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20 de janeiro de 2012

O mundo segundo Tom Jobim






 Música é o silêncio que existe entre 

as notas, como disse algum filósofo. 

A linguagem musical me basta. 


– Tom Jobim (1927-1994).   



Tem algo de estranho e de extremamente familiar em “A Música segundo Tom Jobim”. Não é um documentário no sentido tradicional, com entrevistas, narração em off, texto na tela. Na verdade, não há nenhum texto, nenhuma entrevista, nenhuma narração. Parece mais um show, ou antes um concerto: somente a beleza das canções de Tom com ele mesmo e com dezenas de grandes intérpretes do Brasil e de outros países. Um detalhe que faz toda a diferença para embalar as melhores lembranças dos admiradores de Tom e da boa música: os créditos identificando canções, intérpretes, datas e outras referências só aparecem no final do filme...

Encontrei o diretor Nelson Pereira dos Santos após a sessão especial para convidados em Belo Horizonte, no Diamond Mall. Foi uma breve entrevista, que por sorte continuou na manhã seguinte, pelo telefone, com o cineasta a caminho do aeroporto. Começo a conversa comentando sobre a estranheza do formato do documentário e pergunto qual foi o modelo, se há outro filme que segue esta mesma estrutura narrativa.

Não verdade não há outro filme assim. Acho que inventamos um novo modelo que não havia sido realizado antes”, ele diz, bem-humorado e feliz com a recepção emocionada da plateia de convidados que incluía imprensa, músicos e a família de Tom – sua irmã Helena, que mora há alguns anos em Belo Horizonte, e os netos, entre eles Dora Jobim, que dividiu com Nelson a direção do filme. “Mas não foi uma invenção premeditada”, alerta o cineasta, realizador de “Rio, 40 Graus” (1955), “Vidas Secas” (1963), “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1971), Memórias do Cárcere” (1984) e outros clássicos de primeira linha do cinema no Brasil. 






Durante nossas tentativas de encontrar uma linguagem original para apresentar este filme, nos trabalhos de produção e no processo de edição, este novo formato foi se impondo", explica o diretor. "Chegamos a produzir uma narração em off, depois descartamos e começamos a gravar depoimentos do Chico Buarque, que seriam uma forma de apresentar cada uma das cerca de 40 canções selecionadas. Mas também descartamos quando percebemos que cada canção falava por si só e tudo ficou mais espontâneo".

Nelson Pereira dos Santos recorda que foram muitas tentativas antes de encontrar o caminho para que o documentário apresentasse sua linguagem original. "Tentamos várias opções para a narração. Todas foram descartadas porque soavam repetitivas. Até que veio o formato definitivo, sem nenhuma narração e nenhuma legenda, com maior espaço para a música e as imagens em fusões e sobreposições. Funciona até como um aspecto lúdico, porque o público pode tentar descobrir quem canta, qual é a canção. Como você viu, somente ao final do filme temos a lista de créditos que identifica cada imagem de arquivo”, explica o diretor, que também anuncia para o próximo ano um outro documentário sobre Tom Jobim, agora no formato tradicional.

Nelson destaca que o segundo filme, na verdade, ficou pronto antes deste “A Música Segundo Tom Jobim”. “O título do outro filme sobre Tom Jobim é 'A Luz do Tom' e ele foi feito primeiro. É um projeto meu e do Marcos Altberg e tem como foco três mulheres da maior importância na vida e na música do Tom. O outro documentário reúne os depoimentos das três, cada uma em seu espaço. São elas a Helena Jobim, irmã do Tom e autora de uma biografia sobre ele, mais a Thereza de Otero Hermanny, primeira namorada do Tom, primeira esposa e mãe do Paulo Jobim. E também a última esposa, a Ana Lontra Jobim, que acompanhou o Tom nos discos e nas turnês com a Banda Nova. Este segundo projeto vai estrear no início do próximo ano, assim que conseguirmos lugar na agenda dos blockbusters que dominam a programação dos cinemas brasileiros”.










