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5 de outubro de 2011

Humor romeno





O cérebro é o meu segundo órgão favorito.
(My brain: it's my second favorite organ.)

 ....–– Woody Allen, no papel de Miles Monroe,
em cena de “Sleeper” (O Dorminhoco). 


Brevidade, poesia e humor – indicadores por excelência das qualidades gráficas – são características que servem como uma luva para definir o trabalho do ilustrador Saul Steinberg (1914-1999), conhecido no mundo inteiro por conta de seus trabalhos publicados durante décadas na revista norte-americana "The New Yorker". Tidas como difíceis para o senso comum, burguesas, surreais e muitas vezes impenetráveis, as ilustrações e charges da revista tiveram no trabalho do artista nascido na Romênia um de seus principais baluartes. Hoje, é difícil separar a arte de Steinberg da identidade visual que a “The New Yorker” representa.

Uma amostra sofisticada da arte de Steinberg chegou ao Brasil através de um livro que reúne seus desenhos e textos memorialistas. Também recentemente uma exposição prestou tributo ao artista romeno, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro em parceria com a Pinacoteca do Estado de São Paulo. O livro de Steinberg recebeu no Brasil o título "Reflexos e Sombras" (IMS), enquanto a exposição "Saul Steinberg: As aventuras da linha" vai reuniu os originais de 111 desenhos feitos entre os anos 1940 e 1960, época em que o artista, atuando como designer gráfico e cartunista, passou a colaborador da "The New Yorker" (a revista começou a publicar seus desenhos em 1941) e começou a despontar como artista internacional.

















A mostra no IMS, com curadoria a cargo da historiadora Roberta Saraiva, apresenta uma seleção da arte produzida por Saul Steinberg que vem do acervo da fundação que gerencia seu legado (a Saul Steinberg Foundation, com sede em Nova York), incluindo obras que foram restauradas recentemente e também trabalhos em formatos incomuns, entre eles quatro desenhos em rolos de papel feitos por Steinberg para a Trienal de Milão, Itália, de 1954. São desenhos murais de formato ousado e proporções arquitetônicas. O maior, "The Line", tem 10 metros de comprimento. Os murais nunca haviam sido expostos em conjunto.

Também integram a exposição dois desenhos com inspiração brasileira: "Pernambuco", uma mistura de personagens, bichos e motivos locais, e "Grande Hotel de Belém", ambos realizados a partir de desenhos de anotação e de cartões-postais colecionados por Steinberg durante uma viagem que fez pelo Brasil em 1952. Na época, o artista veio acompanhar uma exposição em retrospectiva sobre sua obra, apresentada naquele ano no Museu de Arte de São Paulo (MASP). A exposição aconteceu por conta da amizade de Steinberg com Pietro Maria Bardi, diretor e mentor do MASP. Assim como Steinberg, Bardi também havia colaborado com a revista Il Settebello, quando ambos ainda moravam na Itália, na década de 1930.


















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Humor romeno
: no alto, amostras da
complexidade na implacável crítica de
costumes do traço de Saul Steinberg para
as capas da revista The New Yorker.
Acima, dois cartuns anti-fascistas,
Desfile (1945) e Arquiteto Adolf Hitler
(1943), publicados no jornal de
Nova York PM (Picture Magazine).

Abaixo, uma seleção de charges
também publicadas na The New Yorker:
Passado, de 1949; Cowboys, de 1952;
Retrato de família, na capa de 1968;
Felizes para sempre, de 1953; Miami, de
1977; e Dia de Ação de Graças, de 1976



















 
O livro “Reflexões e Sombras” nasceu das muitas conversas entre Saul Steinberg e seu amigo italiano Aldo Buzzi, que depois transcreveu e editou as gravações. Steinberg demonstra na brevidade do texto o que suas ilustrações traduzem em poucos traços. Ele conta sua história em poucas palavras e procura fazer passar diante do leitor todo o século XX, mostrando desde sua infância na Romênia ao sucesso em Nova York.



