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11 de novembro de 2017

Levantes por Didi-Huberman






A perda, talvez inevitável em termos de realidade política,

consumou-se, de qualquer modo, pelo esquecimento, por um

lapso de memória que acometeu não apenas os herdeiros,

mas também os atores, as testemunhas, aqueles que por um

fugaz momento retiveram o tesouro nas palmas de suas mãos.

–– Hannah Arendt (1906-1975).  

  


A palavra “levante” tem muitos significados além do ato ou efeito de erguer ou levantar. Os dicionários registram dúzias de sinônimos, todos com o mesmo sentido rebelde de desobediência, desordem, irreverência, indisciplina, insubordinação, insurreição, contestação, rebelião, revolta, motim, protesto, manifestação, reivindicação, sublevação, subversão, transgressão, teimosia, tumulto, resistência, revolução. Levantes, no plural, com todas as variantes que a palavra representa, é o tema da exposição internacional que chegou ao Brasil e está aberta ao público no Sesc Pinheiros, em São Paulo, até 28 de janeiro de 2018, seguindo depois uma agenda itinerante que inclui temporadas no México e depois no Canadá e outros países.

Inaugurada no espaço Jeu de Palme em Paris, França, onde ficou em cartaz de outubro de 2016 a janeiro de 2017, sob curadoria do filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, e com o título original de “Soulèvements”, a exposição teve temporadas nas cidades de Barcelona, na Espanha, e Buenos Aires, na Argentina, antes de chegar a São Paulo. A proposta original, através da exibição de cerca de 200 obras dos últimos dois séculos, de diversos países, entre instalações, fotografias, pinturas, desenhos, gravuras, vídeos, filmes e documentos diversos, é, nas palavras do curador, apresentar múltiplas maneiras de transformar a quietude em movimento, a submissão em revolta, a renúncia em alegria expansiva.










Levantes por Georges Didi-Huberman: acima,
o filósofo e historiador fotografado em junho de
2017, em Buenos Aires, por Bernardino Avila
para o jornal Página 12, e uma imagem das
instalações da exposição no Sesc Pinheiros,
em São Paulo. Abaixo, o catálogo da exposição,
que reproduz como imagem de capa uma
fotografia de 1969 de Gilles Caron sobre uma
ação de resistência de jovens manifestantes
contra discriminação dos católicos pelo
governo protestante na Irlanda do Norte.
No alto, saguão da exposição em São Paulo











A cada nova cidade que a exposição visita, desde Barcelona e Buenos Aires, a curadoria tem a iniciativa inédita em eventos semelhantes de inserir novas obras diretamente ligadas ao contexto local. No caso brasileiro, Didi-Huberman providenciou como complemento uma série de conteúdos relacionados à escravidão, à negritude e à pobreza – temas representados em obras que ele selecionou de nomes como Sebastião Salgado, Hélio Oiticica e Oswald de Andrade. Não se trata, contudo, de apresentar uma antologia de imagens de protestos populares, conforme esclarece o curador em entrevistas e no catálogo da exposição, editado com o acervo das obras e com ensaios escritos especialmente para o evento por pensadores de destaque, entre eles a norte-americana Judith Butler e os franceses Nicole Brenez e Jacques Rancière.



Uma constelação de imagens



O objetivo de “Levantes”, explicou Didi-Huberman em uma entrevista em junho de 2017 ao jornal “Página 12” da Argentina, é apresentar não uma antologia cronológica de imagens, mas uma constelação em que as imagens se relacionam em cinco blocos ou eixos: “elementos”, “gestos”, “palavras”, “conflitos”, “desejos”. “As imagens reunidas, a princípio”, destaca o curador, “funcionam por meio dos gestos. O fato é que quando se está alienado e se protesta contra essa alienação, o protesto toma uma forma corporal: é o braço que se levanta, o corpo que se movimenta, a boca que se abre, entre palavras e cantos, tudo isso é corporal. O corpo humano é a coisa mais antiga que possuímos, o corpo humano é mais antigo que um fóssil, que uma obra de arte grega; o corpo humano é muito antigo, é nossa antiguidade.”







