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31 de julho de 2013

Punk de grife







Com suas provocações e sua mistura eclética de referências ideológicas e estilísticas, desde as origens, na década de 1970, o movimento punk teve uma influência explosiva no mundo da moda. Parece até um jogo de contrários: por ironia do destino (e do mercado), tanto a Alta Costura, com seus modelos exclusivos e sob medida para uma clientela de alto poder de consumo, quanto as linhas industriais das grifes e lojas do Prêt-à-porter, aderiram e incorporaram rapidamente aquele grito de protesto político representado nas atitudes e no visual de anarquia e rebeldia.

Para a engrenagem industrial, foi como descobrir o mapa da mina: em pouco tempo, muito da força espontânea das atitudes de protesto e da fúria anti-establishment seria incorporado, descontextualizado e transformado de novo em apelos de consumo – apesar do incômodo inconformista representado nos rasgos aleatórios, nas barras mal costuradas, nas tinturas de improviso, tachas, pregos, zíperes, alfinetes, argolas, lâminas, piercings, tatuagens, jeans e camisetas surrados, cortes de couro preto, cabelos raspados ou agressivos e outras práticas “alternativas” de bricolagem e da descoberta do “faça você mesmo” pregadas pelos primeiros punks.

A influência hostil e ameaçadora, transformada em forte tendência de estilo e consumo que vem até nossos dias, é o tema de "Punk: Chaos to Couture" (Punk: Caos para a Alta-Costura) uma exposição surpreendente que está aberta ao público até 14 de agosto em um dos mais prestigiados templos da moda em Nova York, o Costume Institute do Metropolitan Museum of Art (veja links para uma visita on-line ao Metropolitan e para o catálogo da exposição no final deste artigo).












Vintage Punk: no alto e acima,
Versace da década de 1990, destaque
em “D.I.Y. Style”, uma das seis
galerias que apresentam a exposição
Punk: Chaos to Couture no Costume
Institute do Metropolitan Museum
of Art, em Nova York









Destacada pela imprensa internacional como uma das mais importantes mostras de 2013, "Punk: Chaos to Couture" apresenta, além da proposta inédita e do tema algo inusitado, uma série de inovações técnicas no conceito de curadoria em artes plásticas. Inspirada na tecnologia de shows e performances do rock e da cultura pop, a mostra propõe uma experiência multisensorial em multimídia, com instalações em seis galerias do Metropolitan Museum que incluem 100 peças originais de estilistas e grifes do primeiro escalão.



Banheiro do CBGB



É um acervo que impressiona e que nunca havia sido reunido sequer em catálogos de história da moda, com criações que revolucionaram conceitos assinadas por nomes como Vivienne Westwood, Malcolm McLaren, Alexander McQueen, Maison Chanel, Viktor & Rolf, Gianni Versace, Riccardo Tisci, Helmut Lang, Lagerfeld, Miuccia Prada, John Galliano, Martin Margiela, Yohji Yamamoto e Comme des Garçons, além de fotos raras e telões com exibição permanente de performances e desfiles ao som de Blondie, Ramones, Sex Pistols, The Clash.

















Punk design: no alto, recriação fiel,
nos mínimos detalhes, feita sob encomenda
para a exposição a partir de fotografias de
Scott Gries de 1975 (acima) dos banheiros
rústicos e cobertos de pichações no lendário
clube punk CBGB em Nova York,
que se tornou um refúgio do rock
underground e foi demolido em 2006.

Acima, Clothes for Heroes”, galeria
da exposição do Metropolitan com
um panorama da cena musical de
Nova York e Londres e suas estrelas
em meados da década de 1970.
Em primeiro plano, de perucas verdes,
criações originais de Junya Watanabe.

Abaixo, flagrantes para Debbie Harry:
fotografada em 1979 por Robin Platzer
no templo da Disco Music, Studio 54,
com Jerry Hall e Paloma Picasso;
com Joan Jett no camarim do CBGB
em 1978: em fotografia de 1977 de
David Godlin no palco do CBGB
com sua banda Blondie; e em frente
ao CBGB, em fotografia de 1979.