O real e o imaginado



Sou o contrário de um expressionista”, confessa Steinberg nos breves textos incluídos na edição brasileira do livro “Reflexões e Sombras”. “E, de resto, também de um impressionista”. No livro, o real e o imaginado se duplicam, como se a alegoria do desenho da capa da edição brasileira fosse uma exata tradução do conteúdo. No breve relato de Steinberg, não faltam muito bom humor e pausas de uma memória singular, num jogo metalinguístico tão saboroso como os desenhos selecionados que intercalam o texto breve.





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Saul Steinberg ficou conhecido por, usando às vezes uma única linha, questionar em seus desenhos o papel das rotinas, a vida que levamos. Uma amostra resumida do melhor de Steinberg está representada nas 63 imagens da edição brasileira de “Reflexos e Sombras”. Observações mínimas, ao mesmo tempo leves e filosóficas, figuras de cartum junto a reproduções realistas de recortes de fotografias e objetos.

O livro é preciso ao intercalar ideias e imagens na aparência simples, mas que encerram uma complexidade que se multiplica quando o leitor olha devagar para elas e se deixa envolver nos significados. O texto é brevíssimo: comentários sobre o passado, pessoas, a luz, a cor, a paisagem, o ângulo de visão – e reflexões saborosas, tanto quanto minimalistas, como o breve comentário sobre o hábito romeno de usar a expressão “sentir o gosto da lua numa colherada de água de poço”.






 






Saul Steinberg em 1962, fotografado
por Inge Morath com as máscaras 
que ele inventou e tornou célebres no
mundo inteiro. No alto, Longevidade,
de 1977. Abaixo, humor e política em
Vinte Norte-Americanos, de 1969,
Peru de Natal, arte para a capa da
revista The New Yorker em 1992.
Também abaixo, Estúdio Turco,
arte de 1953 em lápis crayon, tinta
e aquarela sobre papel; e Van Gogh,
ilustração de 1982 em colagem, giz
de cera e pintura em técnica mista





 











Na Romênia, conta Steinberg, nas noites de lua, as camponesas olhavam para o fundo dos poços até ver a lua. Então jogavam um balde no poço, lentamente puxavam a água com a lua dentro e bebiam o reflexo com uma colher. Histórias de Steinberg: o gosto, o silêncio, o gostar, o imaginar, um escritor que desenha em vez de escrever.

Como se vê na lenda romena, os traços e a palavra de Steinberg traduzem à perfeição sensações, para logo em seguida tudo desaparecer, quando se vira a página e lá está outra imagem surpreendente. Algumas imagens de jornais e revistas o leitor esquece com facilidade, outras resistem na memória e convidam a novas associações. As imagens produzidas por Steinberg pertencem a este segundo grupo.











Reflexões com recheio de imagens 



"Reflexos e Sombras", como aponta Marcelo Coelho na apresentação, traz à tona o pendor literário de um mestre do desenho que gostava de dizer que, na verdade, era um escritor que desenhava em vez de escrever. Recheado de surpreendentes desenhos e charges, o livro é dividido em quatro capítulos, nos quais Saul Steinberg descreve suas lembranças: a infância difícil na Romênia, a viagem a Milão em 1933 (onde estudou arquitetura e viveu sob o fascismo), a emigração para os Estados Unidos em 1942, suas impressões sobre a América e suas reflexões sobre a arte e o mundo artístico em geral.

Com um sofisticado senso de humor que o leitor mais desavisado pode considerar lacônico, a experiência de vida do autor acompanha os rumos da história no século passado, com uma galeria extensa de personagens descritos a mão livre e com um mínimo de palavras: tios pintores, camponesas italianas, judeus deportados, cozinheiros chineses, artistas e políticos de todo o credo em Nova York e em Washington ou solitários no exílio em qualquer recanto do planeta, incluindo os cenários brasileiros.


O Brasil é um país com o qual Steinberg manteve aproximação de longa data durante as décadas de 1940, 1950 e 1960, com relações afetivas e de trabalho, tendo produzido a primeira capa da revista brasileira "Sombra", de 1940 (reprodução abaixo), e apresentado uma exposição individual no MASP, Museu de Arte de São Paulo, na década de 1950. Steinberg, no Brasil, é sempre lembrado também pela influência decisiva que representa para o traço de muitos grandes artistas, de modo destacado para os desenhistas da geração "O Pasquim", entre eles Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e outros.



















