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23 de março de 2012

Um certo Rubião








Todos os erros humanos são impaciência, uma
interrupção prematura de um trabalho metódico.

–– Franz Kafka, 1931.    



Quando ele estreou em livro, em 1947, com os contos de "O Ex-Mágico" – que abre com uma citação bíblica dos Salmos ("Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre") e uma primeira frase afirmativa e amarga ("Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior") – houve quem apontasse a semelhança entre os textos do escritor Murilo Rubião (1916-1991), mineiro de Carmo de Minas, e certas obras do tcheco Franz Kafka (1883-1924), nome de destaque do onírico e do fantástico na literatura universal e um dos maiores da língua alemã no século 20.

Rubião, assim como Kafka, foi um mestre das parábolas, aquele gênero sempre associado aos evangelhos do Novo Testamento, com suas histórias que têm um fim didático baseado em comparações de costumes ou observações analíticas sobre questões só na aparência insignificantes. Muitos já haviam percebido o parentesco da literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de Murilo Rubião, mas é curioso que ele próprio nunca tenha admitido nem as semelhanças nem nenhuma influência vinda das obras do autor de “A Metamorfose”.

No final da década de 1980, o acaso e a sorte me proporcionaram a oportunidade de fazer uma longa entrevista com Rubião para o jornal "Tribuna de Minas", junto com outro repórter, Walter Sebastião, e com o fotógrafo Humberto Nicoline. Encontramos o escritor bem-humorado e cercado de estantes com coleções cuidadosamente encadernadas em couro, organizadas na sala ampla, com amplas janelas envidraçadas, no apartamento em que morava no Edifício Maletta, no centro de Belo Horizonte. Assim que começamos a conversa, ele foi veemente em negar qualquer aproximação com Kafka, o primeiro autor que surgiu, logo na primeira pergunta. Segundo Rubião, ele só chegou a ler pela primeira vez alguns textos do autor quando Kafka foi traduzido no Brasil, no final dos anos 1940 – mesma época em que Rubião publicava os contos de “O Ex-Mágico”.



.


Na entrevista, Rubião fez questão de esclarecer: Kafka não teve influência sobre o meu trabalho. Quando li os seus textos, no final da década de 1940, já tinha escrito a maioria dos contos que iria publicar 'O Ex-Mágico'. Era muito difícil o acesso aos textos dele. Uma ocasião, eu tinha mandado meus contos para o Mário de Andrade, pedindo a opinião dele, e ele me respondeu que era um tipo de literatura que o deixava muito insatisfeito. Explicava que era um trabalho inteligente, bem feito, mas que não o convencia plenamente, que não era o tipo de coisa que ele gostava e completava, na carta, dizendo 'como também é a literatura de Kafka'. Achei estranho aquele negócio”.

Concluindo os comentários sobre a constante aproximação que alguns críticos e leitores fazem entre sua literatura e a do autor tcheco, Rubião explicou por quais motivos achou estranha aquela comparação feita por Mário de Andrade. “Achei estranho porque eu nunca tinha ouvido falar de Kafka. Escrevi pedindo emprestado. Mário, então, respondeu que tinha dois livros. 'A Metamorfose' e 'O Processo', mas que estavam em alemão. Só muito mais tarde consegui ler 'O Processo', e vi que havia identidade com minha literatura. Achei curioso. Mas o fato é que eu já havia escrito três livros – eu só consegui editor para o terceiro – e, neste momento, você conhece um autor que poderia ter te influenciado. Verifiquei, ainda, que a identidade talvez se devesse às mesmas leituras. Kafka tem influência da mitologia grega; é possível que ele tenha influência da Bíblia, do Velho Testamento, que os judeus leem muito; que conhecesse os autores do fantástico alemão e francês. Sabe-se, ainda, do seu conhecimento das obras de Edgar Allan Poe, que teve muita influência sobre a minha literatura. Eu não tenho influência do Kafka, mas se tivesse seria ótima, é um bom autor. Agora a diferença é que a literatura dele é mais escura, noturna, enquanto a minha é mais solar.








