palavra

significa "corpo" em árabe). Abaixo, figuras

do feminino segundo a fotojornalista

Shadi Ghadirian, um dos nomes mais

conhecidos da fotografia contemporânea no

Irã. Na série fotográfica Qajar”, de 1998,

Ghadirian retrata mulheres usando trajes

típicos do mundo islâmico mais tradicional,

da época da dinastia Qajar (1785-1925),

porém com objetos da modernidade

do Ocidente na mesma cena















Joumana Haddad não só rejeita e ironiza os percalços de Sherazade, mas também confessa no livro que sua inspiração vem de clássicos da literatura, principalmente os do Ocidente – em especial o Marquês de Sade, autor polêmico que ela traduziu para o árabe e transformou em campeão de vendas no Líbano – mas também do cotidiano dos problemas que uma mulher árabe que ousa ser jornalista enfrenta, a cada pauta de trabalho e também na vida que segue.

Em seu relato saboroso, inteligente, Joumana lança mão de estratégias da melhor literatura e retorna, no final, à questão do começo do livro: há alguma diferença autêntica, significativa, evidente, entre a situação da mulher árabe muçulmana e da cristã?

"Temo que não há diferenças", ela conclui, num dos breves capítulos que antecedem aos poemas anexados em "O capítulo da poetisa – uma tentativa de autobiografia". "Se você for fundo, temo que não há diferença entre a mulher árabe e a maioria das outras mulheres do mundo. A injustiça, os códigos morais duplos e os preconceitos são um pouco mais óbvios e visíveis na primeira, só isso. E o óbvio é quase sempre uma armadilha".









Das Arábias: acima e abaixo, mulheres
árabes beduínas (beduínos são integrantes
das tribos nômades que habitam os desertos
do Oriente Médio e do norte da África, 
se deslocando continuamente para as práticas
do comércio e o pastoreio). Na sequência,
também abaixo, jovens religiosos católicos
participam de manifestação em Paris, em
setembro de 2011, em apoio aos protestos
nas ruas de países do mundo árabe; a arte
feita de pedras pelo pintor e escultor da Síria,
Nizar Ali Badr, para denunciar a violência da
guerra civil que teve início em março de 2011;
e uma das ilustrações da brasileira Lu Martins
no livro Três Fábulas do Oriente





 


Ensinar com as fábulas

Enquanto as fábulas de Sherazade são metáforas para as reflexões de Joumana e as notícias que se sucedem montam a cena para “Duelo”, o brasileiro Bruno Pacheco defende que fábulas e notícias podem ser apresentadas ao público infanto-juvenil como uma introdução à filosofia. Em "Três Fábulas do Oriente" (Editora Record), o jornalista carioca, assim como fazem os jornalistas árabes Joumana Haddad e Tariq Ali, também transforma certas observações triviais sobre o cotidiano em comoventes lições de vida. 










Nas três fábulas apresentadas no livro – "Quebrador de Pedras", "Carregador de Água" e "Buda de Pedra" – a lição vem nas entrelinhas, sem verdades absolutas, sem emburrecer nem aborrecer, para mostrar que as mesmas coisas podem ser de uma outra maneira, ensinando que a vida pode ser mais simples do que se pensa.

"Como minha avó, minha mãe e meu pai, ele nos faz de novo meninos e a gente aprende que um pote quebrado que podia parecer defeituoso pode, na sua imperfeição, regar as flores do caminho", destaca a poeta Elisa Lucinda na apresentação ao trabalho de Bruno Pacheco, que também é roteirista de programas de TV e autor do belo "Sidarta para Jovens" (Editora Bookmarks), além de ter assinado sucessos recentes do teatro carioca.

Com fragmentos destacados da meditação do zen-budismo, que o autor pratica há 16 anos, reunidos a um mosaico de narrativas sem dono, sem autor, que foram escritas há muitos e muitos anos, "Três Fábulas do Oriente", com belas ilustrações em cores e em preto e branco, a cargo de Lu Martins, não deixa de ser um presente para quem acha que criança tem o direito de entender logo sobre os mistérios da vida e do bom-senso.

Ou ainda, nas palavras do menestrel Tariq Ali, que recorda das Arábias o lugar primordial das Utopias, ao citar Oscar Wilde, um dos gênios visionários da Belle Époque. Tariq Ali destaca que um mapa do mundo que não inclua a Utopia não merece ser olhado, conforme escreveu Oscar Wilde no final do século 19, já que este mapa deixa de fora o único país no qual a humanidade está sempre desembarcando. Segundo Oscar Wilde, quando a humanidade chega ali, olha para o horizonte e, ao ver no horizonte distante um país melhor, zarpa de novo em sua busca. O progresso só existe quando há a realização de Utopias.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Das Arábias. In: Blog Semióticas, 20 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/das-arabias.html (acessado em .../.../…).