Levantes por Didi-Huberman: no alto, duas gravuras
de Francisco de Goya datadas do início do século 19,
El cargador e No harás nada con clamor. Acima,
a comemoração dos marinheiros no motim a bordo
do Encouraçado Potemkin, filme de 1925 de
Serguei Eisenstein. Abaixo, crianças brincando em
Barcelona, na época da Guerra Civil Espanhola,
em fotografia de 1936 de
Agustí Centelles






A investigação que a curadoria de Didi-Huberman propõe ao visitante da exposição, ou mesmo ao leitor que observa as imagens do catálogo, segue o percalço dos gestos – dos trabalhadores braçais individualizados em desenhos e aquarelas do espanhol Francisco de Goya (1746-1828) às associações de revolta coletiva em cenas dos filmes do russo Serguei Eisenstein (1898-1948) e daí às representações contemporâneas da contracultura e das contestações mais diversas da atualidade. Em cada gesto, diferentes formas de representações dos levantes de rebeldia, sejam elas de apenas um indivíduo ou de multidões engajadas em transformações sociais, políticas, religiosas, éticas, estéticas. Na maioria das representações, não por acaso, o protesto contra a opressão surge na imagem de um mesmo gesto que se repete aqui e ali com algumas variações: os braços erguidos em direção ao céu.

No catálogo da exposição, Didi-Huberman também ressalta esta coincidência do mesmo gesto. “Levantar-se é resistir, erguer o punho ou o braço é resistir”, destaca. “Antes mesmo de começar e levar adiante uma ação voluntária e compartilhada, o levantar se faz por um simples gesto que, de repente, vem revirar a prostração que até então nos mantinha submissos (por covardia, cinismo ou desespero). Levantar-se é jogar longe o fardo que pesava sobre nossos ombros e entravava o movimento. É quebrar certo presente – mesmo que a marteladas, como queriam Friedrich Nietzsche e Antonin Artaud – e erguer os braços ao futuro que se abre é um sinal de esperança e de resistência. É um gesto e uma emoção (…). No gesto do levante, cada corpo protesta por meio de todos os seus membros, cada boca se abre e exclama o não da recusa e o sim do desejo.”










.





Levantes por Didi-Huberman: no alto, 
dois fotogramas de Le Route, filme de 2006
de Chen Chieh-Jen, artista de Taiwan. Acima,
Beaubien Street, fotografia de 1971 do
norte-americano Ken Hamblin. Abaixo,
fotografia de Eduardo Gil, da Argentina,
Niños desaparecidos, secunda marcha de la
Resistencia, Buenos Aires, 9-10 décembre
1982; e uma das fotografias de Bruno Barbey
em destaque, Manifestation, Paris,
France, mai 1968








Gestos contra tempos sombrios



A atualidade dos gestos de resistência e de rebelião contra os tempos sombrios do discurso do ódio e das ações violentas, de grupos de direita e extrema direita, move a constelação de imagens, textos e objetos selecionados por Didi-Huberman para convidar a reflexões sobre as manifestações populares por meio da arte. Porque, afinal, não há levantes e resistência sem arte, sem música, hinos, palavras de ordem, sem imagens que ficarão na memória.

O próprio curador alerta, na apresentação à exposição, que um levante pode acabar em lágrimas de decepções, em lágrimas de mães chorando sobre os filhos mortos, mas ele também adverte que essas lágrimas não são de esgotamento: elas ainda podem ser força de ação e paixão, de teimosia e rebeldia –– “como nas marchas de resistência das mães e avós de Buenos Aires (…), seja na floresta do Chiapas, na fronteira greco-macedônica, em qualquer parte da China, no Egito, em Gaza ou na selva das redes da internet, pensadas como uma Vox Populi. Sempre haverá uma criança que pule o muro.”

Movimentos políticos ou objetos de arte? A potência física e visual dos corpos que resistem contra as formas de opressão está sempre na fronteira dos sentidos que podemos encontrar, conforme destacou Didi-Huberman na conferência “Imagens e Sons como Forma de Luta”, que marcou a abertura da exposição “Levantes” em São Paulo. Segundo o curador, “as imagens pertencem a todo mundo. Não há autoctonia, nem propriedade no universo das imagens. Como todos os objetos culturais, as imagens são feitas para migrar, a exemplo do selo que é feito para atravessar uma fronteira. Porém, o legado dos levantes depende de nós, da nossa capacidade de transmitir o sentido dessas imagens.”









Levantes por Didi-Huberman: acima,
fotogramas extraídos de Idomeni, 14 mars
2016, Frontière gréco-macédonienne, filme
de Maria Kourkouta, da Grécia. Abaixo,
fotografia de Eustachy Kossakowisk registra
a performance de Tadeusz Kantor em 1967
Panoramic Sea Happening, Sea Concerto,
Osieki (extraído de uma série).