Um certo Rubião: acima e abaixo, o escritor na sala
de seu 
apartamento, no Edifício Maletta, e nas ruas
do Centro 
de Belo Horizonte, fotografado em 1988
por Humberto Nicoline. Também abaixo,
imagens 
de arquivo publicadas nas edições dos
livros 
do autor sem identificação de autoria,
exceto quando indicado






Além de negar a aparente influência de Kafka, Murilo Rubião também não admitiu naquela entrevista, uma das últimas que concedeu, nenhuma filiação aos escritores do chamado "boom" do realismo mágico da literatura latino-americana, que a partir de 1960 ganhou repercussão no mercado editorial na Europa e Estados Unidos por conta do prestígio adquirido por nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez, entre outros. Para ele, o prestígio de Borges era exagerado: Rubião preferia Cortázar, que ele considerava como o mais importante entre os autores do gênero da literatura fantástica e que chegou a conhecer pessoalmente, nas visitas que Cortázar fez a Minas Gerais. Cortázar era um autor que admirava de longa data.



Todos os contos



Ele foi um homem público destacado em Minas Gerais durante décadas. A lista de sua atuação registra, entre outras funções, seu papel como fundador e redator de jornais e revistas; criador do "Suplemento Literário do Minas Gerais" (que, sob seu comando, seria por alguns anos uma das melhores publicações do gênero no Brasil); Oficial de Gabinete em Belo Horizonte do governador Juscelino Kubitschek, de 1951 a 1955; chefe da publicidade de JK na disputa pela Presidência da República, em 1956; Adido Cultural do Brasil na Espanha de 1956 a 1960; diretor da Rádio Inconfidência e diretor da Escola Guignard, de Belas Artes e Artes Gráficas, a partir de 1967. Além da trajetória nos gabinetes e em cargos executivos no serviço público, Murilo Rubião também ocupa um lugar ímpar na literatura brasileira, com sete livros publicados de 1947 a 1990, reunindo 33 contos tão breves quanto fora do comum. 






Morto em 1991, aos 75 anos, o escritor retorna à cena com a edição de sua "Obra Completa" pela editora Companhia das Letras, que reúne 33 de seus textos fantásticos. "Incluímos nas edições da obras completas o conto 'A Diáspora', que não foi publicado em vida pelo autor, mas que estava em versão final, datilografada e revisada por ele, nos arquivos que fazem parte do Acervo dos Escritores Mineiros instalado na UFMG", explica a professora aposentada de literatura da UFMG, Vera Lúcia Andrade, responsável pela transferência dos arquivos de Rubião para a universidade e pelo estabelecimento dos textos na nova edição.

"Na verdade, todos os 33 textos fantásticos do Murilo Rubião já tinham sido publicados. Eu mesma havia feito o estabelecimento dos textos definitivos para a primeira publicação na editora Ática, que aconteceu em 1998, sob o título 'Contos Reunidos', tendo como editor Fernando Paixão. Foi quando, pela primeira vez, todos os contos do Murilo apareceram juntos em uma única edição em livro”, explica a professora.







Como naqueles eventos insólitos que pontuam a literatura que ele produziu, Murilo Rubião morreu às vésperas da abertura de uma grande exposição no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Organizada para ser uma homenagem em retrospectiva sobre sua vida e obra, a exposição contou com curadoria do professor, escritor e artista plástico Márcio Sampaio, apoiado por vários colaboradores e pesquisadores da obra do autor de "O Ex-Mágico". Com a morte do escritor, todos os arquivos, livros e objetos reunidos para a exposição acabaram transferidos ao final do evento para o acervo de escritores mineiros da UFMG.

"Murilo Rubião passou a vida reescrevendo sempre os mesmos textos, de tão perfeccionista e cuidadoso que era", destaca Vera Andrade, revelando que no acervo de Rubião ainda existem vários textos incompletos que nunca foram publicados. "Os herdeiros não autorizaram a publicação porque o próprio autor disse que eles ainda não estavam concluídos. Então, todos eles permanecem inéditos".













Um mundo à parte, fabuloso



O espantoso talento de Murilo Rubião para narrar, como se fossem fatos corriqueiros, acontecimentos os mais inusitados, transparece nas 33 obras-primas reunidas na "Obra Completa". Como na história só aparentemente absurda do pirotécnico que, morto, segue vivendo. Ou no caso da mulher que engorda desmedidamente conforme seus desejos vão sendo atendidos por seu amado.

