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10 de outubro de 2012

Caras do Brasil







Antigamente a vida era outra aqui neste lugar onde o rio, dando 
areia, cobra-d’água inocente, e indo ao mar, dividia o campo 
em que os filhos de portugueses e da escravatura pisavam. 

–– Paulo Lins, “Cidade de Deus” (1997).    


Obras-primas e obras menores da literatura, cinema, artes plásticas, música popular e outras artes, retomadas sob novas fronteiras disciplinares, fornecem ao professor Wander Melo Miranda os referenciais e dispositivos de leitura comparativa para os ensaios reunidos em “Nações Literárias” (Ateliê Editorial). Com um fio condutor sobre a questão interdisciplinar da identidade cultural, dos processos e paradoxos de constituição da nação e dos sujeitos modernos, os ensaios não foram organizados em ordem cronológica, mas formam no livro um conjunto coeso e surpreendente, organizado em três blocos temáticos.

A política e a economia são discursos autoritários, fechados, enquanto a literatura e as outras artes apresentam discursos abertos a novas interpretações que permitem mais liberdade”, explica o professor em entrevista por telefone, concedida às vésperas do lançamento do livro em Belo Horizonte. Diretor da Editora UFMG, professor de graduação e pós-graduação, mestre em Letras e doutor pela USP, Wander Melo Miranda também é coordenador de estudos sobre o Acervo de Escritores Mineiros mantido pela UFMG e, entre seus livros publicados, há obras de referência em destaque na fortuna crítica de vários autores, entre elas “Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago”, livro de 1992 que teve uma nova edição em 2009 pela Edusp.

A literatura e os outros sistemas de representação cultural da arte, nas mais diversas mídias e suportes materiais ou tecnológicos, defende o professor, ainda são os melhores instrumentos para abordar os conceitos de nação e de identidade nacional na atualidade. “Os discursos da literatura e das artes não são discursos melhores que os outros discursos, mas permitem maior liberdade e maior abrangência porque representam o lugar no qual sempre é o outro que vem dizer. Esse outro é o que se tem que saber ouvir”, destaca. 













Personalidades da literatura no Brasil:
a partir do alto, Sérgio Buarque de Holanda,
José Olympio, Jorge Amado, José Lins do
Rego, Graciliano Ramos e Carlos Drummond
de Andrade em caricatura de Eduardo Baptistão.

Acima, Drummond, Vinicius de Moraes,
Manuel Bandeira, Mario Quintana e Paulo
Mendes Campos em 1966, no jardim do
apartamento de Rubem Braga em Ipanema,
no Rio de Janeiro, fotografados para uma
reportagem da revista Manchete; e
Rubem Braga, o mais celebrado cronista
brasileiro, no banco do mesmo jardim,
fotografado em 1972 por Luiz Jardim.

Abaixo, um encontro de Drummond,
Guimarães Rosa e Manuel Bandeira
em 1960; quatro poetas de peso em 1960,
Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles
e Vinicius de Moraesuma fotografia de 1967
de Clóvis Scarpino que registra o encontro
de Tom Jobim, Pixinguinha, João da
Bahiana e Chico Buarque; uma visita à
casa de Manuel Bandeira, em Copacabana,
feita por Chico Buarque, Tom Jobim e
Vinicius de Moraes, fotografados em 1967
por Pedro de Moraes, filho de Vinicius.
Manuel Bandeira morreria um ano
depois, em outubro de 1968, aos 82 anos.
E Sérgio Buarque de Holanda com
Chico Buarque, pai e filho com obras
de referência para a cultura brasileira

























 
Os ensaios reunidos em “Nações Literárias”, originalmente publicados ou apresentados em congressos e simpósios científicos, no Brasil e no exterior, entre 1984 e 2008, propõem análises sobre a diversidade dos fatos culturais que passam por obras de João Gilberto Noll a Wim Wenders, de Ricardo Piglia a Rosângela Rennó, de Silviano Santiago ao grupo O Rappa, de Guignard a Ary Barroso, interpelando alguns dos pressupostos teóricos contemporâneos, de Fredric Jameson e Alain Badiou a Martin-Barbero e Néstor Garcia Canclini, entre outros autores e obras de referência.