"A ideia dos reflexos me veio à mente quando li uma observação de Pascal, citada num livro de W. H. Auden, que escreveu uma espécie de autobiografia insólita, recolhendo todas as citações que anotara ao longo da vida, o que é uma bela maneira de se mostrar como reflexo dessas mesmas citações", revela Steinberg, sempre bem-humorado, irônico e poético.

Do pai impressor, encadernador e fabricante de caixas de papelão em Bucareste, o futuro mestre do desenho herdaria o fascínio por papel, rabiscos, marcas e carimbos. Encaminhado para a engenharia, diplomou-se numa universidade em Milão, mas não chegou a exercer a profissão. Em Milão, onde viveu oito anos, descobriu sua real vocação, bolando cartuns humorísticos sob encomenda e sentindo na pele a repressão. 


Defensor contumaz da liberdade e dos direitos humanos, durante a Segunda Guerra, decidiu engajar-se e foi servir à inteligência dos Aliados na China, no Norte da África e na Itália. Depois de 1945, retornou ao engajamento com o humor e o nanquim. Tudo é relembrado com minúcias e ironias cifradas no livro "Reflexos e Sombras"
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Funny Face (1960), fotografia e humor
ao estilo Steinberg. Acima e abaixo,
uma seleção de trabalhos produzidos
nas décadas de 1940 a 1970 para a
revista The New Yorker e editados em
livro em 1979 pela Penguin Books.
Também abaixo, Steinberg fotografado
em 1978 por Evelyn Hofer


















Traduzido por Samuel Titan Jr., “Reflexos e Sombras” serviu de catálogo para a exposição no Instituto Moreira Salles e tem o mérito de apresentar a arte sofisticada de Saul Steinberg às novas gerações. "Sente-se o silêncio, crescendo entre um parágrafo e outro, à medida que a noite se aproxima. Tudo se torna, por vezes, preciso e concreto, para logo em seguida desaparecer em fantasmagoria", destaca Marcelo Coelho.

O próprio Steinberg, refletindo sobre o passado e sobre a linha e a luz confessa em uma passagem do livro – sempre com a emoção contida pela pausa, pela intensidade vertiginosa da síntese – com alguma melancolia que começou de baixo: "Aprendi trabalhando e consegui escapar de alguns becos sem saída, vulgaridades do desenho humorístico e banalidades da arte comercial". Surpresa, graça e inteligência são o que de melhor a grande arte de Saul Steinberg pode despertar.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Humor romeno. In: Blog Semióticas, 5 de outubro de 2011. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2011/10/humor-romeno.html (acessado em .../.../...).



Para comprar o livro "Reflexos e Sombras", de Saul Steinberg,  clique aqui.












No alto, Saul Steinberg fotografado
por Evelyn Hofer em uma exposição
em Long Island (EUA), segura pela mão
um recorte fotográfico dele mesmo aos
8 anos de idade. Acima, Steinberg na
Itália reencontra para um passeio de
bicicleta o amigo italiano e co-autor de
Reflexos e Sombras, Aldo Bruzzi.
Abaixo, uma seleção de amostras da
metalinguagem e da simplicidade apenas
aparente da grande arte de Steinberg













15 de julho de 2011

A arte do grafite






O público tem direito à arte. O público tem sido
ignorado pela maioria dos artistas contemporâneos,
mas o público precisa da arte. Arte é pra todos.

-- Keith Haring (1958-1990).  


Os ícones de bonequinhos das obras de Keith Haring se transformaram em sua marca registrada: tanto faz se em pinturas, desenhos, gravuras, videoclipes, silk-screens, camisetas, bótons ou publicidade de tudo. As imagens do artista norte-americano tomaram de assalto a cultura pop assim que surgiu na mídia, nos anos 1980, o interesse por aquele sujeito que desenhava com giz e tinta nas ruas e metrôs de Nova York. Keith Haring ficou popular em pouco tempo e permanece: sua obra influencia artistas até hoje no mundo inteiro. Para ele, a arte deveria ser acessível para todos – e deveria ser feita a partir da linguagem visual só na aparência simples, colorida, infantil.