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Acima, documentário produzido pela
TV Cultura de SP sobre a Primavera Árabe,
nome como ficou conhecida a série de
revoltas populares fomentada pelos EUA
contra os governos locais em diversos
países do Oriente Médio. As manifestações
tiveram início em dezembro de 2010







21 de julho de 2011

Parábolas de Kafka













Em sua última fase, Kafka pensou em se mudar para Jerusalém
e intensificou, mais uma vez, os estudos de hebraico. Tivesse
vivido mais tempo, provavelmente acabaria emigrando para a
Palestina, aperfeiçoando o hebraico como língua viva e nos
ofertando o espetáculo desconcertante de parábolas e
histórias kafkianas escritas na língua de Judas Halevi.

––  Harold Bloom (1930-2019).    
 




Em um de seus muito conhecidos ensaios sobre a literatura do escritor de língua alemã nascido na cidade Praga, no antigo Império Austro-Húngaro, Franz Kafka (1883-1924), o professor e crítico literário Harold Bloom questiona: O que confere a Kafka uma autoridade espiritual tão única? A resposta, para Bloom e para qualquer leitor atento que conheça a obra em questão, alcança pontos de muita complexidade. Basta lembrar que poucos escritores tiveram seu nome transformado em adjetivo com tanta propriedade. "Kafkiano", na língua portuguesa, passou a designar algo surreal, muito complicado ou labiríntico, características marcantes da escrita deste genial escritor, laureado como cânone moderno ao lado de nomes como Marcel Proust e James Joyce: uma escrita de textos breves em que afloram o tom exasperado, atencioso ao menor detalhe, em temas que vão da alienação à perseguição implacável, do gnosticismo à religiosidade cifrada em dogmas teológicos.

Um estilo, enfim, que segundo os especialistas na obra do autor de "A Metamorfose" (1915) e "O Processo" (1925), ao retratar indivíduos preocupados com o pesadelo de um mundo impessoal e burocrático, expõe em profundidade os medos e as questões existenciais mais profundas de cada um de nós e de todos, incluindo, especialmente, o próprio Kafka, nascido em uma família judaica de classe média e falante do alemão, em uma época em que os moradores de Praga, na atual República Tcheca, em sua imensa maioria, falavam tcheco. Kafka, com sua angústia perante a realidade de seu tempo e também sua solidão interior, publicou apenas alguns poucos contos em vida, não terminou nenhum de seus romances e queimou cerca de 90% de seus escritos. O pouco que restou, incluindo obras como "O Processo", "O Castelo" e "O Desaparecido", foi publicado postumamente por iniciativa de seu amigo Max Brod, que não respeitou a vontade relatada a ele por Kafka, que era de ter todos os seus manuscritos destruídos.







Parábolas de Kafka: no alto, a capa do
álbum de Otto "Certa manhã acordei de
sonhos intranquilos"
, inspirado no livro
A metamorfose de Franz Kafka, com
produção visual do artista Tunga. Acima,
a capa de "Oportunidade para um pequeno
desespero"
, coletânea de parábolas de Kafka.
Abaixo, uma foto colorizada do escritor em
1910, em Praga, diante do prédio em
que morou com a família









Denso, filosófico, simbólico, mas também inaugurando na literatura uma mistura insólita entre o horrível e o absurdo, entre o cômico e o melancólico, que nenhum autor havia antes experimentado, mas que outros adotaram depois dele, o sentido quase sempre mítico e surpreendente dos textos de Kafka tem parentesco direto com as parábolas, aquele gênero sempre associado aos evangelhos bíblicos do Novo Testamento. Tal como as narrativas alegóricas de fundo religioso, baseadas em comparações e em formas diversas de analogias, as histórias e situações imaginadas por Kafka têm, sempre, um fim didático, baseadas em confrontos de crônicas de costumes ou observações analíticas sobre questões só na aparência simples ou insignificantes. 