Na obra de Rubião, cada texto breve encerra um mundo à parte, fabuloso, como na história do coelhinho falante que aborda o narrador com um pedido e, mutante, vai se insinuando em sua vida cotidiana. Ou ainda no desespero do mágico devorado por sua própria capacidade de operar prodígios, entre outros relatos insólitos e imprevisíveis. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que fiz com a professora Vera Andrade, que destaca a importância e a atualidade da obra de Murilo Rubião. 



Quem foi mais importante e influente, o Murilo Rubião da política ou o escritor ?

Vera Andrade – Ambos são igualmente importantes. O escritor produziu uma obra preciosa, até porque é o precursor da literatura fantástica no Brasil e o seu exemplo mais bem acabado. Já o Murilo da política cultural influenciou toda uma geração de escritores, que ficou conhecida como a "Geração Suplemento". Ele foi o "guru" dessa geração.











Um certo Rubião: no alto, o escritor em 1988,
fotografado por Humberto Nicoline. Acima,
Murilo Rubião com amigos em 1943:
de pé, a partir da esquerda, Otto Lara Resende,
Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos;
sentados, Murilo Rubião e Emílio Moura.

Abaixo, 1) Fernando Sabino, Murilo Rubião e
Hélio Pellegrino em Belo Horizonte, em 1943;
2) Fernando Sabino, Otto Lara Resende,
Rubião e Hélio Pellegrino; e 3) Murilo Rubião em
maio de 1968, na redação do Suplemento Literário
 em BH (a partir da esquerda, Affonso Ávila,
Ildeu Brandão, Décio Pignatari e Murilo Rubião).
 
Também abaixo, Murilo Rubião no inverno
de 1957 em Madri, quando era Adido Cultural
do Brasil na Espanha, durante o governo JK;
e em fotografias da década de 1980














 










Que lugar Murilo Rubião ocupa na literatura e na cultura brasileira?

Ele ocupa um lugar de destaque porque foi um homem público comprometido com o seu tempo, além de ser um escritor de uma escrita impecável, preocupado sempre em escrever e reescrever seus textos.

Ele sempre dizia que seus contos traziam a influência de Machado de Assis, da Bíblia e da Mitologia Grega. Esta tríade resume o universo de Murilo Rubião?

Na verdade, essa tríade representa bem as influências que ele traz em sua obra, mas não "resume" o universo de sua literatura, que é riquíssimo. Murilo foi leitor também de E. T. A. Hoffmann e dos demais românticos alemães, bem como do italiano Luigi Pirandello, para citar apenas alguns autores do universo da literatura fantástica.

Qual a importância da publicação da "Obra Completa"?

É de grande importância, por dar mais visibilidade ao trabalho ímpar de Murilo Rubião, colaborando para uma maior divulgação de sua obra, não só para o grande público leitor, mas também para os especialistas e para a pesquisa acadêmica.
















Um certo Rubião: dois retratos do escritor,
na maturidade e no primeiro ano de vida.
Abaixo, homenageado em pintura de
1985 do amigo
Petrônio Bax







Para um autor que publicou durante quase 50 anos, surpreende que a obra completa compreenda apenas 33 contos breves, ainda que sejam todos textos emblemáticos e irrepreensíveis. O que ainda existe de inédito entre os escritos de Murilo Rubião?

Existem contos praticamente acabados, além de esboços de outros contos, e até de uma novela, mas tudo indica que esses textos, parece-me, continuarão inéditos, pelo menos por muito tempo.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Um certo Rubião. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/um-certo-rubiao.html (acessado em .../.../...).







 
 
Obra Completa / Contos (Companhia das Letras)



1. O pirotécnico Zacarias 14

2. O ex-mágico da Taberna Minhota 21

3. Bárbara 27

4. A cidade 33

5. Ofélia, meu cachimbo e o mar 39

6. A flor de vidro 44

7. Os dragões 47

8. Teleco, o coelhinho 52

9. O edifício 60

10. O lodo 67

11. A fila 76

12. A Casa do Girassol Vermelho 90

13. Alfredo 98

14. Marina, a Intangível 103

15. Os três nomes de Godofredo 111

16. Memórias do contabilista Pedro Inácio 118

17. Bruma (a estrela vermelha) 124

18. D. José não era 129

19. A Lua 132

20. A armadilha 135

21. O bloqueio 139

22. A diáspora 145

23. O homem do boné cinzento 151

24. Mariazinha 156

25. Elisa 161

26. A noiva da casa azul 164

27. O bom amigo Batista 169

28. Epidólia 175

29. Petúnia 183

30. Aglaia 190

31. O convidado 197

32. Botão-de-rosa 207

33. Os comensais 216






Livros publicados por Murilo Rubião: 