Pergunto por qual motivo “A Música Segundo Tom Jobim” foi lançado antes, se foi feito depois de “A Luz do Tom”. Nelson explica que preferiu lançar o filme musical primeiro. “O musical tem mais apelo de público, porque todo mundo no mundo inteiro conhece as músicas do Tom e não tem como não se encantar. Este primeiro documentário, com as canções maravilhosas do Tom, vai funcionar também como uma espécie de campanha de divulgação para o segundo filme”, ele diz.

Pergunto também sobre a ausência mais sensível neste “A Música Segundo Tom Jobim”: João Gilberto, o principal nome da Bossa Nova e para muitos o intérprete mais importante de todos para as canções de Tom. “Isso foi um problema. Mas, na verdade, João Gilberto aparece logo nas primeiras cenas do filme, quando apresentamos os primeiros passos da Bossa Nova. João aparece em segundo plano, tocando violão enquanto Elizeth Cardoso canta. Também aparece na imagem da capa do disco 'Chega de Saudade' e em uma fotografia de um texto do próprio Tom sobre ele".

Segundo Nelson, o impedimento de uso das imagens de João Gilberto foi devido a uma questão de direitos autorais. "Todo o material disponível com imagens do João Gilberto interpretando canções do Tom Jobim está comprometido com outro filme, também um documentário, que o próprio João está produzindo e que também deve ser lançado em breve. Queria muito ter incluído as imagens do João Gilberto cantando algum dos clássicos que fizeram a história da Bossa Nova, mas infelizmente não foi possível”, confessa o cineasta.












O mundo segundo Tom Jobim: no alto,
Tom Jobim e Vinicius de Morais
em 1960, em visita a Brasília, no córrego
que inspirou a canção "Água de beber".
Acima, João Gilberto e Tom Jobim, amigos
desde o final da década de 1950; e o encontro
de um sexteto invejável nos primórdios da
Bossa Novafotografado em Nova York,
em 1962, na época do célebre concerto no
Carnegie Hall: Stan Getz, Milton Banana,
Tom Jobim, Creed Taylor e o casal
João Gilberto e Astrud Gilberto.

Abaixo, Astrud e Tom no estúdio, em 1964,
em Nova York, nas gravações de um álbum
célebre, Getz/Gilberto, que reuniu Stan Getz,
João Gilberto, Astrud e Tom, para muitos o
álbum que popularizou a Bossa Nova no mundo;
o reencontro entre João Gilberto e Tom Jobim,
depois de muitos anos de desentendimentos, no
palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
em um show histórico realizado em
dezembro de 1992. Também abaixo,
Tom com Sérgio Mendes em passeio
pelas ruas de Nova York, também em 1962;
Tom com Dorival Caymmi fotografados
no Rio de Janeiro, em 1964. Algumas das
fotografias desta postagem aparecem na
abertura e nos créditos finais do filme de
Nelson Pereira dos Santos














 



Depois da justificativa do diretor sobre João Gilberto, pergunto sobre a outra ausência também marcante do documentário: a falta de Astrud Gilberto. Por que não há nenhuma sequência no filme com a interpretação suave e marcante de Astrud, a primeira esposa de João Gilberto e primeira intérprete das canções de Tom Jobim nas versões em inglês, no mercado internacional, ainda no começo da década de 1960?