Também abaixo, o cartaz original
do show lendário dos Ramones no
CBGB em 1975; The Clash em dois momentos:
em 1979, chegando para o show no The Palladium;
e em 1981, no camarim, antes da lendária
performance do CBGB; um flagrante no balcão
do bar do CBGB, com o encontro de
Dee Dee Ramone, Arturo Vega, Sid Vicious
e Nancy Spungen, em 1978, fotografados
por Eileen Polke a fachada original
do CBGB em 1983, em fotografia
de Jack Vartoogian

































O que não falta, na mostra, são surpresas e irreverências, pontuando certos momentos históricos para destacar a atitude simbólica e a linguagem visual do movimento punk, incluindo até mesmo a recriação fiel, nos mínimos detalhes, feita a partir de fotografias de 1975, do banheiro rústico e unissex coberto de pichações no lendário e pioneiro clube punk CBGB, em Nova York, demolido em 2006 – palco de estreia e consagração de uma extensa galeria de artistas e grupos lendários do rock e do pop.

Segundo Andrew Bolton, curador da exposição no Metropolitan, o objetivo do projeto, desde o início, foi analisar e destacar, tanto para o público em geral como para os especialistas que conhecem a história da moda, a forma como os designers têm olhado para as provocações e os protestos das tribos urbanas mais radicais, se apropriando desta estética anti-establishment para criar novos ideais de beleza e elegância.







Punk & Alta Costura: no alto e abaixo,
vestidos de Gianni Versace lançados nas
temporadas de primavera-verão de 1994 e de
1980 (abaixo, em recriação feita pela grife
para exibição exclusiva na mostra).
Acima, a noiva em farrapos criada por
Zandra Rhodes que causou
escândalo nas passarelas em 1977








Hoje se fala do movimento punk como se ele fosse um fenômeno estético e musical definido e demarcado, mas isso nunca foi verdade. Desde seu surgimento, na geração que viveu a década de 1970, nunca houve coesão ou princípios ideológicos. O contexto da sua origem foi saturado com clichês e convenções estereotipadas, mas o punk ainda sobrevive como intervenção estética transgressora”, defende Bolton na apresentação ao catálogo da mostra. "Punk é e sempre foi a comemoração do indivíduo, a celebração da criatividade e da coragem de ser diferente. Punk é desafiar o status quo", completa. 



Moda, música, atitude

 

Além de Andrew Bolton, três autoridades no assunto assinam os ensaios de apresentação no catálogo da mostra: o escritor, cantor e compositor Richard Hell, que foi baixista da banda Television, entre 1973 e 1975; Johnny Rotten, compositor e vocalista de duas bandas fundamentais, Sex Pistols e PiL, atualmente apresentador de TV na Inglaterra; e o jornalista Jon Savage, colunista do “The Guardian” e autor de um livro elogiado sobre o movimento punk, “England's Dreaming: Sex Pistols, Teenage and Punk Rock”, publicado em 1991 pela Faber And Faber.








Punk & História: no alto, capa
do livro de Jon Savage, “England's
Dreaming: Sex Pistols, Teenage
and Punk Rock”, publicado pela
Faber And Faber. Acima, em
foto de Kate Simon, Richard Hell
nos anos 1970, posando com as
sobreposições em farrapos, um estilo
que duas décadas depois seria
apropriado por Hussein Chalayan
para as peças de uma coleção da
Dazed and Confused em 2003.

Abaixo, Paul Cook no final da década
de 1970 e seu estilo em releitura por
Comme des Garçons na coleção 2008










Tanto os três convidados como Andrew Bolton são unânimes em reconhecer que, além de fornecer a música como pano de fundo, a revolução provocada pelo movimento punk na vida das pessoas comuns e no mundo da moda inaugurou não só o uso de novos adereços de couro e metal: também lançou a prática da “personalização” e do improviso, diluindo as fronteiras entre consumo e criação, com novas ideias para o “garimpo” e a reciclagem de peças que quebraram tabus e levaram a novas misturas, novas ousadias e desconstruções de estilos.