Grafites personalíssimos e desenhos em murais e nas ruas de Nova York com seus bonequinhos dançando, em traços sintéticos, provocantes, de cores gritantes, viraram marca registrada de seu estilo, também imortalizado em célebres pinturas, esculturas, colagens nos acervos dos grandes museus e em milhares de ilustrações para livros, discos, fachadas, filmes, revistas, jornais. Alguns dos trabalhos mais expressivos da arte genial de Keith Haring foram reunidos em duas publicações que chegaram às livrarias brasileiras pela primeira vez, mais de duas décadas depois da morte do artista: "O Livro de Nina para Guardar Pequenas Coisas" e "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir", os dois lançados pela Cosac Naify.












A história do antológico "O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas" (Cosac Naify, 72 páginas ilustradas) começou em 1988, no Brasil, no aniversário de sete anos da pequena Nina, filha do pintor italiano Francesco Clemente, grande amigo de Haring. É um livro dos mais surpreendentes que já foram imaginados, na fronteira da palavra livro,  incomum, que mistura catálogo de arte e diário infantojuvenil, todo feito a mão livre. Trata-se, na verdade, de um objeto pessoal para desenhar, pintar, colar adesivos, folhas, fotos dos amigos, lembranças de um dia no circo e até pensamentos – desde que sejam pequenas coisas, já que as grandes, ele recomenda, devem ser guardadas em caixas.

O Livro de Nina...” de Keith Haring recebeu um tratamento caprichado na edição brasileira, que manteve o formato alongado em capa dura dos antigos cadernos de fotos e lembranças. Para preservar o aspecto artesanal do objeto-livro inventado pelo artista, a letra de Haring foi mimetizada no projeto gráfico – com tradução assinada por Alípio Correia de Franca Neto.

Um purismo curioso: o nome do autor não aparece na capa e nem na folha de rosto, que já se apresenta como dedicatória. Um sol amarelo e sorridente, típico das imagens festivas celebrizadas por Keith Haring, saúda: "Para Nina, em seu sétimo aniversário – 15 de julho de 1988. Com amor, Keith". A edição nacional do livro - que foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos e em países da Europa em 1994 e tornou-se um clássico instantâneo – traz ainda um depoimento inédito da própria protagonista, Nina Clemente.
























A arte do grafite: no alto, Keith Haring em
ação em seu ateliê em Nova York, em 1988,
fotografado por William Coupon. Acima,
um pôster sem título de 1988, seguido pelas
capas das edições nacionais dos livros
Ah, se a gente não precisasse dormir e
O livro de Nina para guardar pequenas coisas.
Também acima, o artista em ação no estúdio
em 1982, fotografado por Allan Tannenbaum.

Abaixo, fotografado 
por Wolfgang Wesener
em 1985, na casa de 
shows Palladium, em
Nova York, e uma seleção 
de imagens dos
arquivos da Fundação Keith Haring,
exceto quando indicados os
créditos e datas nas legendas
















O livro e a cozinha de Nina



A pequena Nina cresceu e hoje, aos 30 anos, ela trabalha como chefe de cozinha e estilista na Califórnia, EUA, onde também apresenta o programa de culinária "Cucina de Nina", exibido pela Plum TV (para assistir na Internet, clique aqui). "Ele tinha uma capacidade inata de transcender a vida adulta e foi meu melhor companheiro de infância, para além de nossa diferença de idade. "Ele tinha uma capacidade inata de transcender a vida adulta e foi meu melhor companheiro de infância, para além de nossa diferença de idade. Nunca o enxerguei como gente grande – todas as memórias que tenho dele são repletas de desenhos, de muitas risadas e muita alegria", explica Nina, em uma breve entrevista concedida por telefone.

"Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir" (Editora Cosac Naify, 40 páginas ilustradas) não é menos precioso que “O Livro de Nina para Guardar Pequenas Coisas”. Produzido e publicado originalmente em 1997 como um projeto da Keith Haring Foundation (criada em 1989 pelo artista para gerenciar seu acervo e apoiar projetos relacionados a crianças, a educação e a pesquisas e cuidados para pacientes com AIDS), o livro ganha na edição brasileira uma reportagem exclusiva do jornalista Mario Cesar Carvalho sobre Haring e sua relação com o Brasil, chegando a uma abordagem inédita sobre a arte do grafite.




















Traduzida em livro, a arte de Keith Haring traz uma surpresa a cada página, independente da idade do leitor, ainda que tenha endereço certo para pesquisadores, arte-educadores e para toda a nova geração de grafiteiros. Entre os incontáveis fãs estão os irmãos grafiteiros Otávio e Gustavo Pandolfo, mais conhecidos como OsGêmeos, que declaram na contracapa da edição brasileira:

Keith Haring foi sem dúvida um dos artistas da arte pop mais consagrados internacionalmente”, destacam os irmãos, no texto escrito em conjunto. “Com seu trabalho, atravessou barreiras, superou várias dificuldades e conquistou o mundo. Uma arte alegre, questionadora e divertida, com traços fortes e linguagem direta, que somou muito para a cena do grafite".








Temporadas de Keith Haring
no Brasil: o amigo Kenny Scharf
registrou passagens do artista
por Ilhéus, na Bahia (acima) e
na Bienal de São Paulo, em
1983 (fotos no alto e abaixo).
Homenageado pela Bienal, ele
produziu ao vivo um painel no
pavilhão do evento, com suas
impressões sobre o Brasil.

O painel foi fotografado, mas
terminou destruído, assim como
outras obras que Keith Haring
produziu em paredes e muros
da Avenida Sumaré e em outras
praças de São Paulo













 
No ensaio-reportagem incluído na edição nacional de "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir", Mario Cesar Carvalho destaca que a dupla paulistana OsGemeos foi convidada a homenagear Keith Haring no Lower East Side, em Nova York. "Keith fez o famoso mural na esquina da rua Houston com a Bowery, e após alguns meses o mural foi apagado. Anos depois, nós fomos convidados a pintar o mesmo espaço pela Deitch Project e Tony Goldman", contam os irmãos, confessando que foi uma honra participar da homenagem. 



Keith Haring e os brasileiros



Em busca de Keith Haring e sua relação com o Brasil, país que ele visitou diversas vezes, Mario Cesar Carvalho produziu uma autêntica reportagem investigativa. Pesquisou arquivos, foi aos álbuns de família dos amigos e colheu depoimentos importantes, e até então inéditos, de pioneiros do grafite, entre eles Ivo Mesquita, Rui Amaral e Fabiana de Barros.

No breve relato de sua pesquisa à procura da influência de Keith Haring sobre os brasileiros e sobre o destino das obras que ele pintou por aqui, Carvalho, na verdade, reconstitui a história do grafite no Brasil. Entre as preciosidades, enumera o muro pintado por Haring próximo à avenida Sumaré, em São Paulo, que hoje não existe mais. Carvalho também resgata outras imagens raras de Haring em solo brasileiro, incluindo a confecção do painel que figurou na Bienal de 1983 e outros inspirados na capoeira ou em nossas florestas.





















Retratos do artista imerso em sua
criação: acima e abaixo, Keith Haring
em Nova York, em ação na Factory de
Andy Warhol, fotografado por Nick Elgar
na abertura da Pop Shopuma mistura de
loja e instalação de arte que realizou em
1984. Nas fotos a seguir, abaixo, o artista
em 1983, em sua viagem ao Brasil, em
frente a um cartaz feito por Ziraldo, e
apresentando uma de suas performances
como artista homenageado durante a
Bienal de São Paulo














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"Quase todos os primeiros grafiteiros dos anos 1980 trabalhavam com moldes em papel para desenhar, e a passagem de Haring pela cidade ajudou a disseminar o grafite a mão livre, estilo pouco praticado na época, segundo Rui Amaral, um dos lendários pioneiros que continua na ativa", aponta Mario Cesar Carvalho, contextualizando através da presença de Keith Haring os caminhos da arte do grafite no Brasil, com destaque para a cidade de São Paulo.

