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17 de dezembro de 2011

Diva descalça




Superado o estranhamento inicial, o que sobressai 
e permanece é a voz amorosa de Cesária Évora, sua 
tessitura única, quente como um pôr-do-sol tropical. 

–– Tad Hendrickson.   


O que impressiona, no primeiro momento, é a cadência rítmica mais lenta, as texturas sonoras estranhas, os arranjos de instrumentos que lembram o fado português, mas também lembram os clássicos do jazz da Louisiana, a música tradicional do Caribe e da velha guarda do samba do Brasil, o batuque dos rituais de dança e de celebração das tribos da África. Para o público brasileiro, a cena e a música podem parecer ainda mais estranhamente familiares: um grupo afinado e sorridente de músicos, todos negros, uma percussão suave, exótica, dançante e irresistível. Depois dos breves acordes iniciais, a velha senhora entra em cena e caminha, hesitante, descalça, para o centro do palco. A plateia do teatro aplaude com euforia.

A velha senhora também é negra, baixa estatura, mais gordinha, ou talvez "nutridinha", como ela entoa em um verso das canções que virão a seguir. Está vestida em tons escuros, de certa simplicidade, mas com indiscutível elegância e dignidade. Olhar humilde, alguma timidez, mas quando começa a cantar a voz encanta e evoca uma aura de respeito e sofisticação. Canta em português, com um sotaque de nuances indescritíveis, que misturam em sua voz personalíssima e triste, aqui e ali, uma ou outra palavra em francês, uma ou outra expressão que talvez venha dos dialetos africanos.

É Cesária Évora, rainha da morna, embaixadora da música de Cabo Verde, o pequeno arquipélago do Atlântico, na costa africana, que entoa dramática seus grandes sucessos – um repertório que além de mornas também reúne coladeiras, batuques e funanás, melodias e ritmos típicos de seu país, ao mesmo tempo próximos e distantes da música brasileira, da música de Portugal e de outros povos falantes da língua portuguesa, em seu parentesco que mistura alegria e melancolia com nostalgia e com sonoridades de outros lugares, outros continentes, outras tradições culturais.



















Aos 70 anos, a diva dos pés descalços, como foi batizada pela imprensa da França, na década de 1980, morreu hoje em sua terra natal, três meses depois de seus músicos terem anunciado o fim de uma carreira de mais de 50 anos, por conta do estado de saúde que atingiu uma situação muito delicada. Em sua trajetória de mais de cinco décadas dedicadas à música e aos palcos de sua terra natal e de outros países, Cesária lançou 25 discos, entre originais, coletâneas, remixes celebrados pelos principais DJs em atividade e parcerias com outros artistas – entre eles Caetano Veloso e Marisa Monte. “Sôdade”, lançada na década de 1980, foi o maior de seus grandes sucessos e com o passar dos anos permanece como a música mais conhecida da cantora e compositora de Cabo Verde.



Performance parisiense



Além dos discos gravados em formatos de LPs e CDs, ela lançou dois belos DVDs: “Cesária Évora Live D'Amor” e “Live in Paris”. O primeiro, gravado em abril de 2004 no Le Grand Rex, um dos principais teatros de Paris, traz um registro à perfeição que, além da íntegra das 20 canções do repertório do show, inclui três bônus de primeira: um documentário com os bastidores da performance parisiense (que a acompanha do desembarque no aeroporto da capital da França à entrada em cena no teatro), outro com entrevistas e cenas das turnês pelos Estados Unidos, Japão e capitais da Europa, e “Mar del Canal”, um comovente videoclipe com ela e sua banda, produzido para o World Food Programme, fundo humanitário da ONU que atende crianças carentes e refugiados de guerra em 70 países.















O segundo, “Live in Paris”, de 2002, é mais modesto, com o registro do show em som direto. Foi gravado ao vivo no Zenith parisiense e inclui como bônus duas breves sequências: cenas da apresentação de Cize (como era chamada carinhosamente pelos amigos e pelos músicos que a acompanhavam desde os anos 1980) em Havana, Cuba, com participação especial dos remanescentes do Buena Vista Social Club, e da apresentação no mesmo ano no Brasil, onde a rainha da morna dividiu a cena com Marisa Monte.

