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15 de maio de 2012

Estilo Crumb






Desisti de ser um grande desenhista, porque, quando ainda
estava na escola, percebi que o formato havia ficado travado,
cheio de fórmulas, preso a padrões muito rígidos e comerciais.
Eu acreditava que eu era completamente inadequado a padrões.

–– Robert Crumb.    



Descobri a arte do norte-americano Robert Crumb quando eu era menino, em Barbacena, no interior de Minas Gerais. Meu tio assinava duas revistas na época de difícil acesso, “Mad” e “Grilo”, e tive o privilégio de ser o segundo leitor assim que cada exemplar chegava pelo correio. Tempos depois, também encontrei aqueles traços característicos do Crumb, estranhos e bem-humorados, nas capas dos discos de Janis Joplin e de mestres do blues. Mas demorou até que eu encontrasse suas HQs em livro. Demorou, mas aconteceu: algumas das melhores obras de Crumb agora estão publicadas no Brasil.

Entre suas obras-primas mais recentes está uma adaptação da Bíblia Sagrada: o mais genial e iconoclasta dos cartunistas em atividade, hoje aos 69 anos de idade, ousou levar para o mundo dos quadrinhos o Gênesis, primeiro livro da Bíblia, que narra a criação do mundo e a história de Adão e Eva. Mas a surpresa sobre sua nova investida vai se dissipando quando o leitor percebe que o Gênesis traz desde a Antiguidade alguns dos ingredientes que fizeram a fama de Crumb nas últimas décadas.





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A arte de Robert Crumb: no alto,
ilustração da capa de Blues. Acima,
ilustração para Adão e Eva, a capa e a
contracapa da edição em inglês de Gênesis.

Abaixo, uma amostra do traço de Crumb
para uma cena bíblica em Gênesis;
a capa da edição em espanhol; e a
sisuda e recatada capa da edição
nacional de Gênesis, lançada pela Conrad







"Se minha interpretação visual e literal do livro do Gênesis ofender ou ultrajar alguns leitores", escreveu Crumb na apresentação, "o que parece inevitável dada a reverência de tantas pessoas por ele, tudo o que posso dizer em minha defesa é que abordei isto como um trabalho de pura ilustração, sem intenção de ridicularizar ou fazer piadas visuais". A ressalva do autor é, no mínimo, sincera, porque o Deus todo-poderoso do judaísmo e do cristianismo, como não poderia deixar de ser, é o protagonista destacado no Gênesis segundo Crumb.

Mas no traço do cartunista, que nasceu em uma família católica, trata-se de um Deus vingativo, carregado de raiva e com longos cabelos e barbas. Crumb também confessa que uma noite, há muitos anos, sonhou com a figura exatamente como ela aparece retratada, antes mesmo de pensar em fazer sua versão em quadrinhos para o texto da Bíblia Sagrada. Sem pestanejar, esse Deus comete dois genocídios no intervalo de poucas páginas – um durante o Dilúvio que tem Noé como protagonista, no episódio da arca da salvação; outro na chuva de fogo implacável que vem dizimar as cidades de Sodoma e Gomorra.

Crumb também recria toda aquela sucessão de incestos, sacrifícios, inveja e misoginia que os judeus veneram na Torá e os cristão fundamentalistas idolatram no Antigo Testamento. Ele diz que dedicou cinco anos de trabalho diário para concluir a adaptação e, na breve introdução ao livro, destaca que tentou ser muito respeitoso com as crenças religiosas milenares.



Gênesis e Blues



Se minha interpretação literal e visual do Gênesis ofende alguns leitores”, alerta, “em minha defesa só posso dizer que me aproximei dele como um trabalho meramente ilustrativo, sem intenção de ridicularizar nada nem fazer brincadeiras visuais”. O lançamento de “Gênesis” aconteceu simultaneamente em 20 países, incluindo o Brasil, precedido pela publicação de trechos na revista mais influente dos EUA, a “The New Yorker”, que tem Crumb em seu elenco de colaboradores. 