Bíblias da moda como “Vogue”, “Vanity Fair”, “Harper's Bazaar” e jornais como “The New York Times”, “Washington Post” e “The Guardian” destacam a coragem e a abrangência da exposição, mas também houve críticas e questionamentos. Uma das mais autênticas veio de Mick Jones, guitarrista do The Clash, que não só dispensou convites para a abertura de gala da exposição, com a presença de estrelas como Debbie Harry e Madonna, mas também ironizou a pompa da retrospectiva. Segundo Mick Jones, o punk foi um movimento que durou 100 dias sem rumo nem fronteiras e tentar enquadrá-lo em catálogos e tendências do mercado de consumo é falsidade.









Punk na passarela: estampas de
silk-screen, grafite e customização
assinadas por Stephen Sprouse e
Yohji Yamamoto. Abaixo, uma seleção
da década de 1970 de criações da pioneira
Vivienne Westwood em Londres e a
estilista com uma de suas modelos na
passarela da Paris Fashion Week 2009








Mesmo coerente com as propostas originais do punk, Mick Jones é apenas uma voz dissonante. Para Jon Savage, a retrospectiva no Metropolitan Museum é da maior importância. No ensaio “Symbols clashing everywhere: punk fashion 1975–1980”, talvez o melhor dos quatro ensaios publicados do catálogo da mostra "Punk: Chaos to Couture", Savage destaca a importância histórica sem precedentes da exposição e avalia que nenhum movimento ou estilo teve influência mais marcante que o punk no comportamento e no mundo da moda. 



Autêntico nas ruas, falso na vitrine
  


Savage reúne à sua experiência de testemunha que presenciou a explosão do movimento, na década de 1970, variáveis da política, da música e da literatura que contextualizam as propostas do estilo punk – seja na concepção de uma forma cultural deliberadamente marginal e alternativa à cultura tradicional vigente na sociedade, seja como manifestação de segregação e auto-afirmação por gangues de rua. No ensaio, Savage destaca e resume toda a trajetória do que seja ou tenha sido “punk” em apenas duas normas iconoclastas: quebrar as regras e desrespeitar convenções. 







Destaque na galeria do Punk de
grife: abaixo, Vivienne Westwood 
com seu marido, co-autor e sócio
Malcolm McLaren em 1971; o casal
fotografado em 1977; e Vivienne com

suas colaboradoras em frente à loja e
ateliê em Londres, Let It Rock (depois
rebatizada de SEX e, mais tarde,
Seditionaries), em fotografias do
artista plástico inglês David Parkinson























 
Apesar do apuro conceitual apresentado, há também – e principalmente – os negócios antes da arte. A estratégia agressiva de marketing capitaneada na mídia fez com que a maior parte das peças originais de vestuário e adereços em exposição voltassem às vitrines das grandes lojas, movimentando cifras bilionárias para as grifes envolvidas ou citadas. A mostra, que tem patrocínio do e-commerce Moda Operandi e da editora Condé Nast, faz questão de demonstrar sua “intenção comercial” nas galerias temáticas que apresenta, todas elas com produtos em catálogos e serviços de vendas.

São seis galerias temáticas. A primeira, “Clothes for Heroes”, apresenta um panorama da cena musical de Nova York e Londres em meados da década de 1970, com bandas pioneiras do estilo, como Sex Pistols, Ramones, The Clash. A segunda galeria, “The Couturiers Situationists”, é dedicada à interpretação conferida ao punk por aqueles que são considerados os “inventores” do visual que a maioria associa ao estilo, Vivienne Westwood e seu então marido Malcolm Mclaren, através da loja e ateliê Let It Rock (depois rebatizada como SEX e, mais tarde, Seditionaries). Em uma frase destacada na galeria, Vivienne Westwood confessa que sua fonte de inspiração foi a mistura de antigas camisolas de dormir com peças recortadas de uniformes militares.







Rock & Pop & Punk: no alto,
Johnny Lydon fotografado com sua
camiseta esburacada em 1976
por Richard Young, imagem de
inspiração para Rei Kawakubo 
na coleção 1982 – e Lydon com
seu agasalho de lã, recriado por
Junya Watanabe nas passarelas
para a temporada de 2006. Abaixo,
Lydon com seu casaco costurado
com arame em fotografia de 1976 e a
releitura por Versace na coleção 1994







A terceira galeria, “Pavilions of Anarchy and Elegance”, coloca lado a lado peças da Alta Costura e itens originais criados no ápice do movimento punk, em meados da década de 1970. Mesmo pertencendo a universos tão distintos, as peças dos estilistas e as “invenções” dos primeiros punks apresentam semelhanças estéticas que destacam, principalmente, as técnicas de customização. A quarta galeria do Metropolitan apresenta “Punk Couture”, com instalações que exploram o fascínio da moda por fetiches que parecem saídos de rituais sadomasoquistas, incluindo correntes, cintos, alfinetes, argolas, zíperes.



