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29 de julho de 2022

Retratos de August Sander






Nenhuma obra de arte é contemplada tão atentamente 

em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, 

de nossos parentes próximos, de nossos seres amados.

–– Alfred Lichtwark (1852-1914).   


A arte do retrato fotográfico, que teve início em meados do século 19, ganhou um capítulo especial no século 20 com as fotografias do alemão August Sander (1876-1964). Considerados um caso exemplar de fotografia documental, os retratos feitos por Sander são abordados como referência importante em alguns dos principais estudos já realizados sobre fotografia: ele é citado como “corpus extraordinário” por Walter Benjamin em “Pequena história da fotografia” (1931) e é um dos fotógrafos selecionados para as análises que Roland Barthes apresenta em “A câmara clara” (1980), assim como está destacado por suas “imagens de arquétipo” no estudo não menos célebre de Susan Sontag (em “Sobre a fotografia”, de 1973) e também surge como parâmetro e analogia para uma “idealização do poder” na leitura de John Berger (em “Para entender uma fotografia”, de 2013).

Um “revival” em homenagem à arte de August Sander aconteceu recentemente com uma exposição itinerante aberta no Museu de Arte Contemporânea da cidade de Siegen, na Alemanha. Depois de Siegen, a exposição seguirá uma extensa agenda em outros importantes museus da Europa e de outros continentes. Trata-se da primeira grande exposição sobre o acervo de Sander desde a década de 1960, quando depois de sua morte foram realizadas retrospectivas de seus retratos nos museus de Siegen (1964), de Herdorf (1965), terra natal do fotógrafo, e no MoMA de Nova York (1969). Nos anos seguintes, houve apenas pequenas amostragens da obra de Sander em exposições nos museus da Alemanha e de outros países.









Retratos de August Sander: no alto da página,
"Agricultores, 1914", uma das fotografias
destacadas por John Berger. Acima, "Notário",
o trabalhador do cartório na fotografia analisada
por Roland Barthes em A câmara clara;
e August Sander em autorretrato
da década de 1950.

Abaixo, "Desempregado, 1928";
e um quadro com as 70 fotografias do arquivo
de August Sander selecionadas pelo próprio
fotógrafo e apresentadas na exposição do
Museu de Arte Contemporânea
da cidade de Siegen, Alemanha
 










A nova exposição em Siegen traz uma seleção de 70 ampliações dos retratos de August Sander – seleção que havia sido feita pelo próprio fotógrafo no início da década de 1960. Com o título de “70 Porträts aus, Menschen des 20. Jahrhunderts” (70 retratos de pessoas do século 20), a exposição já é considerada a mais importante e mais abrangente já realizada com o trabalho de August Sander. A homenagem à arte do retrato segundo Sander ainda traz como atração adicional um evento paralelo incomum: a exposição acontece simultaneamente a uma outra mostra, apresentada no mesmo museu, chamada de “Nach August Sander, Menschen des 21. Jahrhunderts” (Depois de August Sander, pessoas do século 21), que reúne retratos feitos por 13 fotógrafos contemporâneos e que tem a proposta de estabelecer um diálogo conceitual com o acervo de Sander, com curadoria de Thomas Thiel.


Traduções de uma época


Durante décadas, August Sander fotografou grupos profissionais e classes sociais com um método muito planejado e com rigor de estudo antropológico. Ele começou a fotografar ainda na adolescência, quando acompanhava o pai, que era trabalhador em uma mina em Herdorf, e aprendeu os primeiros passos no ofício da fotografia ajudando fotógrafos profissionais que trabalhavam para a empresa que explorava as minas. Com apoio de um tio, comprou sua primeira câmera antes de prestar o serviço militar. Mais tarde, no exército, entre 1897 e 1899, atuou como assistente de fotografia e, nos anos seguintes, viajou por cidades da Alemanha trabalhando como fotógrafo e aperfeiçoando seu ofício.







Retratos de August Sander: acima, o casal
em fotografia de 1912 nomeada como
"Criação e Harmonia".

