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5 de setembro de 2013

O Cruzeiro nos bastidores








Uma das maiores revistas da história da América Latina, pela qualidade e pela média de 4 milhões de leitores semanais que atingiu, em meados do século 20 – o mais importante veículo do império de imprensa dos Diários Associados, do lendário Assis Chateaubriand, O Cruzeiro, a TV de papel, como se dizia na época, fez escola, consagrou jornalistas e fotógrafos, realizou coberturas marcantes e ambiciosas sobre a vida de um país em constantes transformações, deixou saudades, muitas polêmicas e também muitas dívidas.

Durante meio século, O Cruzeiro trouxe fama, fortuna e glória para uns e ruína para outros. Entre a primeira edição, em 1928, lançada às vésperas da Revolução de 1930, e a última, em 1974, chegou a atingir em seus tempos áureos, nas décadas de 1940 e 1950, tiragens de mais de 700 mil exemplares – número absurdo, se comparado aos jornais e revistas de maior circulação naquele mesmo período, que raramente tiveram tiragens superiores a 10 mil. O Cruzeiro se manteve por 50 anos como principal fonte de leitura e informação em todo o Brasil, além da multidão de leitores que conquistou na América Latina, nos anos 1950, quando também foi editada em espanhol.

A trajetória da revista que teve sua história vinculada ao processo de modernização da sociedade brasileira e suas questões polêmicas, fundamentais para a imprensa e os desdobramentos da política, no Brasil do século 20, têm poucos registros em livro, em uma proporção inversa à sua importância. Entre os relatos publicados sobre a trajetória da revista, referência obrigatória sobre a imprensa brasileira, há a biografia "Chatô, O rei do Brasil" (Companhia das Letras, 1994), de Fernando Morais – e também o catálogo da mostra recente realizada pelo Instituto Moreira Salles, "As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960)", projeto que une extensa pesquisa acadêmica em torno da revista, exposição itinerante e publicação do catálogo com os estudos e o acervo fotográfico do IMS. 











Imagens de O Cruzeiro: no alto,
capa da primeira edição, lançada no
Rio de Janeiro em 10 de novembro
de 1928, trazendo na capa a ousada
ilustração do beijo de uma melindrosa,
como eram chamadas nos salões da
década de 1920 as moças ousadas nas
atitudes e na maneira de se vestirem.
Acima, Getúlio Vargas na capa 
e no poder, na edição de 8 de
novembro de 1930; Getúlio ao lado
de Assis Chateaubriand, em 1945;
e cena urbana de São Paulo em
1940, em foto de Jean Manzon.

Abaixo, ritual de dança da tribo Caiapó
Kuben-kran-ken na Amazônia, em
fotografia de José Medeiros, em
1957; a Guerra da Coreia, em 1951,
fotografada para O Cruzeiro por
Luciano Carneiro; e carrancas
nos barcos do Rio São Francisco, em
foto de 1943 de Marcel Gautherot








Além do catálogo da exposição e do livro de Fernando Morais, que tornou-se best-seller desde o lançamento, com a história do 'velho capitão' Assis Chateaubriand, mais temido que amado, poderoso, controvertido, há também um outro livro, que não teve destaque na época do lançamento nem tornou-se campeão de vendas, mas que apresenta um registro específico e da maior importância sobre o cotidiano da principal revista brasileira do século 20: "O Império de Papel – Os bastidores de O Cruzeiro" (Editora Sulina, 1998), escrito por alguém que por certo pode falar com propriedade sobre os bastidores da publicação: o jornalista Antonio Accioly Netto, que durante 40 anos foi redator e diretor de redação da revista. 



Nomes, datas, histórias



Na época em que "O Império de Papel" foi lançado, tive a sorte de entrevistar Accioly Netto para o jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte. O lançamento do livro, com sessão de autógrafos, chegou a ser agendado em BH, mas terminou cancelado, na véspera do evento, por causa de um problema de saúde do autor, na época com 92 anos, ainda morando no Rio de Janeiro e muito lúcido, bem-humorado, demonstrando uma memória surpreendente para nomes, datas e acontecimentos da história do Brasil – como comprovei na conversa pelo telefone.
 