Repleto de leveza e ironia, com inventividade que estimula a percepção visual e lida com a arte moderna de uma maneira contemporânea, “Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir” tira proveito dos ícones dançantes multicoloridos de Keith Haring, criador intuitivo que começou a desenhar ainda criança, quando inventava histórias em quadrinhos com o pai. Depois fez sucesso meteórico com seus trabalhos, que passaram das ruas e estações de metrô para as maiores galerias e museus do mundo. 










Um cara de óculos



É um daqueles livros que começam com uma pergunta e vão direto ao assunto. "Está vendo esse cara de óculos aí do lado?" - questiona o autor, logo na primeira linha da primeira página. "Ele é o Keith Haring. Daqui a pouco vamos olhar com atenção as obras de arte dele e várias coisas relacionadas a elas. Também vamos saber o que outras crianças pensam quando veem esses trabalhos. Mas, antes, uma perguntinha rápida: qual é, na sua opinião, a coisa mais importante para Keith Haring nessa foto? Claro! É o tênis que está calçando, um tênis do qual ele gostava ainda mais à medida que ia ficando velho e gasto! Keith sempre aparecia com esse tênis, seja quando usava camiseta e jeans, seja ao vestir um terno azul".

Com pequenos textos tão breves quanto saborosos, mais transcrição de depoimentos e análises feitas por crianças de escolas públicas de Nova York sobre o trabalho de Haring, desenhos, pinturas, uma reportagem sobre as temporadas do artista no Brasil, fotos do artista trabalhando e grafites, muitos grafites: assim é "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir". Cada desenho grafitado inspira milhares de interpretações e, no livro, as frases das crianças intercalam a sequência de imagens, mistura de curiosidade e senso de humor inteligente, para além da aparência de ingênuo, exatamente como a arte de Keith Haring.









De maneira despretensiosa, meninos e meninas de 5 a 15 anos dão a sua interpretação para alguns dos trabalhos mais representativos do artista. Diante do “Grafite 84”, com mãos que perfuram cérebro e peito, em fundo azul, os pequenos leitores de Nova York interpretam e buscam significados:

Parece uma cobra”, diz o primeiro. “Ele está enfiando a mão por dentro do corpo, talvez para agarrar o cérebro”, completa o segundo. “Ele não quer ser inteligente”, diz o terceiro menino. “Ele não gosta mais de si mesmo e está jogando fora o cérebro e o coração”, propõe um outro pequeno intérprete, ao que o terceiro menino responde:

Acho que é uma pessoa que está muito confusa, com as emoções atrapalhadas. Alguém machucou o cara emocionalmente, bateram na cabeça dele e ele não é muito bom em matemática”. O primeiro garoto conclui: “Talvez ele esteja tentando encontrar um pouco de amor”. Diante dos comentários, tão ingênuos como reveladores de sentidos e percepções da realidade, o narrador do livro interroga: “Você também já se sentiu desse jeito?”






Além de didático, sedutor em seus traços multicoloridos e poético ao extremo, "Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir" também é, acima de tudo, uma homenagem à grande arte de um jovem sonhador que rompeu barreiras e levou para galerias, museus e as mais importantes bienais do planeta Terra a efervescência pop da cultura de rua.

"Nos jantares e festas chiques, Keith era o único adulto com lugar garantido na mesas das crianças", recorda Nina Clemente ao comentar a importância e o afeto que tem pelo artista, pelo livro que ganhou de presente aos sete anos e pela edição brasileira de "O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas". Na época em que recebeu o incrível presente feito a mão por Keith Haring, Nina morava no Brasil com a família. Logo depois, mudaram-se para Nova York, onde Nina cresceu e, muito tempo depois, entendeu que o amigo que sempre visitava sua família era um artista importante.






