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17 de maio de 2014

Lygia Clark no MoMA






O erótico vivido como profano e a arte vivida
como sagrada se fundem numa experiência
única. Trata-se de misturar arte com vida.

–– Lygia Clark (1920-1988).   




Lygia Clark ganhou destaque internacional com uma grande retrospectiva de sua obra no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova York, aberta ao público de 10 de maio a 24 de agosto de 2014. Maior exposição já dedicada a uma brasileira em um museu dos EUA, “Lygia Clark: The Abandonment of Art, 1948-1988” (Lygia Clark: O Abandono da Arte, 1948-1988) aborda, pela primeira vez, todas as fases da carreira da artista que se autointitulava “não artista e que se tornou uma referência, na segunda metade do século 20, na busca dos limites das formas não convencionais de arte.

Com um acervo de 300 obras nunca reunidas em uma única exposição, tomadas de empréstimo, depois de longas negociações, em coleções públicas e privadas no Brasil e outros países, a mostra apresenta desenhos, pinturas, fotografias, filmes, esculturas, objetos, instalações e obras participativas criadas nas quatro décadas de produção artística de Lygia Clark. O acervo, organizado de forma cronológica, foi reunido pela curadoria do MoMA a partir de três grandes temas: Abstração, Neoconcretismo e Abandono da Arte.

Além das obras e instalações permanentes em exposição, completam a programação do MoMA o lançamento de um catálogo com a obra completa de Lygia Clark, que inclui fac-símiles de projetos e escritos inéditos da artista, e uma série de eventos paralelos, entre oficinas, palestras e exibição de documentários com participação de Lygia – entre eles "O Mundo de Lygia Clark" (1983), de Eduardo Clark; "Memória do Corpo" (1973), de Mario Carneiro; e cinco curtas-metragens sobre a obra de Lygia realizados entre 1974 e 1979 por Anna Maria Maiolino. Também está na programação uma mostra de filmes experimentais brasileiros dos anos 1960 e 1970, com produções de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Neville D'Almeida, Ivan Cardoso, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica e Lygia Pape, entre outros (veja link para o catálogo e para uma visita virtual no final deste artigo).







  




No alto, cenas da abertura da exposição
Lygia Clark: The Abandonment of Art,
1948-1988” no MoMA, Museum of Modern Art,
em Nova York. Acima, Lygia Clark sua
Máscara Abismo com tapa-olhos em 1968.

Abaixo, Lygia Clark em uma experiência
de "arte relacional" no Rio de Janeiro,
na década de 1970; e fotografada em
Paris, em 1970, por Alécio de Andrade.
Também abaixo: 1) Lygia na primeira
Exposição Neoconcretaem 1959;
2) Lygia em frente às suas obras
Unidades, de 1958; e 3) a capa do
catálogo com a obra completa editado
pelo MoMA para a exposição











Na edição do catálogo, os organizadores da exposição apresentam de forma linear a trajetória da artista, nascida em 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte, Minas Gerais, e morta aos 67 anos em decorrência de um ataque cardíaco em 25 de abril de 1988, para colocar em relevo sua prática inovadora, desde seus primeiros trabalhos com tendências abstratas, literalmente abertos à participação ativa do espectador. Mais abrangente publicação já lançada sobre a arte de Lygia Clark, o catálogo reúne todo o acervo da exposição e outros trabalhos em belíssima seleção de imagens, com estudo biográfico, textos inéditos da artista e ensaios de Cornelia Butler, Luis Pérez-Oramas, Sergio Bessa, Eleonora Fabião, Briony Fer, Geaninne Gutiérrez Guimarães, André Lepecki, Zeuler Lima, Christine Maciel e Frederico de Oliveira Coelho.




Arte de vanguarda e prática terapêutica



No dossiê para a imprensa, os curadores da mostra e também organizadores do catálogo, Cornelia Butler e Luis Pérez-Oramas, destacam a importância e a atualidade de Lygia Clark e apontam que a exposição pretende valorizar sua produção inovadora e reinscrevê-la em discursos atuais da arte em diversas perspectivas, especialmente nos questionamentos e pesquisas sobre abstração, na participação interativa do público em diversos suportes e nas práticas terapêuticas.





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Ao reunir todas as partes da sua produção tão radical e tão pioneira é possível observar que ela sempre esteve na vanguarda”, aponta Luis Pérez-Oramas, reconhecendo que o pioneirismo de Lygia Clark se dá em várias frentes – seja na participação ativa dos espectadores através da composição permanente de suas obras de arte não convencionais, seja em suas práticas com arte sensorial que a levaram a pesquisas com terapia psicanalítica e a desenvolver uma série impressionante de novas proposições terapêuticas fundamentadas na arte.