Durante a entrevista, um detalhe que me deixou surpreso, além da lucidez do quase centenário Accioly, foi a extensão das atividades a que ele se dedicou. Além do seu trabalho capital em O Cruzeiro, foi também artista plástico (participou da histórica Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo), publicitário, escritor e autor teatral, com vários livros publicados. O registro das memórias do tempo de O Cruzeiro, seu último projeto, consumiu cerca de 25 anos, desde a preparação e revisão dos originais à seleção de fotografias e ilustrações para a edição do livro. Accioly Netto morreria em abril de 2001, três anos depois do lançamento de "O Império de Papel".

Antes de fazer contato com o autor, na época do lançamento, elaborei um roteiro extenso para a entrevista, mas pelo telefone ele foi econômico nas respostas, com tiradas certeiras de bom humor e ironia e, na maior parte das vezes, apontando que a pergunta feita ja estava respondida no livro, no capítulo tal e página tal. Entre uma e outra ironia, ainda lembrou dos vários jornalistas mineiros que passaram pela redação de O Cruzeiro e comentou sobre os tantos jornais importantes que surgiram, fizeram História e desapareceram em Minas Gerais, no decorrer do século 20 – entre eles, Jornal de Minas, Jornal da Noite, Diário da Tarde, Diário de Minas, A Tribuna, Folha de Minas, Diário Mercantil, O Combate, Binômio e muitos outros.









Imagens de O Cruzeiro: no alto,
índio ajuda a tirar um avião de um
atoleiro, em fotografia de José
Medeiros para a reportagem que
acompanhou uma expedição da
Aeronáutica ao Mato Grosso, em
1948. Acima, o presidente Juscelino
Kubitschek na inauguração de Brasília,
em abril de 1960, em fotografia de Luis
Carlos Barreto; e Getúlio Vargas
no Xingu, Amazônia, em 1953,
fotografado por Henri Ballot




  







Mais críticas do que admiração



Pelo telefone, o homem que esteve durante décadas à frente da redação da revista O Cruzeiro não teve reservas em criticar os políticos que estavam no poder no final dos anos 1990. Também não fez nenhum elogio à imprensa – muito pelo contrário. Sobre as grandes personalidades da época de O Cruzeiro, Accioly Netto também confessou, na entrevista e no livro, mais críticas severas do que admiração, incluindo revelações negativas sobre seu antigo chefe Assis Chateaubriand, seus subordinados e seus aduladores, e sobre medalhões da política e da cultura como Vargas, JK, Niemeyer, Carmen Miranda.

O relato do autor, testemunha ocular dos caminhos trilhados pela revista mais importante de seu tempo, resume uma reflexão muito pessoal sobre o passado, reunindo à historiografia saborosas anedotas envolvendo artistas e políticos do primeiro escalão. Tanto que ´"O Império de Papel" poderia ser classificado como livro-reportagem e também como prosa memorialista, por conta do lirismo de suas passagens confessionais.


















Imagens de O Cruzeiro: as polêmicas
e o olhar humanista nas páginas da revista
em fotografias de José Medeiros. No alto,
operários no vagão do trem no Rio de Janeiro,
em 1948; Mara Rúbia, Rainha do Baile das Atrizes,
e Francisco de Moraes Cardoso, o Rei Momo que
reinou de 1934 a 1948 no Carnaval carioca, em fotografia
de 28 de fevereiro de 1946 de Jean Manzon; e o
beijo do casal anônimo no tradicional
Baile de Carnaval do Hotel Glória, no
Rio de Janeiro, em fotografia que ilustrou
uma reportagem publicada em 1950.

Acima e abaixo, imagens de reportagem
sobre ritual de iniciação no Candomblé,
na Bahia, publicada em 1951 com o título
As Noivas dos Deuses Sanguinários”, com
texto de Arlindo Silva e 42 fotografias de
José Medeiros; reportagem de "O Cruzeiro" 
foi uma resposta a matéria sobre o mesmo tema
publicada na revista da França Paris Match,
também em 1951, considerada ofensiva,
sensacionalista e preconceituosa.