Rebeldia como artigo de luxo



A quinta galeria da exposição "Punk: Chaos to Couture", batizada como “D.I.Y. Style”, examina a contribuição e o impacto da bricolagem e da customização, no primeiro momento do que hoje se convencionou chamar de diretrizes de sustentabilidade: foi a bricolagem e a customização inauguradas pelos punks que contribuíram para levar materiais rústicos e reciclados a serem acolhidos pela indústria têxtil. A sexta e última galeria, “La Mode Destroy”, é dedicada a um mapeamento visual sobre os tipos que se tornaram dominantes no movimento punk, incluindo anônimos e famosos como a roqueira Patti Smith, com sua marca que mistura estilos em roupas desalinhadas, maquiagem borrada, cabelos desgrenhados.







Clássicos do punk: a partir do alto,
Patti Smith em 1976, em fotografia
de Caroline Coon, e a coleção criada
por Ann Demeulemeester no ano 2000
em homenagem à roqueira. Acima,
Sid Vicious em 1977, em foto de
Dennis Morris, e o estilo Sex Pistols
recriado por Karl Lagerfeld para a
Maison Chanel em 2011; e o visual de
Joe Strummer, vocalista do The Clash em
1977, recriado em 2003 por Helmut Lang.

Abaixo, uma seleção de peças
do estilo punk na Alta Costura dos
últimos 30 anos: na primeira foto,
panorâmica do saguão de entrada;
na segunda, uma amostra do acervo
Maison Chanel; na terceira, uma
seleção de Viktor & Rolf; na quarta,
uma das galerias dedicadas a
criações de Gianni Versace








Enquanto isso, a direção do Metropolitan comemora o sucesso de público da mostra, recordista em número de ingressos vendidos. Nada mal para a aposta arriscada de inverter os valores e reabilitar a rebeldia punk como estilo sofisticado de consumo. Ainda mais que o Metropolitan Museum amargou uma decepção contabilizada em 2012 – quando a exposição “Impossible Conversations”, sobre o acervo de dois clássicos do mundo da moda, Schiaparelli e Prada, teve decepcionantes 340 mil visitantes e não alcançou nem a metade do público esperado pelos organizadores. Ao apostar todas as cartas no anti-establishment do movimento punk, o Metropolitan conseguiu bater seu próprio recorde de visitantes.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Punk de grife. In: Blog Semióticas, 31 de julho de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/07/punk-de-grife.html (acessado em .../.../…). 


Para uma visita on-line à exposição do Metropolitan Museum,  clique aqui.













 

 






19 de março de 2013

Bowie no museu








E amanhã não seremos mais o que fomos nem o que somos.
"Nec quod fuimusve sumusve cras erimus." 
––  Publius Ovidius Naso em    
“Metamorfoses” (séc. 1° a.C.)    



"Camaleão", para muitos, é a melhor definição para o artista que tem em suas transformações radicais de imagem, tanto como em sua música, sua mais marcante expressão. Pois o Camaleão, o Mutante, o Extraterrestre David Bowie voltou com tudo, com bagagem de criações inéditas e com uma retrospectiva de imagens e sons que alcança todas as fases de sua trajetória. Longe dos holofotes desde 2004, quando sofreu um ataque cardíaco em plena turnê, a última vez que ele tinha sido visto em público foi em 2009, no Festival de Cinema de TriBeCa, em Nova York, na estreia de “Moon”, filme dirigido por seu filho Duncan Jones. Bowie parecia debilitado e frágil, tanto que até disseram que ele enfrentava uma doença degenerativa em estágio avançado.

