Mostrando postagens com marcador modernismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador modernismo. Mostrar todas as postagens

1 de fevereiro de 2022

Arte negra nas Américas






A história da escravidão africana na América é um abismo

brutal de degradação e miséria que não se pode sondar....

–– Joaquim Nabuco (1849-1910).  
   


Resumindo: é um evento que não tem a pretensão de constituir um inventário completo sobre a abrangência do assunto nem de propor uma história da arte revisada com foco na obra de afro-americanos. Mas é uma novidade em sintonia com os novos tempos. Trata-se de uma exposição inédita apresentada na Universidade Pepperdine em Malibu, na Califórnia, reunindo obras e documentos que narram conquistas e contribuições de artistas afro-americanos nos últimos seis séculos – tanto nos Estados Unidos como em alguns países de América Latina. A exposição “The Cultivators: Highlights from the Kinsey African American Art & History Collection” (Os cultivadores: destaques da coleção de arte e história afro-americana de Kinsey), com curadoria de Khalil Kinsey e Larry Earl, está aberta no espaço mais nobre da universidade, o Frederick R. Weisman Museum of Art, e prossegue até 27 de março, quando terá agenda itinerante por instituições nos Estados Unidos e outros países.

Na interseção da arte e da história, a exposição cobre a vida, a produção cultural e as realizações de um grupo representativo de afro-americanos desde o século 16 até os tempos recentes, incluindo obras e ações relacionadas à Proclamação da Emancipação dos cidadãos mantidos em escravidão, assinada em 1862 pelo presidente Abraham Lincoln (a escravidão tornou-se ilegal nos Estados Unidos através da aprovação da 13ª Emenda Constitucional em 1865); às mobilizações contra o racismo e contra o linchamento de negros no decorrer do século 20; às mobilizações pela igualdade com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960; e aos recentíssimos eventos do Black Lives Matter (Vidas negras importam) iniciados nos Estados Unidos desde 2013 com multidões em protestos contra a violência direcionada às pessoas negras. Em uma iniciativa que permanecia inédita no circuito de museus e galerias de arte, a exposição na Universidade Pepperdine celebra somente artistas afro-americanos, oferecendo uma contra-narrativa crucial ao colocá-los no centro, e não nas margens, da história norte-americana.












Arte negra nas Américas: no alto, Untitled, pintura
em óleo sobre tela de 1951 de Hughie Lee-Smith.
Acima, fotografia de Earnest Whiters de 1968 faz
um registro histórico da marcha em homenagem ao
pastor batista Martin Luther King Jr., liderança política
e ativista dos Direitos Civis que foi assassinado em abril
de 1968 em Memphis, Tennessee. Também acima,
"Primeiro voto", aquarela em policromia de
Gayle Hubbard na primeira página do jornal
"Harper's Weekly", de Nova York, na edição histórica
de 16 de novembro de 1867, que registrou a primeira
eleição nos EUA com pessoas negras na condição
de eleitores; e uma fotografia de Bernard Kinsey
em seu escritório de trabalho.

Abaixo, a família Kinsey: Bernard, Shirley e o filho do
casal, Khalil, atual curador e diretor da Fundação Kinsey;
e The Cultivators, pintura em óleo sobre tela de 2000
de Samuel Dunson que faz homenagem ao trabalho
dos Kinsey e que dá título à exposição aberta na
Universidade Pepperdine. Todas as imagens desta
postagem fazem parte do catálogo da exposição









A história da arte negra na América do Norte, assim como em toda a América Latina, e também em outros continentes, surge como uma história de resistência contra a violência, contra a opressão e contra o sofrimento das populações capturadas e negociadas no continente africano e levadas à força para o trabalho escravo do outro lado do oceano Atlântico. No informe sobre a exposição, a curadoria destaca a expressão “mito da ausência”, usada pelo historiador Lerone Bennett Jr. (1928-2018), que se dedicou a pesquisas sobre as relações raciais nos Estados Unidos, para se referir aos capítulos da história que tiveram afro-americanos como protagonistas e que foram por muito tempo ignorados.