Também abaixo, outra revolução
de costumes em O Cruzeiro através
dos anúncios publicitários, agentes
importantes no processo de modernização
da sociedade brasileira








 



Há também o impressionante e permanente sucesso de público, que fez a revista esgotar nas bancas desde a primeira edição, mantendo de forma ininterrupta o mesmo apelo até que houve a ruína financeira, a morte de Chateaubriand e o esfacelamento do império. Accioly recorda que, mesmo em ruína financeira, O Cruzeiro ainda conservava uma vendagem relativamente boa quando teve sua publicação interrompida. O fim veio em 1974, quando o título foi cedido para pagar dívidas atrasadas e voltou a circular, em versões limitadas e canhestras, até 1975. 



Uma revista assassinada



Com o fechamento da revista, o sofisticado equipamento gráfico foi liquidado a preço de ferro-velho, a memorável equipe de redação no Rio de Janeiro se dispersou e os arquivos da revista – considerados à época os melhores já reunidos por uma publicação em toda a história da imprensa no Brasil – foram arrematados pelo jornal Estado de Minas, sendo transferidos em caminhões para Belo Horizonte. Duas décadas e meia depois da “débácle”, Accioly publicou seu relato sobre a experiência na revista, definido por ele como "um acerto de contas com o passado e com uma revista que foi assassinada".











Os originais de Accioly tiveram a edição final organizada por Ruy Castro e Heloísa Seixas, que mantiveram o tom confessional e a narrativa em primeira pessoa, concisa e equilibrada, pontuada por muitas fotografias e fac-símiles dos arquivos pessoais do autor. Accioly resume os 46 anos de circulação de O Cruzeiro em breves 160 páginas, intercalando a leveza e a complexidade da trajetória com suas lembranças privilegiadas de quem acompanhou 'de dentro' cada número semanal da revista, desde o primeiro, em 1928, até a derrocada do Império Chateaubriand.

Através do relato por vezes irônico, por vezes direto e contundente do autor, "O Império de Papel" apresenta um inventário dos bastidores da revista que formatou o imaginário de milhões de brasileiros por décadas seguidas, antes do sucesso do rádio ou da onipresença da TV. Nas páginas do inventário assinado por Accioly surgem nomes conhecidos, outros nem tanto, e muitas artimanhas que ainda hoje continuam a reger as complexas relações entre imprensa e política. 











Sucessos permanentes de O Cruzeiro:
acima, O Amigo da Onça, de Péricles.
Abaixo, a baiana de Salvador Marta Rocha,
primeira Miss Brasil, eleita em 26 de junho
de 1954, na capa da revista em 1° de agosto
do mesmo ano, na edição que trouxe um famoso
ensaio fotográfico imitado há décadas por todas
as candidatas aos títulos de Miss; e a celebração
de Odete Lara, Glória Menezes, Leonardo Villar
e Norma Bengell pela premiação em 1962 de
"O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte,
versão da peça teatral de Dias Gomes, até hoje
o único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro,
prêmio principal no Festival de Cannes.

Também abaixo: Geraldo Vandré nas páginas de
O Cruzeiro em 2 de outubro de 1968, na edição
que denunciou a desclassificação da canção
"Pra não dizer que não falei das flores" no
3º Festival Internacional da Canção, produzido
pela TV Globo. A canção de Vandré, apesar de
ser a grande favorita do público, não foi a vencedora
do festival por imposição da censura da ditadura militar.
O prêmio de campeã ficou com "Sabiá", canção de
Chico Buarque em parceria com Tom Jobim.

Na sequência abaixo, uma seleção em homenagem a
As Garotas, página criada e ilustrada por Alceu Penna,
publicada semanalmente durante 26 anos consecutivos,
de 1938 a 1964, levando para todo o Brasil a moda e os
costumes cariocas; e a estrela Carmen Miranda, grande
recordista de capas na trajetória de O Cruzeiro











  
Notáveis no 'esquadrão de ouro'



Também surge no livro de Accioly um elenco interminável de personalidades notáveis: aquelas que acabaram virando notícia – artistas, políticos, atletas, jogadores de futebol, nomes de primeira grandeza na história brasileira, alguns visitantes estrangeiros – e aquelas que fizeram a notícia, incluindo o trabalho em dupla de repórter e fotógrafo, que O Cruzeiro inaugurou e manteve como linha de frente, e célebres redatores, colunistas, chargistas, ilustradores. 