Abaixo, "Faxineira", fotografia de 1928;
"Lavadeira", fotografia de 1930; e
"Garota em uma carroça na feira",
fotografia de 1932















Em 1901, Sander foi contratado por um estúdio fotográfico na cidade de Linz, onde permaneceu durante uma década, primeiro como funcionário e depois como sócio da empresa. Em 1909, abriu seu próprio estúdio na cidade de Colônia, iniciando a série “Retratos do século 20”, seu projeto ambicioso para montar um amplo catálogo fotográfico sobre a sociedade alemã. No projeto, chegou a reunir um grande acervo de centenas de retratos em 45 portfólios temáticos organizados em sete categorias identificadas como “O fazendeiro”, “O artesão”, “A mulher”, “As fazendas” (listando os trabalhadores pelas tarefas que desempenhavam), “Os artistas”, “A grande cidade” (moradores e trabalhadores das cidades) e “À margem”, que talvez represente a parte mais radical e mais polêmica de seu trabalho, com ciganos, imigrantes, andarilhos e pessoas que, por algum motivo, estavam marginalizadas pela sociedade de sua época.

A primeira seleção dos retratos de August Sander foi feita por ele mesmo, em 1929, quando publicou uma seleção de 60 fotografias em “Antlitz der Zeit(Rostos do nosso tempo), um livro que inspirou trabalhos similares de fotógrafos do primeiro time de outros países, entre eles os norte-americanos Walker Evans (1903-1975), Robert Frank (1924-2019) e Diane Arbus (1923-1971) ou o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004). Porém, com a chegada dos nazistas ao poder, na Alemanha, o trabalho de Sander passou a sofrer censura e perseguições. Seu filho Erich, militante de um partido de esquerda, foi preso em 1934 e condenado a 10 anos de prisão. Em 1936, seu livro “Antlitz der Zeit” foi recolhido e proibido, tendo todas as matrizes de impressão destruídas, sob o argumento de que o fotógrafo promovia somente os pobres e as exceções da sociedade, e não os alemães “legítimos”.










Retratos de August Sander
: no alto, "Pugilistas",
fotografia de 1929; acima, "Estudante do ensino médio",
de 1926. Abaixo, "Meninas", fotografia de 1925;
e "Viúvo" (Witwer), fotografia de 1914












Fotografias e máscaras


Quando a Segunda Guerra Mundial começou, August Sander se mudou de Colônia para a área rural e durante anos passou a fotografar apenas a natureza e as paisagens. No pós-guerra, Sander retorna à vida nas cidades e monta um acervo extenso sobre a arquitetura e as ruas dos centros urbanos da Alemanha, mas não retornou ao projeto original de “Retratos do século 20”. Quando morreu, em 1964, deixou um valioso acervo com mais de 40 mil imagens, incluindo negativos e ampliações, que levaram à criação do Arquivo August Sander, com sede na cidade de Colônia. Uma amostragem de 650 fotografias selecionadas do arquivo foi publicada em um catálogo em 1999, com edição da Taschen e curadoria de Susanne Lange-Greve.

Nos retratos de August Sander, Walter Benjamin percebeu a “grandeza anônima” de um rosto humano, que aparece nas fotografias com uma significação nova e, em suas palavras, “incomensurável”, ressaltada pelo prefácio da primeira edição de “Rostos do nosso tempo”, escrito por Alfred Düblin. Segundo a análise de Benjamin, “August Sander reuniu uma série de rostos que em nada ficam a dever à poderosa galeria fisionômica de um Eisenstein ou de um Pudovkin, e ele realizou este trabalho numa perspectiva científica” (Benjamin, “Pequena história da fotografia”. In: “Obras escolhidas”, vol. 1, editora Brasiliense, p. 102-103). Benjamin também elogia a “atualidade insuspeitada” da obra de Sander reunida no livro, que ele define como “mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos”.














Retratos de August Sander: no alto,
"Três gerações de uma família", fotografia
de 1912; acima, "As irmãs Fuchs", de 1912.