A expressão "mito da ausência" é aplicada cada vez com mais frequência nos estudos acadêmicos, na educação e nas ciências sociais, como referência ao mascaramento do preconceito racial, pois tal mascaramento também configura uma prática racista de exclusão pelo "apagamento". O mito da ausência tornou invisível a trajetória de muitas gerações de artistas – que permaneceram anônimos em sua época e surgem agora, anos depois, ou décadas e séculos, em muitos casos, com obras que provocam impacto e impressionam. Pode-se reconhecer que foram silenciados, perdidos, roubados, humilhados, ignorados, deixados para trás, mas não esquecidos. Entre os artistas selecionados estão, entre outros, Ernie Barnes, John Biggers, Bisa Butler, Elizabeth Catlett, Robert Duncanson, Sam Gilliam, Jacob Lawrence, Norman Lewis, Augusta Savage, Laura Wheeler Waring, Lois Mailou Jones, Henry Ossawa Tanner, Alma Thomas, Hughie Lee-Smith, Romare Bearden e Charles White.











Arte negra nas Américas: no alto, Mulher vestindo
lenço laranja
, pintura 
em óleo sobre tela de 1940
de Laura Wheeler Waring. Acima, Duas mulheres
africanas
, desenho em técnica mista sobre pergaminho de
1942 de autoria de Eldzier Corter. Abaixo, Gamin Gamin,
escultura em bronze de 1930 de Augusta Savage;
e um retrato do escritor James Baldwin desenhado
por Romare Bearden em Paris, por volta de 1950,
quando Bearden foi um dos primeiros negros dos
Estados Unidos a frequentar como aluno os ateliers
de mestres como Brancusi, Giacometti e Matisse










Arte e resistência


A maioria dos artistas reunidos no acervo em exposição têm, pela primeira vez, destaque por sua produção artística, e poucos estão registrados nos livros didáticos de história e nos compêndios de história da arte. Vale lembrar que somente na década de 1980 um primeiro negro conquistou pleno reconhecimento nas artes plásticas nos Estados Unidos – ele foi Jean-Michel Basquiat (1960-1988), nascido em Nova York com ascendência porto-riquenha por parte de mãe e haitiana por parte de pai. Quatro décadas depois da revelação que foi Basquiat, o acervo de peças originais agora reunido, com pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, estamparias e obras em suportes variados de madeira, papel, tecido e pedrarias, é celebrado e contextualizado por meio de documentos históricos, cartas e manuscritos garimpados em diversas instituições, livros raros e fotografias que contam a história das lutas, da resistência e da perseverança afro-americanas.

A extensa e variada seleção de obras de arte negra, na verdade, é uma monumental coleção particular: a coleção de arte da família Kinsey, iniciada na década de 1960, e que só agora ganha sua primeira grande retrospectiva. Todo o acervo também está reunido em um catálogo ilustrado da coleção e da exposição na Universidade Pepperdine. Quando o empresário Bernard Kinsey e Shirley Kinsey se casaram em 1967, depois de se conhecerem como estudantes na Universidade da Flórida, o casal estabeleceu a meta de visitar 100 países diferentes durante sua vida juntos. Enquanto viajavam e exploravam outros países e culturas, começaram a colecionar arte, documentos e artefatos de história da América como lembranças preciosas das experiências de viagem. À medida que a coleção crescia, eles perceberam que havia tantos aspectos sobre sua própria herança cultural que nem eles nem outros pesquisadores conheciam e que as peças reunidas tinham um grande valor não apenas como raridades, mas também como uma expressão legítima da presença e da importância dos afro-americanos na arte e na cultura.











Arte negra nas Américas: acima, Charleston,
South Carolina, aquarela
 datada de 1936 de
Ellis Wilson; e Brincadeira de criança,
aquarela com data de 1950 de Aaron Douglass.