Também abaixo, fotogramas extraídos de
Cruzar un Murofilme de 2013 do chileno
Enrique Ramirez que mostra a fotografia
e também como ela foi produzida;
Parangolé - Encuentros de Pamplona,
fotografias e montagem de 1972 de
Hélio Oiticica e Leandro Katz que
fazem parte do acervo do Museo Nacional
Reina Sofia de Madri, Espanha

















Na trajetória de Didi-Huberman, que nas últimas duas décadas está presente com seus livros e ensaios como teórico da arte e da cultura em destaque e como referência importante em diversas áreas da pesquisa acadêmica, a exposição “Levantes” marca um novo capítulo no percurso de curadoria que ele iniciou em 2010 com a mostra intitulada “Atlas –– Como levar o mundo às costas?”, inaugurada no Museu Reina Sofía, em Madri. “Atlas”, a exposição, foi motivada pelos estudos de Didi-Huberman sobre o historiador alemão Aby Warburg (1866-1929), conhecido pela criação de pranchas de montagens iconográficas, nomeadas por ele de “Atlas Mnemosyne”, um projeto concebido entre 1924 e 1929 e que ficou inacabado na meta de relacionar uma grande variedade de imagens de épocas e de geografias distintas.



Diálogo entre passado e presente



O observador atento poderá perceber que a figura mitológica do Atlas, o titã gigantesco imaginado na Grécia da Antiguidade que ergue os braços para sustentar o peso do globo terrestre, permanece como referência incontornável para a exposição “Levantes”. As diferenças são sutis: enquanto em “Atlas” o trabalho de curadoria encontrava analogias visuais entre representações diversas, exibindo lado a lado gravuras, vídeos e fotografias aleatórias que estabeleciam um certo diálogo conceitual, em “Levantes” são as constelações de variações sobre gestos de punhos e braços que fazem emergir trajetórias e memórias de manifestações históricas –– todas elas construindo entre si um diálogo intenso entre passado e presente, entre repetição e sobrevivência das formas e dos ideais.







Levantes por Didi-Huberman: acima,
Mujer con la bandera, fotografia de 1928
da italiana Tina Modotti no México.

Abaixo, Black Panthers in Chicago, Illinois,
fotografia de 1969 do japonês Hiroji Kubota;
e uma imagem de um fotógrafo anônimo que
registra t
rabalhadores da construção em greve
levantando os punhos em saudação durante
um comício no Bois de Vincennes, em Paris,
em 13 de junho de 1936











À imensidão de levantes em épocas e geografias diversas, dos primórdios da Revolução Industrial à comoção das multidões em Havana no auge da Revolução Cubana, das legiões de estivadores chineses de meados do século 20 aos rostos contemporâneos nas fileiras do Occupy Wall Street em Nova York, de momentos dramáticos do movimento feminista a surpreendentes flagrantes anônimos ou desconhecidos sobre a natureza humana de mulheres e homens em seus anseios por melhores condições de vida, Didi-Huberman acrescenta, na montagem da exposição no Brasil, referências à memória da resistência e das insurreições em território nacional. A História sempre pode ser reconstruída através de cacos e de resquícios que foram considerados como detritos pela história oficial –– como professa o pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940), um dos mestres na linhagem a que se filia o trabalho e as ideias de Didi-Huberman.



Testemunho, paradoxo, esperança



Assim é que o público pode encontrar na montagem brasileira de “Levantes” as fotografias de Sebastião Salgado que registram ações do MST (Movimento dos Sem Terra), o cartaz “Seja marginal, seja herói” e os flagrantes libertários dos Parangolés de Hélio Oiticica (a partir de fotogramas que Eduardo Viveiros de Castro extraiu do filme “H.O.” de Ivan Cardoso), a poesia dos manifestos Pau-Brasil e Antropofágico de Oswald de Andrade, fragmentos de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, fiéis na procissão de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, Minas Gerais, em fotografias da década de 1950 de Marcel Gautherot, e a percepção do racismo em imagens da série “Dito Escuro”, que Rafael RG registrou em 2014. Entre tantas imagens de impacto, que provocam memórias e reflexões e paixões, Didi-Huberman repete a presença de quatro fotografias em pequeno formato que fazem parte de momentos anteriores de sua reflexão filosófica em livros, ensaios e conferências.