Abaixo, "Trabalhadores na região de Ruhr",
fotografia de 1928; e "Mestre de obras", de 1926 
 







Assim como Benjamin, Roland Barthes também considera o impacto da galeria fisionômica de August Sander, que ele nomeia como “máscaras”, figuras que revelam mitologias antes insuspeitadas. “Os grandes retratistas são grandes mitólogos: Nadar (a burguesia francesa), Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista), Avedon (a ‘high-class’ nova-iorquina). A máscara é, no entanto, a região difícil da fotografia, porque a Fotografia da Máscara é, de fato, suficientemente crítica para inquietar (em 1934, os nazistas censuraram Sander porque seus ‘rostos da época’ não correspondiam ao arquétipo nazista da raça), mas por outro lado, é muito discreta (ou muito ‘distinta’) para constituir verdadeiramente uma crítica social eficaz, pelo menos segundo as exigências do militantismo: qual ciência engajada reconheceria o interesse da fisiognomonia?” (Barthes, “A câmara clara”, editora Nova Fronteira, p. 58-62). Uma das fotografias que Barthes toma como exemplo e parâmetro de sua abordagem é o retrato do “notário” de Sander, sobre o qual ele questiona e provoca: “A aptidão para perceber o sentido, político ou moral, de um rosto não é, em si mesma, um desvio de classe?”


Mundo em desaparecimento


As “máscaras” que August Sander registrou também estão em destaque na análise de Susan Sontag, para quem os célebres retratos que o fotógrafo fez das pessoas comuns não são apenas imagens documentais e sim, “apesar de seu realismo de classe, uma das obras mais verdadeiramente abstratas da história da fotografia” (Sontag, “Sobre a fotografia”, editora Arbor, p. 59-62). Sontag também ressalta que nas fotografias de Sander os pobres não deixam de ter um ar de dignidade, o que não se deve a qualquer altruísmo ou qualquer intenção de compaixão: eles têm dignidade, segundo Sontag, porque são vistos (e fotografados) do mesmo modo frio que qualquer outra pessoa de classes sociais mais abastadas. Susan Sontag também percebe que o fotógrafo não sabia que estava registrando um mundo em desaparecimento, provocado pelo avanço acelerado do nazismo: o próprio August Sander não pensava que estava revelando a verdade das pessoas, mas sim capturando, de uma forma técnica e isenta de preconceitos, as “máscaras sociais” de sua identidade e sua individualidade.















Retratos de August Sander: no alto,
"Carregador de tijolos", fotografia de 1928;
acima, "Fazendeiro", de 1910.

Abaixo, "Dois jovens boêmios
(Willi Bongard e Gottfried Brockmann)"
,
fotografia de 1925







John Berger foi outro teórico importante que não resistiu à analogia das fotografias com “máscaras”, apresentadas a partir dos retratos de August Sander como reveladoras da classe social, do lugar no mundo, das aspirações existenciais de cada indivíduo anônimo ou bem posicionado na escala da sociedade e da hierarquia de seu tempo. Berger vê o “retrato político” na obra de Sander, mas considerando um amplo alcance para o adjetivo “político”, nunca redutível à sedução das instâncias do poder na época ou à resistência diante do que fosse injusto ou opressivo – ainda que seja impossível não considerar a trajetória do projeto fotográfico de Sander frente ao avanço do nazi-fascismo, à destruição e à violência como programa de governo que teriam a Segunda Guerra como desfecho.

Para Berger, alguns dos retratos, na extensa galeria de tipos dos mais diversos extratos sociais que Sander fotografou, são especialmente evidentes quanto à idealização do “poder puramente sedentário” e podem ser destacados como uma ilustração da hegemonia que antecede a tomada do poder na Alemanha pelo nazismo (Berger, “Para entender uma fotografia”, editora Companhia das Letras, p. 63-66). Um dos exemplos, que Berger considera “cristalino” e “sedutor”, é a fotografia que mostra três camponeses felizes, vestindo terno, a caminho do baile. Trata-se, segundo Berger, de uma lição prática sobre a quantidade de informação que existe ali para ser descoberta e revelada.
