Um dos maiores sucessos de O Cruzeiro, a seção e o personagem "O Amigo da Onça" foram criados por um dos cartunistas fixos da revista, Péricles, inspirado em um outro personagem de sucesso na imprensa argentina da primeira metade do século 20. Outro grande sucesso da revista foi a seção "As Garotas", coluna impressa em cores semanalmente entre 1938-1964, produzida por Alceu Penna com seu traço característico em ilustrações sobre as 'jovens modernas' e breves textos de ironia e humor, levando para todo o Brasil a moda e os costumes cariocas. A seção "As Garotas" também foi considerada referência no comércio de tecidos e produtos direcionados ao público feminino e precursora na criação de uma moda brasileira. 


















Além de Péricles e Alceu, nomes que permanecem em destaque na imprensa como Millôr Fernandes e Ziraldo também fizeram parte dos quadros da revista, assim como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rachel de Queiroz e muitos outros. "O Cruzeiro só fez o sucesso que fez, durante tanto tempo, porque contava com um 'esquadrão de ouro' de grandes repórteres e de grandes fotógrafos. Eles é que foram as verdadeiras estrelas, porque levaram a atividade de imprensa no Brasil a um patamar novo e muito nobre. O 'esquadrão de ouro' de O Cruzeiro provocou uma profunda revolução no Brasil e no jornalismo brasileiro", defende Accioly, relembrando uma ou outra das grandes reportagens que fizeram história sobre índios, misses, escândalos, estrelas e até discos voadores, para destacar o mérito dos profissionais que fizeram a revista e que permanecem entre os mais brilhantes na imprensa brasileira.

"O Império de Papel" apresenta a lista completa do 'esquadrão de ouro' da revista que, em seus tempos áureos, era comparada a publicações internacionais como Life, Look, Vogue, Cosmopolitan, entre outras. Estão na lista o repórter David Nasser, que formou dupla com o fotógrafo Jean Manzon, além de outras duplas memoráveis reunindo nomes como Mário de Moraes e Ubiratan Lemos, Arlindo Silva e Jorge Ferreira, Odorico Tavares e José Medeiros, João Martins e Eduardo Keffel, Luciano Carneiro, Edmar Morel, Eugênio Silva, Flávio Damm, Carlos Moskovics, Salomão Scliar, Roberto Maia, Indalécio Wanderley, Pierre Verger, Luis Carlos Barreto – além de muitos e muitos outros e do próprio Accioly Netto, seguramente um dos personagens principais na saga de O Cruzeiro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Cruzeiro nos bastidores. In: Blog Semióticas, 15 de setembro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/09/o-cruzeiro-nos-bastidores.html (acessado em .../.../...).












Acima, capa do catálogo da exposição
organizada pelo Instituto Moreira Salles;
e fotografia das páginas de O Cruzeiro
com publicidade em que uma família
assiste à novidade da TV em São Paulo,
em 1950, época da inauguração da pioneira
TV Tupi dos Diários Associados de
Assis Chateubriand. Abaixo, a estrela
da TV Tupi, Hebe Camargo, na capa
de O Cruzeiro em 1963; Leila Diniz na
edição de junho de 1967; e Rita Lee
em uma das últimas edições da
revista, em 1974, fotografada
por Indalécio Wanderley














7 de maio de 2012

Saudades da Amélia





Mas o meu nome ninguém vai jogar na lama
diz o dito popular: morre o homem, fica a fama.

–– Ataulfo Alves, “Na cadência do samba”.
 