Quando a lenda é maior que homem, publique a lenda” – como diria aquele personagem em “O homem que matou o facínora” (“The man who shot Liberty Valance”), clássico do cinema de John Ford. Agora, ao completar 66 anos, quando todos achavam que todas aquelas estranhas revoluções musicais e visuais de uma lenda chamada David Bowie eram coisa do passado, mister Ziggy Stardust surpreende sua legião de fãs e retorna com “The next day”, álbum que tornou-se um clássico instantâneo com 14 canções inéditas que também já deram origem a videoclipes intrigantes, fortes candidatos nas listas de melhores do ano e de melhores na lista de obras-primas em sua trajetória: "Where are we now?", com direção de Tony Ousler, e "The stars (are out tonight)", com direção de Floria Sigismondi e presença inspirada da atriz Tilda Swinton, na pele de esposa e clone do próprio Bowie.

Foram aplausos unânimes conquistados entre os mais sisudos e respeitados críticos em atividade nos principais e mais influentes veículos da imprensa internacional, The Guardian, The Telegraph, BBC, Libération, El País, Billboard, Rolling Stone – elogios por sinal reproduzidos na íntegra, sem nenhum crédito e sem cerimônia por diversos "críticos" nos principais jornais e revistas em território brasileiro. No lançamento, em 8 de março, a coleção de novas canções de Bowie disparou para o Número 1 das paradas britânicas e até o jornal The Independent, sempre discreto e equilibrado, saudou “The next day” como o "maior retorno já registrado na história do rock'n'roll".














Personagem e criador: entre as amostras
das memórias de David Bowie reunidas para
a exposição do Victoria & Albert Museum de
Londres estão imagens célebres, entre elas
Bowie em 1973 (no alto), paramentado com
vestimenta criada por Kansai Yamamoto
fotografado por Masayoshi Sukita, um
de seus fotógrafos preferidos.

Acima, fotografia de Frank W. Ockenfels
para a capa do álbum Earthlingde 1997,
com figurino surpreendente criado por
Alexander McQueen. Abaixo, Bowie em 1972,
quando surgiu como astro principal da era do
"glam rock" com seu alter-ego extravagante e
andrógino chamado Ziggy Stardust, lançado
pelo sucesso da canção "Starman" e pelo
álbum que é um divisor de águas na história
do rock e da cultura pop, o lendário
The Rise and Fall of Ziggy Stardust and
the Spiders from Mars. Também abaixo,
Bowie com o filho, Duncan Jones, em foto de
Michael Loccisano no Tribeca Film Festival









'David Bowie is'


A celebração do retorno não é exatamente uma surpresa para quem acompanha a trajetória de Bowie, batizado em Londres como o nome David Robert Jones em 8 de janeiro de 1947. Na música, no cinema e nos palcos, a capacidade de sempre inovar e renovar, tanto sua imagem como suas canções sofisticadas, que remetem à alta literatura e à cultura erudita, garantiram a ele o título de “camaleão do rock”, ainda na década de 1970, poucos anos depois de ganhar destaque com “Space Oddity” em 1969.

Outras revoluções e reinvenções contínuas surgiriam nas canções e nos discos seguintes, com mais tecnologia e influências assumidas dos surrealistas franceses, das antigas canções de cabaré de Kurt Weill e Bertold Brecht e das novidades que ele foi dos primeiros a promover, androginia, lisergia, psicodelia, cores em combinações bizarras, em dissonâncias e extravagâncias que ganharam a cultura popular, incluindo “The man who sold the world” (1970), “Hunky Dory” (1971), “The rise and fall of Ziggy Stardust and the spiders from mars” (1972), “Aladdin Sane” (1973) e outras investidas radicais pelas décadas seguintes.








Dois momentos de Bowie em fotografias de
Jean-Luc Ourlin: no alto, em Londres, 1972.
Acima, no palco, durante um show no
O'Keefe Center em Toronto, Canadá, 1976.