Ah, Astrud, Astrud... Foi outro grande problema, porque há muito pouco material disponível com imagens dela cantando e a negociação dos direitos autorais acabou não acontecendo a tempo. Não foi possível, ao contrário de todos os outros que aparecem no filme, com as negociações dos direitos que foram muito mais tranquilas, incluindo Elis Regina e todos os brasileiros e aqueles grandes nomes do jazz e da música internacional, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn, Errol Garner, Oscar Petterson, Judy Garland, Henri Salvador, Sammy Davis Jr. e todos os outros", explica. Segundo Nelson, todos os herdeiros cederam os direitos das imagens, sem fazer nenhuma grande exigência.













































A partir do alto, algumas das imagens que
surgem intercaladas às canções em cenas
do documentário A Música Segundo
Tom Jobim: Tom em Ipanema, na
década de 1970, e em encontros com
Chico BuarqueMilton Nascimento,
Vinicius de Moraes, Elis Regina,
Frank Sinatra. Acima, Dora Jobim,
neta de Tom, e Nelson Pereira dos Santos
no lançamento do filme no Rio de Janeiro.

Abaixo, Pixinguinha ao piano e Tom Jobim
na flauta, fotografados na visita que Pixinguinha
fez a Tom em 1971, na casa da Rua Codajás,
no Leblon, Rio de Janeiro; Tom no telhado da
casa da Rua Codajás, estudando flauta, em
1970, fotografado por Alexandre Cavalcanti;
e Tom com o maestro e compositor argentino
Astor Piazzolla, com Chico Buarque e
Caetano Veloso em 1976, nos bastidores do
Teatro Fênix, durante as gravações do
programa de TV Chico & Caetano
















Para concluir a entrevista, pergunto qual é o filme brasileiro preferido na agenda do cineasta. "Muitos", foi a resposta, entre sorrisos, depois de uma pequena pausa. Também pergunto sobre sua preferida entre todas as canções que têm a marca de Tom Jobim. Ele esboça uma gargalhada, faz uma breve pausa e diz que são todas. “Todas são lindas, cada uma mais que a outra. Mas na verdade o que acontece comigo acho que acontece com todo mundo, pois cada dia tenho uma preferida. Ou melhor, depende do dia, depende da hora, depende do estado de espírito. Mas são todas lindas. Não há motivo para escolher apenas uma delas”.

Sobre seus próximos projetos no cinema, depois de ter dedicado os últimos anos ao mergulho em profundidade na música e na Bossa Nova, através dos dois documentários sobre Tom Jobim, Nelson diz que já está trabalhando há algum tempo em um roteiro sobre outro brasileiro por certo fundamental: seu próximo filme será dedicado ao imperador Dom Pedro 2°.

Para este próximo projeto estamos ainda naquela fase tortuosa da captação de recursos", explica o diretor. "Mas está certo que será um filme sobre Dom Pedro 2°. O que pretendo é que também seja um filme diferente, que possa investir em questões de linguagem e acrescentar algo à memória que o brasileiro tem sobre nosso último imperador. O que já decidi é que será um filme que vai misturar o formato de documentário com a recriação de uma ou outra cena com atores, reconstituindo alguns aspectos daquela época, na segunda metade do século 19".












O mundo segundo Tom Jobim: no alto,

Nelson Pereira dos Santos no Rio de

Janeiro, durante as filmagens do segundo

documentário que realiza sobre Tom Jobim,

A Luz do Tom; acima, Tom Jobim em 1987,

na floresta da Tijuca, Rio de Janeiro,

fotografado para o encarte de Passarim,

seu penúltimo álbum de estúdio; e

Oscar NiemeyerVinicius de Moraes e sua

esposa Lila Bôscoli com Tom Jobimem 1956,

nos bastidores da estreia do espetáculo teatral

Orfeu da Conceiçãodepois adaptado para o cinema

como Orfeu Negro (também chamado de

Orfeu do Carnaval), filme de 1959 do

cineasta francês Marcel Camus.