Retratos de August Sander: no alto,
"O artista austríaco Raoul Hausmann e suas
amigas Hedwig Mankiewitz e Vera Broido"
,
fotografia de 1929; acima, "Artista de circo",
de 1932; e "Artistas no Carnaval da cidade de
Colônia"
, de 1931. Abaixo, "Cigano", fotografia
de 1930, e "O confeiteiro", de 1928.

No final da página, três amostras das releituras
contemporâneas dos retratos de Sander, que
fazem parte da exposição 
Depois de August Sander,
pessoas do século 21
, também apresentada
no Museu de Arte Contemporânea de Siegen:
"Camouflage" (2006), de Hans Eijkelboom;
"Golden" (2018), de Tobias Zielony; e
"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr











Diálogo contemporâneo


O plural de leituras que a galeria de retratos de August Sander proporciona foi a referência para a escolha dos 13 fotógrafos contemporâneos, alemães e estrangeiros, que tiveram suas obras selecionadas para a mostra “Depois de August Sander, pessoas do século 21”. Foram convidados pelos curadores: Mohamed Bourouissa, Jos de Gruyter & Harald Thys, Hans Eijkelboom, Omer Fast, Soham Gupta, Sharon Hayes, Bouchra Khalili, Ilya Lipkin, Sandra Schäfer, Collier Schorr, Tobias Zielony Artur Żmijewski. O foco para a escolha dos retratos, feitos por cada um dos fotógrafos, foi a possibilidade de diálogo com as 70 fotografias selecionadas pelo próprio August Sander, no começo da década de 1960, agora apresentadas no Museu de Arte Contemporânea de Siegen.

Enquanto os retratos em preto e branco de August Sander ocupam as galerias principais do museu de Siegen, os convidados têm seus trabalhos, em cores, na grande maioria, apresentados em galerias paralelas. Na comparação entre o preto e branco das fotografias antigas e o colorido intenso dos retratos contemporâneos, o impacto das imagens de Sander permanece inalterado, mas os fotógrafos convidados surpreendem com retratos que atualizam o tema das classes sociais e suas ocupações com originalidade.

O salto no tempo, com um intervalo que tem aproximadamente 100 anos, entre os retratos de August Sander e os retratos contemporâneos selecionados, torna visíveis mudanças de atitude e de comportamento em relação à vida cotidiana e novas questões políticas sobre pessoas comuns. A observação atenta dos retratos de August Sander levou Susan Sontag, em “Sobre a fotografia”, a lembrar aquela máxima do poeta Sthépane Mallarmé de que tudo no mundo existe para terminar num livro. Parodiando Sontag e Mallarmé, podemos chegar à conclusão de que observar estes retratos, com um intervalo de quase um século, revela que todos os rostos do mundo existem para serem fotografados.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos de August Sander. In: Blog Semióticas, 29 de julho de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/07/retratos-de-august-sander.html (acessado em .../.../…).


Para fazer uma visita virtual à exposição no Museu de Siegen,  clique aqui.




Para comprar o catálogo fotográfico de August Sander,  clique aqui.







"Camouflage"
 (2006), de Hans Eijkelboom
     





"Golden" (2018), de Tobias Zielony

  



"A possible mutation" (1994), de Collier Schorr


16 de dezembro de 2021

Imagens de fogo e revolta

 



O tempo é um rio que me leva, mas eu sou o rio;

é um tigre que me devora, mas eu sou o tigre;

é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.

–– Jorge Luis Borges.    







O Prix Pictet, um dos principais prêmios internacionais de fotografia da atualidade, anunciou sua premiação de 2021: a fotógrafa norte-americana Sally Mann é a vencedora com um ensaio fotográfico intitulado “Blackwater, 2008-2012” (Águas negras), uma série de imagens de impacto que traçam paralelos entre incêndios florestas e a história das revoltas raciais nos Estados Unidos. Os 12 ensaios selecionados como finalistas foram anunciados nos últimos meses – todos eles tendo como foco o tema do “fogo”, escolhido previamente pelos organizadores da premiação, criada para promover a discussão sobre questões relacionadas ao meio ambiente e à sustentabilidade. Na etapa final, Sally Mann concorreu com os fotógrafos Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (Líbano), Rinko Kawauchi (Japão), Christian Marclay (EUA / Suíça), Fabrice Monteiro (Bélgica / Benin), Lisa Oppenheim (EUA), Mak Remissa (Camboja), Carla Rippey (México), Mark Ruwedel (EUA), Brent Stirton (África do Sul), David Uzochukwu (Áustria / Nigéria) e Daisuke Yokota (Japão).