 







A estratégia de lançamento levou “Gênesis” para as listas dos mais vendidos, um feito raríssimo para uma publicação em quadrinhos. Além do “Gênesis”, Crumb agora está disponível nas livrarias brasileiras com alguns de seus álbuns especialíssimos, publicados pela editora Conrad, incluindo, entre outros, “Minha Vida”, “Blues”, “América”, “Meus Problemas com as Mulheres”, “Fritz, the Cat” e “Mr. Natural”.

Há ainda “Kafka de Crumb”, que além dos desenhos do cartunista traz texto de David Zane Mairowitz. Os álbuns de Crumb editados pela Conrad não chegam a ser uma HQ e nem um livro propriamente dito, mas flutuam entre ambos. Assim como os outros clássicos de Crumb, “Kafka” traz resumos, análises e seus desenhos característicos – no caso, imagens que traduzem “A Metamorfose”, “Na Colônia Penal”, “O Processo” e “O Castelo”, entre outros escritos de Kafka, considerado por muitos o nome mais fundamental da literatura do século 20. 

 







Além dos álbuns de HQ, a arte do cartunista também é celebrada em um documentário antológico – “Crumb”, produzido por David Lynch e dirigido por Terry Zwigoff em 1994. O filme reúne imagens de arquivo, charges e depoimentos – do próprio Crumb e de seus amigos e parentes. Há cenas impagáveis, como o irmão descrevendo rituais inacreditáveis ou Crumb imitando Janis, que lhe disse: “Oh, Robert, precisa deixar o cabelo crescer, botar uma bata, calça boca-de-sino. Tá muito caretão”. Crumb conta e se diverte – como virginiano, ele prefere os uniformes: as mesmas roupas no mesmo estilo.



Bizarro e politizado



O humor mais bizarro e politizado de Crumb aparece por inteiro em “Minha Vida”, autobiografia em quadrinhos que mantém a contestação gaiata que fizeram dele uma lenda entre os clássicos imbatíveis da era do rock. Imagens e piadas visuais, ideias ousadas e uso diversional de sexo e alucinógenos, que ele vem burilando desde o final dos anos 1950, contra o pior conservadorismo, revelam em “Minha Vida” as experiências confessionais do autor e constroem seu melhor melhor personagem: ele mesmo.









Com doses generosas de muita sinceridade, muito humor negro e nenhuma concessão à moral vigente na indústria cultural, “Minha Vida” encadeia histórias publicadas do começo dos anos 1970 a 1994, incluindo cartuns, autorretratos, narrativas mais extensas e outras de poucas páginas ou até de apenas um quadro, tanto em preto-e-branco como no mais lisérgico colorido. Seu traço febril, distorcido, genial e demolidor, explode em sarcasmo subversivo contra tudo e contra todos.

Em “Minha Vida”, Crumb fala de si com nenhuma piedade, enumerando seus melhores ataques contra a hipocrisia, mais os escândalos e muitos problemas com a justiça nos Estados Unidos, que o levariam por fim ao exílio na Europa na última década. Em 2010, quando esteve no Brasil como convidado especial da Flip – a Feira Literária de Paraty – Crumb surpreendeu a todos na entrevista coletiva: disse que viajou meio a contragosto e que só aceitou o convite depois de muita insistência da esposa, a também cartunista Aline Kominsky. 










Robert Crumb mora com a esposa e a filha desde 1991 na França e, neste autoexílio, passa a maior parte do tempo ouvindo discos antigos, lendo e desenhando. Além da dedicação à sua versão do Gênesis, nos últimos anos ele também vem produzindo projetos por encomenda e histórias curtas para jornais e revistas, incluindo a “The New Yorker” e a “W”, especializada em moda e comportamento.