Tons plurais da cultura e da nação



Há, nos 18 ensaios do livro, argumentos que questionam ou endossam críticos do passado e do presente, conjugados com erudição e maestria, demarcando um retrato do Brasil visto pelas lentes de um dos nome importante da intelectualidade contemporânea. As cores e os tons plurais da cultura e da nação brasileira mostram suas nuances e sons em vozes narrativas e imagens espelhadas em mestres como Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Jorge Luis Borges, mas sem nunca perder de vista a sofisticada tradição da criação literária brasileira nos dois últimos séculos – dos pioneiros a Alencar, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, as memórias de Pedro Nava, Drummond, Murilo Mendes – e seus reflexos na literatura que se produziu no Brasil da última década, incluindo, entre outros, Chico Buarque, Paulo Lins, Fernando Bonassi.











Amizade, literatura e MPB: No alto,
Tom Jobim e Drummond em 1973. Acima,
Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de
Moraes fotografados de pernas para o ar
em uma churrascaria de Ipanema por
Evandro Teixeira para o Caderno B
do Jornal do Brasil em 1979.

Abaixo, um encontro de Tom Jobim,
Astor Piazzolla, Chico Buarque e Caetano
Veloso no camarim do Teatro Fênix, no
Rio de Janeiro, onde foram gravados
os programas da série da TV Globo
"Chico & Caetano", exibida em 1986.
Também abaixo, Ary Barroso encontra
Carmen Mirandao compositor e
a intérprete mais famosa da canção
Aquarela do Brasil, em Hollywood, em
1942; e uma fotografia de 1932 de
Graciliano Ramos, tema do livro de
Wander Melo Miranda, Corpos Escritos:
Graciliano Ramos e Silviano Santiago,
que teve nova edição em 2009













O autor reconhece que a  literatura divide os holofotes do destaque, no livro, com outras artes e discursos, mas na entrevista o professor admite que a música popular permanece como a grande expressão da cultura nacional para a imensa maioria da população. “Como a literatura, a música popular também traz a experiência autêntica de um saber sem certezas, um lugar de liberdade e de mobilidade de sentido, independente do que a maioria da crítica especializada destaca como valor ou mesmo como ausência de valor”, explica. 

“Dos pioneiros a Pixinguinha e daí a artistas nacionais em evidência em nossos dias, a música popular guarda qualidades que são um convite ao olhar crítico e à pesquisa em diversas áreas”, defende Wander, aliando à música a produção audiovisual de cinema e TV que detêm um lugar de importância como formas privilegiadas de comunicação com extensas camadas do público e com as formas e conteúdos perenes da tradição.



  








O Brasil na tradição da música popular:
acima, Luiz Gonzaga (1912–1989), o Rei
do Baião, também conhecido pelo apelido
Gonzagão, aos 27 anos, em 1939, quando
deu baixa no Exército para se dedicar à
música e tornar-se uma das mais importantes
e inventivas figuras da música popular no
Brasil, sempre acompanhado da sanfona,
da zabumba e do triângulo, levando a
alegria dos forrós e das festas juninas do
sertão nordestino para outras regiões do
país, numa época em que a maioria dos
brasileiros desconhecia o baião, o xote,
o xaxado e o forró. Também acima,
Gonzaguinha e Gonzagão, pai e filho,
em foto dos anos 1980. Gonzaguinha
estava no auge do sucesso, com
16 LPs lançados e canções gravadas
por grandes nomes da música popular,
quando morreu em um acidente de
automóvel em 1991, aos 45 anos.