Sally Mann, que nasceu em Lexington, na Virgínia (EUA), e começou a estudar fotografia no final da década de 1960, registra no ensaio premiado os incêndios que devastaram as reservas naturais do sudeste da Virgínia no período entre 2008 a 2012. O título, “Blackwater, 2008-2012”, é uma referência aos incêndios florestais e também à região do Great Dismal Swamp (Grande pântano sombrio), às margens do Oceano Atlântico, onde atracaram os primeiros navios que traziam negros capturados na África e transformados em escravos para trabalhar nas lavouras da América do Norte, principalmente no cultivo de tabaco, a partir de 1610. Desde então, e nos séculos seguintes, o pântano densamente arborizado foi usado por escravos como um refúgio para se esconderem quando tentavam fugir de seus proprietários. As fotografias de Sally Mann resgatam a história e traçam um paralelo entre os incêndios e os conflitos raciais, já que na mesma região da Virgínia também aconteceram as primeiras grandes revoltas de escravos da história dos Estados Unidos.











Imagens de fogo e revolta: no alto, um retrato de
Sally Mann por Annie Leibovitz em 2015. Acima e
abaixo, um extrato de Blackwater, 2008-2012, o ensaio
de Sally Mann sobre a devastação provocada pelos
incêndios florestais no estado da Virgínia, nos EUA,
que venceu o Prix Pictet 2021. Acima, Blackwater 13 e
Blackwater 32; abaixo, Blackwater 3, Blackwater 1
Blackwater 30 e Blackwater 15

 
























Racismo e incêndios florestais


No informe divulgado pelos organizadores do Prix Pictet, Sally Mann escreve um breve depoimento que destaca algumas questões de seu recorte temático sobre o tema “fogo” e sua relação com a história das revoltas raciais que remontam ao século 17. “Os incêndios nas reservas florestais e nos pântanos da Virgínia pareciam resumir o grande incêndio da luta racial na América, incluindo antigas batalhas da Guerra Civil, a Guerra da Independência e o Movimento pelos Direitos Civis na segunda metade do século 20, no qual minha família esteve envolvida. A agitação racial do final dos anos 1960 tem uma relação direta com os protestos em defesa das vidas negras no verão de 2020. Algo sobre o personagem norte-americano que falhou parece abraçar o apocalíptico como solução”, explica a fotógrafa em um trecho do depoimento.










         



Acima, fotografias de Sally Mann reunidas
no livro A Thousand Crossings. Abaixo,
"Oak Hill Baptiste", fotografia de 2016;
e duas imagens da série Deep South,
"Fontainebleau" (1998) e "On the Maury",
fotografia de 1992 

















Sally Mann também faz referência a registros históricos que têm os pântanos da Virgínia como local de fuga e esconderijo para comunidades de refugiados e escravos fugitivos que viveram na região. Muitos terminaram mortos ou foram capturados, mas também há histórias de fugitivos que formaram famílias e comunidades inteiras vivendo por anos nos pântanos sem serem detectados. Apesar das condições inóspitas dos pântanos, as pessoas que fugiam do cativeiro preferiam viver naquela região selvagem e com todos os perigos do que suportar o inferno da escravidão. “Mais do que cobras venenosas, insetos que transmitiam doenças, panteras, ursos e crocodilos sempre à espreita, os pântanos muitas vezes também tinham o perigo iminente e brutal dos caçadores de escravos e seus cães que seguiam a lei do ‘vivo ou morto’. Os caçadores cercavam os fugitivos e colocavam fogo em tudo, queimando suas presas vivas. Para os escravos em fuga, enfrentar este perigo e até encontrar a morte era preferível a serem devolvidos para seus donos”, completa. 