Abaixo, Tom Jobim com Miúcha, que

dividiu com Nelson Pereira dos Santos

a autoria do roteiro do documentário,

fotografados no palco do Canecão, no

Rio de Janeiro, em 1977. Também

abaixo, mais sete imagens de Tom:

1) com Gal Costa na sala de concertos

Avery Fisher Hall, em Nova York, em 1987;

2) ao piano, no Rio de Janeiro, 1956;

3) com Elis Regina na sessão de

gravação de Águas de Março, em

1972; 4) o cartaz original do filme;

 5) Tom ao piano na Pedra do Arpoador,

Praia de Ipanema, Rio de Janeiro,

fotografado em 1984 por Orlando Brito;

6) uma das últimas imagens de Tom Jobim,

na mesa de um bar na Cobal do Leblon,

em 18 de novembro de 1994, em fotografia

de Leo Aversa (no dia seguinte, Tom

viajou para Nova York, onde morreria

poucos dias depois, em 8 de dezembro

de 1994); e 7) Tom no palco, no

Rio de Janeiro, durante seu

último show, em 1994








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"Posso dizer que este próximo trabalho será um filme com muito de ficção, mas baseado no trabalho de um historiador importante, o mineiro José Murilo de Carvalho, que em 2007 publicou uma biografia maravilhosa do imperador", explica o diretor. "É um projeto para os próximos meses ou para o próximo ano, porque por enquanto ainda estou com as atenções voltadas para o Tom Jobim e para o lançamento aqui e no exterior dos dois documentários. Quero acompanhar os filmes e a recepção que eles vão alcançar”, completa.

Depois da entrevista, ainda em estado de graça pela beleza do filme e das canções e pela sabedoria do cinema de Nelson Pereira dos Santos, fico pensando nas imagens e na música que, a partir do Rio de Janeiro, Tom Jobim compôs para o mundo. Uma frase muito conhecida do próprio Tom, que encerra o documentário – na verdade, a única frase, escrita ou falada, que o filme apresenta – é emblemática: “A linguagem musical me basta”.

Frase exemplar, precisa, resumo do existido, poética e extremamente familiar, que traduz à perfeição um documentário inspirado e inspirador, “inventado” a partir dos encadeamentos da seleção de canções do maestro da Bossa Nova. O filme e a frase final me fazem lembrar de outras frases célebres de Tom Jobim, quase sempre irônicas e zombeteiras, bem no espírito que o compositor fazia transparecer nas entrevistas que os programas de TV sempre reprisam. Escolho apenas duas, para concluir.

A primeira é aquela de quando lhe perguntaram o que ele tinha a dizer sobre o fato de “Garota de Ipanema” ser a segunda canção mais gravada do mundo, só perdendo para “Yesterday”, dos Beatles, e Tom respondeu: “Ah, aí não vale. Eles eram quatro e já compunham direto em inglês”. A segunda tem maior complexidade, e eleva a ironia a uma interface mais amarga, em parentesco talvez com algo de trágico ou de profundamente melancólico, quando se observa uma linha do tempo da trajetória acidentada do Brasil e dos brasileiros: Tom declarou, certa vez, que o Brasil, definitivamente, não é para principiantes



por José Antônio Orlando. 



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O mundo segundo Tom Jobim. In: Blog Semióticas, 20 de janeiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/musica-segundo-tom-jobim.html (acessado em .../.../…).


Para comprar o DVD com "A Música Segundo Tom Jobim"






















15 de outubro de 2011

Noite de Stanley Jordan






Música e natureza estão e sempre
estiveram intimamente ligadas desde
o mais antigo dos tempos da civilização

––   Stanley Jordan  
 

O concerto do improvisador Stanley Jordan voltou a provocar momentos contemplativos e comoveu o público durante mais de duas horas no Grande Teatro do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Muitos dos que presenciaram a performance surpreendente do guitarrista no mesmo palco – desde a primeira apresentação do guitarrista no mesmo Palácio das Artes, no final dos anos 1980, ou as recentes apresentações aclamadas em 2007 e 2006 – encontraram na metade do concerto o improvável: a maestria do músico norte-americano tocando e criando novas harmonias e acordes, simultaneamente, na guitarra e ao piano.