Abaixo, Pixinguinha, outro veterano
da tradição da música popular no Brasil,
fotografado ao piano com Vinicius de Moraes;
com Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus
e Cartola; e junto com Dorival Caymmi
e Ary Barroso na década de 1950.
Também abaixo, Ary Barroso com
Dorival Caymmi no lançamento do LP
que gravaram juntos em 1958 e na capa
original, com o título "Ary Caymmi e
Dorival Barroso, Um interpreta o outro"



















De certa forma, a paleta da violência domina a música popular, como domina a estrutura narrativa de filmes de sucesso como 'Cidade de Deus' e 'Tropa de Elite'. Neste caso, são filmes que abordam a violência e também fazem dela sua estratégia de linguagem”, conclui. Mas se a literatura mantém sua primazia nos domínios da arte e da cultura, como analisar as novas tecnologias em suas interfaces com a obra literária?

As novas tecnologias oferecem a democratização do acesso à informação, mas não dão conta da questão do juízo de valor. Obras clássicas de Freud e blogs descartáveis de adolescentes se equivalem no universo da Internet. O que só é positivo, a princípio, porque oferece novas possibilidades. Mas confesso que minha preferência é pela literatura tradicional e pelo livro impresso”, completa.















No alto, capa da primeira edição do
romance de Paulo Lins, que foi editado 
em 1997 pela Companhia das Letras, e
a edição atualizada pelo autor depois do
sucesso do filme Cidade de Deus (2002),
de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Acima,
Carlos Kroeber e Norma Benguel em
A Casa Assassinada (1971), filme de
Paulo Cesar Saraceni baseado no
romance de Lúcio Cardoso que teve
primeira edição em 1959 pela editora
José Olympio. Abaixo, o cartaz original
do filme de Saraceni; e o autor de
Nações LiteráriasWander Melo
Miranda, em foto de 2010







 
A dedicação à pesquisa sobre os cânones da tradição literária transparece nas entrelinhas em ensaios como “As casas assassinadas”, leitura comparada dos romances “A menina morta” (1954), de Cornélio Penna, e “Crônica da casa assassinada” (1959), de Lúcio Cardoso. Wander argumenta: “Se 'A menina morta' retrata o passado da gente brasileira, da fase da defrontação dos adventícios, onde deitaria raízes o espírito nacional em processo de definição, 'Crônica da casa assassinada', por sua vez, é a resultante levada ao extremo dos descaminhos deste processo”.

Através dos romances de Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, Wander Melo Miranda chega ao conceito de “nação” e sinaliza sobre a complexidade que é pensar esse conceito hoje, em meio às culturas híbridas, em tempos de globalização e proliferação dos meios de comunicação, da internet, das redes sociais, da circulação planetária de pessoas (pelos mais diversos motivos, do exílio político ao turismo de massa) e de bens culturais. “Por que sul-americano e não apenas brasileiro?”, questiona o autor.

Frente à vida cotidiana e ao jornalismo mais ordinário, que apresentam a “nação nossa de cada dia” como uma metáfora da casa assassinada, atulhada de vestígios e memórias, os ensaios e questionamentos reunidos em “Nações Literárias” configuram um alerta sobre as metamorfoses que certos conceitos adquiriram no decorrer do último século e especialmente nas últimas décadas – um alerta e um convite à reflexão, para que possamos considerar e dimensionar o valor real da “nação” e suas fronteiras, sejam elas territoriais, linguísticas, culturais.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Caras do Brasil. In: Blog Semióticas, 10 de outubro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/10/caras-do-brasil.html (acessado em .../.../…).





















Sumário de “Nações Literárias”


Parte I
  • Nações Literárias
  • Heterogeneidade e Conciliação em Alencar
  • Imagens de Memória, Imagens de Nação
  • Sem Pátria
  • As Casas Assassinadas
  • Anatomia da Memória
  • Tons da Nação na MPB

Parte II
  • Pós-Modernidade e Tradição Cultural
  • Fronteiras Literárias
  • Ficção Virtual
  • A Liberdade do Pastiche
  • A Memória de Borges
  • Memória: Modos de Usar
  • Ficção-Passaporte para o Século XXI

Parte III
  • Local/Global
  • Não Mais, Ainda
  • A Forma Vazia: Cenas de Violência Urbana
  • Latino-Americanismos