Abaixo, Mt. Tacoma from Lake Washington,
pintura em óleo sobre tela com data de 1885 de
Grafton Tyler Brown; e uma gravura publicada
em 1863 pelo Harper's Weekly com o título
"Os efeitos da proclamação: negros libertos
entrando em nossa jurisdição em
Newbern, North Carolina"


 
 


           


            



Conquistas históricas


A paixão do casal Kinsey pela história, pela cultura e pelos até então desconhecidos artistas negros das Américas os levaria a criar a Bernard and Shirley Kinsey Foundation for Arts and Education, com foco em iniciativas para o desenvolvimento da história e da cultura afro-americana, incluindo arquivos, programas de pesquisa, bolsas de estudo, edição de livros, eventos e apoio a várias instituições, entre elas a Rosa Parks Foundation. A valiosa e incomparável coleção de arte e história afro-americana do casal Kinsey, agora gerenciada por seu filho Khalil Kinsey, curador da fundação e da exposição, celebra as conquistas e contribuições dos negros americanos desde antes da formação dos Estados Unidos até os tempos atuais.

Se você quer mudar uma pessoa”, anuncia uma frase do patriarca Bernard Kinsey destacada no informe sobre a exposição, “a primeira coisa que você deve fazer é mudar sua consciência de si mesma, começa com sua consciência. A Coleção Kinsey se esforça para dar voz, nome e personalidade aos nossos ancestrais, permitindo que o espectador entenda os desafios, obstáculos, triunfos e sacrifícios extraordinários dos afro-americanos.” Khalil Kinsey acrescenta: “Esta é uma história de família, ilustrando o que uma família fez para contar sua história. Mas também é sobre a América. Porque a maioria das pessoas só conhece metade da história.”







Arte negra nas Américas: acima, gravura em
litografia de 1863 retrata um regimento voluntário

de soldados negros em Camp William Penn, na
Pensilvânia, em treinamento para combater as
tropas de confederados dos estados escravagistas
do sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil
ou Guerra de Secessão. Abaixo, litografia de 1872
registra os integrantes da primeira bancada de políticos
de ascendência afro-americana no Congresso dos
Estados Unidos, todos eles nascidos na escravidão.
Também abaixo, Hiram Rhoades Revels, o primeiro
cidadão negro a ser eleito para o Senado dos EUA,
em fotografia de 1870 feita por Mathew Brady;
e uma família de mulheres afro-americanas em
um daguerreótipo anônimo datado de 1855




      


 





Quebrando estereótipos


Além dos artistas que surgem com suas obras-primas na condição de obras inéditas para a maioria dos estudiosos e do público, contribuindo para dissipar mitos e quebrar preconceitos e estereótipos, há também na exposição documentos que registram momentos emblemáticos da história. Os destaques incluem documentos bizarros para os padrões atuais, como notas de venda, anúncios, cartas e certidões em manuscritos para o comércio de escravos. Há também raridades que são marcos da história da literatura e da imprensa, como livros e revistas originais com letras coloridas à mão da época da Guerra Civil; exemplares poucos conhecidos da arte, da música e da literatura do Harlem Renaissance, quando o bairro ao norte de Manhattan teve seu apogeu para a cultura negra (do começo do século 20 até o final da década de 1930); e itens que destacam personalidades e momentos-chave no Movimento dos Direitos Civis, a partir da década de 1960, incluindo panfletos originais, documentos e muitas fotografias que permaneciam inéditas.













     
   


Arte negra nas Américas: no alto, Quatro vacas
no campo, pintura em óleo sobre tela de 1893 de
Edward Mitchell Bannister. Acima, uma Paisagem
em pintura em óleo sobre tela de 1865 de
Robert S. Duncanson; e Porto, pintura de 1940 de
Allan Randall Freelon. Abaixo, litografia em base de
madeira de 1953 de Charles White com o título de
Cantor popular (Folk singer). Também abaixo,
Faces do meu povo, xilogravura de 1990 de
Marlon Burrows, seguida de Mãos do campo,
pintura em óleo de 1988 de Johnathan Green;
e Corredor na praia, pintura em tinta acrílica
de 1997 de Ernie Barnes






Além da beleza comovente de pinturas, gravuras, esculturas e desenhos de autores que estavam, em sua maioria, há muito tempo no anonimato, entre as raridades da coleção Kinsey, apresentadas no extenso acervo em exposição, também estão cartas e manuscritos pela primeira vez divulgados de lideranças políticas e personalidades como Martin Luther King Jr., James Baldwin, Malcolm X e Alex Haley, entre outros. Há ainda os registros cartoriais mais antigos de que se tem notícia sobre a presença e a atuação de afro-americanos nos Estados Unidos, incluindo uma certidão de batismo de uma criança negra e uma certidão de casamento civil de um casal negro, ambas do século 18.