Sintonia com a grande arte



"Morei algum tempo no Rio de Janeiro e sei que Keith ficaria contente também com a edição brasileira): a energia, as cores intensas, o ritmo e a vibração deste país estão em sintonia com sua arte e seu modo de vida. Espero que todas as crianças brasileiras, especialmente as Ninas, divirtam-se com este livro tanto quanto eu", confessa pelo telefone a protagonista do livro.

Nos Estados Unidos e na Europa, biografias, documentários, exposições, livros inéditos, reedições e antologias sobre Keith Haring também trazem o artista de volta à mídia, mais de 20 anos depois de sua morte precoce. Entre os lançamentos, um dos títulos mais aguardados é “Keith Haring Journals" (editora Penguin), que trazem em edições temáticas ilustradas os fac-símiles dos diários inéditos do artista grafiteiro que era amigo e confidente da então estreante Madonna, do também grafiteiro e companheiro de geração Jean-Michel Basquiat e do Midas todo-poderoso da Pop Art, Andy Warhol, entre outras celebridades e estrelas de grandezas variadas.









Keith Haring, referência mundial na cultura pop,
em fotos com amigos: acima, com Andy Warhol,
que homenageou como Andy Mouse ns grafites.

Abaixo: 1) com Warhol e Grace Jones, uma das 
divas da Dance Music, no lendário Studio 54;
2) também no Studio 54, em 1984, com dois
estreantes no cinema norte-americano, a brasileira
Sonia Braga e o inglês Rupert Everettfotografados
por Andy Warhol; 3) com Madonna, uma estrela em
ascensão, em 1985; 4) beijado pela amiga e confidente
Madonna, que estreava como cantora e assinava seu
primeiro contrato com a gravadora Sire, em 1982.

Também nas imagens abaixo, o artista em ação,
produzindo em 1985 duas performances da estrela
Grace Jones; no encontro com um de seus grandes
amigos e parceiros, outra lenda do grafite nas
ruas de Nova York, Jean-Michel Basquiat;
e no encontro com Warhol e Basquiat
















Também para relembrar a arte de Keith Haring, está em cartaz desde dezembro de 2010 a mais completa retrospectiva de sua carreira, na Galeria Tony Shafrazi, em Nova York. A mostra reúne suas obras mais célebres e séries completas de ilustrações e desenhos –– entre elas as que produziu para ilustrar "Apocalypse", ensaio do poeta beatnik William Burroughs (1914-1997), além de seus desenhos contra o "apartheid" e dos principais trabalhos engajados em prol dos direitos civis e dos direitos humanos em vários países.

A meta número um para Keith Haring pode ser traduzida por seu empenho para que suas obras, nos mais variados suportes, alcançassem o grande público. "Pintar para quê, se não é para ser transformado por seu próprio trabalho?", questiona Haring, em breve depoimento transcrito no perfil biográfico publicado na última página de "O Livro de Nina…".























Nesse empenho para que sua obra chegasse de graça ao maior número possível de pessoas ele também foi pioneiro: preferia expor nas ruas, em galerias do metrô, em lojas e casas noturnas "alternativas". Depois de sua morte prematura em 1990, vítima de Aids, sua obra libertária foi alçada à categoria de grande arte e levada para os grandes museus e galerias sofisticadas. 



Brasil e brincadeiras visuais



Keith Haring viajou com frequência ao Brasil, durante os anos 1980, para visitar amigos no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Durante as viagens, e nos intervalos entre elas, em seu estúdio em Nova York, produziu murais, telas e esculturas com referências à diversidade da cultura do Brasil. Na primeira vez que esteve em terras brasileiras, em 1983, foi homenageado pela Bienal de São Paulo. Pintou murais e grafites em praças e avenidas, entre eles um painel imenso no pavilhão da Bienal. Todos foram fotografados, mas ficaram no passado: nenhum dos trabalhos existe atualmente.