A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte, tanto que ela autointitulava-se "não artista". Pintora, escultora, escritora, “performer”, terapeuta, professora: em 1972, morando em Paris desde 1968, foi convidada a ministrar um curso sobre comunicação gestual na Sorbonne e, segundo os biógrafos, suas aulas eram verdadeiras experiências coletivas apoiadas na manipulação dos sentidos e das sensações. 













São dessa época algumas das proposições impressionantes da artista, tais como “Arquiteturas biológicas, 1969", “Rede de elástico, 1973", “Baba antropofágica, 1973" e “Relaxação, 1974". Em 1976, há uma alteração marcante na trajetória, quando Lygia Clark retorna para o Rio de Janeiro para se dedicar às práticas terapêuticas com experiências individuais e coletivas em arte sensorial através dos seus "objetos relacionais". 



Abstração geométrica



Na apresentação ao evento no MoMA, Pérez-Oramas destaca no primeiro módulo da exposição, dedicado à abstração, a presença de predecessores fundamentais na obra de Lygia Clark, desde o diálogo de suas obras iniciais com mestres da arte brasileira e com grandes nomes das vanguardas, Duchamp, Calder, incluindo seus contemporâneos na abstração geométrica, Paul Klee, Fernand Léger (de quem foi aluna), Piet Mondrian, Vladimir Tatlin, Max Bill, Georges Vantongerloo.










A arte de Lygia Clark: no alto e acima,
desenhos e pinturas da primeira fase
questionam os limites entre obra e moldura 
a partir do alto, “Sem título” (1954),
Superfície Modulada nº 9” (1957) e
Superfície Modulada n° 4” (1957).

Abaixo, "Estudo" (1957) e "Composição"
(1953), formas geométricas e cores em
diálogo com as célebres experiência de
Mondrian e de Escher. Também abaixo,
painel montado em mosaico de pastilhas
no edifício Mira Mar, na Avenida Atlântica,
Rio de Janeiro, criado em 1951.
Exceto quando indicado, todas as
imagens fazem parte do acervo da
Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark”
e foram extraídas do catálogo do MoMA
Lygia Clark: The Abandonment of Art















 


Mas o grande apelo para o público está no segundo e terceiro núcleos da mostra, com os objetos relacionais da artista e suas proposições sensoriais que questionam o suporte material da obra de arte – alguns eram aplicados diretamente no corpo dos participantes, como mostram vídeos da época. Além da exibição dos originais, os visitantes contam com ajuda de monitores treinados para reproduzir com réplicas as experiências sensoriais propostas por Lygia Clark.

Como característica marcante dos desenhos e pinturas iniciais da artista, nas décadas de 1940 e 1950, já estava a complexidade das superfícies e o questionamento sobre o suporte material, com a exploração dos limites entre obra e moldura. “O que eu quero é compor um espaço e não compor dentro dele”, escreveu Lygia Clark certa vez, reconhecendo que a linha construtivista da arte brasileira – no concretismo, no neoconcretismo e seus desdobramentos – a levou a investigações para a arte além dos limites do tradicional e das formas convencionais. Nessa época, surgem os “Bichos”.










A arte de Lygia Clark: amostras das,
metamorfoses permanentes na série
“Bichos” e outras séries de Lygia Clark:
a partir do alto, Relógio de Sol”, de 1960,
e “O Dentro é o Fora”, de 1963.

Abaixo, uma série de "Bichos" na
instalação do MoMA; a escultura
Trepante, Versão 1”, de 1965, 
e “Óculos” (Goggles), de 1968





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Além do limite convencional



Por volta de 1960, Lygia Clark encontrou uma maneira de desdobrar as investigações sobre arquitetura e topologia de sua fase neoconcreta para um repertório tridimensional. O resultado foi a série de esculturas conhecida como “Bichos”, obras interativas que Lygia Clark concebeu para serem inteiramente e infinitamente remoldadas por seus manuseadores.

Em cada um dos “Bichos”, as linhas orgânicas se tornam dobradiças entre painéis, permitindo que a escultura seja transformada de um achatamento esquemático para uma variedade de configurações tridimensionais inesperadas. Algumas destas obras carregam enorme semelhança com seres vivos específicos, como o “Caranguejo” (1960), enquanto outros evocam temas da investigação artística de Lygia, como “Relógio de Sol” (1960). 