No Brasil, ainda nos anos 1980, Caetano Veloso foi o primeiro a elogiar as mornas e coladeiras de Cesária Évora. Nos shows do final da década de 1980 e começo dos anos 1990, Caetano incluía “Sôdade”, “Angola” e “Petit Pays”, imitando o sotaque de Cize, quase incompreensível aos ouvidos brasileiros. Eu mesmo, assim como muitos dos fãs da cantora que conheço, temos que confessar que foi através de Caetano que chegamos à arte de Cesária Évora.







Caetano alardeava em entrevistas sua admiração por Cize, a diva que saiu da simplicidade do pequeno país no litoral africano para ganhar o mundo, apresentando-se sempre com os pés descalços em solidariedade às mulheres e crianças miseráveis de seu país. Os elogios de Caetano por certo contribuíram para que os discos de Cesária fossem lançados por aqui, com boas críticas e surpreendente sucesso de vendas.


Mornas, blues, boleros e MPB



Em cenas dos documentários incluídos como bônus em “Live D'Amor”, Cesária Évora fala com carinho do seu público – especialmente dos fãs apaixonados que conheceu no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos e na França. Diz que canta porque não saberia fazer outra coisa na vida. Modéstia de uma artista genial, que comprova na performance gravada com a plateia do Le Grand Rex porque era considerada uma das presenças mais marcantes e poderosas da música contemporânea.

Sua arte cresceu em popularidade internacional especialmente a partir de 2004, quando bateu estrelas de primeira grandeza na mídia e conquistou o Grammy para melhor disco de “world music”. Sempre acompanhada pelos músicos de Cabo Verde, com quem trabalhava desde a gravação do primeiro disco na França, em 1988 (“La Diva aux Pieds Nus”), Cize mistura um aparente descompasso do fraseado com elaboradas harmonias acústicas de violões, cavaquinho, violino, acordeão, percussão e clarineta. 






 
Os ritmos são uma diversidade. As canções do repertório vão desde a morna tradicional de Cabo Verde até o bolero, passando pelo blues norte-americano, com um toque de música do Caribe, alguma coisa do fado português e muito do samba-canção da velha guarda da melhor música popular brasileira. Sim: a música brasileira é o que Cesária Évora destaca como sua maior referência.

Quando no documentário de “Live D'Amor” um jornalista pergunta sobre Billie Holiday e outras possíveis influências do jazz, Cesária sorri, baixa os olhos, faz silêncio, tira uma longa baforada do cigarro, recusa e diz que não concorda com a comparação. Fala com carinho da música dos Estados Unidos, agradece o carinho do público que cultiva em vários países, mas diz que prefere ser comparada às vozes brasileiras, que desde a infância ouvia no rádio.

Quem conhece seus discos sabe que Cize sempre incluiu aqui e ali algum clássico do samba, caso de “Beijo Roubado”, de Adelino Moreira, sucesso dos anos 1950 na voz de Ângela Maria e destaque no repertório de “Live D'Amor”. “Negue” (“seu amor, seu carinho...”), do mesmo Adelino Moreira, é outra pérola da MPB que sempre esteve presente nos shows de Cesária, além de canções dos baianos Dorival Caymmi e Caetano Veloso.






Amor e liberdade



Impressiona o toque sentimental de profunda devoção, algo entre o transe místico e o cantarolar casual numa mesa de bar, registrada por uma edição sempre discreta nas imagens de “Live D'Amor”. Ao invés do ritmo alucinante de videoclipe de hip-hop, que vem contaminando as gravações ao vivo de qualquer gênero, as imagens do show no Le Grand Rex são contemplativas, quase nunca se afastam da bela performance em closes e um ou outro passeio das câmeras pelo palco, no momento dos poucos e inspirados solos do violinista Julián Corrales Subida ou do pianista Fernando Andrade, responsável há décadas pelos arranjos das canções de Cesária.