Entre as raridades sobre literatura estão documentos em suas versões originais, com destaque para um exemplar recentemente descoberto da primeira edição de 1773 de poemas de Phillis Wheatley, primeira pessoa afro-americana a ter um livro publicado; e a primeira edição de 1853, completa e encadernada, de “12 Anos de Escravidão”, do autor Solomon Northrup, livro que em 2013 foi transformado no filme de mesmo título. Northrup, nascido livre em Nova York, em 1808, vivia com sua esposa e filhos quando foi sequestrado e acorrentado em 1841 por mercadores de escravos e vendido para fazendeiros da Louisiana, onde ficou cativo para trabalhos forçados em fazendas de cultivo de algodão e cana de açúcar. Em 1853, quando finalmente foi libertado, Solomon Northrup retornou para a família em Nova York e publicou seu relato dramático em livro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte negra nas Américas. In: Blog Semióticas, 1º de fevereiro de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/02/arte-negra-nas-americas.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita virtual à exposição na Universidade Pepperdine,  clique aqui.








8 de abril de 2017

Arte segundo Duchamp





A arte é a única forma de atividade por
meio da qual o homem se manifesta como
verdadeiro indivíduo. Mas pode alguém
fazer obras que não sejam de arte?

–– Marcel Duchamp  



Há exatamente 100 anos, o sempre surpreendente Marcel Duchamp (1887-1968) apresentava, em um salão anual de artistas independentes de Nova York, uma peça que foi recusada pelos membros do júri, mas que a partir daquela data conquistaria um lugar invejável como uma das mais desconcertantes e mais marcantes de todos os tempos, símbolo do poder questionador da Grande Arte e referência pioneira do que ficaria conhecido desde aquela época como “ready-made”, “arte conceitual” e “instalação”. No começo, a peça de Duchamp tinha contornos de um caso apenas divertido, contado entre amigos, como se fosse uma anedota, mas foi ganhando peso e uma importância singular na História da Arte.

Nascido na França e radicado nos Estados Unidos, Duchamp foi um exímio pintor, escultor, fotógrafo, cineasta, poeta, mestre do jogo de xadrez e ator performático, especialmente quando surgia travestido com a identidade secreta em seu alter-ego Rrose Sélavy, que alcançou o status de celebridade na cena artística de Nova York e chegou a assinar a autoria de vários “ready-made” – numa época em que a palavra “performance” sequer era usada no sentido teatral e espetacular do termo. Duchamp ficaria consagrado como um dos artistas mais influentes do século 20, mas é importante lembrar que o acontecimento de 1917 não foi um caso isolado em sua trajetória. 

Duchamp vinha de experiências anteriores que investiam no limite das fronteiras da arte – entre elas sua célebre pintura de 1912 “Le nu descendant l'escalier n° 2” (Nu descendo escadas número 2), que sugere abstrações sobre uma figura humana em movimentos de linha descendente da esquerda para a direita; e a escultura “La jeune mariée mise à nue par ses célibataires, même” (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), uma sobreposição de objetos, cabides e tecidos aparentemente aleatórios, de formas geométricas, iniciada em 1915 e concluída somente em 1923. Muitas outras de suas experiências radicais de criação e ruptura vieram antes e viriam depois, nos anos e décadas seguintes, mas o que se passou em 1917 foi, por certo, um divisor de águas para o próprio Duchamp e para a História da Arte.