A aproximação do artista com o Brasil, as relações de amizade e os trabalhos que ele produziu aqui são o tema de um documentário que está sendo produzido pela Keith Haring Foundation, com roteiro e direção de Guto Barra e Gisela Matta e com a colaboração de Kenny Scharf. O filme, com o título "Restless: Keith Haring in Brasil", ainda não tem data de estreia anunciada. Em 2009, Guto Barra, em parceria com Béco Dranoff, dirigiu "Beyond Ipanema: Ondas brasileiras na música global", um documentário sobre a influência da música brasileira no exterior que foi premiado como melhor filmes nos festivais de cinema de Chicago, Miami e Vancouver.







Arte do grafite: o artista plástico Kenny Scharf
trabalha na restauração de um painel pintado
por Keith Haring nos anos 1980 na varanda de
sua casa em Serra Grande, na região de Ilhéus,
no litoral da Bahia. As restaurações de obras
que Keith Haring produziu no Brasil estão
sendo realizadas com apoio da Keith Haring
Foundation e estão registradas no documentário
Restless: Keith Haring in Brasil, com direção
e roteiro de Guto Barra e Gisela Matta













O humor característico das imagens criadas por Haring está intacto em “Ah, Se a Gente não Precisasse Dormir” e em "O Livro de Nina para Guardar Pequenas Coisas", entre trocadilhos e brincadeiras visuais típicos do universo infantil. Depois de uma página em branco, ele avisa: "Não use está página!!!". Mas avisa, na margem inferior: "Brincadeirinha! Rá rá!". Na página seguinte, com traços coloridos e sugestivos, ele propõe: "Página da pequena bagunça. Eu comecei uma bagunça. Você termina. Tente transformar minha bagunça numa pequena história".

Nascido no estado da Pensilvânia, Estados Unidos, Keith Haring interrompeu o curso de design gráfico numa escola de arte em Pittsburgh para ir morar em Nova York, onde iria descobrir a arte do grafite, que começava a tomar as ruas. Começou a ganhar notoriedade em 1980, ao desenhar a giz nas estações de metrô. Logo depois, foi convidado para expor seus trabalhos e fazer performances ao vivo de grafite nos famosos Studio 54 e Club 57, redutos vanguardistas da cidade, onde ficaria amigo e consultor para capas e encartes de álbuns, cenários, figurinos e videoclipes de vários artistas, entre eles Madonna, Grace Jones, Laurie Anderson, Lou Reed, Iggy Pop, David Bowie e David Byrne, líder dos Talking Heads.









Arte do grafite: acima,
Keith Haring em ação em
Nova York, em 1986, em
fotografias de Vladimir Sichov.
Abaixo, uma seleção de suas
criações em personalíssimos
ícones multicoloridos 








Em uma década de trabalho ininterrupto, participou de bienais no mundo inteiro e pintou diversos murais na Austrália e no Japão, além da Europa e Estados Unidos. Sua última obra pública – um mural de grandes proporções intitulado "Tuttomondo" – foi instalada na Itália e dedicada à paz universal. Ele queria um tipo de arte que fosse pública. Para Keith Haring, era inconcebível pensar a arte em separado da vida real. Seus desenhos, que têm na primazia da linha sua maior força, sobrevivem até hoje e são imitados por muitos, com objetivos os mais diversos.

Nas últimas viagens que fez ao Brasil, no final da década de 1980, Keith Haring costumava se hospedar em Ilhéus (BA), na casa do amigo e também artista Kenny Scharf, na região de Serra Grande, onde pintou murais e produziu telas e esculturas inspiradas na arte brasileira. Sempre rodeado pelas crianças, o artista deixou um registro em seus diários, em outubro de 1987, sobre sua relação com a pequena Nina Clemente:

"Alguns dias antes de deixar o Brasil e voltar a Nova York, visitei Nina e Chiara Clemente, e ficamos desenhando juntos nas paredes de sua casa. Acho que esse foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Tenho certeza de que fui um bom companheiro para muitas crianças e talvez tenha marcado suas vidas de forma duradoura, e lhes ensinado um pouco sobre o que é compartilhar e cuidar". Nina certamente concorda com todas as palavras de Keith Haring.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A arte do grafite. In: Blog Semióticas, 15 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/a-arte-do-grafite.html (acessado em .../.../…).

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