As mornas e os sambas cantados com a voz sentida de Cesária Évora são acompanhados quase sempre em coro pela plateia parisiense, especialmente “Nho Antone Escaderode”, “Nha Cancera ka Tem Medida”, “Angola” e “Sôdade” (“quem mostrava este caminho longe...”). Mesmo as então inéditas “Isolada” e “Velocidade” provocam comoção e passagens espontâneas com palmas ritmadas.

São canções inesquecíveis, depois que se ouve uma delas pela primeira vez, com atenção, com sons de cordas e percussão suave, pautadas com gentileza, talvez por isso distantes dos ritmos brasileiros mais dançantes. Falando de saudade, de amores errados e de sentimentos que mais separam do que unem as pessoas, a música de Cesária Évora, com seu sotaque carregado que constrói enigmas para outros falantes da mesma língua portuguesa, é daqueles casos que encantam.







Cantora de Mindelo



Cesária Joana Évora nasceu em agosto de 1941 em Mindelo, cidade portuária de São Vicente, uma das ilhas mais áridas, escarpadas e pobres do arquipélago de Cabo Verde, país formado por uma dúzia de pequenas ilhas montanhosas e quase sempre desérticas, de formação vulcânica, ao largo do Senegal, na costa da África no Atlântico. Descoberto em 1456, o arquipélago foi uma importante base de expansão marítima e do comércio colonial português, particularmente no tráfico de escravos.

Desde sua independência de Portugal, em 1975, entretanto, Cabo Verde tem enfrentado dificuldades econômicas as mais complicadas, motivo pelo qual se diz que a música de Cesária Évora é o principal produto de exportação daquele país, que sobrevive do cultivo de milho, café e processamento de pescado. As mornas e coladeiras que Cesária canta quase sempre tocam na história amarga e violenta da dominação portuguesa e do isolamento secular de Cabo Verde.













Na entrevista incluída em “Live D'Amor”, Cesária conta que nasceu em uma família de músicos e que canta desde a infância, em festas populares de sua terra-natal e em programas de rádio. Mas sua carreira ficou interrompida entre 1975 e 1985, quando parou de cantar para procurar trabalho em fábricas e no comércio fora de Cabo Verde.

Em 1985, a sorte sorriu para a diva dos pés descalços: a convite do proprietário de um restaurante e de uma discoteca com música ao vivo em Lisboa, ela volta a cantar e grava um disco, “Crioula Sofredora”, que passou despercebido. No ano seguinte, vai para Paris e é "descoberta" pela imprensa cantando em praças e bares. Dali seguiria para os palcos do mundo.












Em 2004, depois de vencer o Grammy, iniciou sua fase de maior popularidade e chegou às pistas de dança e ao circuito das “raves” por conta do lançamento de “Club Sodade”, surpreendente disco em que suas canções mais populares ganharam remixes e versões eletrônicas por alguns dos DJs mais famosos do planeta, como Rork & Demon Ritchie, Uwe Schmidt (Señor Coconut), Kerri Chandler, Carl Craig, Pepe Bradock, Cris Prolific e François K., entre outros.

Um dos parceiros de Cize de longa data, o músico cabo-verdiano Tito Paris foi entrevistado hoje pela agências de notícias France Presse (AFP) e lamentou a perda. "O artista e o poeta praticamente não morrem. Desaparecem mas não morrem e nós vamos ouvir Cesária até ao fim da nossa vida, ela vai existir com as suas mornas e coladeiras até ao último dia das nossas vidas", afirmou Tito. O mundo da música e Cabo Verde a partir de hoje ficaram mais pobres, tal como enriqueceram no dia em que Cesária Évora nasceu.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Diva descalça. In: Blog Semióticas, 17 de dezembro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/12/diva-descalca.html (acessado em .../.../…).



Para comprar o CD de duetos "Cesária Évora",  clique aqui.





