O leitor brasileiro, que muito provavelmente, assim como eu, conhece a obra do autor tcheco pelas traduções para o português feitas por Modesto Carone, que a partir de "A Metamorfose", livro publicado pela Editora Brasiliense em 1983, traduziu até 2002 a obra completa de Kafka, agora tem mais uma possibilidade de mergulhar nesta obra emblemática. Muitos já haviam percebido o parentesco da literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de tradições ancestrais, mas coube ao alemão Nikolaus Heidelbach a iniciativa de selecionar e ilustrar uma série delas, distribuídas na obra do autor de "A Metamorfose": em cada parábola selecionada, cada relato é sucinto, e em cada um dos pequenos fragmentos a simples e aparente normalidade da existência definitivamente sucumbe, em certo momento, diante do inadiável desespero da sobrevivência.



Ao longe, o cantar de um galo



A seleção de Kafka segundo Heidelbach chegou às livrarias com o título "Oportunidade para um Pequeno Desespero" (Editora Martins Fontes). São 26 textos, organizados e ilustrados por Heidelbach, que têm sabor de inéditos mesmo para o leitor brasileiro mais dedicado à obra breve e fundamental de Kafka. Com um senso de humor ferino, os desenhos de Heidelbach traduzem e dialogam com as parábolas em seus pequenos lances que traduzem grandezas cifradas.

Nikolaus Heidelbach selecionou as histórias do livro entre os diários, cartas e textos diversos de Franz Kafka, a partir de uma frase –– que dá título ao livro e foi extraída do romance "O Castelo" (1926), quando o personagem K. encontra-se sozinho na rua com os pés afundados na neve, entre um castelo e uma aldeia desconhecidos, e pensa, com uma fina ironia que questiona e ao mesmo tempo coloca em cheque o sentido tétrico da narrativa: "Oportunidade para um pequeno desespero".








Franz Kafka fotografado aos cinco anos, 
em 1888. Abaixo, na fotografia para o
primeiro passaporte e em um de seus
retratos mais conhecidos, com data de 1923.

Também abaixo, em fotografias do álbum
de família aos 13 anos, aos 18 e aos 23












A citação não vem reproduzida na edição, mas surge indiretamente na forma de epígrafe –– "Se alguém tem uma pele amarelada, não tem escolha a não ser mantê-la, mas não precisa, como Frieda, ainda por cima, vestir uma blusa bem decotada cor de creme, de forma que os nossos olhos transbordem de tanto amarelo (?). Em algum lugar um senhor até imitou o canto de um galo".

Entre os 26 textos, há "Cinco Amigos", que trata com humor a falta de sentido das relações humanas, como bem define o narrador: "E qual é o sentido, afinal, dessa contínua comunhão, também entre nós cinco não há sentido, mas agora já estamos juntos e vamos permanecer assim". Outras vertentes do humor, com lances de absurdo e de literatura fantástica, surgem no surpreendente "A Ponte", no qual um homem percebe o que é uma ponte e espera pelo seu próprio fim: da construção da muralha da China, o mecanismo burocrático é transportado para uma terra distante e, dessa forma, evidencia sua desumanidade.



Histórias mais absurdas



Nascido em uma família da classe média judia e falante da língua alemã, durante os tempos de crise do antigo Império Austro-Húngaro, Franz Kafka deixou alguns poucos textos escritos, obras na maioria incompletas, longes da versão final que pretendia um dia concluir. Publicadas depois de sua morte, estas poucas obras fizeram dele uma referência como um dos maiores escritores da Literatura Universal. 

Autor de novelas, romances e coletâneas de contos, Kafka escreveu também a turbulenta "Carta ao Pai" (1919), com mais de 100 páginas, e centenas de páginas de diários. Muitas das obras hoje conhecidas de Kafka ele não concluiu, especialmente as narrativas longas, entre elas os romances "América" e "O Castelo" e alguns capítulos de "O Processo" – romance escrito sem ordem cronológica e sobre o qual, como em vários outros casos, pairam controvérsias questionando se a edição oficial é mesmo a definitiva.


 




Em "A Metamorfose", seu texto mais conhecido, Kafka narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco inseto. Em "O Processo", um certo Josef K. é julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora. Em "O Castelo", o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram, enquanto "Na Colônia Penal" (1914) fala sobre uma máquina que tem o poder de executar sentenças.

No sistema jurídico arbitrário de "Na Colônia Penal", apenas imaginado por Kafka, no qual o acusado não tem direito à defesa, um instrumento de tortura escreve, lentamente, sobre a pele do corpo do condenado, a sentença do crime que, muitas vezes, nem mesmo ele sabe que cometeu. Kafka antecipa, em muitas décadas, um termo que a Teoria Geral do Direito só iria incorporar em meados dos anos 1970: o "Lawfare", palavra-valise formada por "law" (lei) e "warfare" (guerra), podendo ser traduzida em português como "guerra jurídica", ou uma guerra em que a lei e manobras jurídico-legais são usadas como arma contra um adversário para fins de perseguição política.
  