 

 

O segundo núcleo inclui, além dos “Bichos”, as séries “O Dentro é o Fora” (1963) e “O Antes é o Depois” (1963), que apresentam tripas de metal entrelaçadas, sem dobradiças. Completam o núcleo obras da série “Trepantes” (1965), estruturas de metal compostas por aço inoxidável retorcido em linhas líricas e formas circulares, e “Caminhando”, que a artista criou em 1963, retorcendo uma tira de papel em 180 graus para colar suas pontas e gerar um Anel de Moebius – uma forma circular que aparenta ter dois lados, mas na verdade tem apenas um, recortado longitudinalmente até o seu limite. 

 

Exílio e abandono da arte



O terceiro núcleo da exposição aborda o período a partir do final da década de 1960, quando ela passou a se dedicar exclusivamente a obras que incluíam a participação ativa do público, que poderia transcender o papel de mero espectador, acabando com a distinção entre artista e plateia – com trabalhos muito polêmicos em sua época, uma vez que Lygia Clark nunca os considerou nem como “performance” nem como “happenings”. 







Lygia Clark no ateliê: acima, em seu
estúdio no Rio de Janeiro, na década de
1950. Abaixo, "Escada", pintura em
óleo sobre tela de 1951.

Também abaixo, Lygia em Paris,
em 1969, trabalhando na instalação
"Arquitetura Biológica II”, em fotografias
de Alécio de Andrade; e amostras das
célebres performances coletivas sob
o comando de Lygia também registradas
em fotografias de Alécio de Andrade:
A casa é o corpo”, apresentada na
Bienal Internacional de Veneza, em 1968;
"Arquiteturas biológicas", em Paris, 1969;
"Rede de Elástico" (Paris, 1973)






 
Pelo contrário: estas investigações de sua última fase terminaram por levá-la a questionar profundamente o status e utilidade de trabalhos convencionais como meios de expressão. Entre 1966 e 1988, um período que coincidiu com uma crise pessoal e uma subsequente longa temporada de exílio na Europa, Lygia retomou de forma radical conceitos e práticas que havia confrontado em trabalhos anteriores. Fez objetos muito simples a partir de coisas como luvas, sacos de plástico, pedras, conchas, água, elásticos e tecidos.

Estes “objetos sensoriais”, segundo Pérez-Oramas, foram criados para tornar possível uma consciência diferente de nossos corpos, nossas capacidades perceptuais e as nossas restrições físicas e mentais. Os “objetos sensoriais” da artista tinham o propósito de serem ativados em contato e coordenação com as nossa s funções corporais e orgânicas.

Ao combinar nossos gestos com esses simples objetos, ela pretendia projetar uma dimensão orgânica sobre os materiais inertes e industriais”, explica Pérez-Oramas. Nessa época, Lygia parou de se definir como artista e passou a se concentrar no desenvolvimento de experiências sensoriais de uso terapêutico.










A casa é o corpo



Além dos três núcleos em exposição no sexto andar do MoMA, o quarto andar é dedicado exclusivamente a uma única instalação: "A casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão". Criada em 1968 por Lygia Clark para a Bienal de Veneza, a instalação simula em minúcias o aparelho reprodutor feminino e permite ao público uma experiência de imersão corpórea ao percorrer o seu interior.

Obra de fundamental importância para a história da arte brasileira – como destaca Maria Alice Milliet no ensaio biográfico “Lygia Clark: obra-trajeto”, publicado em 1992 pela EDUSP – “A Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético”.















 
Ao entrar (“penetração”) no primeiro dos três compartimentos da instalação, o espectador encontra um quarto escuro de piso macio; depois, segue para a “ovulação”, um espaço repleto de materiais esféricos (balões, bolas de borracha e de isopor); em seguida, entra em uma bolha transparente no formato de uma lágrima (“germinação”) e, ao final do percurso, atravessa uma cortina de fios de “cabelo” para se deparar com um espelho deformado onde vê o próprio reflexo.

Passados quase 50 anos, as imagens de “A casa é o corpo” ajudam a explicar o impacto e o estranhamento que a obra sensorial e as ideias de Lygia Clark provocaram no Brasil e naquela Bienal de Veneza, com sua influência posterior em conceitos como “suporte”, “instalação”, “arte conceitual”, “arte-terapia”. A atual celebração de sua obra pelo MoMA e a recepção unânime e surpreendente de público e crítica a trazem de volta ao futuro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Lygia Clark no MoMA. In: Blog Semióticas, 17 de maio de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/05/lygia-clark-no-moma.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual à exposição Lygia Clark do MoMA,  clique aqui.