Um dos mais inventivos guitarristas em atividade, ele retornou a BH para uma única apresentação que trouxe canções do CD "State of Nature" e suas conhecidas e surpreendentes versões de clássicos do jazz, do rock e da Bossa Nova. No palco, demonstrou mais uma vez sua maestria peculiar na arte da guitarra, acompanhado por Ivan "Mamão" Conti, ex-integrante do grupo Azymuth, na bateria, e Dudu Lima, mineiro de Juiz de Fora, no baixo. Nascido em Chicago, em 1959, Stanley Jordan começou na música aos seis anos, estudando piano, aos 11 passou a dar aulas de guitarra e aos 16 ganhou um prêmio de revelação no Festival de Jazz em Nevada. A partir daí, percorre o mundo com sua personalíssima "touch technique" – uma maneira inovadora de tocar utilizando apenas o braço da guitarra.



Harmonia perfeccionista



Os fãs do guitarrista por certo recordam suas apresentações perfeccionistas em Belo Horizonte, no mesmo palco do Palácio das Artes, ou em outros festivais e teatros pelo Brasil, com seu repertório sempre surpreendente. Um repertório que pode incorporar, na mesma sequência de longos improvisos que hipnotizam a audiência, de versões das canções mais conhecidas dos Beatles ("Eleanor Rigby" é um de seus "standards" preferidos) a peças clássicas de compositores como Wolfgang Amadeus Mozart ou Ludwig van Beethoven, entre outras, além de seu acervo autoral registrado em 14 álbuns de carreira.







Para Toninho Horta e Juarez Moreira, dois dos grandes guitarristas e compositores mineiros que vão assistir ao show, Stanley Jordan é um mestre improvisador. "Ele conserva os padrões do Bebop tradicional, mas tem impressionante capacidade para o improviso. É sua maior qualidade, sem nenhuma dúvida", avalia Toninho Horta, que, de todos, ainda prefere o primeiro disco de Jordan, "Magic Touch", lançado em 1985.

"É um guitarrista atípico, que inventou um novo jeito de tocar o instrumento, que é o que melhor retrata o século XX e a nossa época, elétrica e urbana", elogia Juarez Moreira, que recorda a emoção que sentiu ao tocar guitarra para Stanley Jordan depois do primeiro show do norte-americano em Belo Horizonte, também no Palácio das Artes, no final dos anos 1980.

"Fui ao hotel e ele me convidou para tocar. Foi emocionante. Engraçado que ele achou muito diferente meu jeito de tocar guitarra. Na verdade, o jeito dele tocar é que é diferente de tudo o que conhecemos. É um grande artista", avalia Juarez. "Isso de criar o novo, criar uma terceira margem totalmente nova para a guitarra, é para poucos".









A questão ambiental



Lançado em 2008, "State of Nature" merece elogios incondicionais, concordam Toninho Horta e Juarez Moreira, que destacam no novo trabalho o lado humano e social do guitarrista, conhecido por abraçar as causas sociais, por trabalhar a musicoterapia e ser um de seus eméritos defensores e por sua militância pelas questões ambientais em seu país e durante suas turnês internacionais.

"Parte da razão pela qual fiz este álbum foi pelas revelações que descobri em minha viagem para tentar tornar-me uma pessoa melhor", afirma Stanley Jordan em breve entrevista, concedida por telefone num breve intervalo nas escalas de viagem, às vésperas do show em BH. "A outra razão pela qual gravei este CD é que venho descobrindo informações perturbadoras sobre questões ambientais como o aquecimento global e toda a degradação do nosso planeta".







O assunto preservação do meio ambiente e ecologia, ele concorda, leva inevitavelmente ao Brasil. Fã incondicional da música e dos músicos brasileiros, o guitarrista declara que o Brasil é seu segundo país quando o assunto é música. "Conheço o Brasil há muitos anos. Estive aqui várias vezes, fiz amizade com muitos músicos. Gosto do clima, da amizade, do modo como todos os brasileiros encaram a música. Gosto da música brasileira, que é sofisticada e com variações infinitas e sempre diferente, harmoniosa".