Arte segundo Duchamp: no alto, Marcel Duchamp
fotografado por Man Ray em casa, em Paris, em
fevereiro de 1968. Acima, Duchamp em cena com
o célebre experimentalismo de Five-Way Portrait,
atribuído por ele como Self-portrait, criação do ano
de 1917; e Duchamp vestido a caráter como
seu alter-ego mais famoso, Rrose Sélavy, em 1921,
fotografado por Man Ray. Abaixo, uma das réplicas
de Fountain no acervo do MoMA de Nova York







Sobre aquela manhã, no mês de abril de 1917, contam os biógrafos, e ele próprio confirmou em depoimentos e em diversas entrevistas tempos depois: Duchamp leu uma nota publicada no jornal sobre a seleção organizada pela Society of Independent Artists e teve imediatamente a inspiração mirabolante – a concretização de uma ideia que ele vinha ruminando por dias e dias depois de algumas conversas com dois amigos, Walter Arensberg e Joseph Stella, artistas e colecionadores de arte.


Inspiração performática




Segundo relata o próprio Duchamp, naquela manhã ele foi à loja JL Mott Iron Works, que comercializava louças sanitárias e artigos para encanadores, na 118 Fifth Avenue, em Nova York, e comprou um mictório da marca Bedforshire, modelo padrão masculino, de porcelana cor branca. Chegando em sua oficina, ele decidiu escrever na lateral da peça, usando um pincel e tinta preta, “R. Mutt 1917”, que seriam seu pseudônimo e a data da criação da obra. Depois fez um embrulho com papel e corda e despachou, sob o título “Fountain” (Fonte), para o endereço indicado pelo salão.









Arte segundo Duchamp
: o artista surpreendente
em dois momentos –– em 1917, fotografado
em Nova York por Edward Steichen, e em
1967, no MoMA, ao lado de uma réplica de
sua lendária criação. Abaixo, uma relíquia do
álbum de família: os irmãos Marcel Duchamp
Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon
em fotografia de 1913. Assim como Marcel,
seus irmãos também tiveram destaque como
artistas: Jacques na pintura e na gravura, 
Raymond no desenho e na escultura






.




O júri, do qual Duchamp e Arensberg também faziam parte (uma vez que eram do grupo de fundadores e membros do Conselho de Administração da Sociedade), recebeu a peça e, depois do espanto inicial e de muito confabular, decidiu rejeitar a obra, sob o argumento da dúvida: não conseguiram chegar a um acordo para definir se era ou não uma obra de arte. Vencidos em sua argumentação a favor da aceitação da obra, Duchamp e Arensberg decidiram renunciar de imediato à presença no júri e ao Conselho de Administração, para surpresa dos demais integrantes, que na época não sabiam que o próprio Duchamp era o artista que assinava por pseudônimo.

Presente naquela sessão do júri e nos dias seguintes, no período de montagem da exposição, que seria aberta ao público no dia 10 de abril de 1917, o fotógrafo Alfred Stieglitz, a pedido de Duchamp, que era seu amigo, tentou e conseguiu fazer um registro da peça recusada. A fotografia de Stieglitz acabou sendo fundamental quando, semanas depois, Marcel Duchamp decidiu retomar a história inaugural de sua obra performática. A retomada aconteceu em grande estilo e ganhou repercussão ainda maior que o primeiro gesto iconoclasta que culminou na recusa da peça pelo júri.

Ao conseguir a fotografia de Stieglitz, o próprio Duchamp partiu para a mistificação: publicou a foto e um artigo anônimo, escrito por ele, com retórica entusiasmada, em defesa da obra ousada e verdadeiramente moderna do senhor Richard Mutt, no segundo número de “The Blind Man” (O homem cego), jornal produzido por Duchamp e seus amigos do círculo Dadaísta de Nova York, entre eles Henri-Pierre Roche, Beatrice Wood, Francis Picabia e Mina Loy. O artigo anônimo de Duchamp, metamorfoseado em ardoroso defensor do trabalho inovador de Richard Mutt, imortalizou a “Fonte” e conseguiu sacudir os alicerces da criação artística com um questionamento: o valor de uma obra estava realmente na criação original ou estava no contexto em que aquela determinada obra fosse inserida? Em outras palavras: Duchamp instituiu que, rigorosamente, tudo pode vir a ser arte.