Abaixo: 1) e 2) Bowie com o parceiro e produtor
de seus primeiros discos, Lou Reed, em 1972,
em Londres, no bar do Dorchester Hotel,
fotografados por Mick Rock3) a 7) um encontro
de amigos entre Lou Reed, Mick Jagger e Bowie
no Café Royal, em Londres, 1973, fotografados
por Mick Rock8) Bowie celebrando o retorno de
Tina Turner aos palcos, com Keith Richards, no
The Ritz, lendária casa de shows no East Village de
NovaYork, em 1983, fotografados por Bob Gruen;
9) com o amigo Iggy Pop, em 1971, fotografados
por Bobby Grossman10) com o vocalista do Queen,
Freddie Mercury, nos bastidores do Live Aid,
concerto organizado por Bob Geldof e Midge Ure
em 13 de julho de 1985 para arrecadar fundos a fim
de acabar com a fome na Etiópia; e 11) no reencontro
com Lou Reed em um evento em Nova York,
em abril de 2007, em foto de Larry Busacca




























Em celebração às revoluções do artista mutante e seu eterno retorno ao cenário da cultura pop, está programado um tributo sem precedentes: durante cinco meses, a partir de 23 de março e até o dia 11 de agosto, David Bowie e sua obra serão homenageados como tema de uma grande exposição no Victoria & Albert Museum de Londres, um dos mais cultuados endereços britânicos da cultura, auto-intitulado “o maior museu do mundo em arte e design” (veja o link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo).

Há quem diga que, de fato, “David Bowie is” pode ser considerado o maior evento já realizado em um grande museu em homenagem a um astro da música pop e do rock'n'roll. Com bom humor e feliz, sorridente, Bowie agradece solenemente em um vídeo gravado especialmente para a exposição – também comenta algumas das peças reunidas no acervo e cita alguns dos nomes no panteão da arte e da cultura do século 20 com os quais ele compartilha conceitos e visões de mundo.









          


         



A partir do alto: 1) fotografia de Terry Pastor
para a capa do álbum Hunky Dory (1971);
2) Bowie posando com William Burroughs
em 1974, em fotografia e arte de Terry O’Neill;
3) a capa do álbum Ziggy Stardust (1972), com
pintura e nanquim sobre foto de Terry Pastor
com Bowie a vagar pelas ruas de Londres.

Abaixo, Bowie nos bastidores, em Londres,
1973, em três fotografias de Mick Rock, e no
palco em Londres, também em 1973, como
seu alter-ego Ziggy Stardust, durante a
turnê de Alladin Sane, na primeira imagem
fotografado por Mick Rock e na
segunda por Michael Putland






















Warhol, Duchamp, Yamamoto


Os nomes com reverências na lista de Bowie são quase inevitáveis: há elogios, agradecimentos e louvor às performances de Andy Warhol, de Marcel Duchamp, de Lindsay Kemp, a “Metropolis” e ao cinema de Fritz Lang e Stanley Kubrick, a “Lolita” e à literatura de Nabokov e dos beatniks, às fronteiras do design e à moda de Alexander McQueen e Kansai Yamamoto. Algumas das reverências explícitas vêm das parcerias que Bowie desenvolveu em quase 50 anos de cultura pop – como revelam créditos e autoria nas peças em exposição.

Ainda assim: parece estranho ver imagens e objetos da trajetória de Bowie apresentados como peças de museu? A resposta: nem tanto – especialmente se consideramos que designers e artistas dos mais criativos em suas áreas distintas tiveram participação de destaque em cada passo a passo das revoluções de mister Bowie e de seus alter-egos. Incluindo o mais importante: sua música.

A viagem apresentada no museu britânico tem seu fio condutor, como não poderia deixar de ser, na trajetória da música de Bowie desde a década de 1960 – em canções de estúdio, trechos de shows e videoclipes exibidos em telões e em fones interativos para cada visitante. Sons e imagens de Bowie percorrem salas e galerias do museu gigante com todos os recortes das 'artes menores' que recebem dedicação exclusiva no Victoria & Albert – da moda e das tecnologias do design às artes decorativas, arquitetura, artes gráficas, videoarte, cinema, dança, performances, conferências...