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A arte de Lygia Clark: no alto,
uma amostra e um coletivo da série
"Bicho" (1963). Acima, "Sem título" (1957).

Abaixo, registro da Vernissage da mostra
de Lygia Clark apresentada no MoMA 



 






12 de dezembro de 2012

Freud explica







O homem é dono do que cala e escravo do que fala. Quando
Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo.

Sigmund Freud (1856–1939).     



Há mais de um século o gênio fascinante e por vezes contraditório do doutor Sigmund Freud sempre esteve em foco para outros pesquisadores e para os “leitores comuns”. O que não faltam são livros – os publicados pelo próprio Freud e centenas de outros, que relatam da biografia à correspondência do pai da Psicanálise, incluindo aqueles que se dedicam a aspectos incomuns na vida e obra do biografado ou mesmo os que recriam, em forma de ficção, momentos na trajetória do mestre. Dos muitos títulos sobre Freud das safras recentes nas livrarias, alguns são documentos preciosos sobre os ensinamentos do mestre na intimidade e na vida cotidiana.

Entre as edições nacionais, alguns destaques são a correspondência que Freud manteve com a filha Anna, cerca de 300 cartas enviadas entre 1904 e 1938, e dois estudos publicados pela Record, “Deuses de Freud” e “A Fuga de Freud”. A historiadora da arte Janine Burke é autora do primeiro, que revela o lado colecionador e menos conhecido do biografado. Freud, por mais de 40 anos, teve dedicação diária para reunir um extraordinário acervo de mais de 2 mil miniaturas, estátuas, vasos, joias e pedras preciosas esculpidas, remanescentes das civilizações da Antiguidade Clássica. E também teorizou sobre o assunto, como destaca a autora, recortando citações em que Freud compara o trabalho da Psicanálise com a Arqueologia: "O psicanalista, como o arqueólogo, deve escavar camada após camada da psique do paciente, antes de ter acesso aos mais profundos e valiosos tesouros".

Enquanto Janine Burke pesquisa e desvenda hábitos incomuns na intimidade cotidiana do médico austríaco, o psicólogo, jornalista e cineasta David Cohen investiga os últimos tempos de vida de Freud, com o avanço do nazismo que o levaria a fugir de Viena para Londres. São três relatos com mais semelhanças que diferenças. Enquanto as cartas reunidas em “Correspondência – Sigmund Freud e Anna Freud” (“Briefwechsel”, L&PM Editores) revelam muito sobre as relações familiares e de afeto entre o pai e seus filhos – especialmente Anna, a caçula, de quem Freud se tornou analista entre 1918 e 1924 – tanto Burke quanto Cohen também fornecem, igualmente, elementos biográficos e analíticos.













Freud explica: a partir do alto,
Sigmund Freud fotografado em 1921
para a revista Life por Max Halberstadt
ao lado de sua filha, Anna Freud, em Viena, 
Áustria, em 1928; e personificado no cinema
em Freud” (1962), filme de John Huston,
com Montgomery Clift e Susannah York;
e em "Um Método Perigoso" (A Dangerous
Method, 2011), de David Cronenberg,
com Michael Fassbender como Jung
Viggo Mortensen como Freud.

Abaixo, a foto célebre de 1922 de Freud
por Max Halberstadt em recriação feita
pelo artista italiano Manuel Gervasini







Tanto na "Correspondência" quando nos relatos de Janine Burke e de David Cohen, o que está em evidência são dois perfis do doutor Freud: aquele da intimidade familiar e o outro, referência das mais importantes em seu tempo e protagonista de revoluções da cultura no último século que chegaram ao senso comum e permanecem até a atualidade. Nos relatos de Burke e Cohen, cada um dos perfis surgem como mosaicos, construídos pelas palavras e impressões de terceiros. Nas cartas, cada opinião ou decisão é anunciada nas palavras do próprio Freud.



Complexo de Édipo



Através de “Correspondência”, pela primeira vez o leitor brasileiro tem acesso aos bastidores de uma das mais famosas relações entre pai e filha da história: a correspondência mantida durante 34 anos entre o médico e a caçula dos seus seis filhos, a única a seguir seus passos na profissão. Escritas entre 1904 e 1938, as cartas compõem um registro abrangente da gênese e do desenvolvimento da psicanálise, enquanto enumeram as opiniões de Freud sobre seus discípulos mais próximos.

