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8 de abril de 2017

Arte segundo Duchamp





A arte é a única forma de atividade por
meio da qual o homem se manifesta como
verdadeiro indivíduo. Mas pode alguém
fazer obras que não sejam de arte?

–– Marcel Duchamp  



Há exatamente 100 anos, o sempre surpreendente Marcel Duchamp (1887-1968) apresentava, em um salão anual de artistas independentes de Nova York, uma peça que foi recusada pelos membros do júri, mas que a partir daquela data conquistaria um lugar invejável como uma das mais desconcertantes e mais marcantes de todos os tempos, símbolo do poder questionador da Grande Arte e referência pioneira do que ficaria conhecido desde aquela época como “ready-made”, “arte conceitual” e “instalação”. No começo, a peça de Duchamp tinha contornos de um caso apenas divertido, contado entre amigos, como se fosse uma anedota, mas foi ganhando peso e uma importância singular na História da Arte.

Nascido na França e radicado nos Estados Unidos, Duchamp foi um exímio pintor, escultor, fotógrafo, cineasta, poeta, mestre do jogo de xadrez e ator performático, especialmente quando surgia travestido com a identidade secreta em seu alter-ego Rrose Sélavy, que alcançou o status de celebridade na cena artística de Nova York e chegou a assinar a autoria de vários “ready-made” – numa época em que a palavra “performance” sequer era usada no sentido teatral e espetacular do termo. Duchamp ficaria consagrado como um dos artistas mais influentes do século 20, mas é importante lembrar que o acontecimento de 1917 não foi um caso isolado em sua trajetória. 

Duchamp vinha de experiências anteriores que investiam no limite das fronteiras da arte – entre elas sua célebre pintura de 1912 “Le nu descendant l'escalier n° 2” (Nu descendo escadas número 2), que sugere abstrações sobre uma figura humana em movimentos de linha descendente da esquerda para a direita; e a escultura “La jeune mariée mise à nue par ses célibataires, même” (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), uma sobreposição de objetos, cabides e tecidos aparentemente aleatórios, de formas geométricas, iniciada em 1915 e concluída somente em 1923. Muitas outras de suas experiências radicais de criação e ruptura vieram antes e viriam depois, nos anos e décadas seguintes, mas o que se passou em 1917 foi, por certo, um divisor de águas para o próprio Duchamp e para a História da Arte.











Arte segundo Duchamp: no alto, Marcel Duchamp
fotografado por Man Ray em casa, em Paris, em
fevereiro de 1968. Acima, Duchamp em cena com
o célebre experimentalismo de Five-Way Portrait,
atribuído por ele como Self-portrait, criação do ano
de 1917; e Duchamp vestido a caráter como
seu alter-ego mais famoso, Rrose Sélavy, em 1921,
fotografado por Man Ray. Abaixo, uma das réplicas
de Fountain no acervo do MoMA de Nova York







Sobre aquela manhã, no mês de abril de 1917, contam os biógrafos, e ele próprio confirmou em depoimentos e em diversas entrevistas tempos depois: Duchamp leu uma nota publicada no jornal sobre a seleção organizada pela Society of Independent Artists e teve imediatamente a inspiração mirabolante – a concretização de uma ideia que ele vinha ruminando por dias e dias depois de algumas conversas com dois amigos, Walter Arensberg e Joseph Stella, artistas e colecionadores de arte.


Inspiração performática




Segundo relata o próprio Duchamp, naquela manhã ele foi à loja JL Mott Iron Works, que comercializava louças sanitárias e artigos para encanadores, na 118 Fifth Avenue, em Nova York, e comprou um mictório da marca Bedforshire, modelo padrão masculino, de porcelana cor branca. Chegando em sua oficina, ele decidiu escrever na lateral da peça, usando um pincel e tinta preta, “R. Mutt 1917”, que seriam seu pseudônimo e a data da criação da obra. Depois fez um embrulho com papel e corda e despachou, sob o título “Fountain” (Fonte), para o endereço indicado pelo salão.