Meses antes do centenário, foram anunciados projetos milionários e ambiciosos, com captação de recursos através das leis de incentivo, para a realização de exposições multimídia que viajariam pelas capitais, documentários de longa-metragem, musicais reunindo elenco de estrelas. Mas passou o tempo, quase nada se concretizou e o centenário do cantor e compositor Ataulfo Alves (1909-1969) passou em brancas nuvens.

De concreto houve apenas o lançamento de um CD pela Lua Music, com novas versões de seus grandes sucessos, um programa da TV Globo exibido de madrugada, a biografia escrita pelo jornalista Sérgio Cabral e uma ou outra matéria em jornais e revistas. Na pequena Miraí, na Zona da Mata de Minas Gerais, terra natal de Ataulfo, imortalizada nos versos de “Meus tempos de criança”, a instalação de uma estátua, uma missa e um mausoléu humilde aberto no cemitério foram as homenagens que a cidade prestou a seu filho mais ilustre.

Os tímidos tributos foram muito pouco diante da importância de Ataulfo – personalidade que o compositor e historiador do samba Nei Lopes, autor de “Zé Kéti: O Samba sem Senhor” (Relume Dumará, 2000) e “Partido-Alto, Samba de Bamba” (editora Pallas, 2005), classifica como “um dos pilares sobre os quais se ergueu a música popular brasileira”. Nascido no dia 2 de maio de 1909, Ataulfo escreveu 320 canções e foi gravado pelos grandes da música no Brasil desde a década de 1930.









No alto, Ataulfo Alves e suas pastoras em
foto promocional da década de 1940; acima,
estátua em homenagem ao compositor na praça
central da cidade de Miraí, em Minas Gerais.

Abaixo, Ataulfo em 1944 com Olga, Marilu
e Alda, a primeira formação do grupo
Ataulfo Alves e suas Pastoras, e
fotografado para a revista O Cruzeiro
na década de 1960










Um dos raros contratados pela Rádio Nacional durante 30 anos, até sua morte em 20 de maio de 1969, Ataulfo também foi um dos fundadores e principais expoentes da União Brasileira de Compositores (UBC), forte sociedade de direitos autorais, precursora do famigerado ECAD. Sérgio Cabral, que no final do ano do centenário lançou a biografia intitulada "Ataulfo Alves – Vida e Obra" (Editora Lazuli), destaca que ele foi o primeiro negro a fazer sucesso como cantor no Brasil, com a gravação de “Leva meu samba”, lançada em 1941.

Ataulfo foi um dos maiores colecionadores de sucessos que marcaram época na música brasileira e que sobrevivem até hoje no imaginário popular”, apontou Cabral na entrevista que fiz com ele por telefone, em março de 2010. “Acho importante reconhecer que Ataulfo foi um pioneiro em várias frentes. Basta dizer que, com 'Leva meu samba' e principalmente com 'Amélia', parceria com Mário Lago, ele foi o primeiro negro a fazer sucesso como cantor no Brasil. Conheci bem o Ataulfo, convivi com ele. Era um sujeito consciente do que representava ser negro e fazer sucesso e administrava muito bem o ranço racista que era muito forte”. 

 







O mais elegante



Cabral também lembrou que Ataulfo Alves fazia questão de se destacar pela elegância e prezava a amizade de políticos. “Ele causou frisson quando apareceu pela primeira vez na lista dos mais elegantes da coluna do Ibrahim Sued. E mais ainda quando foi eleito o mais elegante, em 1961. Um destaque merecido. Ataulfo era a elegância em pessoa. Foi difícil chegar onde ele chegou, mas ele enfrentou e venceu. No começo da carreira ele tinha apenas um terno, que sua esposa, Dona Judite, lavava de noite para ele usar novamente no dia seguinte”.

A trajetória de Ataulfo ajudou muitos outros a superar muitas barreiras, segundo Cabral. “Mas no fundo ele era um ingênuo, que não tirava proveito das situações e que sempre preferia a conciliação. Ele tinha muito orgulho de ser um artista que prezava da amizade de políticos do primeiro escalão, gente poderosa como Getúlio Vargas e mais tarde Juscelino Kubitschek, entre muitos outros”. Pergunto sobre os motivos da demora do livro, que só foi publicado 40 anos depois da morte do compositor.