Sobre o maestro Tom Jobim, uma de suas referências, Jordan destaca seu gosto particular por duas canções: "Brigas Nunca Mais" e "Insensatez" - essa última, incluída no álbum "State of Nature". Para o músico, "há muito do samba no jazz e do jazz na Bossa Nova. Sempre gostei muito dessas misturas. Não pode haver nunca preconceito em música", explica.

Místico assumido, sem medo de confessar suas inclinações esotéricas e a contaminação que práticas e ensinamentos zen exercem em seu modo de compor e tocar, o artista costuma se inspirar em movimentos da arte marcial chinesa Tai Chi Chuan para elaborar os movimentos do corpo e da guitarra, durante suas acaloradas performances. De acordo com Stanley Jordan, "música e natureza estão e sempre estiveram intimamente ligadas, desde o mais antigo dos tempos da civilização".







Música e magia



O guitarrista tem deslumbrado plateias do mundo inteiro desde 1985, quando gravou o primeiro disco, "Magic Touch", com suas performances inovadoras, com o toque das duas mãos na guitarra - contribuição técnica ao manejo do instrumento que ele registrou na estreia e com o qual obteve instantâneo sucesso comercial e assegurou posição de destaque na indústria da música como um autêntico herói do seu instrumento. Em "State of Nature", sua estreia pelo selo baseado em Detroit, Mack Avenue Records, Jordan, ao lado do baixista Charnett Moffett e dos bateristas David Haynes e Kenwood Dennard, exibe sua técnica pioneira através de "standards" e composições originais.

Em "State of Nature", as guitarras de Stanley Jordan contam ainda com o baixista Charnett Moffett e os bateristas David Haynes e Kenwood Dennard. Os destaques incluem, além de “Insensatez” de Tom Jobim, uma prolongada abertura de "A Place in Space" e o solo de guitarra em "Andante from Mozart's Piano Concerto #21". O CD inclui outras recriações para os clássicos do jazz "All Blues", de Miles Davis, "Song for My Father", de Horace Silver, e "Steppin' Out", de Joe Jackson – essa última com a doce vocalização da filha de Jordan, Julia. 










Depois de sua terra natal, os Estados Unidos, o Brasil é o país onde ele mais tocou na vida – confessa o guitarrista, perdendo a conta de quantos shows e turnês já fez por aqui. Considerado um dos melhores do mundo em atividade e fã incondicional de compositores e músicos brasileiros, na turnê ele vem acompanhado do baterista Ivan "Mamão" Conti, do lendário grupo dos anos 1970 Azymuth, e o mineiro Dudu Lima no comando do baixo acústico, do elétrico de quatro, cinco e seis cordas e do "fretless", um baixo sem os trastes no braço.

O entrosamento do guitarrista com os músicos brasileiros dá ao espetáculo uma musicalidade especial com um repertório de interpretações de clássicos da música do Brasil e especialmente da Bossa Nova, além dos clássicos do jazz, composições do próprio Jordan e algumas surpresas reservadas para a plateia do Palácio das Artes. O trio já realizou mais de 80 apresentações nos últimos anos pelo Brasil.











Cornucópia



Conhecido por sua técnica, habilidade e originalidade, Stanley Jordan impressiona à primeira audição com seus acordes surpreendentes e complexos do jazz, dedilhados com a mão esquerda, e os velozes solos jazzísticos no estilo Bebop com a direita. Aclamado como um dos guitarristas que fizeram importantes contribuições técnicas e musicais para o instrumento, Jordan construiu uma carreira de prestígio pontuada de fatos pitorescos – entre eles ser descoberto pelas grandes gravadoras quando era artista de rua em Nova York, anos depois de ter se formado em teoria musical e composição na sisuda Universidade de Princeton.