Arte segundo Duchamp
: o artista surpreendente
em dois momentos –– em 1917, fotografado
em Nova York por Edward Steichen, e em
1967, no MoMA, ao lado de uma réplica de
sua lendária criação. Abaixo, uma relíquia do
álbum de família: os irmãos Marcel Duchamp
Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon
em fotografia de 1913. Assim como Marcel,
seus irmãos também tiveram destaque como
artistas: Jacques na pintura e na gravura, 
Raymond no desenho e na escultura






.




O júri, do qual Duchamp e Arensberg também faziam parte (uma vez que eram do grupo de fundadores e membros do Conselho de Administração da Sociedade), recebeu a peça e, depois do espanto inicial e de muito confabular, decidiu rejeitar a obra, sob o argumento da dúvida: não conseguiram chegar a um acordo para definir se era ou não uma obra de arte. Vencidos em sua argumentação a favor da aceitação da obra, Duchamp e Arensberg decidiram renunciar de imediato à presença no júri e ao Conselho de Administração, para surpresa dos demais integrantes, que na época não sabiam que o próprio Duchamp era o artista que assinava por pseudônimo.

Presente naquela sessão do júri e nos dias seguintes, no período de montagem da exposição, que seria aberta ao público no dia 10 de abril de 1917, o fotógrafo Alfred Stieglitz, a pedido de Duchamp, que era seu amigo, tentou e conseguiu fazer um registro da peça recusada. A fotografia de Stieglitz acabou sendo fundamental quando, semanas depois, Marcel Duchamp decidiu retomar a história inaugural de sua obra performática. A retomada aconteceu em grande estilo e ganhou repercussão ainda maior que o primeiro gesto iconoclasta que culminou na recusa da peça pelo júri.

Ao conseguir a fotografia de Stieglitz, o próprio Duchamp partiu para a mistificação: publicou a foto e um artigo anônimo, escrito por ele, com retórica entusiasmada, em defesa da obra ousada e verdadeiramente moderna do senhor Richard Mutt, no segundo número de “The Blind Man” (O homem cego), jornal produzido por Duchamp e seus amigos do círculo Dadaísta de Nova York, entre eles Henri-Pierre Roche, Beatrice Wood, Francis Picabia e Mina Loy. O artigo anônimo de Duchamp, metamorfoseado em ardoroso defensor do trabalho inovador de Richard Mutt, imortalizou a “Fonte” e conseguiu sacudir os alicerces da criação artística com um questionamento: o valor de uma obra estava realmente na criação original ou estava no contexto em que aquela determinada obra fosse inserida? Em outras palavras: Duchamp instituiu que, rigorosamente, tudo pode vir a ser arte.







Arte segundo Duchamp: a fotografia de
Alfred Stieglitz, única imagem conhecida
da obra original de Duchamp de 1917, em
fac-símile do artigo “anônimo” publicado
por Duchamp na revista The Blind Man















Iconoclastia inaugural



Hoje, um século depois, a iconoclastia inaugural de Marcel Duchamp ainda rende inúmeras controvérsias e polêmicas que vão de algumas dúvidas sobre a real paternidade da ideia original da “Fonte”, que teria sido apropriada por ele de outras iniciativas menos célebres de seus contemporâneos, às discussões historiográficas sobre a origem daquele objeto, que era raro na época e que, desde então, adquiriu uma aura mítica e mística. Há, inclusive, argumentações de pesquisadores que negam a veracidade da informação de que aquela peça industrial era comercializada em Nova York pela citada loja da 118 Fifth Avenue em 1917.

As polêmicas, variadas, vêm, enfim, perpetuar o esforço de mistificação para o qual o próprio Duchamp investiu, com apoio e cumplicidade de seu círculo de amigos na época e nas décadas seguintes, nos movimentos de vanguarda que estavam por vir. Por ironia do destino, com o passar do tempo a obra mais radical e mais provocativa de Duchamp seria totalmente e definitivamente assimilada como totem sagrado dos mais disputados pelos grandes museus. Entre outras informações intrigantes que ainda permanecem pairando sobre a obra iconoclasta de Duchamp, há também um mistério insolúvel: o destino que teve a peça original –– que nunca mais foi localizada depois da recusa pelo júri do salão de 1917 da Sociedade de Artistas Independentes de Nova York.