Não, não foi uma demora. Na verdade o Ataulfo não precisava de mim”, ironizou Cabral. “Ele foi bem-sucedido, desfilava de Cadillac, teve seu merecido destaque. E eu desde aquela época dei mais importância aos sambistas mais marginalizados, Ismael Silva, Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti. Hoje a coisa se inverteu e todos comemoram os sambas de Cartola e Nelson Cavaquinho. O que estas poucas homenagens no centenário do Ataulfo provaram é que ele está injustamente esquecido”, completou.

No livro, Cabral resgata histórias saborosas – entre elas a gênese de “Amélia”: o que se sabe é que Mário Lago (foto abaixo) ficou irritado porque Ataulfo mexeu muito na letra e na estrutura da canção e decidiu que não iria mais assinar a autorização para que ela fosse gravada. Depois da insistência, Lago pediu um adiantamento no pagamento do direito autoral e Ataulfo, para conseguir o dinheiro e a autorização, transferiu os direitos sobre “Amélia” para a gravadora Vitale. Resultado: sua música de maior sucesso foi a que lhe rendeu os menores direitos autorais.







E mais: às vésperas do carnaval de 1942, os três cantores convidados, Cyro Monteiro, Orlando Silva e Moreira da Silva, se recusaram a gravar. Moreira da Silva chegou a declarar que “Amélia” não era um samba, que parecia mais com uma marcha fúnebre. Ataulfo enfrentou o desafio e gravou ele mesmo a canção – que emplacou como o grande sucesso daquele carnaval e permanece até hoje em destaque no cancioneiro da MPB. Tanto que o nome Amélia foi registrado no dicionário “Aurélio” como sinônimo de "mulher que aceita toda sorte de privações e vexames sem reclamar, por amor a seu homem".



Batucada de bamba




Ataulfo morreu em 1969, mas as novas versões para seus antigos sucessos retornam sempre na voz dos mais variados intérpretes, de Beth Carvalho e Martinho da Vila a Maria Bethânia, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, passando por Novos Baianos e Cássia Eller – sem contar Itamar Assumpção e a banda Isca de Polícia, que fizeram em 1995 um dos mais inspirados tributos a Ataulfo: o CD e a série de shows intitulados “Pra Sempre Agora”. Lançado pela Paradoxx, o CD recriou 20 canções de Ataulfo e conquistou o prêmio de melhor do ano pela APCA.

 
 






Foi ouvindo “Ai, que saudade da Amélia” e outras releituras do repertório do mestre da velha guarda, no carnaval de 2009, que o produtor musical Thiago Marques Luiz tomou a decisão de abraçar um projeto que acabaria por consumir meses de trabalho exaustivo: produzir um disco que reunisse, em gravações inéditas, artistas de diferentes gerações e estilos para novas versões em homenagem a Ataulfo Alves.

O projeto idealizado por Thiago buscava, principalmente, novas abordagens para os sucessos do compositor – clássicos tantas vezes regravados como “Na cadência do samba”, “Pois é”, “Meus tempos de criança”, “Laranja madura”, “Mulata assanhada” e “Você passa, eu acho graça”, entre muitos outros, que marcaram época, desde a década de 1930, na voz de reis e rainhas do rádio e nas releituras mais recentes.







Com ajuda do também produtor e pesquisador Marcelo Fróes, que cedeu a maior parte da extensa discografia de Ataulfo, incluindo uma coleção de antigos LPs, Thiago mergulhou na pesquisa sobre a trajetória das cerca de 320 composições do criador de “Ai, que saudades da Amélia”. Em seguida, iniciou uma investida por e-mail para pedir sugestões a jornalistas e críticos de música sobre o repertório e os artistas que pudessem gravar as novas versões.

"Deu muito trabalho, mas acredito que estas novas gravações conseguem dimensionar um panorama representativo do Ataulfo, tão importante e sempre esquecido quando se fala dos maiores da música popular no Brasil", aponta Thiago. O resultado do empenho do produtor e dos demais técnicos e artistas envolvidos no projeto chegou às lojas no apagar das luzes do ano do centenário: "Ataulfo Alves – 100 Anos", lançado pela Lua Music em box com dois CDs.