O trabalho de pesquisa e produção visual mais recente de Sally Mann, do qual o ensaio “Blackwater, 2008-2012” é uma amostragem, gerou uma exposição e um livro de fotografias com o título “A Thousand Crossings” (Mil travessias). Nas imagens, quase sempre em matizes de preto e branco, a fotógrafa aborda questões relacionadas à identidade e aos grupos sociais do sul dos Estados Unidos, refletindo suas próprias memórias e sua relação com seu lugar de origem. No entanto, pelo que se vê nas fotografias do ensaio premiado, não são registros nostálgicos semelhantes a cartões-postais sobre sua terra natal: as imagens de Sally Mann provocam impacto e revolta pela destruição que restou e levantam questões abrangentes sobre a vida social e cotidiana, sobre o meio ambiente, sobre história, sobre raça e sobre religião, seja em enquadramentos de caráter documental e de fotojornalísmo, seja nas cenas mais metafóricas e de sentido poético, apesar de seu tom muitas vezes sombrio, melancólico, pessimista.


Mil travessias


Desde sua primeira exposição individual realizada na Corcoran Gallery of Art, Washington, DC, em 1977, as fotografias de Sally Mann já apareceram em muitas reportagens de jornais e revistas e também como ilustração para capas e encartes de álbuns de músicos do Jazz e do Blues, já que suas imagens abordam com frequência cenários e moradores do sul dos Estados Unidos, especialmente os estados do Alabama, Mississippi e Louisiana. Ela trabalha usando antigas técnicas artesanais e equipamentos antigos de fotografia, o que faz os cenários rurais do sul dos Estados Unidos e seus personagens característicos parecerem saídos de outros tempos. É o caso das imagens da série "Blackwater", que foram produzidas no processo de Tintypes, também chamado de ferrotipia ou ferrótipo, uma das mais antigas formas do registro fotográfico, com criação de uma imagem positiva sem negativo diretamente sobre uma chapa fina de ferro, revestida com verniz ou esmalte escuro, que é utilizada como suporte para a emusão fotográfica.

As fotografias de Sally Mann também estão reunidas em séries temáticas que foram publicadas em fotolivros, a maioria deles alcançando a condição de best-sellers e atualmente fora de catálogo. Entre seus fotolivros estão "A Place not Forgotten: Landscapes of the South" (1999), “Last Measures” (2000) e "What Remais" (2003), sobre panorâmicas de grandes paisagens da natureza, sobre o que restou de antigas construções em ruínas e sobre os campos de batalha da Guerra Civil do final do século 19; “Deep South” (2005), também sobre os estados do sul do país; "Immediate Family", de 2005, com fotos que registram a infância de seus filhos nas décadas de 1980 e 1990; "Proud Flesh", de 2009, uma série cronológica de retratos de impacto sobre os efeitos da distrofia muscular em seu marido, Larry; "The Flash and the Spirit", de 2010, que reúne o lirismo de sua fotos de família e uma retrospectiva de suas experiências com imagens ousadas sobre os corpos humanos; "Remembered Light: Cy Twombly in Lexington", de 2016, sobre a convivência de anos que teve com o artista Cy Twombly (1928-2011), seu conterrâneo, no ateliê em sua cidade-natal; e o recente “A Thousand Crossings”, com o acervo apresentado na exposição de mesmo nome.





