O ex-mágico (Universal, 1947)

A estrela vermelha (Hipocampo, 1953)
 

Os dragões e outros contos (Movimento-Perspectiva, 1965)
 

O pirotécnico Zacarias (Quíron, 1974)
 

O convidado (Ática, 1974)

A casa do girassol vermelho (Ática, 1978)

O homem do boné cinzento e outras histórias (Ática, 1990)
 

 





16 de março de 2012

Betha, Betha, Bethânia






 

Muitos sorrisos, lágrimas, um grande silêncio. Quem teve a sorte de assistir Maria Bethânia e seu show dedicado a poetas e escritores encontrou, no mínimo, fortes emoções. A estreia foi em Belo Horizonte, no Teatro Dom Silvério, há exatamente um ano, no dia 18 de março. Depois do espetáculo, muitos aplausos que se entenderam por longos minutos, com a plateia que lotava o teatro permanecendo imóvel, impassível, quando a estrela deixou o palco e as luzes foram acesas. Lembro dos olhares de quem estava ao redor: sorrisos, lágrimas, silêncio.

"A poesia sempre esteve presente em minha vida, desde os primeiros tempos de escola. Hoje em dia, é cada vez mais um desafio, mas permanece para mim como algo irresistível, que comove e atrai" – foi o que ouvi de Bethânia, há um ano, no começo da entrevista por telefone, do Rio de Janeiro, onde mora desde 1965. Ela estava às vésperas de viajar para Belo Horizonte para a estreia do espetáculo, que foi intitulado "Bethânia e as Palavras".

Agora, um ano depois, Bethânia volta aos holofotes da imprensa, por conta do lançamento de seu novo CD pela Biscoito Fino. É um disco só com canções inéditas – e um novo trabalho de Bethânia é sempre um acontecimento. Ela tem uma primeira entrevista coletiva agendada para o próximo dia 28 para divulgar os detalhes do álbum, chamado “Oásis de Bethânia”. Sua assessoria de imprensa antecipa que serão dez faixas, cada uma com um arranjador diferente.







Betha, Betha, Bethânia: acima, em 1989,
em fotografia de Bob Wolfenson. Abaixo,
Bethânia em sua terra natal, Santo Amaro,
Bahia, em 1978, com os país, Dona Canô
e José Teles Veloso, que era conhecido
como Seu Zezinho; Bethânia com
Dona Canô em 2010; e Bethania em
imagens promocionais para o show
Amor, Festa, Devoção, que estrou em 2009





           










As canções do novo CD são “Lágrima”, “O Velho Francisco - Lenda Viva”, “Vive”, “Casablanca”, “Calmaria - Não sei Quantas Almas Tenho”, “Fado”, “Barulho”, “Calúnia”, “Carta de amor” e “Salmo”. Entre os arranjadores convidados especialmente para o projeto estão Lenine, Hamilton de Holanda, Jorge Helder, Maurício Carrilho e André Mehmari. Djavan se encarrega da única canção de sua autoria: “Vive”. O título do novo CD, “Oásis de Bethânia”, foi inspirado em um texto que a própria Maria Bethânia escreveu em 2011. É a  primeira vez que ela grava um texto de sua autoria em um disco. Os versos de Bethânia ganharam acordes de uma melodia criada por Paulo César Pinheiro e são interpretados por ela no tom de uma quase oração, entre a música e a poesia, na canção inédita “Carta de Amor”:


Não mexe comigo que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe não...


Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis
Sou tupinambá, tenho erês, caboclo boiadeiro
Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris
Zarabatanas, curarês, flechas e altares.
A velocidade da luz no escuro da mata escura
O breu o silêncio a espera. Eu tenho Jesus
Maria e José, todos os pajés em minha companhia
O Menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
O poeta me contou...


Não misturo, não me dobro a rainha do mar
Anda de mãos dadas comigo, me ensina o baile
Das ondas e canta, canta, canta pra mim, é do
Ouro de Oxum que é feita a armadura guarda o
Meu corpo, garante meu sangue, minha garganta
O veneno do mal não acha passagem e em meu
Coração de Maria ascende sua luz
E me aponta o Caminho...

Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã
Giro o mundo, viro, reviro tô no recôncavo
Tô em face, voo entre as estrelas, brinco de
Ser uma traço o cruzeiro do sul, com a tocha
Da fogueira de João menino, rezo com as três
Marias, vou além me recolho no esplendor das
Nebulosas descanso nos vales, montanhas, durmo
Na forja de Ogum, mergulho no calor da lava
Dos vulcões, corpo vivo de Xangô...

Não ando no breu nem ando na treva
Não ando no breu nem ando na treva
É por onde eu vou que o santo me leva
É por onde eu vou que o santo me leva...

Medo não me alcança, no deserto me acho, faço
Cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo
Meus pés recebem bálsamos, unguento suave das
Mãos de Maria, irmã de Marta e Lázaro, no
Oásis de Bethânia...

Pensou que eu ando só, atente ao tempo num
Começa nem termina, é nunca é sempre, é tempo
De reparar na balança de nobre cobre que o rei
Equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a justiça...

Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão
E pra onde você for não leva o meu nome não
E pra onde você for não leva o meu nome não...

Onde vai valente? você secou seus olhos insones
Secaram, não veem brotar a relva que cresce livre
E verde, longe da tua cegueira. seus ouvidos se
Fecharam à qualquer música, qualquer som, nem o
Bem nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe
Você pisa na terra mas não sente apenas pisa
Apenas vaga sobre o planeta, já nem ouve as
Teclas do teu piano, você está tão mirrado que
Nem o diabo te ambiciona, não tem alma você é
O oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo...

O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar
Não sou eu que vou lhe dar
Não sou eu que vou lhe dar...

Eu posso engolir você só pra cuspir depois
Minha forma é matéria que você não alcança
Desde o leite do peito de minha mãe, até o sem
Fim dos versos, versos, versos, que brota do
Poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita
Na palma da inspiração de Caymmi, se choro, quando
Choro e minha lágrima cai é pra regar o capim que
Alimenta a vida, chorando eu refaço as nascentes
Que você secou...

Se desejo o meu desejo faz subir marés de sal e
Sortilégio, vivo de cara pra o vento na chuva e
Quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de
Gandhi, cruzam o meu peito. Sou como a haste fina
que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta...

Não mexe comigo que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe comigo...








O olho do furacão



A notícia do novo CD me trouxe à memória que foi exatamente há um ano, às vésperas da estreia nacional do espetáculo de poesia em BH, que uma nota tão breve quanto maliciosa, publicada na coluna de Mônica Bergamo, na "Folha de S. Paulo", lançou a serenidade de Bethânia no olho do furacão. Segundo a nota, o Ministério da Cultura havia liberado o montante de R$ 1,3 milhão para a cantora criar um blog.

A notícia distorcida foi imediatamente reproduzida por outros jornais e chegou rápido aos blogs e redes sociais. Foi o que bastou para explodir a polêmica e Bethânia ser atacada e caluniada com requintes de crueldade. A assessoria da cantora correu a rebater a notícia: o ministério não havia liberado uma verba e sim autorizado a captação de patrocínio. Além disso, o projeto iria muito além da criação de um blog e, na verdade, o patrocínio que ainda seria captado visava a produção de 365 audiovisuais em que Bethânia daria extensão ao espetáculo de poesia “Bethânia e as Palavras”. 

 











O futuro blog, segundo informou a jornalista que há anos cuida da assessoria de imprensa da cantora, seria um dos espaços para divulgação dos audiovisuais, que também seriam distribuídos gratuitamente em DVDs para escolas e bibliotecas de todo o Brasil. A produção envolveria Bethânia e uma grande equipe técnica, incluindo direção de Andrucha Waddington e coordenação de Hermano Viana. Andrucha já havia realizado em 2007 um documentário impecável e inspirado com Bethânia: “Pedrinha de Aruanda".

Mas poucos se preocuparam em ouvir os esclarecimentos da assessoria e a nota breve e maliciosa continuou a propagar seu estrago com força, repetida à exaustão e com evidente má-fé. A polêmica ganhou terreno e o Ministério da Cultura também se viu forçado a divulgar uma nota oficial esclarecendo a questão e desmentindo a nota publicada pela “Folha”: não se tratava de liberação de verba e sim de autorização para a captação de patrocínio.