Para a “W”, uma das criações recentes de Crumb foi a retrospectiva em capítulos sobre a trajetória feminina através dos séculos, seguindo das agruras das mulheres no tempo das cavernas até maquinações mais atuais e espúrias de personagens estranhos como Lyndee England, aquela militar norte-americana que, em 2003, foi fotografada torturando prisioneiros no Iraque. Crumb e seu humor são implacáveis.






 

Literatura, jazz e rock'n'roll



Jazz, blues, rock'n'roll e altas literaturas permeiam cada quadro na narrativa de “Minha Vida”, entre passagens de estilo gráfico surpreendente, breves, inconformistas. O mundo característico de Crumb e sua bizarria fornecem o fio condutor a cada traço em fragmento confessional, intercalados por poucas páginas de textos, algum trecho de entrevista e uma ou outra anotação circunstancial.

A síntese da contracultura passa pelo imaginário que Crumb retrata nos quadrinhos. Em “Minha Vida”, esta síntese inclui a infância católica em subúrbios protestantes na Philadelphia (onde ele nasceu, em 30 de agosto de 1943), a escola sempre repressora, a família substituída na adolescência pelas experiências quando foi morar com o irmão mais velho (que o levariam em definitivo ao mundo da música, da libido à flor da pele e da psicodelia), os primeiros desenhos publicados, os hippies de San Francisco, os esoterismos e as manias de estrelas do pop-rock.















Enquanto “Minha Vida” carrega saborosas confidências autobiográficas, as mais antológicas lendas do blues, do jazz, do rock'n'roll e das origens da música popular na América do Norte estão reunidas em “Blues”, outra obra-prima do cartunista que ganhou da Editora Conrad uma edição das mais caprichadas. Detalhe: de acordo com o próprio Crumb, a versão brasileira é melhor e mais completa que a edição original em inglês.

Com bela encadernação em capa dura e colorida, “Blues” inclui – além dos casos mais surpreendentes sobre as origens da música na América, seus personagens principais, as bebedeiras, a vida na zona rural, os cantores cegos, a discriminação racial e os pactos nas encruzilhadas – todas as histórias em HQs, cartuns e tirinhas “musicais” criadas por Crumb, mais as belas capas de disco que ele produziu, as filipetas de culto dos colecionadores, os anúncios publicitários e os cartazes de shows que marcaram época.







No alto, retratos de Crumb, um autorretrato
e uma página inteira extraída do álbum

"Uma breve história da América",
no qual a arte de Crumb traduz a passagem
do tempo, como se fosse uma câmera fixada
no horizonte, registrando as mudanças e
destruições provocadas pelo estúpido modo
de vida do capitalismo selvagem.

Acima e abaixo, i
magens extraídas de "Blues",
álbum que, na edição brasileira, reúne as
lendas
mais antigas do blues, do jazz
e do
rock'n'roll recriadas por Crumb,
incluindo os casos mais surpreendentes
sobre as origens da música popular
na América do Norte, seus personagens
principais e os shows que marcaram época








Crumb é impressionante. Seu traço característico, sujo, algo disforme, com formas grotescas que denunciam a proximidade com o universo das drogas alucinógenas, definem também o que de melhor a cultura underground produziu nas últimas décadas. Como apresenta muito bem o ensaio “Faróis da Eternidade”, de Rosane Pavam, que abre a edição nacional de “Blues”:

Crumb viu o sonho da liberdade nascer e escapar. Assistiu à decretação da morte de tudo – da religião, do cinema, da música, da dança – mas não a desejou. Libertar é diferente de matar, e o trator de Crumb passou sobre as senzalas suave-mente, bem raciocinado”.

Foi na década de 1960 que Crumb surgiu como referência da contracultura, com os baluartes de seus cartuns cáusticos que questionam valores. Sua arte se mantém assim desde aquela época, quando revolução era a palavra de ordem: seus traços de humor negro abalaram tabus, desmascararam falsidades puritanas, revelaram obsessões sexuais e, em “Blues”, reverenciam e criticam a “evolução” da música popular no decorrer do último século.