O projeto coordenado por Thiago reúne gravações inéditas e inspiradas de nomes tradicionais – Elza Soares, Alaíde Costa, Germano Mathias, Ângela Ro Ro, Zezé Motta, Maria Alcina, Luiz Melodia, Luiz Ayrão... – e expoentes da nova geração da MPB, incluindo as participações especiais de dois filhos do compositor, Ataulpho Alves Jr. e Adeílton Alves. Todos tiveram total liberdade para recriar as canções, garante o produtor, lembrando que interferiu o mínimo possível para preservar a interpretação de cada um.
 


Uma música atemporal



"Alguns convidados trouxeram sua própria banda", destaca Thiago, sem poupar elogios aos 140 músicos e artistas envolvidos na produção das 34 canções selecionadas. Desde o lançamento dos CDs, o produtor conseguiu reunir a maior parte dos artistas em alguns shows que aconteceram em São Paulo. "O público conhece de cor todas as músicas, mas sabe pouco sobre Ataulfo. A música dele é atemporal e ouso dizer que fica bem em qualquer versão", reconhece o produtor.








"Daqui a 100 anos não estaremos vivos, mas aposto que haverá novas e novas redescobertas e releituras destas canções tão especiais que emocionam todo mundo". Thiago concorda que as comemorações do centenário do compositor ficaram muito aquém do merecido. "Aconteceram os shows, lançamos os CDs, o Sérgio Cabral publicou a biografia. Mas é pouco para a importância do Ataulfo e para o valor que ele representa na música e na cultura do Brasil".

O produtor também lamenta não ter conseguido concretizar o sonho de levar a Miraí o show com os artistas reunidos nos CDs do projeto "100 Anos". Mas ele diz que ainda não descartou a possibilidade. "Levar os artistas do projeto para tocar na cidade de Miraí foi um sonho acalentado desde o começo. Seria o lugar perfeito para a homenagem, mas não conseguimos confirmar nada por enquanto. Está marcado para o futuro".







Entre as gravações reunidas em "Ataulfo 100 Anos", Thiago diz que não tem uma preferida. "Todas as canções do Ataulfo são muito interessantes, todas têm uma personalidade difícil de comparar. Todas mesmo. Talvez por ser filho de um sanfoneiro lá do interior de Minas, ele trouxe para o samba aquele tom de toada sertaneja, melancólico, indolente”, avalia. Ele também faz questão de destacar que o compositor de "Amélia" é fundamental para a música no Brasil.

Ataulfo tem o mesmo naipe de Noel, Cartola, Ary Barroso ou Tom Jobim. Ele é sensacional. Nos shows, o que mais me impressiona é que as plateias cantam todas as canções, do primeiro ao último verso. As canções do Ataulfo têm uma força que ultrapassa o tempo e comove todo mundo. O público conhece de cor todas as músicas, mas sabe pouco sobre o cantor e compositor Ataulfo", reconhece Thiago, lamentando que, na conclusão de seu projeto, uma canção tenha sido esquecida e ficado de fora dos dois CDs: "O bonde de São Januário".








Parceria do compositor com Wilson Batista, "O bonde de São Januário" foi um dos primeiros sucessos e um dos poucos problemas que Ataulfo teve com a censura feroz da Era Vargas. Afinal, ele se dizia getulista e chegou a compor sambas em homenagem ao presidente. Na canção em questão, a censura obrigou Ataulfo a mudar a letra: de "o bonde de São Januário/ leva mais um otário..." para "leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar". A versão alterada seria o grande sucesso do carnaval em 1941.
 


Menino em Miraí



Um dos sete filhos do Capitão Severino, sanfoneiro, violeiro e repentista da zona rural de Miraí, desde os 8 anos de idade Ataulfo já improvisava versos e melodias. Aos 10 anos, perdeu o pai e teve que trocar a música pelo trabalho pesado. Foi leiteiro, condutor de bois e lavrador de café e milho. Até que a mãe e os irmãos foram morar em Miraí, onde Ataulfo trocou o trabalho na roça por outros ofícios: foi carregador de malas e engraxate na estação de trens e depois aprendiz de marceneiro.