Como sempre, em Kafka, no território de "Na Colônia Penal" não há sinal algum de redenção. Trata-se, na verdade, de uma história absurda sobre uma Colônia que usa esta máquina para torturar e matar pessoas, sem que estas sequer saibam o porquê de sua morte. Para a maior parte dos críticos e pesquisadores de literatura, os protagonistas das narrativas de Kafka são projeções dele mesmo e de sua incapacidade de adaptação na vida social e nos estudos.



Pesadelos burocráticos



Autor de uma literatura personalíssima que quase não encontra paralelos com obras produzidas nos séculos anteriores – e que deu origem ao adjetivo “kafkiano”, aplicado quando o que está em jogo são perseguições e situações características dos escritos do autor, Kafka retrata, talvez invariavelmente, indivíduos comuns preocupados com os pesadelos avassaladores de um mundo impessoal, injusto e burocrático. Um mundo que domina, que oprime, sem critério e sem justificativa.














O mais velho de seis filhos de um pai descrito pelo biógrafo Stanley Corngold (em "Introdução à Metamorfose", 1972) como “um grande negociante egoísta e arrogante", e pelo próprio filho como "um verdadeiro kavka ("gralha", em tcheco) nos quesitos força, saúde, apetite, sonoridade vocal, resistência e conhecimento da natureza humana" (em "Carta ao Pai"), Kafka atingiu pouca ou nenhuma fama, nem prestígio, com seus livros, na maioria editados postumamente. Em cada texto, o autor abarca à perfeição o conceito de “literatura moderna” e expõe seus medos, sua angústia perante o mundo, sua solidão e sua relação problemática com a família e os círculos sociais de sua época. Morreu em junho de 1924 num sanatório perto de Viena, onde se internou com tuberculose.

Desde então, seu legado único, incompleto, pessimista – resgatado e publicado pelo amigo Max Brod – exerce enorme influência na literatura e na cultura em geral, com adaptações para o cinema e outras mídias e como referência para outros escritores, artistas de áreas diversas e também músicos, como comprova o trabalho singular do cantor, compositor e instrumentista Otto em videoclipes, no show, nas canções e na concepção do CD intitulado “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”.





















 

Imagens de Franz Kafka: a partir do alto,
em gravura de Andy Warhol datada de 1980;
com sua irmã Ottla em fotografia de 1914;
com Felice Bauer, sua principal paixão amorosa,
em fotografia de 1917; e em passeio com amigos,
também em 1917, nos arredores da cidade de Praga.

Abaixo, retratado em duas imagens pelo traço
do cartunista Robert Crumb, no álbum lançado
em 2005 no formato de história em quadrinhos;
e em duas imagens pelo traço da cartunista
Chantal Montellier, que lançou O Processo
também em quadrinhos, em 2009, em parceria
com o escritor David Mairowitz. Também
abaixo, na praia, com o amigo Max Brod;
e em uma fotografia colorizada































O artista intranquilo



"Certa manhã, quando Gregório Samsa acordou, após um sono intranquilo, achou-se em sua cama convertido em monstruoso inseto". O músico pernambucano Otto tomou emprestada esta frase célebre, que abre o livro "A Metamorfose", uma das obras mais conhecidas de Franz Kafka, para batizar um dos melhores CDs da safra recente produzida no Brasil, o impecável "Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos". 

O quarto álbum de estúdio do cantor, compositor e percussionista pernambucano – lançado no apagar das luzes de 2009, pelo selo Arterial Music, reunindo dez canções, oito delas inéditas, com sonoridade dançante e belas letras cheias de melancolia – consumiu cinco anos de trabalho do músico. Mas todo o esforço foi recompensado com a aclamação pelo público que acompanha a trajetória de Otto, além do histórico de prêmios que conquistou e dos elogios unânimes dos críticos mais renitentes, no Brasil e no exterior.








"Deu sim muito trabalho e muita aporrinhação, mas o resultado eu acho que traduz um pouco do meu melhor", explica Otto, com muita calma e muito bem-humurado, do Rio de Janeiro, na entrevista que fiz com ele por telefone, para um jornal de Belo Horizonte. A entrevista foi feita em uma data das mais emblemáticas do calendário político brasileiro: a tarde do feriado do dia sete de setembro. Lembro a ele da data especial e do simbolismo que ela representa, assim que começamos a entrevista. 