Janis Joplin e seu amigo Robert Crumb 
o cartunista presenteou Janis com várias
homenagens em quadrinhos, incluindo as
capas e encartes de dois discos antológicos:
I Got Dem ol'Kozmic Blues Again Mama,
de 1969, e Cheap Thrills, de 1968. Abaixo,
um encontro de Janis com Crumb em 1969;
a homenagem de Crumb para Janis em
Blues; o cartum para Robert Johnson,
também em Blues; e dois cartuns da série
The Mind Boggles incluídos em
Mr. Natural (1977) e publicados
no Brasil no final dos anos 1970
pela revista Grilo













De Robert Johnson a Monty Python



Robert Johnson, uma das figuras mais lendárias e enigmáticas da música das primeiras décadas do século 20 está presente em “Blues”, em destaque, assim como Furry Lewis e a galeria dos bluesmen que assombraram os conservadores e criaram os fundamentos do rock e da cultura negra dos EUA que depois se espalharam pelo mundo. Howlin'Wolf e seus pares também são retratados, com Jimi Hendrix que alucina e leva junto a sacerdotisa do rock, miss Janis Joplin. Ela ganharia do amigo Crumb várias homenagem em cartuns e quadrinhos e duas capas antológicas: “I Got Dem ol'Kozmic Blues Again Mama” (1969) e “Cheap Thrills” (1968).

Aclamado como gênio e revolucionário, Crumb nasceu em uma família de cinco irmãos na Philadelphia e começou a desenhar ainda na primeira infância. No documentário dirigido por Terry Zwigoff, ele confessa que o motivo da estreia nas HQs aconteceu por insistência do irmão mais velho, Charles, que também o iniciou em certos hábitos bizarros envolvendo sexo, mulheres, política, drogas, literatura e muita música.






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O hobby dos cartuns virou ganha-pão em 1962, quando Crumb se tornou ilustrador da “American Greetings” e da “Help”. Depois viriam os contratos que alcançaram maior público com a revista “Mad”, outros projetos os mais diversos em áreas idem e, claro, as charges e as HQs mais marcantes da contracultura em todo o planeta. Até o final dos anos 1960, a arte de Crumb estaria restrita ao universo da contracultura, do blues e do rock. Mas isso começou a mudar quando ele lançou “Fritz, the Cat”.

Nesta série, as histórias se passam numa grande cidade habitada por animais antropomórficos, sendo que o gato Fritz é o personagem principal. Muito calmo, entregue à preguiça e ao lado mais hedonista da vida, com algumas tendências artísticas, Fritz sempre se vê envolvido pelo acaso com personagens alucinantes em aventuras selvagens, nas quais vai encontrando as mais diversas experiências sexuais.








Fritz apareceu em histórias desenhadas por Crumb quando criança e viria a se tornar o mais famoso dos seus personagens. As tiras e cartuns com o gato primeiro foram publicadas nas revistas “Help!”, “Cavalier” e “Mad”, mas como elas foram se tornando cada vez mais explícitas, Crumb teve que migrar com seu personagem para revistas mais undergrounds. Depois chegaram com sucesso às eróticas “Playboy” e “Hustler”, nas décadas de 1960 e 1970.

Em 1972, o ponto alto da popularidade: “Fritz, the Cat” foi transformado em filme de animação pelo diretor e roteirista Ralph Bakshi. Com a venda dos direitos sobre seu personagem, Crumb conquistou fama e fortuna e também mais perseguição pela censura. “Fritz” foi o primeiro desenho animado a ser classificado com o código X (impróprio para menores), mas também é considerado um dos filmes independentes de maior sucesso comercial de todos os tempos.

O sucesso e o escândalo de “Fritz, the Cat” ainda ganhariam um capítulo inesperado no final de 1972, quando Crumb publicou uma história que pôs fim à trajetória de seu personagem mais famoso: depois de uma última orgia, Fritz é assassinado por uma ex-namorada. Com Crumb é sempre assim: o banal, o comum, o imprevisível e o humor insano de pequenas bobagens cotidianas fornecem um arsenal de piadas visuais com ares libertários.