Na trajetória de descobertas como o Complexo de Édipo e nas repercussões de obras radicais como “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905), Freud constata, através das cartas, seu crescente prestígio na comunidade científica e o quanto a Psicanálise vai adquirindo reconhecimento como teoria do funcionamento do aparelho psíquico, dispondo de um método de investigação com a interpretação das associações livres na transferência.







Freud e seus cães da raça Chow Chow.
Freud tinha vários cães e dizia que eles
possuíam um certo sentido que os fazia
capazes de analisar caráter das pessoas.
Um de seus cães, Jo-Fi, até participava
das sessões de análise acompanhando
alguns pacientes. Freud também foi
pioneiro ao defender que a presença de
cães e outros animais domésticos tinha
efeito terapêutico e efeito calmante.

Abaixo, Freud com seus amigos
e discípulos no começo do século 20:
a partir da esquerda, de pé, Abraham A. Brill,
Ernest Jones e Sândor Ferenczi. Sentados,
Sigmund Freud, G. Stanley Hall
e Carl Gustav Jung








A trajetória ascendente de Sigmund Freud também marca as cisões com discípulos importantes e amigos mais próximos, dos quais se separou sucessivamente desde 1908, quando fundou a Sociedade Psicanalítica de Viena, incluindo rompimentos dramáticos com Adler (em 1911), Jung (1913), Rank (1924) e Ferenczi (1929), entre outros pioneiros que fundamentam com Sigmund Freud a psicologia, a psicanálise e suas variações tanto nos métodos de psicoterapia quanto na sua aplicabilidade aos domínios da arte e da cultura contemporânea. 
 
Curiosamente, depois da morte de Freud, em 1939, Jung renunciou à presidência da Sociedade Médica Internacional para Psicoterapia. No pós-guerra, quando Freud e outros grandes pioneiros na teorias que fundamentam a Psicologia e a Psicanálise já estavam mortos, Jung ressurgiria com status de referência intelectual e celebridade na mídia internacional. Em 1955, aos 79 anos, lúcido e polêmico, Jung é reverenciado na capa da revista “Time”, com entrevista que marcou época criticando a massificação da Psicologia e da Psicanálise.








Carl Gustav Jung aos 33 anos, em 1909,
na Universidade de Viena, e em fevereiro
de 1955, aos 79 anos, na reportagem de
capa da revista TimeAbaixo, Freud em
viagem Haia, na Holanda, em 1920





 

A compreensão e a escuta



As questões de sua época, das vanguardas na arte à política, da evolução de seu entendimento sobre os chistes às articulações espontâneas do inconsciente como linguagem, dos esboços de suas teorias sobre a psicologia das massas ao contraponto do nazismo em ascensão tudo está registrado nos comentários de Freud e nas respostas sempre breves da filha.

A formação de Anna, contudo, é o fio condutor de “Correspondência”. De criança problemática e precoce, a caçula de Freud passou a mulher independente e determinada, subverteu convenções sociais e tornou-se analista mundialmente reconhecida. Depois da morte de Freud, Anna também se destacou como guardiã do legado intelectual paterno – um legado que ela aprofundaria com rigor científico, sobretudo nos estudos sobre psicanálise infantil. 












Anna Freud e o pai, fotografados em
Viena, em 1920. Abaixo, a capa da
edição nacional de Correspondência
e o jovem Sigmund Freud (ao centro)
em retrato de família datado de 1872





 

As cartas acompanham a educação sentimental de Anna e seu envolvimento crescente com as pesquisas e com os discípulos do pai. "Olhando você me dou conta do velho que sou, porque tens exatamente a mesma idade que a psicanálise. As duas me deram preocupações, mas no fundo espero de tua parte mais alegrias que dela", escreveu Freud a Anna no final de 1920. Todas as cartas, com raras exceções, são iniciadas com "Minha querida Anna" ou "Querido papai", e deixam vislumbrar como no início da psicanálise essa prática era testada nos círculos dos iniciados e em família.

O leitor familiarizado com os textos do pai da Psicanálise irá descobrir um tom afetivo comovente e surpreendente, em momentos em que o sisudo doutor Freud manifesta "uma humanidade profunda e palpável" – segundo as palavras de Anna. O leitor que não tem tanta leitura sobre as teorias de Freud também tem a descobrir outros tantos segredos nas cartas do destaque entre os mentores da “intelligentzia” de sua época. Um aprendizado: escrevendo à filha, o mestre parece evitar atitudes moralizantes e dá prioridade à compreensão e à escuta. 