15 de outubro de 2011

Noite de Stanley Jordan






Música e natureza estão e sempre
estiveram intimamente ligadas desde
o mais antigo dos tempos da civilização

––   Stanley Jordan  
 

O concerto do improvisador Stanley Jordan voltou a provocar momentos contemplativos e comoveu o público durante mais de duas horas no Grande Teatro do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Muitos dos que presenciaram a performance surpreendente do guitarrista no mesmo palco – desde a primeira apresentação do guitarrista no mesmo Palácio das Artes, no final dos anos 1980, ou as recentes apresentações aclamadas em 2007 e 2006 – encontraram na metade do concerto o improvável: a maestria do músico norte-americano tocando e criando novas harmonias e acordes, simultaneamente, na guitarra e ao piano.

Um dos mais inventivos guitarristas em atividade, ele retornou a BH para uma única apresentação que trouxe canções do CD "State of Nature" e suas conhecidas e surpreendentes versões de clássicos do jazz, do rock e da Bossa Nova. No palco, demonstrou mais uma vez sua maestria peculiar na arte da guitarra, acompanhado por Ivan "Mamão" Conti, ex-integrante do grupo Azymuth, na bateria, e Dudu Lima, mineiro de Juiz de Fora, no baixo. Nascido em Chicago, em 1959, Stanley Jordan começou na música aos seis anos, estudando piano, aos 11 passou a dar aulas de guitarra e aos 16 ganhou um prêmio de revelação no Festival de Jazz em Nevada. A partir daí, percorre o mundo com sua personalíssima "touch technique" – uma maneira inovadora de tocar utilizando apenas o braço da guitarra.



Harmonia perfeccionista



Os fãs do guitarrista por certo recordam suas apresentações perfeccionistas em Belo Horizonte, no mesmo palco do Palácio das Artes, ou em outros festivais e teatros pelo Brasil, com seu repertório sempre surpreendente. Um repertório que pode incorporar, na mesma sequência de longos improvisos que hipnotizam a audiência, de versões das canções mais conhecidas dos Beatles ("Eleanor Rigby" é um de seus "standards" preferidos) a peças clássicas de compositores como Wolfgang Amadeus Mozart ou Ludwig van Beethoven, entre outras, além de seu acervo autoral registrado em 14 álbuns de carreira.







Para Toninho Horta e Juarez Moreira, dois dos grandes guitarristas e compositores mineiros que vão assistir ao show, Stanley Jordan é um mestre improvisador. "Ele conserva os padrões do Bebop tradicional, mas tem impressionante capacidade para o improviso. É sua maior qualidade, sem nenhuma dúvida", avalia Toninho Horta, que, de todos, ainda prefere o primeiro disco de Jordan, "Magic Touch", lançado em 1985.

"É um guitarrista atípico, que inventou um novo jeito de tocar o instrumento, que é o que melhor retrata o século XX e a nossa época, elétrica e urbana", elogia Juarez Moreira, que recorda a emoção que sentiu ao tocar guitarra para Stanley Jordan depois do primeiro show do norte-americano em Belo Horizonte, também no Palácio das Artes, no final dos anos 1980.

"Fui ao hotel e ele me convidou para tocar. Foi emocionante. Engraçado que ele achou muito diferente meu jeito de tocar guitarra. Na verdade, o jeito dele tocar é que é diferente de tudo o que conhecemos. É um grande artista", avalia Juarez. "Isso de criar o novo, criar uma terceira margem totalmente nova para a guitarra, é para poucos".









A questão ambiental



Lançado em 2008, "State of Nature" merece elogios incondicionais, concordam Toninho Horta e Juarez Moreira, que destacam no novo trabalho o lado humano e social do guitarrista, conhecido por abraçar as causas sociais, por trabalhar a musicoterapia e ser um de seus eméritos defensores e por sua militância pelas questões ambientais em seu país e durante suas turnês internacionais.

"Parte da razão pela qual fiz este álbum foi pelas revelações que descobri em minha viagem para tentar tornar-me uma pessoa melhor", afirma Stanley Jordan em breve entrevista, concedida por telefone num breve intervalo nas escalas de viagem, às vésperas do show em BH. "A outra razão pela qual gravei este CD é que venho descobrindo informações perturbadoras sobre questões ambientais como o aquecimento global e toda a degradação do nosso planeta".