 

 











    Bowie no museu: no alto, a capa do álbum
    e a performance de pierrô pós-moderno em
    Scary Monsters, de 1980, seguida pela colagem
    surrealista feita pelo próprio Bowie a partir de três
    imagens do filme The man who fell to Earth,
    de 1976. Acima, o jovem Bowie antes do
    show de estreia, em 1963, com sua banda
    The Kon-rads, em foto de Roy Ainsworth.
      Abaixo, Bowie em sua estreia nos palcos da
    Broadway, em setembro de 1980, vivendo
    o protagonista da peça O Homem Elefante;
    e na bela pintura em acrílica de 2012 do
    artista francês Patrice Murciano













Entre as peças que traduzem a presença de Bowie na exposição, também estão joias exclusivas, utensílios domésticos, mobiliário, padrões de estamparia, vestuário, discos, canções, pôsteres em suportes variados, cartas, diários, dedicatórias, muitas e muitas fotografias, videoclipes e amostras de sua sólida presença como ator, no teatro e no cinema. Há, em destaque, imagens antológicas da estreia do astro nos palcos da Broadway, em 1980, interpretando o personagem central da peça "O Homem Elefante" (que seria transformada em filme, no ano seguinte, por David Lynch), em galerias multimídia em que o visitante também pode ver e ouvir canções de Bowie na trilha sonora de muitos sucessos da TV e do cinema, incluindo suas participações especiais em filmes polêmicos e premiados – como ele mesmo no alemão “Cristiane F”, de 1981; como Andy Warhol em “Basquiat”, de 1986; como Pilatos em “A última tentação de Cristo”, de 1988; como Nikola Tesla em “O grande truque”, de 2006.

O Victoria & Albert Museum também reservou espaço para a presença de Bowie como protagonista em filmes importantes como “O homem que caiu na Terra” (“The man who fell the Earth”, 1976, de Nicholas Roeg), “Apenas um gigolô” (“Schôner Gigolo”, 1979, de David Hemmings), “Fome de viver” (“The Hunger”, 1983, de Tony Scott), “Furyo – Em nome da honra” (“Merry Christmas, mr. Lawrence”, 1983, de Nagisa Oshima), entre outros, que serão exibidos em sessões especiais.

Há também instalados nas salas do museu monitores em suportes diversos e telões com exibição permanente de trechos selecionados da filmografia de Bowie e muitos documentários sobre ele – incluindo a íntegra do lendário “Ziggy Stardust and The Spiders From Mars”, registro em tempo real de sua última performance como Ziggy, no último show da turnê de “Aladdin Sane”, em 3 de julho de 1973, documentado por D. A. Pennebaker.



















Imagens de Bowie no cinema em destaque
na exposição do Victoria & Albert Museum:
a partir do alto, 1) e 2) Merry Christmas, Mr. Lawrence,
com Ryuichi Sakamoto, com quem atuou fez parceria
na trilha-sonora do filme; 3) o cartaz original do filme
"Fome de viver"; 4) e 5) Bowie no papel de
Andy Warhol em Basquiat; 6) na pose imaginária
de Heroes (1977), álbum criado em
parceria com Brian Eno.

Abaixo, Bowie no papel de Pôncio Pilatos em
A Última Tentação de Cristo, filme polêmico de
1988 de Martin Scorsese; com Kim Novak em
cena de Just a Gigolo, filme com direção de
David Hemmings e com a última aparição de
Marlene Dietrich no cinema; Bowie no palco,
em Edmonton, Canadá, durante a turnê de
Serious Moonlight, em 1983, fotografado
por Denis O'Regan; e Bowie na praia
com Iman, modelo nascida na Somália, África,
fotografados em 1985 por Bruce Weber para
um editorial da revista Vogue. Bowie e Iman
se casaram em uma cerimônia
realizada na praia em 1992
















Também de “Aladdin Sane” vem a imagem que os curadores Victoria Broackes e Geoffrey Marsh escolheram para o cartaz da exposição “David Bowie is”. Muitos fãs do artista que já foi chamado de “Camaleão do Rock” vão concordar que talvez seja mesmo a imagem mais emblemática entre tantas: aquela fotografia em que Bowie aparece com o peito nu e os cabelos ruivos, antecipando o punk, com maquiagem violenta de raio com feixe azul e vermelho a atravessar a pupila dilatada de seu olho direito.