Levantes por Didi-Huberman: acima, procissão
do Bom Jesus do Matosinhos em Congonhas
,
Minas Gerais, em fotografia da década de 1950
de Marcel Gautherot. Abaixo, Os ícones da
vitória
, fotografia de 1997 de Sebastião Salgado
que registra o Movimento dos Sem Terra.
No final da página, as quatro fotografias
tiradas clandestinamente por membros dos
Sonderkommandos, em agosto de 1944, no
campo de extermínio em
Auschwitz-Birkenau






As quatro fotografias, à primeira vista enigmáticas e quase indecifráveis, permanecem como os únicos registros visuais que sobreviveram ao tempo dos campos de extermínio do Holocausto na Segunda Guerra, em Auschwitz-Birkenau. São imagens realistas e de valor simbólico muito forte que só recentemente se tornaram conhecidas, depois de décadas. O curador Didi-Huberman confessa que as quatro fotografias estão na gênese da ideia inicial que resultou no projeto “Levantes”.

Alguns pedaços de película de filme, alguns gestos políticos: as quatro fotografias foram feitas em agosto de 1944, clandestinamente, por um integrante dos Sonderkommandos, os pequenos grupos de judeus que tiveram a terrível tarefa de colocar na câmara de gás seus semelhantes, depois enterrá-los, sendo que eles próprios também eram executados em seguida. As fotografias ficaram escondidas em um tubo de pasta de dente com uma breve carta explicativa. Perturbadoras, mostram à distância fileiras de mulheres e, lado a lado, cadáveres queimados. Imagens que revelam. Testemunhos, extremos, que resistiram à violência, ao tempo, e chegaram ao futuro. E que também são, na escuridão, por paradoxo, esperança.



por José Antônio Orlando


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Levantes por Didi-Huberman. In: Blog Semióticas, 11 de novembro de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/11/levantes-por-didi-huberman.html (acessado em .../.../...).






Para assistir a conferência Imagens e Sons como Formas de Luta, de Georges Didi-Huberman,  clique aqui.


Para ler a entrevista de Didi-Huberman ao jornal da Argentina Página 12 sobre a exposição Levantes,  clique aqui.


Para ler a entrevista de Didi-Huberman à revista francesa L'Humanité sobre a abertura da exposição Soulèvements na França,  clique aqui.









31 de maio de 2015

Felice Beato e os Samurais








A força de um é apenas um acidente
que decorre da fraqueza dos outros.

–  Joseph Conrad, “O Coração das Trevas” (1899).


Mais de 500 anos depois das viagens lendárias e das descobertas do mercador Marco Polo, um outro cidadão nascido em Veneza trouxe, para o Mundo Ocidental, revelações impressionantes sobre os povos do Oriente. Nas décadas de 1850 e 1860, o italiano depois naturalizado inglês Felice Beato (1825-1909) tornou-se o primeiro a registrar em fotografias as cenas de guerras e também os povos da Ásia, com dedicação especial para Samurais, Gueixas e outras figuras marcantes da cultura tradicional do Japão.

Além dos retratos etnográficos sobre a cultura japonesa com seu acréscimo de cores pintadas a mão pelo próprio fotógrafo – que tiveram exposições com sucesso impressionante de público em Veneza, Paris, Londres e outras capitais da Europa no final do século 19 – Felice Beato também produziu outras centenas de fotografias panorâmicas de paisagens, de cidades e dos povos que habitavam os territórios estranhos e desconhecidos da China, da Índia, da Palestina, do Egito e de países da África.

Ao título de pioneiro da fotografia e do fotojornalismo, Felice Beato acrescentaria outro mérito: também foi o primeiro fotógrafo de guerra, registrando imagens da Guerra da Crimeia (1853-1856), da Rebelião na Índia contra a ocupação britânica (1857-1858) e da Guerra do Ópio na China (1856-1860), para espanto e comoção de seus contemporâneos europeus, que viviam admirados os primeiros tempos das novidades impressionantes que a fotografia começava a representar.











Felice Beato e os Samurais: no alto,
Samurais no Japão na década de 1860.
Acima, capa do catálogo fotográfico
Japon fin de siècle, que reúne uma
seleção das fotografias do pioneiro
Felice Beato no País do Sol Nascente






.




As guerras e o exotismo dos cenários



Contratado pela Coroa Britânica e por outros países da Europa para registrar imagens das tropas militares avançando pelo território inimigo, Felice Beato teve como missão, nas expedições de guerra, a tarefa de fazer registros amenos dos conflitos, sem mostrar muito sangue e sem fazer alarde sobre a tragédia, para exaltar a força e a superioridade dos europeus frente aos povos do Oriente. Contudo, a tarefa, muitas vezes, produziu resultados que impressionam mais pela violência do que pelo exotismo dos cenários.