O assunto preservação do meio ambiente e ecologia, ele concorda, leva inevitavelmente ao Brasil. Fã incondicional da música e dos músicos brasileiros, o guitarrista declara que o Brasil é seu segundo país quando o assunto é música. "Conheço o Brasil há muitos anos. Estive aqui várias vezes, fiz amizade com muitos músicos. Gosto do clima, da amizade, do modo como todos os brasileiros encaram a música. Gosto da música brasileira, que é sofisticada e com variações infinitas e sempre diferente, harmoniosa".

Sobre o maestro Tom Jobim, uma de suas referências, Jordan destaca seu gosto particular por duas canções: "Brigas Nunca Mais" e "Insensatez" - essa última, incluída no álbum "State of Nature". Para o músico, "há muito do samba no jazz e do jazz na Bossa Nova. Sempre gostei muito dessas misturas. Não pode haver nunca preconceito em música", explica.

Místico assumido, sem medo de confessar suas inclinações esotéricas e a contaminação que práticas e ensinamentos zen exercem em seu modo de compor e tocar, o artista costuma se inspirar em movimentos da arte marcial chinesa Tai Chi Chuan para elaborar os movimentos do corpo e da guitarra, durante suas acaloradas performances. De acordo com Stanley Jordan, "música e natureza estão e sempre estiveram intimamente ligadas, desde o mais antigo dos tempos da civilização".







Música e magia



O guitarrista tem deslumbrado plateias do mundo inteiro desde 1985, quando gravou o primeiro disco, "Magic Touch", com suas performances inovadoras, com o toque das duas mãos na guitarra - contribuição técnica ao manejo do instrumento que ele registrou na estreia e com o qual obteve instantâneo sucesso comercial e assegurou posição de destaque na indústria da música como um autêntico herói do seu instrumento. Em "State of Nature", sua estreia pelo selo baseado em Detroit, Mack Avenue Records, Jordan, ao lado do baixista Charnett Moffett e dos bateristas David Haynes e Kenwood Dennard, exibe sua técnica pioneira através de "standards" e composições originais.

Em "State of Nature", as guitarras de Stanley Jordan contam ainda com o baixista Charnett Moffett e os bateristas David Haynes e Kenwood Dennard. Os destaques incluem, além de “Insensatez” de Tom Jobim, uma prolongada abertura de "A Place in Space" e o solo de guitarra em "Andante from Mozart's Piano Concerto #21". O CD inclui outras recriações para os clássicos do jazz "All Blues", de Miles Davis, "Song for My Father", de Horace Silver, e "Steppin' Out", de Joe Jackson – essa última com a doce vocalização da filha de Jordan, Julia. 










Depois de sua terra natal, os Estados Unidos, o Brasil é o país onde ele mais tocou na vida – confessa o guitarrista, perdendo a conta de quantos shows e turnês já fez por aqui. Considerado um dos melhores do mundo em atividade e fã incondicional de compositores e músicos brasileiros, na turnê ele vem acompanhado do baterista Ivan "Mamão" Conti, do lendário grupo dos anos 1970 Azymuth, e o mineiro Dudu Lima no comando do baixo acústico, do elétrico de quatro, cinco e seis cordas e do "fretless", um baixo sem os trastes no braço.

O entrosamento do guitarrista com os músicos brasileiros dá ao espetáculo uma musicalidade especial com um repertório de interpretações de clássicos da música do Brasil e especialmente da Bossa Nova, além dos clássicos do jazz, composições do próprio Jordan e algumas surpresas reservadas para a plateia do Palácio das Artes. O trio já realizou mais de 80 apresentações nos últimos anos pelo Brasil.