De acordo com a assessoria de imprensa do ministério, o projeto de Bethânia foi autorizado a iniciar a captação de patrocínio porque cumpriu todos os requisitos técnicos estabelecidos pelos trâmites das leis de incentivo. De nada adiantou: tanto os ingênuos quanto os bandidos de plantão seguiram repetindo xingamentos e acusações sem fundamento contra o projeto de Bethânia.










Na entrevista que fiz com ela pelo telefone – que seria publicada por um jornal de Belo Horizonte – Bethânia comentou sua meta de realizar as 365 produções de poesia, ainda sem saber da polêmica que seria deflagrada no dia seguinte. Ela falou com entusiasmo do projeto e da intenção e da importância de divulgar poetas e poemas, através do blog e da distribuição do conteúdo em DVDs. Explicou que tudo teria acesso gratuito, com uma produção sendo apresentada a cada dia do ano.



Música e poesia



"Quero me comover e comover o público no dia a dia. Gosto de música e poesia, gosto da palavra, por isso o projeto das 365 produções durante o ano e por isso o novo espetáculo, que começou aí mesmo em BH, no projeto Sentimento do Mundo, promovido em 2010 pela UFMG. Posso dizer que este projeto de poesia é a minha tradução mais completa", reconhecia Bethânia pelo telefone, emocionada, sem antever nenhuma sombra da polêmica que a nota distorcida da “Folha” iria provocar em poucas horas.

Na entrevista, Bethânia contou detalhes do projeto e recordou onde e como tudo começou. Depois do sucesso da apresentação inédita em 2010 no auditório da Reitoria da UFMG, quando leu poemas de seus autores preferidos, ela havia seguido com o projeto para a Casa do Saber e para a PUC, no Rio de Janeiro, para o Itamaraty, em Brasília, durante o Encontro Mundial dos Países de Língua Portuguesa, e depois para a Casa Fernando Pessoa, em Portugal, como retribuição à Ordem do Desassossego que recebeu, junto com Cleonice Berardinelli, por ser, no Brasil, uma das maiores divulgadoras do legado de Fernando Pessoa.






No espetáculo que teve estreia em 18 de março de 2011, em Belo Horizonte, no Teatro Dom Silvério – e que na sequência seguiria para teatros de outras capitais, todos com breves temporadas e ingressos esgotados com muita antecedência – ela trabalhou em colaboração com Hermano Vianna e Elias Andreatto. No dia da estreia em BH, Bethânia já estava no olho do furacão por conta da polêmica – talvez por isso tanta emoção concentrada na intérprete e em cada um que estava na plateia.

Acompanhada ao violão por seu maestro e arranjador Jaime Alem, com quem trabalha desde a década de 1980, e pelo percussionista Carlos César, Bethânia reuniu um roteiro de algumas canções pouco usuais em seu repertório e uma vastidão de textos especialíssimos de poetas e escritores como Guimarães Rosa, Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Caetano e Ferreira Gullar, entre outros autores nacionais, além do moçambicano José Craveirinha e dos portugueses Padre Antônio Vieira, Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner Andersen e, claro, Fernando Pessoa.

Pessoa é a minha tradução mais fiel”, confessou Bethânia, ao telefone. Era minha segunda entrevista com ela. A primeira tinha sido em 2001 e foi publicada pelo jornal “O Tempo”, também de Belo Horizonte. Na época, dez anos antes, ela tinha anunciado uma decisão radical: recordista de vendas entre os nomes da MPB, ela estava se desligando das grandes gravadoras e assinando contrato com a independente Biscoito Fino, propriedade de Olivia Hime e Kati Almeida Braga. O disco que marcava sua estreia na nova gravadora era o duplo “Maricotinha ao vivo”, que também comemorava seus 35 anos de carreira e trazia regravações de seus grandes sucessos.













Betha, Betha, Bethânia: acima, a partir do
alto, Bethânia na casa da mãe, Dona Canô,
em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano;
no palco, no show Rosa dos Ventos, em
1971; aos 19em fevereiro de 1965, quando
chegou ao Rio de Janeiro para substituir às
pressas Nara Leão no espetáculo Opinião;
e em Porto Alegre, em 1966, antes do show
Opinião no Teatro Leopoldina, distribuindo
autógrafos na Galeria Malcon, em
fotografia de Assis Hoffmann.