"Sim, engraçado que hoje é mesmo dia sete de setembro, isso mesmo, o dia em que Dom Pedro gritou que era independência ou morte", ele constata, meio que achando graça de sua distração com o calendário. "Mas agora tem também o 11 de setembro, que virou uma outra data emblemática no mundo inteiro. Há muito tempo que penso nesta data do 11 de setembro para um show que seja mesmo marcante, que chegue para ficar na cabeça das pessoas como uma lembrança boa, porque as lembranças boas é o que movem a vida da gente", ele diz.









Não por acaso, Otto escolheu outra data cabalística como cláusula prevista em contrato para o lançamento do próximo disco. "Dia 11 do 11 de 2011 é a data marcada e assinada para a estreia do próximo show e para o lançamento do próximo CD, que vai trazer canções inéditas sobre garotas, máquinas e amores", ele conta, antecipando detalhes mirabolantes, ideias e planos "alguns impossíveis para agora, mas gravados na ponta do lápis para uma próxima", ele diz - para a produção do próximo trabalho.



Um cenário que lembra a Lua



"Será um disco experimental, diferente, com uma mistura de sons e de ritmos, umas coisas de sons espaciais e muitas referências ao Pink Floyd, que eu amo de paixão, e ao filme 'Farenheit 451', de François Truffaut, que é uma coisa que mexeu muito e ainda mexe muito comigo, mais a presença luxuosa de um bando de músicos que eu acho que são de primeira linha", destaca Otto.

"Já está tudo acertado", ele diz. "Ah, e tem também a participação muito especial de dois mestres que são o Naná Vasconcelos e uns remixes de passagens de som do Fela Kuti, os dois vão estar presentes no espírito do disco, meu grande mestre pernambucano, pioneiro em misturar percussão com mil coisas, e meu mestre africano, pioneiro da música que a gente chama hoje de afrobeat".









"Já tenho até a foto da capa do próximo CD na cabeça: será um cenário que lembra a lua, com um trono africano e eu e os músicos montados em trajes da tradição tribal. Tem também um verso que está me perseguindo e que deve conduzir as composições que ainda estão por vir. O verso é assim: há um lado da cama que existe entre nós" ele recita, cantarolando o improviso ao telefone e explicando o parentesco intrincado das novas ideias com outros discos, outras canções, outros filmes e livros.

Enquanto o próximo disco vai fervilhando na cabeça do artista, o último CD segue rajetória de sucesso, com turnê de Otto e banda pelo Brasil e outros países e elogios na imprensa internacional entre eles o aval do sisudo "The New York Times", que rasgou elogios em longa matéria especial e chamou Otto de "Moby do sertão" – em referência ao festejado artistas da cena eletrônica dos EUA. 
 






O Moby do sertão



Como se não bastasse, o CD "Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos" – que traz projeto gráfico surpreendente e fotos na capa e encarte de Cafi e Talita Miranda que registram Otto na Floresta da Tijuca – também emplacou simultaneamente duas canções com sucesso em trilhas de novelas que disputaram a audiência no mesmo horário. Coisa rara. Otto emplacou "Crua" como um dos principais temas musicais em "Passione", da Rede Globo, e "Naquela Mesa", na trilha de "Ribeirão do Tempo", da Rede Record.

"Este disco, com este título que no princípio todo mundo achava esquisito, é de certa forma minha evolução", ele diz. "Do primeiro CD, 'Samba pra Burro', posso dizer que é o que mais gosto, porque era uma carta de intenções. Os seguintes, incluindo o 'Condom Black' e o 'Sem Gravidade', também acho bons, fortes. Mas este atingiu um ponto legal, porque é um disco difícil, sofisticado, literário, que está provando que é possível sim, tocar as pessoas e emocionar e divertir e fazer pensar sem abrir concessões e sem explorar o mais fácil, o previsível. E também não pode ser impaciente”, ele diz, citando a sabedoria da literatura de Kafka:

"Tem uma passagem muito bonita do Kafka que eu li e que ficou na minha cabeça. Ele fala que talvez exista apenas um pecado capital, que é a impaciência. Muito louco isso. O Kafka escreveu que foi por causa da impaciência que fomos expulsos do Paraíso. E depois diz que é por causa da impaciência que não podemos voltar”.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Parábolas de Kafka. In: Blog Semióticas, 21 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/parabolas-de-kafka.html (acessado em .../.../…).



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