Reconhecido como influência ou guru de grandes nomes da cultura pop, Crumb tem legiões de pupilos notáveis. Entre eles, astros e estrelas do rock, do blues e do jazz, jornalistas, escritores e midas da tecnologia como Steve Jobs e Bill Gates, além de Harvey Kurtzman, criador e editor da revista “Mad”, e Terry Gilliam, um dos mentores do grupo de comediantes ingleses do lendário Monty Python. Não é pouco.

Líder mundial do movimento underground, entretanto, é um título que Crumb sempre rejeitou. Prefere ser líder de coisa nenhuma, em suas investidas contra o moralismo e as hipocrisias que encontramos aqui e ali. Alguém já disse, não me lembro quem: ao ler Crumb, é o sol que finalmente brilha em nossa porta dos fundos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Estilo Crumb. In: Blog Semióticas, 15 de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/estilo-crumb.html (acessado em .../.../...).



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22 de fevereiro de 2012

Presente verde-amarelo







No mundo da ilustração, muitos acham que o ilustrador 
é artista plástico. Eu discordo. O ilustrador é um escritor. 
Só que o seu instrumento de escrever é o desenho. 
O ilustrador é um escritor de imagens
––  Odilon Moraes.   

 

Em um de seus célebres ensaios, o francês Roland Barthes (1915-1980) interroga o leitor sobre as competições esportivas que, ele recorda, são espetáculos que vêm de outras eras, herdados de épocas ancestrais, resquícios dos antigos sacrifícios religiosos. "Que necessidade têm esses homens de atacar? Por que ficam perturbados diante desse espetáculo? Por que dão tudo de si? Por que esse combate inútil? O que é o esporte?"  questiona o pensador.

O próprio Barthes encontra a resposta, na frase seguinte, segundo a qual o esporte remete sempre a outra pergunta – quem é o melhor? – e dá novo sentido à questão dos antigos duelos. "Quem é o melhor para vencer a resistência das coisas, a imobilidade da natureza? Quem é o melhor para trabalhar o mundo e oferecê-lo a todos os homens? Eis o que diz o esporte. O esporte é feito para relatar o contrato humano", professa a sabedoria de Barthes.

Escrito em 1961 e mantido inédito em português até 2009, quando foi publicado no terceiro número da revista "Serrote", do Instituto Moreira Salles (IMS), o ensaio de Barthes, intitulado "O que é o esporte?", destaca aspectos mitológicos e cotidianos das arenas esportivas, nas quais o homem não enfrenta diretamente o homem: há entre eles um intermediário, algo que está em jogo na cerimônia da disputa, algo que pode ser máquina, pode ser disco, pode ser bola.












No caso brasileiro, entretanto, o que faz do futebol um esporte nacional? O ilustrador, pintor e escritor Odilon Moraes enfrenta a questão e busca a natureza mitológica do mais nacional dos esportes criando uma sequência de imagens que seduz e encanta até mesmo os pequenos leitores ainda não alfabetizados. A resposta do ilustrador e contador de histórias é construída pela simplicidade de um fragmento de memória da vida cotidiana de um garoto comum representada de forma muito pouco usual.



O traço azul do lápis



Sem nenhuma palavra – apenas com o traço azul do lápis que preenche com cores verde-amarelas camisas da seleção e bandeirinhas brasileiras – Odilon Moraes constrói, nas 48 páginas do livro-imagem "O Presente" (editora Cosac Naify), uma sequência de reminiscências da infância que deixa em destaque uma vivência comum a gerações e gerações de brasileirinhos: a descoberta da paixão pelo futebol.

"Meu livro é uma mistura de várias referências, principalmente minhas próprias memórias de infância e as experiências vividas com as primeiras Copas do Mundo assistidas pela TV", explica Odilon, respondendo à pergunta que fiz para esclarecer minha suspeita de que "O Presente" contava uma história autobiográfica de algum momento da infância do autor, um paulista que nasceu na capital, em 1966, mas passou a infância e a adolescência em Tanabi e outras cidades do interior paulista.