Cornucópia



Conhecido por sua técnica, habilidade e originalidade, Stanley Jordan impressiona à primeira audição com seus acordes surpreendentes e complexos do jazz, dedilhados com a mão esquerda, e os velozes solos jazzísticos no estilo Bebop com a direita. Aclamado como um dos guitarristas que fizeram importantes contribuições técnicas e musicais para o instrumento, Jordan construiu uma carreira de prestígio pontuada de fatos pitorescos – entre eles ser descoberto pelas grandes gravadoras quando era artista de rua em Nova York, anos depois de ter se formado em teoria musical e composição na sisuda Universidade de Princeton.

O público dos festivais internacionais de jazz o conhece desde o final da década de 1970, mas para o grande público Stanley Jordan surgiu em meados da década de 1980, com seu primeiro disco, "Magic Touch". Filho de um pai na época desempregado e de uma professora de línguas, o guitarrista que descobriu a música estudando no piano da família, na Pensilvânia, chegou a recusar um primeiro convite do famoso produtor Bruce Lundvall, então executivo do selo Elektra Music. Lundvall o procurou para uma audição e, impressionado, convidou o artista para gravar um primeiro disco. Jordan recusou por se achar despreparado.








Anos depois, quando ainda tocava nas ruas de Nova York, aceitou nova proposta de Lundvall e começou a trilhar o caminho do sucesso internacional. Um ano e meio depois do primeiro convite, Lundvall foi para a Blue Note Records e insistiu na proposta da gravação de um disco. Stanley Jordan se tornou, então, o primeiro artista da nova fase do lendário selo de jazz.

Com o disco de estreia, "Magic Touch", foi primeiro lugar no quadro de jazz da revista "Billboard" por 51 semanas, o que lhe rendeu duas indicações para o Grammy e o Disco de Ouro certificado nos EUA e Japão. O disco, que trazia uma versão personalíssima para "The Lady in My Life", de Michael Jackson, é considerado um padrão definitivo para o gênero que ficaria conhecido no mundo inteiro como jazz contemporâneo.

Outro álbum de destaque foi "Cornucopia", em 1990, que reúne standards do jazz e do blues gravados em estúdio, entre eles "Autumn Leaves", "Impressions", "Willow Weep for Me" e "What's Going On", todos com a interpretação personalíssima e vez ou outra radical de Stanley Jordan. Em seguida, o guitarrista se mudou para a gravadora Arista e, em 1994, lançou "Bolero" – que inclui uma surpreendente versão jazzística para o clássico de Ravel. Na entrevista, Stanley Jordan reconhece que tocar nas ruas foi a melhor escola, apesar de problemas ocasionais com a polícia, que o abordava para cobrar a licença oficial, que ele nunca teve, para as apresentações que chegavam a reunir pequenas multidões.









Piano e violão



Ele diz que não lembra, mas uma rápida pesquisa revela que sua primeira apresentação em palcos brasileiros foi no final dos anos 1980, numa turnê por várias capitais. Depois retornaria com um festejado show em Búzios, no Festival de Jazz & Blues, em 2001, quando se apresentou com sua filha Julia, então adolescente. Voltaria ao mesmo festival de Búzios em 2004 e, como tomou gosto pelo Brasil, passaria a incluir o país como roteiro obrigatório para as turnês internacionais.

Sempre experimentando novos acordes e arranjos com sua síntese inteligente e sensível de variados estilos de jazz, em "State of Nature", lançado em 2008, Stanley Jordan volta a demonstrar seu virtuosismo com as cordas da guitarra e revela uma incrível habilidade com o piano. Para o show no Palácio das Artes, a plateia aguarda ansiosa: as luzes se apagam e alguns comentam entre si sobre as canções do disco em que Stanley Jordan toca duas guitarras ao mesmo tempo, incorporar sons da natureza nas gravações e dá um show quando toca, simultaneamente, piano e violão. Alguns apostam que nesta noite ele também vai surpreender. 