Arte segundo Duchamp: a fotografia de
Alfred Stieglitz, única imagem conhecida
da obra original de Duchamp de 1917, em
fac-símile do artigo “anônimo” publicado
por Duchamp na revista The Blind Man















Iconoclastia inaugural



Hoje, um século depois, a iconoclastia inaugural de Marcel Duchamp ainda rende inúmeras controvérsias e polêmicas que vão de algumas dúvidas sobre a real paternidade da ideia original da “Fonte”, que teria sido apropriada por ele de outras iniciativas menos célebres de seus contemporâneos, às discussões historiográficas sobre a origem daquele objeto, que era raro na época e que, desde então, adquiriu uma aura mítica e mística. Há, inclusive, argumentações de pesquisadores que negam a veracidade da informação de que aquela peça industrial era comercializada em Nova York pela citada loja da 118 Fifth Avenue em 1917.

As polêmicas, variadas, vêm, enfim, perpetuar o esforço de mistificação para o qual o próprio Duchamp investiu, com apoio e cumplicidade de seu círculo de amigos na época e nas décadas seguintes, nos movimentos de vanguarda que estavam por vir. Por ironia do destino, com o passar do tempo a obra mais radical e mais provocativa de Duchamp seria totalmente e definitivamente assimilada como totem sagrado dos mais disputados pelos grandes museus. Entre outras informações intrigantes que ainda permanecem pairando sobre a obra iconoclasta de Duchamp, há também um mistério insolúvel: o destino que teve a peça original –– que nunca mais foi localizada depois da recusa pelo júri do salão de 1917 da Sociedade de Artistas Independentes de Nova York.













No ano de 1964, depois de recusar muitas propostas, Duchamp concordou em assinar uma autorização para que o historiador de arte Arturo Schwarz produzisse, com uma equipe de designers de Milão, algumas réplicas para serem apresentadas em Nova York quando houvesse a efeméride dos 50 anos do caso “Fountain”. As réplicas trouxeram à tona novamente a polêmica e, passada a efeméride, foram adquiridas por valores milionários, mantidos em sigilo, por grandes museus –– o MoMA de San Francisco, o Tate Modern de Londres e o Centro Pompidou de Paris. Uma das obras mais iconoclastas da história da arte, acusada durante anos de ter insultado instituições da arte, foi absolvida e absorvida com suas réplicas pelo sistema e com o consentimento do próprio Duchamp. 


Castelo da Pureza



Nas entrevistas que concedeu mais tarde, Duchamp apresentou suas versões para as estratégias de 1917 e sobre outras experiências de antes e depois da “Fonte”, sobre as relações com a família, com os amigos e com os parceiros de criação, sobre os casamentos e os casos de amor que teve – um deles, talvez o mais intenso, mais controverso e duradouro, com a brasileira Maria Martins, uma personalidade à frente de seu tempo, com talentos diversos bem ao estilo múltiplo e radical de Duchamp, com quem colaborou em diversas ocasiões e dividiu a autoria de trabalhos importantes que em sua época provocaram escândalo. Ainda hoje pouco conhecida no Brasil, Maria Martins desenvolveu grande parte de sua carreira no exterior, acompanhando o marido (o embaixador Carlos Martins) e angariando prestígio entre artistas, críticos e pesquisadores da história da arte como escultora, gravurista, pintora, desenhista, escritora, musicista e única mulher presente e atuante no círculo fechado dos Dadaístas e dos Surrealistas na França e nos Estados Unidos.

A aproximação intelectual e as relações amorosas entre os dois é tema do livro “Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos”, de Raul Antelo, publicado pela Editora UFMG. O autor parte da permanência de Duchamp em Buenos Aires, entre 1918 e 1919, para traçar o percurso da aproximação de Maria com Marcel naquele ano e nos anos e décadas seguintes, além de questionar a presença e a importância dos avatares latino-americanos na trajetória de Duchamp e em suas aproximações, oposições e diferenças com as noções de arte e política em relação a seus contemporâneos surrealistas André Breton e Georges Bataille. Algumas das célebres entrevistas com Duchamp são dados preciosos na argumentação de Raul Antelo, da mesma forma que elas também deram origem a outros livros que se tornaram obras de referência, como no caso das entrevistas que concedeu em 1955 para o diretor do Guggenhein Museum de Nova York, James Johnson Sweeney, publicadas em 1958 no emblemático livro “Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day” (W.W. Norton Editors), organizado por James Nelson.