No ano de 1964, depois de recusar muitas propostas, Duchamp concordou em assinar uma autorização para que o historiador de arte Arturo Schwarz produzisse, com uma equipe de designers de Milão, algumas réplicas para serem apresentadas em Nova York quando houvesse a efeméride dos 50 anos do caso “Fountain”. As réplicas trouxeram à tona novamente a polêmica e, passada a efeméride, foram adquiridas por valores milionários, mantidos em sigilo, por grandes museus –– o MoMA de San Francisco, o Tate Modern de Londres e o Centro Pompidou de Paris. Uma das obras mais iconoclastas da história da arte, acusada durante anos de ter insultado instituições da arte, foi absolvida e absorvida com suas réplicas pelo sistema e com o consentimento do próprio Duchamp. 


Castelo da Pureza



Nas entrevistas que concedeu mais tarde, Duchamp apresentou suas versões para as estratégias de 1917 e sobre outras experiências de antes e depois da “Fonte”, sobre as relações com a família, com os amigos e com os parceiros de criação, sobre os casamentos e os casos de amor que teve – um deles, talvez o mais intenso, mais controverso e duradouro, com a brasileira Maria Martins, uma personalidade à frente de seu tempo, com talentos diversos bem ao estilo múltiplo e radical de Duchamp, com quem colaborou em diversas ocasiões e dividiu a autoria de trabalhos importantes que em sua época provocaram escândalo. Ainda hoje pouco conhecida no Brasil, Maria Martins desenvolveu grande parte de sua carreira no exterior, acompanhando o marido (o embaixador Carlos Martins) e angariando prestígio entre artistas, críticos e pesquisadores da história da arte como escultora, gravurista, pintora, desenhista, escritora, musicista e única mulher presente e atuante no círculo fechado dos Dadaístas e dos Surrealistas na França e nos Estados Unidos.

A aproximação intelectual e as relações amorosas entre os dois é tema do livro “Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos”, de Raul Antelo, publicado pela Editora UFMG. O autor parte da permanência de Duchamp em Buenos Aires, entre 1918 e 1919, para traçar o percurso da aproximação de Maria com Marcel naquele ano e nos anos e décadas seguintes, além de questionar a presença e a importância dos avatares latino-americanos na trajetória de Duchamp e em suas aproximações, oposições e diferenças com as noções de arte e política em relação a seus contemporâneos surrealistas André Breton e Georges Bataille. Algumas das célebres entrevistas com Duchamp são dados preciosos na argumentação de Raul Antelo, da mesma forma que elas também deram origem a outros livros que se tornaram obras de referência, como no caso das entrevistas que concedeu em 1955 para o diretor do Guggenhein Museum de Nova York, James Johnson Sweeney, publicadas em 1958 no emblemático livro “Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day” (W.W. Norton Editors), organizado por James Nelson.









Arte segundo Duchamp: o artista fotografado
na intimidade e entre amigos – no alto, com
Francis Picabia e Béatrice Wood , seus
parceiros em Nova York, em 1917. Acima,
com Lydie Sarazin-Levassor, com quem
Duchamp se casou em 1927.

Abaixo, em raras imagens com a
brasileira Maria Martins, sua musa, caso
amoroso e parceira em diversos trabalhos,
em 1947 (a partir da esquerda, Yves Tanguy,
Kay Sage, Duchamp, Maria Martins, Frederick
Kiesler, Enrico Donati) e em 1948 (a partir da
esquerda, Kay Sage, Duchamp, Maria Martins,
Arshile Gorky, Frederick Kiesler). Também
abaixo, Maria Martins em 1941, com uma de
suas esculturas, fotografada por Herbert Gehr,
e Maria em 1944, homenageada em
fotografia e intervenção com
sobreposições de John Rawlings


    


 










Outra série memorável de entrevistas de Duchamp foi concedida para Richard Hamilton, a convite da BBC de Londres, em 1961, somente publicadas em livro em 2009, com o título “Le Grand Dechiffreur: Richard Hamilton on Marcel Duchamp” (editora JRP Ringier). Hamilton, também artista plástico, autor da célebre colagem de 1956 “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” (O que é mesmo que faz as casas de hoje em dia serem tão diferentes, tão atraentes?), que rendeu a ele o codinome “pai da Pop Art”, também reconstruiu em parceria com Duchamp, nos anos 1960, obras-primas como “La Boîte verte” (de 1934) e “La jeune mariée...”, que estavam com paradeiro desconhecido, depois de décadas, assim como a “Fonte”, e apenas permaneciam registradas em fotografias.