“De certa forma, a paleta da violência domina
a música popular, como domina a estrutura
narrativa de filmes de sucesso como
'Cidade de Deus' e 'Tropa de Elite'"

                     (Wander Melo Miranda)

 

20 de junho de 2012

Tiro ao Álvaro









Seu forte sotaque caipira misturado a expressões e linguajares dos imigrantes italianos produziu uma prosódia personalíssima e muito familiar ao imaginário popular: histórias tristes de perdas, carência afetiva, abandono, traição, despejo, pobreza e desassossego. Compaixão e amargura, contudo, ganham um indisfarçável tom de pândega e de ritmo irresistível nas irreverentes canções de João Rubinato, cantor, compositor, ator e comediante de primeira, vaidoso da juventude às últimas vezes em que foi fotografado, sempre posando de terno, gomalina no cabelo, chapéu de lado, gravata borboleta e caixa de fósforos nas mãos.

Sétimo filho do casal Fernando e Emma, que migraram da Itália para São Paulo, João Rubinato deixaria sua marca na cultura brasileira sob um codinome que ele próprio inventou – Adoniran Barbosa (1910-1982). Sua trajetória é feita de mudanças: nasce na cidade de Valinhos, mas em seguida vai com a família para Jundiaí. Aos 14 anos, troca a escola pelo trabalho e segue outra mudança da família, agora para Santo André, na Grande São Paulo. Aos 22 anos vai para a capital, onde trabalha como vendedor de tecidos. Em seguida, toma gosto pela música e pelas participações em programas de calouros no rádio.

É nessa época que o filho caçula, chamado de Joanin pela família, também muda de nome: Adoniran era o nome de seu melhor amigo e Barbosa foi uma homenagem ao cantor Luís Barbosa, seu ídolo. O primeiro destaque aconteceu em 1934, quando conquistou com “Dona Boa”, feita em parceria com J. Aimberê, o primeiro lugar no concurso carnavalesco da prefeitura de São Paulo. Anos depois é convidado para trabalhar como ator cômico, locutor e discotecário na Rádio Record, mas o primeiro sucesso só viria em 1955, com “Saudosa Maloca”, duas décadas após aquele primeiro prêmio.










Lembranças de Adoniran Barbosa:
acima, com os Demônios da Garoa;
abaixo, com Silvio Caldas e Grande Otelo
na lanchonete Estadão, no centro de São Paulo,
em janeiro de 1979, nos bastidores da gravação
de um programa da TV Bandeirantes em
homenagem ao aniversário da cidade







Rubinato e os Demônios da Garoa



O conjunto Demônios da Garoa, que fez a primeira gravação de “Saudosa Maloca”, passaria desde então a ser inseparável dos grandes êxitos de Adoniran, com arranjos vocais cheios de onomatopeias e breques com dramatizações que ironizam o sotaque italianado de bairros paulistanos como Brás e Barra Funda. Outros intérpretes que imortalizaram canções de Adoniran mantiveram essa marca do compositor em suas parcerias com os Demônios da Garoa – entre eles Elis Regina, que gravou em 1980 a antológica “Tiro ao Álvaro”, uma das últimas composições de João Rubinato.

Foi nessa época, dois anos antes de morrer, que Adoniran recebeu uma bela e comovente homenagem produzida por Fernando Faro. Para marcar os 70 anos do compositor, o próprio Adoniran retornou aos estúdios para gravar um disco de parcerias inéditas, cantando ao lado de grandes nomes da música brasileira suas mais famosas composições, incluindo, entre outras, “Tiro ao Álvaro” (com Elis Regina), “Bom Dia Tristeza” (com Roberto Ribeiro), “Viaduto Santa Ifigênia” (com Carlinhos Vergueiro), “Aguenta a Mão, João” (com Djavan), “Vila Esperança” (com MPB4), “Iracema” (com Clara Nunes), “Despejo na Favela” (com Gonzaguinha) e “Torresmo à Milanesa” (com Clementina de Jesus e Carlinhos Vergueiro).
