Ziggy Stardust e Aladdin Sane



A fotografia, estampada no cartaz da exposição, foi encomendada por Bowie em 1973 a Brian Duffy, para a capa de “Aladdin Sane”. A ideia da maquiagem foi do próprio Bowie, para destacar o detalhe de que seus olhos tem cores bastante diferentes, resultado de um acidente grave na adolescência, quando recebeu um soco numa briga e quase perdeu a visão, ficando com uma das pupilas permanentemente dilatada.

A capa de "Aladdin Sane" é a imagem mais reproduzida na mostra organizada pelo Victoria & Albert Museum: além do cartaz oficial, também aparece na série de 26 capas originais de discos e em dezenas de variações em provas de contato ampliadas. Talvez seja também uma das imagens mais simbólicas da exposição – entre tantas imagens de Bowie que deixaram marcas no imaginário coletivo no último meio século.









    Bowie no Victoria & Albert Museum:
    a partir do alto, um desenho de 1978
    de Bowie em um autorretrato e foto
    publicitária para Diamond Dogs, álbum
    de 1974, por Terry O'Neill. Acima, 
    The Archer, de 1976, fotografia de
    John Rowlands para a capa de From
    the Station to Station, que sempre
    foi apontada pelo próprio Bowie como
    uma de suas fotos favoritas.

    Na seleção de imagens abaixo,
    1) o camaleão
    fotografado em 1974
    por Gijsbert Hanekroot durante uma
    gravação para a TV em Amsterdã,
    na Holanda; 2) no estúdio em Los Angeles,
    também em 1974, por Steve Schapiro;
    3) algumas das instalações que foram
    criadas para a exposição David Bowie is










Ao observar as imagens impressionantes da trajetória de Bowie, é possível perceber que, no caso de "Aladdin Sane”, como outras caracterizações incomuns no percurso criativo do artista, nada parece ser apenas lembranças do passado: parecem ser imagens para o futuro, mesmo quando a gente sabe que a memória registra apenas o passado e que ela sempre desaparece – feito tudo na vida, feito lágrimas na chuva, como diria com nostalgia aquele outro androide, anti-herói no “Blade Runner” de Ridley Scott.

No texto distribuído à imprensa para divulgar "David Bowie is", após enumerar considerações breves e acertadas sobre o pioneirismo de Bowie e sobre o pioneirismo da iniciativa promovida pelo Victoria & Albert Museum, ao reunir o acervo dos sonhos de todo fã, os curadores Victoria Broackes e Geoffrey Marsh revelam suas relações afetivas com a obra e com a música de Bowie. Foram estas relações afetivas, confessa Victoria, que manteve de pé o projeto contra todas as dificuldades – dificuldades e obstáculos que consumiram alguns anos de trabalho e dedicação antes que eles conseguissem concretizar a exposição.










Segundo Victoria Broackes, a dificuldade maior foi selecionar amostras entre os acervos que documentam Bowie e sua trajetória. Não somos acrobatas, mas concordamos que a melhor definição para esta viagem pela carreira de um artista importante e apaixonante como David Bowie é uma sensação – um salto mortal triplo executado sem rede”, explica Victoria, reconhecendo que a dificuldade maior da curadoria foi reduzir o vasto material e não ampliar o leque de referências diretas e indiretas que Bowie representa na música, na arte, na cultura e no comportamento de nossa época.

Entre tanta variedade e diversidade, a estratégia da curadoria foi priorizar objetos e imagens mais valiosos por seu valor histórico, por ser raridade como peça original ou pela sua importância como inéditos. Mesmo contrariando os gostos mais conservadores, a chegada de David Bowie ao acervo do Victoria & Albert Museum estabelece um precedente que surge como forte referência para novas mostras sobre personalidades do rock e da cultura pop, além de marcar um novo recorde: mais de 50 mil ingressos foram vendidos com antecedência, antes mesmo da abertura da exposição. De Marte ou de outro ponto relativo no espaço sideral, mister Ziggy Stardust deve ser só felicidades.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bowie no museu. In: Blog Semióticas, 19 de março de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/03/bowie-no-museu.html (acessado em .../.../…).
 


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    No alto e acima, as lendárias fotografias de Brian Duffy
    para a capa e o encarte do álbum Aladdin Sane,
    de 1973, seguida por uma camiseta inovadora que
    provocou polêmicas e marcou época: Face, criação
    de 1976 dos designers John Dove & Molly White


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