Imagens de Sally Mann: acima e abaixo,
retratos de seus filhos reunidos nos livros
Immediate Family, de 2005 (acima) e em
The Flesh and the Spirit, de 2010 (abaixo)


 









A trajetória do trabalho de Sally Mann também tem uma série de premiações, incluindo prêmios concedidos pela Fundação Guggenheim e a eleição como “Melhor fotógrafo da América” pela revista Time no ano de 2001. A trajetória da fotógrafa já foi tema de dois filmes: “Blood Ties” (Laços de sangue), dirigido em 1994 por Steven Cantor e Peter Spirer, indicado ao Oscar de documentário em curta-metragem; e “What Remains” (O que resta), dirigido em 2006 também por Steven Cantor, indicado ao Emmy de melhor documentário de longa-metragem. Sally Mann também publicou um livro ilustrado com questões autobiográficas, memórias de família e reflexões sobre seu trabalho com fotografia, “Hold Still: A Memoir with Photographs” (Retrato imóvel: um livro de memórias com fotografias), que foi finalista do National Book Awards 2015 e vencedor do Prêmio Andrew Carnegie de Excelência em Não-ficção.

As imagens de “Blackwater, 2008-2012”, o ensaio com as fotografias de Sally Mann que venceu o Prix Pictet 2021, junto com uma amostragem do trabalho dos demais finalistasserão apresentadas em exposições presenciais e virtuais no Victoria and Albert Museum (V&A), em Londres, e no Top Museum, em Tóquio, a partir de hoje e até 9 de janeiro de 2022, seguindo depois um roteiro itinerante em instituições de diversos países (veja o link para visitas virtuais no final deste artigo). O Prix Pictet foi fundado em 2008 pelo Grupo Pictet, com sede em Genebra, na Suíça, e ganhou reconhecimento como um dos principais prêmios internacionais de fotografia. Cada ciclo da premiação tem exposições e eventos paralelos com palestras, debates e mostras audiovisuais em mais de uma dúzia de países, levando o tema e o trabalho dos fotógrafos selecionados para um amplo público internacional.







 




Imagens de Sally Mann: acima, fotografias de
Remembered Light: Cy Twombly in Lexington,
livro de 2016. Abaixo, Proud Flesh, de 2009: retratos
sobre os efeitos terríveis da distrofia muscular
em Larry, marido da fotógrafa. No final da página,
uma imagem da exposição A Thousand Crossings
e Sally Mann em ação, fotografada por Kim Rushing





      








A premiação pelo Prix Pictet é acompanhada por uma exposição itinerante e pela publicação de um fotolivro em cores, cobrindo em detalhes o trabalho do premiado e dos fotógrafos finalistas, juntamente com imagens de um grupo mais amplo de indicados e ensaios sobre o tema do prêmio produzidos por pensadores, escritores e jornalistas convidados. O prêmio, que concede ao vencedor 100 mil francos suíços (cerca de 82 mil euros ou 109 mil dólares), recebe nomeações sobre um novo tema a cada 18 meses. Os vencedores nas edições anteriores do Prix Pictet são Benoit Aquin, do Canadá (tema: Água); Nadav Kander, de Israel, radicado na África do Sul (tema: Terra); Mitch Epstein, dos Estados Unidos (tema: Crescimento); Luc Delahaye, da França (tema: Energia), Michael Schmidt, da Alemanha (tema: Consumo); Valérie Belin, da França (tema: Desordem); Richard Mosse, da Irlanda (tema: Espaço); e Joana Choumali, da Costa do Marfim (tema: Esperança).

Ao retratar suas origens em imagens que são fragmentos de paisagens, de cenas com crianças, de sua terra natal, sua família e sua intimidade mais pessoal e cotidiana, Sally Mann demonstra e revela, pela arte da fotografia, formas incomuns, polêmicas e também poéticas de nos relacionarmos com as imagens e com os afetos. Nas imagens que a fotógrafa nos dá a ver, o sentido da vida surge em questionamentos por vezes sutis, por vezes tão prosaicos que poderiam fazer parte das fotografias de um álbum de família tradicional, não fossem um ou outro detalhe que traduzem a complexidade dos tempos atuais, suas urgências e suas asperezas que, com muita frequência, são digeridas pela indústria cultural e tomadas como mercadorias.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Imagens de fogo e revolta. In: Blog Semióticas, 16 de dezembro de 2021. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2021/12/imagens-de-fogo-e-revolta.html  (acessado em .../.../…).


Para visitar a exposição do V&A Museum Prix Pictet 2021: Fire,  clique aqui.


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