 

O próprio Freud confessaria, em novembro de 1928: "Foi para mim uma experiência preciosa aprender quanto pode receber um de seus próprios filhos". Em outros momentos, a reflexão cede ao trivial, como na carta para Anna datada de julho 1904:



          Minha querida Anna,

       Foi muito gentil da tua parte me teres escrito, e por isto eu respondo conscienciosamente. Deves ter te enganado na tua carta, querendo dizer que engordaste um quilo; mas se realmente tiveres emagrecido, então a tia deve te alimentar com Salvelinus alpinus, até que tenhas recuperado teu peso. Na tua idade ainda se pode ganhar peso sem ter medo de engordar. A mamãe já está com a passagem de leito para a quinta-feira à noite, então vocês estarão completos, só faltando este último, que já está feliz por chegar em breve,

         teu velho papai.”




Navegando no mar dos sonhos



Freud não estava sozinho quando entrou no mar dos sonhos. Seus companheiros eram deuses do Egito, da Grécia e de Roma”, destaca Janine Burke na abertura de “Deuses de Freud”. Foi no final dos anos 1890, quando escrevia sua obra mais conhecida, “A Interpretação dos Sonhos”, que Freud se tornou um colecionador de arte.

A autora reveste de significados simbólicos, usando referências dos próprios conceitos e argumentos analíticos desenvolvidos pelo primeiro entre seus pares na Psicanálise, um detalhe importante: pouco depois de adquirir sua primeira peça de alto valor, ele tem uma notícia que o deixaria profundamente abalado: a morte de seu pai, Jacob Freud, em 25 de outubro de 1896. Desde então, Freud passaria a conviver com uma intensa obsessão por antiguidades da arte e pequenos objetos de culto, tesouros da Arqueologia.

Amuletos, alguém diria. Por certo, amuletos, alguns deles, não por acaso, transferidos à argumentação das teses mais conhecidas do doutor Freud, transformados em alegorias no método que ele celebrizou e que leva seu nome à categoria de adjetivo, "freudiano", tomando de empréstimo a metáfora da Arqueologia em que camadas sucessivas são removidas para revelar o mais importante, a chave do enigma: o sentido que permanece no fundo, submerso, a aguardar por seu resgate futuro.










Peças da coleção preciosa de miniaturas
e relíquias de civilizações da Antiguidade
na mesa de trabalho de Freud, em Viena








Seu gosto era preciso e sagaz”, aponta Burke, que persegue os percalços do gênio em seu estúdio vienense, onde todo espaço disponível – estantes, móveis, armários, gavetas – com o tempo ficaria apinhado de objetos antigos. Os mais valiosos ficavam inacessíveis à maioria dos visitantes, mas no restante da casa, especialmente no escritório, ele mal podia se mover sem arrastar algum objeto ou vários deles. A imagem de Freud como austero e hostil é contestada pelas revelações de Burke, que descobre no cotidiano do médico uma personalidade generosa, por vezes até hedonista, encantado pelos fetiches (para usar o termo tão caro às teorias freudianas) preciosos da coleção.



Segredos milenares da Arqueologia



De Viena, o médico avançava na teoria e acompanhava à distância que segredos milenares e tesouros da Arqueologia estavam sendo descobertos em todo o mundo: em 1871, o aventureiro Heinrich Schliemann, idolatrado pelo jovem Freud, desenterra as ruínas de Tróia; em 1900, data da publicação de “A Interpretação dos Sonhos”, Arthur Evans traz à tona os monumentos e estatuária de Creta; em 1922, Howard Carter penetra no túmulo de Tutankamon.










Imagens clássicas da Arqueologia, uma das grandes
paixões de Sigmund Freud: acima, Howard Carter
fotografado no Vale das Pirâmides, no momento da abertura
da antecâmara da tumba do faraó Tutankamon, no dia 26 de
novembro de 1922. Abaixo, Arthur Evans, Theodore Fyfe
e Duncan Mackenzie fotografados em 1900, na Grécia, nas
escavações que revelaram os palácios em Knossos, Creta,
onde nasceram as lendas de Minos, Teseu e o Minotauro.

Uma das histórias que fascinaram o doutor Sigmund Freud
foi protagonizada por Howard Carter, que revelou uma das
maiores descobertas da Arqueologia: a tumba de Tutankamon
no Vale das Pirâmides, no Egito. A múmia do faraó, que morreu
há mais de 3.300 anos, estava em perfeito estado de conservação
e, junto a ela, estava guardado um tesouro inestimável em ouro,
joias e pedrarias, que tinha permanecido intocado ao longo dos
milênios. Há muitas lendas intrigantes sobre a descoberta feita
por Howard Carter, decorrentes de uma inscrição na tumba que
lança uma maldição contra aqueles que perturbarem o descanso
eterno de Tutankamon. Realmente, a maior parte da equipe
que trabalhou com Carter na descoberta da tumba morreu
em situações trágicas pouco tempo depois, atiçando
superstições e a imaginação das pessoas.