Carmen Miranda, a primeira rainha do rádio,
em fotografia autografada de 1930 e em 1933
com dois dos futuros parceiros de Ataulfo: os
compositores Brenno Ferreira e Josué de Barros.

Abaixo, uma seleção de bambas em foto de 1943:
Cascata, Donga, Ataulfo, Pixinguinha, João da Baiana,
Ismael Silva e Alfredinho do Flautim; de pé, a
primeira formação das pastoras de Ataulfo









Aos 17 anos, deixou Miraí para tentar a sorte no Rio de Janeiro, acompanhando o médico Afrânio Moreira Resende. No Rio, não demorou a conseguir emprego numa farmácia e conheceu Carmen Miranda, que estava estreando como cantora no rádio e o apresentaria às rodas de samba nos morros cariocas. Em 1933, Carmen gravaria a primeira canção de Ataulfo, "Tempo perdido". Foi também com apoio de Carmen que ele conseguiu emplacar seus primeiros sucessos populares, que vieram em 1936 com "Saudade dela", lançada por Sílvio Caldas, e "Quanta tristeza", gravada por Carlos Galhardo.

Desde aquela época, Ataulfo compôs em parcerias com Bide, Marçal, Josué de Barros, Roberto Martins, Assis Valente e Claudionor Cruz, entre outros. Dois de seus maiores sucessos foram parcerias com Mário Lago: "Ai, que saudade da Amélia" e "Atire a primeira pedra". Na estreia como intérprete, com “Leva Meu Samba”, em 1941, passaria a apresentar-se como Ataulfo Alves e suas Pastoras, trocando o Ataulpho da grafia que recebeu por batismo pela forma mais simplicada: Ataulfo.


















No alto, Ataulfo Alves fotografado em 1957 com
o presidente Juscelino Kubitschek e o mestre do
jazz Louis Armstrong. Acima, uma das suas
últimas apresentações em programas de TV, no
final dos anos 1960, ao lado de Roberto Carlos,
com Caçulinha ao fundo; e Ataulfo com
a estreante Clara Nunes.

Abaixo, Ataulfo em 1961, na época em que
foi eleito pela coluna social de Ibrahim Sued,
do jornal O Globo, com o título de
"o homem mais elegante do Brasil".
Também abaixo, Ataulfo em foto de
David Drew Zingg para reportagem
da revista Realidade em 1965 em
um bar no centro do Rio de Janeiro










Compositor de "Pois é", "Mulata assanhada", "Laranja madura", "Meus tempos de criança", "Na cadência do samba" (Quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba...), "Saudades da Amélia" e tantos clássicos do cancioneiro do Brasil que permanecem no imaginário coletivo, falando do preconceito de cor, fazendo o elogio da mulher amada e submissa e do sofrimento pelo engano amoroso, Ataulfo Alves começou a perder espaço com o surgimento da Bossa Nova. Para os jovens compositores e intérpretes do movimento, Ataulfo e suas canções eram por demais identificados com a velha guarda. Avesso às polêmicas, Ataulfo foi aos poucos saindo de cena.

No final da década de 1960, ainda teria destaque em 1967, quando “Amélia” ganhou a versão de Roberto Carlos, ídolo da Jovem Guarda, e em 1968, quando o samba “Você passa, eu acho graça”, parceria de Ataulfo e Carlos Imperial, lançou ao sucesso uma jovem cantora estreante de Minas Gerais chamada Clara Nunes. Nas duas ocasiões, o sambista veterano recebeu homenagens nos programas de TV e seria festejado por Chacrinha, o Velho Guerreiro. Foi uma despedida. Em 20 de abril de 1969, depois da cirurgia motivada pelo agravamento de uma úlcera, Ataulfo morreu. Faltavam poucos dias para que ele completasse 60 anos.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Saudades da Amélia. In: Blog Semióticas, 7 de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/saudades-da-amelia.html (acessado em .../.../...).





















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