Adoniran em dois retratos em aquarelas
de 1980 de Elifas Andreato. Acima,
uma homenagem ao compositor em
retrato em um antigo painel no Bixiga.

Abaixo, Adoniran em grafite de
Izolag Armeidah; e no encontro
com o dramaturgo Plínio Marcos
em um bar no Bixiga, em São Paulo:
dois artistas que fizeram de sua
arte a voz dos excluídos









.



No encarte daquele disco, que foi relançado em CD pela EMI com o título “Adoniran Barbosa e Convidados”, Fernando Faro escreve sobre Adoniran e seu hobby de fabricar brinquedos. É um comentário breve, poético, que também pode ser lido como uma interpretação sobre suas canções mais conhecidas. “Buscando fundo na memória, ouvindo de vez em quando os amigos, e percorrendo ruas e bares, ele vai refazendo pedaço a pedaço, sem muita ordem, utilizando o metal, a madeira, os fios, e também a palavra e o samba, a humana e muito doce paisagem dessa cidade – uma cidade que muda a cada minuto, e se deforma e se reforma, e se transfigura. É São Paulo que ele constrói. Ou reconstrói".



Três décadas sem Adoniran



Oito anos antes do disco, considerado um dos melhores na discografia de Adoniran, Fernando Faro também gravou com ele um programa memorável da série “MPB Especial” na TV Cultura. O programa, com uma hora de duração e em preto e branco, que apresenta Adoniran cantando e falando de momentos marcantes da carreira, foi lançado em DVD pela Biscoito Fino na série dedicada aos nomes que passaram na verdade por outro programa, o “Ensaio”, também apresentado e dirigido por Fernando Faro na TV Cultura.









No alto, Adoniran Barbosa em cena do
programa Ensaio, da TV Cultura, em
1972. Acima, em foto de Oswaldo Jurno;
 abaixo, fotografado por Pedro Martinelli
em 1978, em visita às obras na praça
da Catedral da Sé






 


Entre outras histórias, algumas melancólicas, outras hilariantes, exatamente como nas melhores canções de Adoniran, o compositor reconhece, no programa de Fernando Faro, que andava triste e esquecido quando uma campanha publicitária da cerveja Antarctica comprou os direitos para usar um dos seus antigos bordões – “nós viemos aqui pra beber ou pra conversar?” Adoniran recorda que foi “vapt-vupt”: o bordão caiu no gosto popular, trouxe de volta à mídia o compositor de “Saudosa Maloca” e ainda alavancou as vendas da cervejaria.

Além do programa na TV Cultura, outro registro memorável com Adoniran foi o especial de Elis Regina que a TV Bandeirantes exibiu em 1978, com direção de Roberto de Oliveira e Sueli Valente. Elis visita Rita Lee numa discoteca e depois mostra imagens das novelas e dos principais filmes da trajetória de Adoniran como ator (entre eles “O Cangaceiro”, de 1953, “Candinho”, de 1954, e “A Carrocinha”, de 1955), antes de sair passeando e cantando com o próprio Adoniran nos cenários que inspiraram suas mais conhecidas canções. 










Adoniran e Elis Regina em 1979, durante as
gravações de um programa da TV Bandeirantes
na Padaria Real, São Paulo, fotografados por
Marjorie Sonnenschein. Abaixo, Adoniran 
com Elis no Bar da Carmela, no Bexiga, e
Adoniran em 1980, no Viaduto Major Quedinho,
São Paulo, em fotografias de Pedro Martinelli;
e em frente à Catedral da Sé, em 1978, e
no Largo de São Bento, em São Paulo,
em fotografias de Oswaldo Jurno



 




Autor de clássicos imbatíveis que as pessoas comuns têm na ponta da língua, como “Trem das Onze” e outras dezenas de grandes sucessos que permanecem há mais de meio século na memória nacional, Adoniran, que morreu há 30 anos, em 23 de setembro de 1982, tem recebido tímidos tributos desde então. Como a maior parte de sua discografia permanece fora de catálogo, um CD com gravações inéditas de seu repertório por novatos e veteranos da MPB em 2010, ano de seu centenário, foi a homenagem mais destacada em décadas para o artista que melhor retratou as histórias e os personagens paulistanos. 