O público dos festivais internacionais de jazz o conhece desde o final da década de 1970, mas para o grande público Stanley Jordan surgiu em meados da década de 1980, com seu primeiro disco, "Magic Touch". Filho de um pai na época desempregado e de uma professora de línguas, o guitarrista que descobriu a música estudando no piano da família, na Pensilvânia, chegou a recusar um primeiro convite do famoso produtor Bruce Lundvall, então executivo do selo Elektra Music. Lundvall o procurou para uma audição e, impressionado, convidou o artista para gravar um primeiro disco. Jordan recusou por se achar despreparado.








Anos depois, quando ainda tocava nas ruas de Nova York, aceitou nova proposta de Lundvall e começou a trilhar o caminho do sucesso internacional. Um ano e meio depois do primeiro convite, Lundvall foi para a Blue Note Records e insistiu na proposta da gravação de um disco. Stanley Jordan se tornou, então, o primeiro artista da nova fase do lendário selo de jazz.

Com o disco de estreia, "Magic Touch", foi primeiro lugar no quadro de jazz da revista "Billboard" por 51 semanas, o que lhe rendeu duas indicações para o Grammy e o Disco de Ouro certificado nos EUA e Japão. O disco, que trazia uma versão personalíssima para "The Lady in My Life", de Michael Jackson, é considerado um padrão definitivo para o gênero que ficaria conhecido no mundo inteiro como jazz contemporâneo.

Outro álbum de destaque foi "Cornucopia", em 1990, que reúne standards do jazz e do blues gravados em estúdio, entre eles "Autumn Leaves", "Impressions", "Willow Weep for Me" e "What's Going On", todos com a interpretação personalíssima e vez ou outra radical de Stanley Jordan. Em seguida, o guitarrista se mudou para a gravadora Arista e, em 1994, lançou "Bolero" – que inclui uma surpreendente versão jazzística para o clássico de Ravel. Na entrevista, Stanley Jordan reconhece que tocar nas ruas foi a melhor escola, apesar de problemas ocasionais com a polícia, que o abordava para cobrar a licença oficial, que ele nunca teve, para as apresentações que chegavam a reunir pequenas multidões.









Piano e violão



Ele diz que não lembra, mas uma rápida pesquisa revela que sua primeira apresentação em palcos brasileiros foi no final dos anos 1980, numa turnê por várias capitais. Depois retornaria com um festejado show em Búzios, no Festival de Jazz & Blues, em 2001, quando se apresentou com sua filha Julia, então adolescente. Voltaria ao mesmo festival de Búzios em 2004 e, como tomou gosto pelo Brasil, passaria a incluir o país como roteiro obrigatório para as turnês internacionais.

Sempre experimentando novos acordes e arranjos com sua síntese inteligente e sensível de variados estilos de jazz, em "State of Nature", lançado em 2008, Stanley Jordan volta a demonstrar seu virtuosismo com as cordas da guitarra e revela uma incrível habilidade com o piano. Para o show no Palácio das Artes, a plateia aguarda ansiosa: as luzes se apagam e alguns comentam entre si sobre as canções do disco em que Stanley Jordan toca duas guitarras ao mesmo tempo, incorporar sons da natureza nas gravações e dá um show quando toca, simultaneamente, piano e violão. Alguns apostam que nesta noite ele também vai surpreender. 















Com repertório centrado em "State of Nature", Stanley Jordan começa o show sozinho no palco do Grande Teatro do Palácio das Artes. Sob iluminação discreta, que alterna cores quentes e projeções de linhas geométricas e abstratas em tons de azul, apresenta três canções do mais novo CD, com arranjos muito diferentes ao vivo. Em seguida, Mozart - Andante from Mozart Piano Concerto #21 - em dedilhado frenético que faz lembrar os transes dissonantes de Jimmi Hendrix, com direito a insólitas frases de "Noite Feliz" pontuadas ao longo da melodia. Para a quinta canção, ele chama ao palco Ivan 'Mamão' Conti (bateria) e Dudu Lima ( baixo acústico e elétrico).