Abaixo, com o irmão Caetano Veloso no
Festival Internacional da Canção, em 1966,
apresentando a canção Beira Mar, de Caetano
e Gilberto Gil; e com Jerry Adrianiídolo da
Jovem Guardae as irmãs Nara e Danusa Leão.
Também abaixo, Bethânia com Elis Regina, em
1970, na casa em que Elis morou com o
marido Ronaldo Bôscolina Avenida Niemeyer,
no Rio de Janeiro, em foto de Kaoru Higuchi
para a revista MancheteBethânia com
Luís Melodia, Gal Costa, Nara Leão,
Odair José e Caetano em 1973, fotografados
por Antonio Guerreiro; com Osmar Prado,
galã da TV (na novela "Bicho do Mato", da
Rede Globo), em julho de 1972, na reportagem
de capa da revista "Intervalo"e Bethânia no início
dos anos 1970 em fotografia que ilustrou uma
célebre e polêmica entrevista da cantora feita
por Ronaldo Bôscoli e publicada
pela revista "Manchete" 
























Águas e mágoas



Neste mundo de corre-corre, toda poesia é um desafio, mas também é uma ideia que comove e atrai. Pelo menos para mim e para muita gente que conheço e admiro, a poesia é assunto de primeira necessidade”, disse Bethânia pelo telefone, às vésperas de ver deflagrado o circo de horrores na mídia por conta da nota distorcida publicada na “Folha”. Aquela seria sua única entrevista em muitos meses: assim que a polêmica explodiu, ela se recusou a falar com jornalistas e não foi a público se defender. Com a serenidade dos mártires, preferiu o silêncio.

Não quero julgar o valor de um ou outro escritor ou poeta nem comparar a qualidade dos textos, mas Fernando Pessoa é quem foi mais fundo na palavra em língua portuguesa. Para mim, ele é sempre uma descoberta. Mas também tem os mineiros. Rosa, Drummond, Minas não acaba nunca, são águas e mágoas, como dizem sobre o rio São Francisco”, explicava com calma Bethânia no decorrer da entrevista, que durou quase uma hora, entre pausas, encantada com os caminhos do novo projeto.









Caetano, Gal, Gil e Bethânia fotografados
no início da década de 1970, quando Caetano
e Gilberto Gil voltaram da temporada no exílio,
em Londres, imposta pela ditadura militar.
Os quatro amigos, que formariam em 1976
o grupo Doces Bárbaros, estrearam juntos
em agosto de 1964, no espetáculo
Nós, Por Exemplo”que inaugurou
o Teatro Vila Velha em Salvador.

Abaixo, Bethânia em um editorial de moda
em 1968; na polêmica entrevista que
concedeu à equipe do jornal "Pasquim",
em 1971; e com o amigo Jards Macalé
em Copacabana, em 1967, quando
Macalé começou sua carreira musical
como violonista e diretor musical dos
primeiros shows de Bethânia nos
palcos do Rio de Janeiro

















Com sua simplicidade e serenidade que encerram uma carga dramática impecável, Bethânia recitava ao telefone um ou outro verso de cada autor que enumerava ou destacava no repertório do show. A carga de emoção e a capacidade de emocionar as plateias com palavras e canções fizeram dela uma referência mítica e mística desde a estreia, em fevereiro de 1965, quando aos 19 anos chegou às pressas no Rio de Janeiro, vinda da Bahia, para substituir Nara Leão em “Opinião”, espetáculo de protesto e de resistência à ditadura militar. Produzido por artistas ligados ao Centro Popular de Cultura da UNE (CPC), “Opinião” intercalava canções e textos de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, com direção de Augusto Boal.

Naquele mesmo ano da estreia em “Opinião” ela gravaria seu primeiro disco, "Maria Bethânia" (Sony/RCA) e ganharia a atenção popular com os sucessos de “Carcará” e “Mora na Filosofia”. No ano seguinte, lançaria um disco dedicado às canções de Noel Rosa, compositor que naquela época andava esquecido e relegado a um lugar distante entre outros gigantes da música brasileira. 