Tributos e estudos biográficos


Vida e obra do compositor, que nos últimos anos de vida passava os dias fabricando brinquedos artesanais e tinha orgulho de ser corintiano doente, também foram lembradas em três estudos biográficos: “Adoniran – Uma Biografia” (Editora Globo, 2010), de Celso de Campos Jr.; o livro em formato de agenda permanente “Adoniran Barbosa” (Editora Anotações com Arte, 2010), de Fred Rossi; e “Pascalingundum! – Os eternos Demônios da Garoa” (Editora do Autor, 2009), de Assis Ângelo, uma biografia do conjunto que está na estrada há mais de 60 anos, mas que também destaca Adoniran em primeiro plano. 
 

















 

Dos três, o livro de Celso de Campos Jr. tem o maior fôlego: resgata minúcias da trajetória de Adoniran através de mais de 80 entrevistas e extensa pesquisa em arquivos públicos, em bancos de dados de jornais e no vasto acervo pessoal do Museu Adoniran Barbosa, esquecido nos subterrâneos da antiga sede do Banco de São Paulo. Para resgatar a trajetória do compositor, cantor, ator, artista de circo, poeta, o biógrafo parte da lenda de São Paulo como “túmulo do samba” para situar Adoniran como síntese da fala popular da cidade – o que fez com que ele alcançasse a proeza de criar versos que são ainda hoje reconhecidos por todos.

Selecionar o repertório de Adoniran não é difícil, porque ele tem uma coleção de canções que todo mundo gosta e canta junto de memória”, apontou o produtor Thiago Marques Luiz em entrevista que fiz com ele por telefone, na época do lançamento do CD. Assim como fez no final de 2009 com as canções do mineiro Ataulfo Alves, Thiago também realizou um eclético tributo ao centenário compositor paulista. “Adoniran 100 Anos”, lançado pela gravadora Lua Music, reúne uma bela coletânea de gravações inéditas.






















Além do valor da homenagem, que atualiza os grandes sucessos do compositor, o tributo a Adoniran colocou lado a lado novos nomes – como Verônica Ferriani, Márcia Castro, Mateus Sartori – e veteranos de gêneros variados da música brasileira, do samba de Jair Rodrigues, Leci Brandão, Eduardo Gudin, Cristina Buarque e Thobias da Vai-Vai ao pop-rock de Zélia Duncan, Arnaldo Antunes, Edgar Scandurra, e daí à vanguarda paulistana (Cida Moreira, Vânia Bastos, Tetê Espíndola, Virginia Rosa, Passoca, Laert Sarrumor) e a medalhões da MPB como Demônios da Garoa, Cauby Peixoto, Célia, Wanderléa, Maria Alcina e Dominguinhos. 



Justiça ao talento



Entre os grandes sucessos e pérolas pouco conhecidas de Adoniran, o tributo da Lua Music faz justiça ao talento do compositor e impressiona tanto pela qualidade das interpretações, quanto pela variedade de artistas envolvidos. “Nossa prioridade foi convidar grandes cantores que nunca tinham gravado o repertório de Adoniran”, explica Thiago. Cada artista, ele conta, teve total liberdade para a interpretação e os arranjos. Algumas das releituras são radicais, outras se mantêm apenas respeitosas.
 







Entre as mais surpreendentes, Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra desconstroem a cadência festiva de “Trem das Onze”, transformada em experimento para guitarra, voz e percussão (por Guilherme Kastrup). Tetê Spíndola e Markinhos Moura também retornam em grande estilo. Ela, no registro habitual de agudos, na sempre comovente “Iracema”. Ele, com um tom quase feminino em “Despejo na Favela”, que faz lembrar à primeira audição a extensão vocal de Elis Regina.