"Meu pai comprou a primeira TV a cores depois da Copa de 1974. Mas assistimos aos jogos do Brasil na casa de um amigo dele. Foi inesquecível, apesar das imagens cheias de chuviscos e de fantasmas", ironiza o autor, na breve entrevista que fiz com ele por telefone. Depois que confesso que "O Presente" me fez lembrar de minha própria infância, com os mesmos cenários e personagens, Odilon resgata na conversa ou ou outro caso curioso que permaneceu gravado em suas lembranças de criança e conta que tem dois filhos pequenos, de quatro e de um ano de idade, que atualmente fazem as vezes de primeiros leitores do pai escritor e ilustrador.

"Como toda arte e toda literatura, 'O Presente' é um apanhado de várias verdades para formar uma ficção", define. A opção pela ausência de palavras no livro, ele reconhece, nasceu da atividade profissional que o leva no dia a dia a ilustrar textos de outros autores. "A experiência me fez perceber que o desenho conta coisas diferentes da palavra, assim como as palavras dizem coisas que a imagem sozinha às vezes não consegue traduzir", explica.

Ele também acredita que um livro ilustrado, sem palavras, destaca melhor o poder que a imagem tem, inclusive de transformar a palavra. "Mesmo em um livro ilustrado em que há palavras, acontece este poder quase mágico da transformação da realidade. Você vê a palavra e entende uma coisa, olha a imagem entende outra, e vice-versa. A grande riqueza é esse jogo entre palavras e imagens e isso significa interdependência", ressalta o autor, com o conhecimento de causa de quem é também o ilustrador.

Segundo Odilon Moraes, a forma de narrativa do livro ilustrado traduz a maneira como compreendemos o mundo. "A gente não compreende o mundo apenas pelas palavras. A gente compreende o mundo pelas palavras e pelas imagens. O leitor precisa se sujeitar a essa dupla orientação, uma coisa contada pela imagem e outra pela palavra, que muitas vezes não se cruzam. Mesmo quando querem contar a mesma coisa, são coisas contadas de forma diferente", completa.







Formado em Arquitetura, Odilon Moraes estreou como autor em 2002, com "A Princesinha Medrosa", relançado pela Cosac Naify em 2009. Depois vieram "Pedro e Lua" (2004) e o livro-objeto "Ismália" (2006), criado a partir do poema de Alphonsus de Guimaraens. Recebeu prêmios de melhor livro do ano pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e também ilustrou "O Homem que Sabia Javanês" (2003), de Lima Barreto, "O Presente dos Magos" (2004), de O. Henry, e "Será o Benedito!" (2008), de Mário de Andrade, entre outros. 



O melhor caminho 



Ele também faz questão de ressaltar que nem sempre o livro ilustrado é literatura infantil. "A literatura infantil existiu antes do livro ilustrado. Existiam histórias para crianças, mas eram os pais ou os adultos que liam para elas. A partir do final do século 19 é que surge o livro-brinquedo, o livro que é criado para ser manuseado pela criança. O próprio fato de usar a imagem como narrativa é uma derivação do universo da criança, assim como imagens coloridas, pouco texto, imprevisibilidade na exploração do objeto. Então, podemos dizer que o livro ilustrado nasce dentro desse pensamento do livro-brinquedo, onde desponta uma curiosidade, que é a ilustração passar a ser um trilho para construir histórias".











Ilustrações de Odilon Moraes: acima,
o autor trabalhando em "mesa de luz"
para o projeto do livro O Presente.
Também acima, imagens extraídas
de seus livros Será o Benedito! e
O Homem que Sabia Javanês.