Entre outros capítulos fundamentais para a compreensão da obra e do pensamento de Duchamp também estão a primeira publicação em livro de seus textos teóricos, “Marchand du Sel: Écrits de Marcel Duchamp”, em edição organizada em 1959 por Michel Snouillet; e “Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza”, livro de 1968 de Octavio Paz, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva. Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata do México, Prêmio Nobel de 1990, Octavio Paz conviveu nos anos 1940 em Paris com os principais artistas e mentores dos movimentos de vanguarda, como o surrealista André Breton, além de Pablo Picasso e do próprio Duchamp.










Arte segundo Duchamp: a escultura/instalação
Étant Donnés (Sendo dada), de 1946, que teve
Maria Martins como modelo, atualmente no acervo
do Philadelphia Museum of Art. Abaixo, performance
entre amigos: a partir da esquerda, uma manequim,
André Breton, Marcel Duchamp, Max Ernst e
Leonora Carrington com "Nude at the window",
pintura de 1941 de Morris Hirshfield, fotografados
em 1942 em Nova York por Hermann Landshoff.
Também abaixo, a obra criada entre 1915-1923,
La jeune mariée mise à nue par ses
célibataires, même, reconstruída por Duchamp
em parceria com Richard Hamilton em 1965











Na década de 1960, Octavio Paz retomou os contatos e a amizade com Duchamp, realizando uma série de entrevistas que se tornariam antológicas e que, depois de transformadas em belos ensaios sobre forma e linguagem, deram origem ao livro de 1968. Identificando a cronologia e o contexto da sucessão de rupturas que Duchamp provocou desde o começo do século 20, Paz apresenta nos ensaios índices para comparações entre as criações de Duchamp e obras de Picasso e outros mestres da Arte Moderna. 

Segundo a análise comparativa de Paz, os quadros de Picasso são imagens, enquanto os de Duchamp são uma reflexão sobre a imagem. A intenção de Duchamp, na interpretação conceitual e poética de Paz, procura substituir a pintura-pintura pela pintura-ideia, por isso aplica “elementos estranhos” em suas obras. Duchamp, em cada peça, alerta Paz, pretende construir tão somente auto-questionamentos. “Na arte o único valor que conta é a forma. Ou mais exatamente: as formas são as emissoras de significados. A forma projeta sentido, é um aparelho de significar”, completa. Diante da constatação sobre a supremacia da forma, Duchamp assume, desde a primeira década do século 20, o papel de pioneiro que vem instalar o “ready-made”, a neutralidade, a significação que surge exatamente da não-significação.









Arte segundo Duchamp: no alto, outra peça
de escândalo com a reprodução adulterada
de 1919 da Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci,
com detalhes masculinos e o título L.H.O.O.Q.
que é um trocadilho infame para a expressão
“Elle a chaud au cul” (Ela tem fogo no rabo).
Acima, Nu descendant un escalier n° 2,
pintura em óleo sobre tela d1912.

Abaixo, o estudo fotográfico de 1887 de
Eadweard Muybridge, Woman walking
downstairscitado como inspiração
por Duchamp, e também Duchamp
descendant un escalierfotografia de
1952 de Eliot Elisofon com efeitos de
sobreposição realizada em homenagem
à célebre pintura de Duchamp de 1912.
Também abaixo, na sequência,
Marcel Duchamp e Man Ray
na disputa em uma partida de Xadrez,
em cena de Entre’Acte, filme de 1924
de René Claire Duchamp fotografado
para a capa do livro Marchand du Sel:
Ecrits de Marcel Duchamp (Mercador
de sal: escritos de Marcel Duchamp),
publicado pela primeira vez em 1959


















Engenheiro do Tempo Perdido


Outras entrevistas célebres de Marcel Duchamp, concedidas a Pierre Cabanne, foram publicadas na imprensa e em revistas acadêmicas da França e de outros países, na década de 1960, e depois editadas em livro, também lançado no Brasil pela Editora Perspectiva com o título “Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido”. Décadas depois do acontecimento que foi a “Fonte”, Duchamp revela alguns motivos que o levaram às criações de vanguarda e a manter em segredo, por muitos anos, sua autoria sobre a obra surpreendente e polêmica de 1917.