Com repertório centrado em "State of Nature", Stanley Jordan começa o show sozinho no palco do Grande Teatro do Palácio das Artes. Sob iluminação discreta, que alterna cores quentes e projeções de linhas geométricas e abstratas em tons de azul, apresenta três canções do mais novo CD, com arranjos muito diferentes ao vivo. Em seguida, Mozart - Andante from Mozart Piano Concerto #21 - em dedilhado frenético que faz lembrar os transes dissonantes de Jimmi Hendrix, com direito a insólitas frases de "Noite Feliz" pontuadas ao longo da melodia. Para a quinta canção, ele chama ao palco Ivan 'Mamão' Conti (bateria) e Dudu Lima ( baixo acústico e elétrico).

São memoráveis as longas séries de improvisos em "Mind Games 2", com citações que arrancam aplausos de "The Girl from Ipanema". Mais ou menos 12 minutos de fantasia, com o virtuosismo da guitarra encontrando, nos minutos finais, os inconfundíveis acordes de "Mi Cosa", clássico jazzístico que outro guitarrista, Wes Montgomery, tornou célebre. Aplausos demorados e o temor de que o concerto terminasse. Mas o melhor estava por vir.




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Os aplausos na metade da sétima canção demonstram que o público demorou a reconhecer os acordes Bossa Nova de "Insensatez" ("Que você fez, coração mais descuidado..."), recriada pelo guitarrista em variações de acordes tão melancólicos e pausados que deixariam comovidos os próprios Tom Jobim e João Gilberto – referências confessas de Stanley Jordan, além de Milton Nascimento e outros heróis, sobre a música do Brasil. 



Clássicos do Bebop Jazz



Na sequência, Stanley Jordan dispara com três clássicos jazzísticos do estilo Bebop – "All Blues", de Miles Davis, "Song for My Father", de Horace Silver, e "Steppin' Out", de Joe Jackson, as duas últimas com a impecável e inacreditável performance de Stanley Jordan na guitarra e no piano, ao mesmo tempo. Comoção e aplausos. Muitos aplausos. Depois vem os acordes de "St. James Infirmary", com a guitarra de Stanley Jordan recriando os longos solos melancólicos do trompete de Louis Armstrong. O final se mistura com acordes de outro clássico do Jazz, "Summertime", com o guitarrista trazendo à memória da plateia os solos de Satchmo e até a lembrança da voz cristalina de Ella Fitzgerald. Técnica e virtuosismo do músico que revela as proximidades antes insuspeitadas das duas canções. Emocionante.
 





 
"A Place in Space", com duração de inacreditáveis 18 minutos, encerra o show, com o guitarrista a dedilhar durante uma longa sequência de aplausos um mix dos diversos estilos que aprendeu ao tocar na rua para atrair a atenção dos mais diferentes tipos de pessoas. Os aplausos demorados não se interrompem durante os improvisos que antecedem um bis antológico. 

Sozinho no palco, o guitarrista ultrapassa limites e recria "Over the Rainbow" (de "O Mágico de Oz"), terminando na invenção do contínuo em novos acordes para "'Round Midnight" e "Someday My Prince Will Come" (da versão Disney para "Cinderela"). Timbres de rock, riffs de Jimi Hendrix, os graves e agudos de Janis Joplin, acordes de Miles Davis, dim-dim-dim dom-dom-dom de João Gilberto? Tudo evoca e ressoa em harmonia na guitarra hipnótica de Stanley Jordan.

A plateia, meio que acordada de um transe feliz e passageiro, cai de novo em aplausos. Muitos aplausos. Como se não bastasse, quando a multidão lenta e meio sorridente de ouvintes contentes passa caminhando pelo saguão para a saída, lá estava ele: ele mesmo, que há pouco levava a todos a lugares insuspeitados estava ali e ficaria ali, horas pela noite adentro, sentado na mesinha diante da longa fila, posando com fãs para fotos e autografando discos de vinil, CDs e DVDs no foyer do Grande Teatro do Palácio das Artes. Uma noite fria de novembro de 2009 para guardar com uma dúzia de canções memoráveis. Sofisticada e imprevisível, a arte de Stanley Jordan.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A noite de Stanley Jordan. In: Blog Semióticas, 15 de outubro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/10/noite-de-stanley-jordan.html (acessado em .../.../...).






















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