O que se vê, nas imagens de guerra registradas por Felice Beato que chegaram até nossos dias, muitas delas resgatadas pelo livro publicado em 2014 pela pesquisadora francesa Catherine Pinguet ("Felice Beato, 1832-1909: Aux origines de la photographie de guerre", CNRS Editions) são cenas de violência e destruição, com corpos mutilados e soldados desolados. Em cada imagem, o fotógrafo revela cenários sombrios, repletos de informação sobre as circunstâncias da guerra, seus personagens, suas vestimentas e costumes – com predominância de retratos posados, já que os personagens precisavam ficar parados por muito tempo para o registro perfeito da fotografia, sempre dificultado por filmes pouco sensíveis e lentes improvisadas.












Felice Beato e as fotografias de guerra
em 1860: no alto, o exército britânico no
forte de Pei-Tang, na China, durante a
Guerra do Ópio. Acima, o cenário de
destruição com corpos espalhados após
o fim da batalha, no Forte de Taku.
Abaixo, o templo budista de Shiba,
em Tóquio, 1860, e uma embarcação
transportando gueixas em Yokohama,
no Japão, em fotografia de 1865
 








 







Em 1860, com o fim da Guerra do Ópio, que levou ao confronto as tropas militares da China contra a Grã-Bretanha, Felice Beato interrompe por um breve período sua trajetória de viajante e aventureiro pelas terras do Oriente e retorna à Europa. Em Londres, o fotógrafo pioneiro vai comercializar a maior parte das imagens que havia produzido nas décadas anteriores, incluindo as cópias em papel cartonado e os negativos de vidro.



Imagens sem precedentes



A partir de Londres, o acervo de centenas de imagens sem precedentes produzidas por Felice Beato vai então se dispersar e gerar fortunas para seus compradores – entre eles alguns colecionadores de obras de arte, integrantes da nobreza e comerciantes que começavam a arriscar a sorte no negócio das imagens fotográficas. Depois da temporada em Londres, Felice Beato retornaria para o Japão, fixando residência em Yokohama, onde viveria até 1885, produzindo sua documentação fotográfica e as séries sobre Samurais e Gueixas.








Felice Beato e os Samurais: imagens
exóticas que impressionaram seus
contemporâneos na Europa e ainda
surpreendem, pela técnica apurada das
imagens produzidas com equipamentos
artesanais e pelo acréscimo de pinturas
coloridas feitas a mão pelo fotógrafo




 







Considerado perdido durante mais de um século, o acervo de fotografias do pioneiro Felice Beato foi em parte resgatado, finalmente, com publicações em livros e catálogos fotográficos a partir da década de 1980. Uma nova leva de imagens inéditas produzidas pelo fotógrafo pioneiro acaba de ser apresentada em uma exposição na Inglaterra, a London Photograph Fair 2015, além da publicação do catálogo fotográfico “Japon fin de siècle”. Editado na França pela Casa Arthaud, o catálogo reúne 70 fotografias originais e inéditas de Felice Beato e estudos biográficos a cargo de especialistas em História da Fotografia, entre eles Pierre Loti e Chantal Edel.

A exposição das imagens pioneiras dos Samurais e Gueixas na London Photograph Fair 2015 foi realizada graças à colaboração dos herdeiros de Sir Henry Hering. No final do século 19, Hering era proprietário de um estúdio fotográfico em Londres e comprou as fotografias diretamente do próprio Felice Beato. Na França, a publicação do catálogo “Japon fin de siècle” também contou com o acervo de coleções particulares, cedidas pela primeira vez pelos herdeiros de antigos colecionadores.













As cenas mais antigas do Japão

registradas por Felice Beato: acima e
abaixo, mulheres e gueixas em Yokohama 
e em Tóquio na década de 1860, imagens
do catálogo fotográfico Japon fin de siècle 


 






Parâmetros para o fotojornalismo



Além de apresentar 70 imagens inéditas, “Japon fin de siècle” também reproduz o material que havia sido divulgado pela primeira vez na década de 1980, em outro catálogo fotográfico, Mukashi Mukashi, também editado pela Casa Arthaud, que reuniu pela primeira vez as fotografias originais de Felice Beato sobre os Samurais e Gueixas no Japão do século 19. Um outro portfólio, com 60 fotografias selecionadas de Felice Beato no Japão, foi publicado em 1994, na França, pela coleção Photo Poche do Centre National Photographie: “Felice Beato et l'école de Yokohama”.