Assinando seu trabalho radical com o anonimato do pseudônimo “R. Mutt”, explicou Duchamp, ele poderia testar a abertura dos seus pares da Sociedade dos Artistas Independentes de Nova York, poderia confirmar ou não o senso de liberdade e de modernidade que os orientava e poderia observar a recepção a uma obra realmente inovadora, porque não se ajustava a padrões estéticos e morais convencionados na época. Para não comprometer o resultado, por conta de suas relações pessoais com os membros do conselho, precisava omitir que era um trabalho de sua autoria. E por qual motivo escolheu assinar como “R. Mutt”? Foi um trocadilho sobre a palavra alemã “armut”, que tem o significado irônico de “pobreza”, conforme foi cogitado por alguns historiadores e críticos de arte?

Não, não foi intencional esse trocadilho, segundo Duchamp. “Mutt” vem de Mott Works, marca registrada daquela loja de um grande fabricante de equipamentos sanitários no começo do século 20. Para não ficar muito evidente a relação com o nome da loja, Duchamp alterou a grafia de Mott para Mutt, também porque lembrou, naquela manhã de abril de 1917, dos personagens da história em quadrinhos de humor que fazia sucesso na época, nos jornais e revistas, “Mutt and Jeff”, criação de Bud Fisher, acrescentando o prenome “Richard”, que soava como uma gíria francesa para quem tinha o hábito de guardar “sacos de dinheiro”. E assim surgiu o estranho e lendário caso da arte de “R. Mutt”.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte segundo Duchamp. In: Blog Semióticas, 8 de abril de 2017. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2017/04/arte-segundo-ducamp.html (acessado em .../.../...). 



Alguns livros sobre Marcel Duchamp:


Para comprar Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido,  clique aqui.


Para comprar Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza,  clique aqui.


Para comprar Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos,  clique aqui.


Para comprar Duchamp: Uma biografia,  clique aqui.


Para acessar a entrevista de Duchamp publicada no livro Wisdom: Conversation with the elder wise men of our day, clique aqui. 


Para acessar o catálogo da exposição da National Gallery sobre as parcerias entre Duchamp e Richard Hamilton, clique aqui.








Arte segundo Duchampacima, o artista
em 1967 fotografado por Richard Hamilton.
Abaixo, Duchamp e Man Ray em 1968,
no apartamento de Duchamp, em Paris,
em fotografia de Henri Cartier-Bresson








23 de março de 2016

Sagrado e Profano em Chagall





A Bíblia é um drama mundano o mundo é uma parábola religiosa. 
 
––  Marc Chagall (1887-1985).   
...........

Arte e Religião sempre estiveram muito próximas – desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e, posteriormente, com o Barroco.

Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de alguns dos grandes artistas no último século – com um florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall, um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista, gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração religiosa.

Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de 1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall. Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.







Sagrado e Profano em Chagall:
no alto, o artista no ateliê em Paris, em
1955, em frente a Le roi David, pintura
em óleo sobre tela de 1952. Acima, em
família, com a esposa, Bella Rosenfeld,
e a filha, Ida, fotografados em 1933,
em Paris, por André Kertész.

Abaixo, uma amostras das primeiras
obras de Chagall produzidas sob
influência das vanguardas, em 1911,
que foram batizadas por seu amigo
Blaise Cendrars: Moi et le Village
(Eu e a Vila) e Le soldat boit
(O soldado bebe). Também abaixo,
duas das primeiras obras-primas de
Chagall com temática de inspiração
religiosa, Tentation (Adam et Eve)
e Calvaire, pinturas em óleo
sobre tela de 1912


 












Judeu da Bielorrússia



Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall também merece lugar de destaque entre os principais artistas gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.

Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de 1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky, Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.








Sagrado e Profano em Chagall:
beijos e casais em cenas amorosas
segundo a arte do mestre da cor
nas pinturas em óleo sobre tela de
sua primeira fase, produzidas antes
da Primeira Guerra Mundial – acima,
Les amoureux, de 1913, e Les
amants en bleus, de 1914.
Abaixo, Aniversaire, de 1915,
Amateurs en Rouge (1916)









Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars: “Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna – e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em 1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era adolescente em sua aldeia.



Comissário para as Belas Artes



Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917 na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia – com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França. Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.









        




Sagrado e Profano em Chagall:
acima, os amigos Pablo Picasso e
Marc Chagall em 1955, em St. Paul
de Vence, França, fotografados
por Philippe Halsman; e Chagall
no ateliê em Paris, em 1934, em
fotografia feita no processo de
autochrome por Roger Violett.

Abaixo, uma pintura em óleo sobre
tela de 1938 com tema bíblico,
La crucifixion blanche (A crucificação
branca), e La résurrection, aquarela
sobre papel de 1948. Também abaixo,
uma seleção de três imagens da
série de gravuras produzidas sob
encomenda para ilustrar edições da
Bíblia Sagrada apresentadas na
exposição em Madri: Moisés e a
Serpente (1956); Moisés e as
Tábuas Sagradas (1952);
A Crucificação (1952)



















O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos – especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob encomenda para reprodução em livros e revistas.

Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De 1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos, encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos. Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo, sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios: judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como arte degenerada.







Sagrado e Profano em Chagall:
gravuras apresentadas na mostra
sobre Chagall em Madri – acima,
a cena dos namorados românticos
em Les Amoureux de la Tour Eiffel
(Amantes da Torre Eiffel, de 1960),
em que o monumento de Paris vem
substituir a cruz em cena que remete
ao sofrimento após a Crucificação.

Abaixo, Paysage bleu (Paisagem azul,
1958), referência direta a Maria que tem
nos braços Jesus Cristo, na tradicional
cena da “Pietá”; La descente de croix
(O descimento da cruz), a Paixão de
Cristo na versão surrealista, em pintura
de 1976; e a alegoria representada com
os Três Reis Magos que assumem
feições de animais em
Les trois acrobates (1957)












Folclore, sonhos, fragmentos do real



De volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente “religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série “Les Âmes Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.

Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.    

Outras vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de Chagall estão representadas em Madri através de fotografias – caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
















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Sagrado e Profano em Chagall:
a partir do alto, detalhe do teto da
Ópera de Paris, em design, pinturas
e relevos criados em 1964 por Chagall;
o mosaico em técnica mista que representa
Profeta Elias, criado em 1970 e instalado
no Museu Marc Chagall em Nice, França;
e quatro das 96 gravuras de Chagall criadas
sob encomenda para ilustrar um clássico
da literatura russa, o romance de
Nikolai Gogol, Almas Mortas.

Abaixo, La Saint Famille: Maria, o menino
Jesus e José de Nazaré, a Sagrada Família,
em litografia de 1970 de Chagall; Four Seasons
(Quatro estações), mural em cerâmica construído
em mosaico por Chagall em 1972 e instalado na
Chase Tower Plaza, em Chicago (EUA);
seguido de Les amoureux de Vence, de
1957, e a religiosidade traduzida em
duas obras-primas de 1966: Noé et l'Arc en
Ciel (Noé e o Arco-Íris) e Abraham et les
Trois Anges (Abraão e os Três Anjos).
No final da página, imagens da exposição
na Fundação Canal, em Madri, e Chagall
fotografado em janeiro de 1964 por
Lee Lockwood em frente aos vitrais
criados pelo artista para a sede
da ONU em Nova York











Se um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.

“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.











O acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas, tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam violinos.

Na terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise Vollard para as edições da Bíblia Sagrada, as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média. Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao cavalete...”


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog Semióticas, 23 de março de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html (acessado em .../.../...).


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