Mart’nália (com “As Mariposas”), Zélia Duncan (“Tiro ao Álvaro”) e Maria Alcina (“Um Samba no Bixiga” e “Plac Ti Plac”) também brilham, assim como Wanderléa e Thomas Roth, reunidos na releitura de “Samba do Arnesto”. “O Adoniran é sim o mais paulista dos compositores e também um dos maiores da música brasileira em todos os tempos”, destaca Thomas Roth, cantor, compositor, dono da Lua Music e popular no Brasil inteiro por conta da presença nas bancadas de jurados dos programas de TV “Ídolos” (2006 e 2007), “Astros” (2008 e 2009) e atualmente no ar no “Qual É o Seu Talento?” do SBT.









O lugar e a importância de Adoniran vão além do samba e muito além de São Paulo. Ele foi incomparável pelo talento, pela originalidade e pela capacidade de transformar em canções de sucesso frases e expressões de tipos característicos da vida paulistana. Ele foi o primeiro e o melhor a fazer construções eminentemente populares, em uma época em que o academicismo e a língua culta prevaleciam e davam o tom. Adoniran é único e permanece, rigorosamente, no primeiro time da MPB”, completa Roth.

Não se pode negar, afinal, que Adoniran é uma figura dessas que têm lugar cativo no imaginário popular. “Série única, edição esgotada”, como define com propriedade Fernando Faro. Na fronteira entre o fraseado caipira e o sotaque italianado, falando em “lâmpida”, “progréssio”, tiro ao “álvaro”, fez sambas que no humor e no balanço não lembram em nada os clássicos dos bambas do Rio ou da Bahia. As belas canções de Adoniran se mantêm como as mais completas traduções dos cenários e dos tipos mais entranhados da Paulicéia, mesmo para quem não mora em São Paulo ou não conhece o Viaduto Santa Ifigênia, a Avenida São João e o Jaçanã.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Tiro ao Álvaro. In: Blog Semióticas, 20 de junho de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/tiro-ao-alvaro.html (acessado em .../.../...).








Trecho do livro  'Adoniran - Uma Biografia'


Mas, para azar da família, o que João Rubinato almejava estava próximo demais da sua rota de trabalho. Como o jovem não era de resistir a tentações, as estações de rádio paulistanas, que despontavam como a coqueluche da época, ganharam um assíduo frequentador. As ondas sonoras desviavam o vendedor da labuta e o carregavam para as sedes das emissoras Cruzeiro do Sul, no largo da Misericórdia, Record, na praça da República, e Rádio São Paulo, recém-inaugurada na rua 7 de Abril. Além de acompanhar os programas, o rapaz procurava acomodar-se nos bares e botecos onde os funcionários das estações recarregavam as baterias. Entre uma branquinha e outra, acabaria conhecendo figuras já consagradas no meio radiofônico local, como o locutor Nicolau Tuma, os maestros Gaó e José Nicolini e os cantores Januário de Oliveira e Raul Torres.

Em pleno horário de expediente, usava sua lábia não para empurrar mercadorias aos comerciantes, mas para convencer os cartazes do rádio de que também ele poderia fazer e acontecer diante de um microfone. Não demorou para que o admirador de Noel Rosa e Carlos Gardel, dono de uma voz que poderia ser classificada entre o regular e o sofrível – mais para o sofrível –, se enturmasse com os artistas. De tanto insistir, recebeu em 1934 o convite para participar do programa Calouros do Rádio, pioneira criação do produtor Celso Guimarães para a Rádio Cruzeiro do Sul. João estava radiante: era a oportunidade que pedira a Deus. Cheio de prosa, foi escolher o terno, a gravata e comprar um pote extra de gomalina para ajeitar os cabelos. Tinha de ficar na estica para aquele sábado.


Extraído do primeiro capítulo
de Adoniran – Uma Biografia,
de Celso de Campos Jr. Abaixo, Adoniran
na plataforma da Estação Jaçanã em 1965
e no Viaduto do Chá, em 1980,
em fotografia de Pedro Martinelli






   



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