O catálogo Photo Poche traz, na verdade, uma compilação das fotografias que antes foram reunidas em Mukashi Mukashi e em dois livros dedicadas exclusivamente ao fotógrafo: Once Upon a Time: Visions of Old Japan (Friendly Press, EUA, 1986), Felice Beato: Viaggio in Giapponne (Federico Motta Editore, Itália, 1991). Nos anos seguintes ao lançamento de Mukashi Mukashi, mais fotografias inéditas de Felice Beato surgiram publicadas em outros três livros ilustrados: Of Battle and Beauty: Felice Beato's Photographs of China (California Academy of Sciences, EUA, 2000), Felice Beato en Chine (Somogy, França, 2005) e Felice Beato: A Photographer on the Eastern Road (Chicago University Press, EUA, 2010). Em 2014, outra biografia ilustrada foi publicada na França: Felice Beato: Aux origines de la photographie de guerre (Ed. Cnrs), de Catherine Pinguet, também reunindo fotografias que foram publicadas nas edições anteriores.     

No novo catálogo, “Japon fin de siècle”, que traz fotos inéditas e uma seleção dos trabalhos mais conhecidos de Felice Beato, um dos ensaios biográficos, assinado por Chantal Edel, revela documentos também inéditos localizados em acervos do Japão e da China que esclarecem dúvidas sobre a trajetória do pioneiro da fotografia. Entre as novidades apresentadas, Chantal Edel confirma a existência de um irmão de Felice, Antonio, também fotógrafo, além de relatar detalhes sobre seu processo de trabalho e as importantes parcerias que estabeleceu em suas aventuras pelo Oriente, e na cobertura de guerras, com outros pioneiros da fotografia, entre eles James Robertson e Roger Fenton, e com Charles Wirgman, fundador e editor do “Japan Punch”, considerado o primeiro jornal japonês.









Felice Beato e as tradições do Japão 
na década de 1860: no alto, trabalhadores
na fabricação de lanternas e luminárias.
Acima, um encontro festivo de
Samurais e Gueixas em Tóquio. Abaixo,
homens em cena no teatro Nô e Kabuki;
e uma jovem mãe carregando seu filho,
fotografia reproduzida na capa do livro
publicado pela italiana Rossella Menegazzo

  
 










Segundo Chantal Edel, a sorte e as circunstâncias históricas levaram Felice Beato a ser contratado em diversos períodos para prestar serviços diplomáticos para a Inglaterra, a Grécia e os Estados Unidos em países da Ásia e da África antes de chegar ao Japão, no primeiro período de abertura daquele país a estrangeiros, por volta de 1860, depois de séculos de completo isolamento. No Japão, o fotógrafo encontra dificuldades e problemas como um grande incêndio em 1866 seu estúdio, instalado em Yokohama, mas consegue preservar ainda centenas de fotografias, sendo que a maior parte delas seriam registros sobre os últimos samurais do Xogunato Tokugawa e de antigas tradições que chegavam ao fim.

Com as experiências acumuladas de viajante e de manuseio dos equipamentos em condições adversas, Felice Beato transforma sua surpresa e curiosidade com a tradição cultural japonesa em documentação sem precedentes, através da fotografia, como destaca Chantal Edel na conclusão de seu estudo biográfico publicado em “Japon fin de siècle”. Muito além do exotismo e do espanto que provocaram em seus contemporâneos e conterrâneos europeus, cenários, paisagens e personagens fotografados em expedições pelo pioneiro Felice Beato foram e ainda são de fundamental importância para estudos sobre a etnografia do Japão e demais países do Oriente nas universidades ocidentais – abrindo caminho para novos pesquisadores e estabelecendo parâmetros para os avanços que a fotografia e o fotojornalismo conquistaram nos séculos seguintes.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Felice Beato e os Samurais. In: Blog Semióticas, 31 de maio de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/05/felice-beato-e-os-samurais.html (acessado em .../.../...).









 






Felice Beato na Terra do Sol Nascente: no alto, Tóquio em
1868, quando tornou-se a capital do império do Japão. Acima,
Gueixas em Tóquio. Abaixo, a rua principal de Yokohama,
que o fotógrafo pioneiro adotou como residência entre 1862
e 1885, e um dos últimos samurais do Xogunato Tokugawa,
em fotos reproduzidas de negativos em vidro datados de 1865













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