São memoráveis as longas séries de improvisos em "Mind Games 2", com citações que arrancam aplausos de "The Girl from Ipanema". Mais ou menos 12 minutos de fantasia, com o virtuosismo da guitarra encontrando, nos minutos finais, os inconfundíveis acordes de "Mi Cosa", clássico jazzístico que outro guitarrista, Wes Montgomery, tornou célebre. Aplausos demorados e o temor de que o concerto terminasse. Mas o melhor estava por vir.




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Os aplausos na metade da sétima canção demonstram que o público demorou a reconhecer os acordes Bossa Nova de "Insensatez" ("Que você fez, coração mais descuidado..."), recriada pelo guitarrista em variações de acordes tão melancólicos e pausados que deixariam comovidos os próprios Tom Jobim e João Gilberto – referências confessas de Stanley Jordan, além de Milton Nascimento e outros heróis, sobre a música do Brasil. 



Clássicos do Bebop Jazz



Na sequência, Stanley Jordan dispara com três clássicos jazzísticos do estilo Bebop – "All Blues", de Miles Davis, "Song for My Father", de Horace Silver, e "Steppin' Out", de Joe Jackson, as duas últimas com a impecável e inacreditável performance de Stanley Jordan na guitarra e no piano, ao mesmo tempo. Comoção e aplausos. Muitos aplausos. Depois vem os acordes de "St. James Infirmary", com a guitarra de Stanley Jordan recriando os longos solos melancólicos do trompete de Louis Armstrong. O final se mistura com acordes de outro clássico do Jazz, "Summertime", com o guitarrista trazendo à memória da plateia os solos de Satchmo e até a lembrança da voz cristalina de Ella Fitzgerald. Técnica e virtuosismo do músico que revela as proximidades antes insuspeitadas das duas canções. Emocionante.
 





 
"A Place in Space", com duração de inacreditáveis 18 minutos, encerra o show, com o guitarrista a dedilhar durante uma longa sequência de aplausos um mix dos diversos estilos que aprendeu ao tocar na rua para atrair a atenção dos mais diferentes tipos de pessoas. Os aplausos demorados não se interrompem durante os improvisos que antecedem um bis antológico. 

Sozinho no palco, o guitarrista ultrapassa limites e recria "Over the Rainbow" (de "O Mágico de Oz"), terminando na invenção do contínuo em novos acordes para "'Round Midnight" e "Someday My Prince Will Come" (da versão Disney para "Cinderela"). Timbres de rock, riffs de Jimi Hendrix, os graves e agudos de Janis Joplin, acordes de Miles Davis, dim-dim-dim dom-dom-dom de João Gilberto? Tudo evoca e ressoa em harmonia na guitarra hipnótica de Stanley Jordan.

A plateia, meio que acordada de um transe feliz e passageiro, cai de novo em aplausos. Muitos aplausos. Como se não bastasse, quando a multidão lenta e meio sorridente de ouvintes contentes passa caminhando pelo saguão para a saída, lá estava ele: ele mesmo, que há pouco levava a todos a lugares insuspeitados estava ali e ficaria ali, horas pela noite adentro, sentado na mesinha diante da longa fila, posando com fãs para fotos e autografando discos de vinil, CDs e DVDs no foyer do Grande Teatro do Palácio das Artes. Uma noite fria de novembro de 2009 para guardar com uma dúzia de canções memoráveis. Sofisticada e imprevisível, a arte de Stanley Jordan.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A noite de Stanley Jordan. In: Blog Semióticas, 15 de outubro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/10/noite-de-stanley-jordan.html (acessado em .../.../...).






















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