Na tarde de 26 de novembro de 1922, o inglês Howard Carter
(fonte de inspiração para o personagem Indiana Jones criado
para a série de superproduções no cinema por Steven Spielberg
e George Lucas) e seu patrocinador, Lorde Carnarvon,
encontraram a antecâmara da tumba. Lorde Carnarvon
morreria poucos meses depois, em 5 de abril de 1923, em
circunstâncias ainda hoje não esclarecidasregistros oficiais
dão conta de que, no momento da sua morte, ocorreu na
capital do Egito uma falha elétrica sem explicação e
a cadela do lorde teria uivado e caído morta no mesmo
momento na Inglaterra. Nos meses seguintes morreriam
um meio-irmão do lorde e também sua enfermeira, o médico
que fizera as radiografias, vários visitantes do túmulo
e trabalhadores acompanharam a expedição.

Há muitos e muitos outros eventos estranhos que reforçam a
maldição do faraó”. Entre eles, uma serpente que, no dia em
que o túmulo foi aberto de forma oficial, entrou na gaiola e
devorou o canário de Carter. Na mitologia egípcia, as
serpentes protegem os faraós dos seus inimigos. Os jornais
da época fizeram alarde sobre o assunto e contribuíram de
forma sensacionalista para reforças as lendas sobre
uma maldição. Curiosamente, Howard Carter morreria
exatos 13 anos depois de sua grande descoberta.







Fascinado pela Antiguidade Clássica e pelas histórias sobre as descobertas recentes da Arqueologia, Sigmund Freud seguiu montando sua coleção de miniaturas, papiros e pequenas gravuras em relevo no intervalo entre 1871 e o final da década de 1930,  No início, réplicas de gesso. Quando começou a ganhar dinheiro com a Psicanálise, passa às peças verdadeiras, por vezes recorrendo ao mercado negro e, segundo fontes pesquisadas pela autora, também às redes de mercenários e assaltantes de tumbas. O relato de Burke é didático:

Para Freud, a religião cumpre a função de ajudar o ser humano a satisfazer na imaginação o que na realidade ele não se atreve ou não pode realizar na vida real", ela explica. "Para satisfazer estas necessidades, o indivíduo se identifica com um intermediário, que atua como 'muleta' para que a pessoa possa seguir com sua vida. Desta maneira, o indivíduo assim se expressa: 'Eu sofro, mas através de Cristo (ou de qualquer outro Deus) os meus sofrimentos serão recompensados'. Tudo isto nos mostra que o próprio Freud, em sua crítica sobre a religião, acaba nos mostrando que sua ligação com os Deuses e com a arte funcionava também como a "perna de pau" que o pirata usa para poder caminhar e seguir seu caminho”.



Objetos para amar



Eu preciso ter sempre um objeto para amar”, confessaria Freud certa vez a Jung, em passagem citada por Janine Burke. David Cohen e seu “A Fuga de Freud” vai em outra direção, deixando para trás a coleção de antiguidades e os prazeres secretos do médico na intimidade da família e da vida cotidiana. Cohen vai aos dias mais difíceis, quando Freud, famoso tanto na Europa quanto nos Estados Unidos na década de 1930, entrou em xeque quando a Áustria foi tomada pela Alemanha de Hitler, em 1938.









Miniaturas da coleção de Freud: a deusa Isis
e a Esfinge, artefatos sagrados do antigo Egito.
Abaixo, a Vênus de Willendorf, esculpida em
granito há cerca de 30 anos, e uma
mulher assombrada por espíritos ruins
e animais venenosos, escultura de 27 cm que
tem origem em Bali, ilha vulcânica da Indonésia;
e uma das vitrines do Museu Freud,
em Londres, que abriga mais de duas mil
peças da coleção original de objetos que
foram doados por Anna, filha de Freud










Nascido em uma família judia, da pequena burguesia comerciante da Morávia, desde muito cedo Freud aprendeu a conviver com problemas financeiros. Foram eles que obrigaram toda a família a se mudar para Viena, na Áustria, onde Freud viveria desde 1860, quando tinha apenas quatro anos. Aos 17, ingressou na Universidade de Viena. Formou-se em Medicina, com especialização em Neurologia. Aos 30, se casou com Martha Bernays e abriu uma clínica especializada em distúrbios nervosos, onde desenvolveria os princípios da Psicanálise. Em Viena, sempre usufruiu de vida financeira modesta, só ocasionalmente pontuada por regalias permitidas à sua classe social. Mas tudo mudou muito rápido em 1938.