Abaixo, a capa da primeira edição
de A princesinha medrosalivro de
estreia do autor, que além de ilustrar,
também escreveu o texto, conquistando
prêmio de Melhor Livro para Crianças,
concedido em 2002 pela FNLIJ. Também
abaixo, e nas ilustrações a partir do alto
da página, imagens de O Presente









Na atualidade, alguns autores dizem que o livro ilustrado é literatura pós-moderna, porque congrega vários elementos: a imagem, a palavra e às vezes o objeto. Minha teoria é que, pelo fato de o livro ilustrado ter nascido dentro da literatura infantil, guarda-se o território da criança, da experimentação. Mesmo se há um adulto que fala 'não faço livro ilustrado para criança', na verdade ele está se utilizando de recursos do universo infantil que foram muitos expressivos", ele explica, sempre tendo como exemplo seu próprio trabalho como autor e ilustrador.
  
"Não basta uma boa ideia ou uma bela imagem. É preciso desenvolver esta ideia em etapas e criar uma sequência", ele diz, referindo-se à experiência de vida transformada nas imagens de "O Presente". No livro, o garoto protagonista tem uma frustração ao assistir aos jogos da Copa do Mundo pela TV, vestindo a camisa verde-amarela que ganhara do pai. Mas ele alcança a superação através do próprio jogo, quando é convidado para uma "pelada" com os amigos. Trata-se de um livro sobre futebol, mas que também alcança questões mais profundas sobre amizade, lembranças e amadurecimento

Na origem de “O Presente”, o autor confirma, estão muitas de suas lembranças da infância. “Pensei em datas que marcam as pessoas. Por exemplo, em todo Natal você se lembra no do ano passado, e pensa em como será o próximo... E com a Copa do Mundo ocorre algo semelhante. Quando comecei a fazer o livro, me vi refletindo sobre isso, e pensei no meu filho pequeno, João. Aí me veio à cabeça uma lembrança muito especial da primeira Copa que me lembro de ter assistido com atenção”.

Trabalhando como ilustrador desde 1989, ele diz que foi de certa forma influenciado pelo pai, que sempre pintou, e que um dia, quando resolveu levar seus desenhos a uma editora, pouco antes de se formar em Arquitetura, conseguiu mudar toda a sua vida. Sobre seu ofício como autor e como ilustrador, ele confessa: "Hoje sei que o melhor caminho é desenhar quando não consigo escrever e escrever quando não consigo desenhar".



























A infância do autor



Ele recorda que o ponto de partida para criar o livro foram suas memórias sobre a Copa do Mundo de 1974, que assistiu pela TV. “Eu morava no interior e meu pai me levou pra ver uma partida na casa de um amigo, o primeiro cara que tinha televisão em cores na cidade. O que mais me lembro é que ninguém conseguia assistir direito ao jogo porque a TV era mal regulada e só víamos uma coisinha amarela passando para lá e para cá, uma mancha amarela que eram as camisas da seleção. Só depois da Copa meu pai conseguiu comprar nossa primeira TV em cores”.

A experiência da infância do autor conseguiu gerar uma obra das mais especiais sobre a paixão de muitos brasileiros pelo futebol. Como escreve Tales Ab'Sáber, que assina o texto da contracapa do livro, o futebol é "uma das mais complexas formações que a cultura e a sociedade brasileira foram capazes de produzir. O despertar do amor ao futebol se confunde com o despertar da própria consciência de si".

Traduzindo algumas de suas memórias de infância na simplicidade e na beleza de um livro sem palavras, Odilon Moraes tematiza o futebol com o que ele tem de tristeza e alegria, frustração e surpresa. A partir de suas próprias lembranças, como acontece sempre na grande arte da literatura, ele compõe um presente de fato muito especial para crianças e para adultos de todas as idades: uma história que comove com seu texto invisível porque incorpora muito afeto desenhado em verde, amarelo, azul e branco.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Presente verde-amarelo. In: Blog Semióticas, 22 de fevereiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/02/presente-verde-amarelo.html (acessado em .../.../...).



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Odilon Moraes no estúdio de trabalho,
fotografado por Nino Andrés





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