Desde então, a trajetória de Bethânia teve dezenas de discos e vários recordes, incluindo a superação de um marco antes só atingido no Brasil pelo rei Roberto Carlos: mais de um milhão de cópias vendidas em um único LP, com "Álibi" (Polygram, 1978). Os recordes de vendagens ela conseguiu manter com outros lançamentos durante a década de 1980 e, ainda hoje em dia, mesmo com a alardeada crise do mercado fonográfico e com a concorrência cerrada da pirataria, as vendas dos CDs e DVDs de Bethânia sempre alcançam números surpreendentes.  









Doces Bárbaros: Gilberto Gil, Gal Costa,
Caetano Veloso e Maria Bethânia fotografados
no palco, em 1976, por Jom Tob Azulay.
Abaixo, os Doces Bárbaros, também em 1976,
fotografados por Walter Firmo para o encarte
do LP com o registro do show. Abaixo, capa
do LP Rosa dos Ventos, gravado ao vivo
durante o emblemático show de 1971; e com
Vinicius de Moraes em fotografia de 1972.

Também abaixo, Gal Costa, Bethânia e
Rita Lee em 1979, nos bastidores do
programa "Mulher 80", transmitido pela
TV Globo; com Alcione, Gonzaguinha e
Clara Nunes em 1979, no aniversário de
Alcione, fotografados por Thereza Eugênia;
Bethânia com Fernanda Montenegro
e Chico Buarque em 1990, uma das
imagens selecionadas pela fotógrafa
Cristina Granato para seu livro Um Olhar
sobre a Música Brasileira; com a escritora
Cleonice Berardinelli em março de 2010,
quando ambas receberam a medalha da
Ordem do Desassossegoatribuída pela
Casa Fernando Pessoa, de Portugal;
e Bethânia com Mãe Menininha do Gantois
em Salvador, em fotografia de 1982
de Arestides Baptista










Depois de comentar passagens da carreira desde o Tropicalismo e da turnê dos Doces Bárbaros, em que dividiu o palco com Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso, chegamos aos projetos mais recentes e pergunto sobre as origens e o roteiro do espetáculo “Bethânia e as Palavras”. Ela elogiou o "resumo da ópera" que traçamos durante a entrevista e reconheceu que o novo espetáculo teria um roteiro que só estaria completo em cena, diante da plateia, a partir da noite de estreia em Belo Horizonte, no Teatro Dom Silvério.



Um mistério e uma surpresa



“Sobre este espetáculo eu ainda tenho dúvidas", ela explicava, pelo telefone. "Era Bethânia e a Poesia, depois preferimos Bethânia e as Palavras. O roteiro foi muito pensado, mas na cena ao vivo tudo depende do dia, tudo depende da plateia, porque as plateias mudam muito de um lugar para o outro, de um dia para o outro. Mas é sempre um mistério e uma surpresa. Minha experiência de muitos e muitos anos lidando com as plateias mais diferentes de cada lugar me diz que a chave do espetáculo depende não apenas de quem está em cena. Também depende muito de quem está ali, presente, na plateia”.


























Quando, já no final da entrevista, perguntei seu público em Minas Gerais e sobre os mineiros, Bethânia desfilou elogios, lembrando outros espetáculos, outras datas, nomes e lugares de Belo Horizonte que foram para ela marcantes nas últimas décadas. Destacou especialmente o recital de poemas apresentado na Reitoria da UFMG, um ano antes, que teria aberto pela primeira vez essa possibilidade que ela acalentava há tempos, sem que tivesse ocasião para apresentar somente a poesia, deixando as canções em menor destaque, em segundo plano. O convite e o destaque para a poesia, segundo Bethânia, vieram de desdobramentos de conversas e da amizade com professores da universidade, que ela definiu como “gente iluminada”.

Este espetáculo de poesia estreou aí em Belo Horizonte não por acaso. Estava escrito”, ela diz, entre pausas e comentários bem-humorados. “Com os mineiros minha expectativa é sempre das melhores. Os mineiros têm o silêncio, a demonstração de respeito. Os mineiros têm um passado de uma história linda, que construiu o sentimento de um Brasil do futuro. Os mineiros vêm do isolamento das montanhas. Minas é sertão, silêncio e fé, como dizia Guimarães”...


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Betha, Betha, Bethânia. In: Blog Semióticas, 13 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/betha-betha-bethania.html (acessado em .../.../...).









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