Arte segundo Duchamp: o artista fotografado
na intimidade e entre amigos – no alto, com
Francis Picabia e Béatrice Wood , seus
parceiros em Nova York, em 1917. Acima,
com Lydie Sarazin-Levassor, com quem
Duchamp se casou em 1927.

Abaixo, em raras imagens com a
brasileira Maria Martins, sua musa, caso
amoroso e parceira em diversos trabalhos,
em 1947 (a partir da esquerda, Yves Tanguy,
Kay Sage, Duchamp, Maria Martins, Frederick
Kiesler, Enrico Donati) e em 1948 (a partir da
esquerda, Kay Sage, Duchamp, Maria Martins,
Arshile Gorky, Frederick Kiesler). Também
abaixo, Maria Martins em 1941, com uma de
suas esculturas, fotografada por Herbert Gehr,
e Maria em 1944, homenageada em
fotografia e intervenção com
sobreposições de John Rawlings


    


 










Outra série memorável de entrevistas de Duchamp foi concedida para Richard Hamilton, a convite da BBC de Londres, em 1961, somente publicadas em livro em 2009, com o título “Le Grand Dechiffreur: Richard Hamilton on Marcel Duchamp” (editora JRP Ringier). Hamilton, também artista plástico, autor da célebre colagem de 1956 “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” (O que é mesmo que faz as casas de hoje em dia serem tão diferentes, tão atraentes?), que rendeu a ele o codinome “pai da Pop Art”, também reconstruiu em parceria com Duchamp, nos anos 1960, obras-primas como “La Boîte verte” (de 1934) e “La jeune mariée...”, que estavam com paradeiro desconhecido, depois de décadas, assim como a “Fonte”, e apenas permaneciam registradas em fotografias.

Entre outros capítulos fundamentais para a compreensão da obra e do pensamento de Duchamp também estão a primeira publicação em livro de seus textos teóricos, “Marchand du Sel: Écrits de Marcel Duchamp”, em edição organizada em 1959 por Michel Snouillet; e “Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza”, livro de 1968 de Octavio Paz, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva. Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata do México, Prêmio Nobel de 1990, Octavio Paz conviveu nos anos 1940 em Paris com os principais artistas e mentores dos movimentos de vanguarda, como o surrealista André Breton, além de Pablo Picasso e do próprio Duchamp.










Arte segundo Duchamp: a escultura/instalação
Étant Donnés (Sendo dada), de 1946, que teve
Maria Martins como modelo, atualmente no acervo
do Philadelphia Museum of Art. Abaixo, performance
entre amigos: a partir da esquerda, uma manequim,
André Breton, Marcel Duchamp, Max Ernst e
Leonora Carrington com "Nude at the window",
pintura de 1941 de Morris Hirshfield, fotografados
em 1942 em Nova York por Hermann Landshoff.
Também abaixo, a obra criada entre 1915-1923,
La jeune mariée mise à nue par ses
célibataires, même, reconstruída por Duchamp
em parceria com Richard Hamilton em 1965











Na década de 1960, Octavio Paz retomou os contatos e a amizade com Duchamp, realizando uma série de entrevistas que se tornariam antológicas e que, depois de transformadas em belos ensaios sobre forma e linguagem, deram origem ao livro de 1968. Identificando a cronologia e o contexto da sucessão de rupturas que Duchamp provocou desde o começo do século 20, Paz apresenta nos ensaios índices para comparações entre as criações de Duchamp e obras de Picasso e outros mestres da Arte Moderna. 

Segundo a análise comparativa de Paz, os quadros de Picasso são imagens, enquanto os de Duchamp são uma reflexão sobre a imagem. A intenção de Duchamp, na interpretação conceitual e poética de Paz, procura substituir a pintura-pintura pela pintura-ideia, por isso aplica “elementos estranhos” em suas obras. Duchamp, em cada peça, alerta Paz, pretende construir tão somente auto-questionamentos. “Na arte o único valor que conta é a forma. Ou mais exatamente: as formas são as emissoras de significados. A forma projeta sentido, é um aparelho de significar”, completa. Diante da constatação sobre a supremacia da forma, Duchamp assume, desde a primeira década do século 20, o papel de pioneiro que vem instalar o “ready-made”, a neutralidade, a significação que surge exatamente da não-significação.