Naquele ano, os nazistas obrigaram os judeus a declarar todos os seus bens – que passariam a ser tratados como riquezas ilegalmente adquiridas. Aí vem o golpe de sorte: Anton Sauerwald, estudante de Medicina e fã dos livros de Freud, foi designado para supervisionar os ganhos do médico de Viena, mas escondeu de seus superiores as provas de contas secretas na Suíça. Em “A Fuga de Freud”, todo o processo, a partir dos documentos oficiais, é investigado por David Cohen e narrado em primeira pessoa, em tom de novela policial.









Artefatos sagrados e valiosos na coleção:
deus Eros, de origem na antiga Grécia,
e o deus babuíno Thoth, do Egito, a mais
antiga referência como deus da sabedoria
e inventor da escrita. Abaixo, figura de mulher
em terracota, com origem na China do época
da Dinastia Tang, provavelmente de século 7;
e Freud fotografado com seus objetos em
sua mesa de trabalho em Viena










Cohen acompanha o agravamento da situação, os lances mais arriscados e o passo a passo de Freud em Viena, naqueles dias turbulentos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, até sua escapada espetacular aos 82 anos para Londres, a bordo do Orient Express, com vistos conseguidos por Sauerwald. Contudo, muitos na família de Freud, incluindo suas quatro irmãs, não foram autorizados a deixar a Áustria, acabaram presos e morreram no campo de concentração de Auschwitz. Segundo Cohen, Sauerwald foi salvo dos tribunais que julgaram os crimes de guerra nazistas no último momento, em 1947, por intervenção emocionada e emocionante de Anna, filha de Freud.



Segredos de família



Segredos de família, fraudes, suicídios, transações bancárias: nada escapa ao faro do jornalista e cineasta David Cohen, que por sua formação profissional como psicólogo pode se dar ao luxo, inclusive, de pontuar as situações biográficas do pai da Psicanálise com trechos das obras principais e comentários do próprio Freud, incluindo o que há de mais polêmico.

Descrevendo a agonia do veterano pensador e médico austríaco em fuga para Londres, o relato de Cohen ressalta que Freud, simultaneamente, inovou em vários domínios, tanto ao desenvolver uma teoria da mente e da conduta humana, quanto ao apresentar técnicas terapêuticas revolucionárias para ajudar pessoas afetadas psiquicamente. Vastos domínios, que terminaram por afastar alguns seguidores, influenciados por um, mas não pelo outro campo de atuação.









A chegada a Londres, em 1938. Abaixo,
uma das últimas fotografias de Freud,
no exílio, em seu gabinete de trabalho em
Londres. Também abaixo, Freud homenageado
em escultura na areia na praia de Pera, em
Portugal, e na fotobiografia em
retratos de 1864 a 1839






Cohen transforma em ritmo de thriller de suspense o momento mais amargo da biografia de Freud. Seu relato encontra o médico atormentado pela decisão de deixar Viena e às vésperas da fuga, a bordo do Orient Express. No mesmo ritmo, Cohen passa em revista os preparativos para a fuga e os percalços da maturidade, o legado teórico, as inovações no campo científico, as questões do inconsciente que se articulam como linguagem, as reviravoltas introduzidas pelo conceito de “pulsão de morte”, o agravamento das diferenças fundamentais com seus discípulos, especialmente Jung, ou o estabelecimento pela comunidade científica internacional do novo modelo para o aparelho psíquico, que Freud desenvolvera ainda no começo do século, compreendendo o ego, o id, o superego.

No capítulo final, Cohen cita uma frase de Freud que poderia constar como epitáfio, ou quem sabe como epígrafe, num dos muitos livros que Freud publicou, ou num dos tantos livros sobre ele, sua exegese, seus conceitos e teorias, assim como em qualquer das dezenas de biografias que têm o mestre como protagonista. Uma frase que reflete muito das convicções, dos ensinamentos e do temperamento de um pensador genial: Só os estados de conflito e turbulência podem aprofundar nosso conhecimento.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Freud explica. In: Blog Semióticas, 12 de dezembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/12/freud-explica.html (acessado em .../.../…). 



Livros citados:


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