Arte segundo Duchamp: no alto, outra peça
de escândalo com a reprodução adulterada
de 1919 da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci,
com detalhes masculinos e o título L.H.O.O.Q.
que é um trocadilho infame para a expressão
“Elle a chaud au cul” (Ela tem fogo no rabo).
Acima, Nu descendant un escalier n° 2,
pintura em óleo sobre tela d1912.

Abaixo, o estudo fotográfico de 1887 de
Eadweard Muybridge, Woman walking
downstairscitado como inspiração
por Duchamp, e também Duchamp
descendant un escalierfotografia de
1952 de Eliot Elisofon com efeitos de
sobreposição realizada em homenagem
à célebre pintura de Duchamp de 1912.
Também abaixo, na sequência,
Marcel Duchamp e Man Ray
na disputa em uma partida de Xadrez,
em cena de Entre’Acte, filme de 1924
de René Claire Duchamp fotografado
para a capa do livro Marchand du Sel:
Ecrits de Marcel Duchamp (Mercador
de sal: escritos de Marcel Duchamp),
publicado pela primeira vez em 1959


















Engenheiro do Tempo Perdido


Outras entrevistas célebres de Marcel Duchamp, concedidas a Pierre Cabanne, foram publicadas na imprensa e em revistas acadêmicas da França e de outros países, na década de 1960, e depois editadas em livro, também lançado no Brasil pela Editora Perspectiva com o título “Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido”. Décadas depois do acontecimento que foi a “Fonte”, Duchamp revela alguns motivos que o levaram às criações de vanguarda e a manter em segredo, por muitos anos, sua autoria sobre a obra surpreendente e polêmica de 1917.

Assinando seu trabalho radical com o anonimato do pseudônimo “R. Mutt”, explicou Duchamp, ele poderia testar a abertura dos seus pares da Sociedade dos Artistas Independentes de Nova York, poderia confirmar ou não o senso de liberdade e de modernidade que os orientava e poderia observar a recepção a uma obra realmente inovadora, porque não se ajustava a padrões estéticos e morais convencionados na época. Para não comprometer o resultado, por conta de suas relações pessoais com os membros do conselho, precisava omitir que era um trabalho de sua autoria. E por qual motivo escolheu assinar como “R. Mutt”? Foi um trocadilho sobre a palavra alemã “armut”, que tem o significado irônico de “pobreza”, conforme foi cogitado por alguns historiadores e críticos de arte?

Não, não foi intencional esse trocadilho, segundo Duchamp. “Mutt” vem de Mott Works, marca registrada daquela loja de um grande fabricante de equipamentos sanitários no começo do século 20. Para não ficar muito evidente a relação com o nome da loja, Duchamp alterou a grafia de Mott para Mutt, também porque lembrou, naquela manhã de abril de 1917, dos personagens da história em quadrinhos de humor que fazia sucesso na época, nos jornais e revistas, “Mutt and Jeff”, criação de Bud Fisher, acrescentando o prenome “Richard”, que soava como uma gíria francesa para quem tinha o hábito de guardar “sacos de dinheiro”. E assim surgiu o estranho e lendário caso da arte de “R. Mutt”.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte segundo Duchamp. In: Blog Semióticas, 8 de abril de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/04/arte-segundo-ducamp.html (acessado em .../.../...). 



Alguns livros sobre Marcel Duchamp:


Para comprar Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido,  clique aqui.


Para comprar Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza,  clique aqui.


Para comprar Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos,  clique aqui.


Para comprar Duchamp: Uma biografia,  clique aqui.


Para acessar a entrevista de Duchamp publicada no livro Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day, clique aqui. 


Para acessar o catálogo da exposição da National Gallery sobre as parcerias entre Duchamp e Richard Hamilton, clique aqui.








Arte segundo Duchampacima, o artista
em 1967 fotografado por Richard Hamilton.
Abaixo, Duchamp e Man Ray em 1968,
no apartamento de Duchamp, em Paris,
em fotografia de Henri Cartier-Bresson








Outras páginas de Semióticas